Personagens – Canal Fez História https://canalfezhistoria.com/ Faz e Fez História você encontra aqui!! Sun, 15 Jun 2025 22:52:10 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.8.3 https://canalfezhistoria.com/wp-content/uploads/2025/04/canal-fez-historia-150x150.jpg Personagens – Canal Fez História https://canalfezhistoria.com/ 32 32 Isabel I da Inglaterra https://canalfezhistoria.com/isabel-i-da-inglaterra/ https://canalfezhistoria.com/isabel-i-da-inglaterra/#respond Tue, 18 Mar 2025 13:19:29 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6331 Isabel I (Greenwich, 7 de setembro de 1533 – Richmond, 24 de março de 1603), também chamada de “A Rainha Virgem”, “Gloriana” ou “Boa Rainha Bess” (“Bess” era como Roberto Durdley, seu favorito, a chamava) foi a Rainha da Inglaterra e Irlanda de 1558 até sua morte e a quinta e última monarca da Casa de Tudor. Como filha do rei Henrique VIII, Isabel nasceu dentro da linha de sucessão; entretanto, sua mãe Ana Bolena foi executada dois anos e meio após seu nascimento e o casamento de seus pais foi anulado.

Isabel assim foi declarada ilegítima. Seu meio-irmão Eduardo VI sucedeu a Henrique e reinou até morrer em 1553. Ele colocou a coroa em Joana Grey, excluindo da sucessão suas meia-irmãs Isabel e a católica Maria, apesar da existência de um estatuto declarando o contrário. Seu testamento acabou sendo colocado de lado e Maria tornou-se rainha, com Joana sendo executada. Isabel ficou presa por quase um ano durante o reinado de Maria por suspeitas de apoiar os rebeldes protestantes. 

Isabel sucedeu Maria em 1558 e passou a reinar com um bom conselho. Ela muito dependia de um grupo de conselheiros de confiança liderados por Guilherme Cecil, Barão Burghley. Uma de suas primeiras ações como rainha foi o estabelecimento de uma igreja protestante inglesa, da qual tornou-se sua Governadora Suprema. A Resolução Religiosa Isabelina mais tarde desenvolveu-se na atual Igreja Anglicana. Era esperado que ela se casasse e gerasse um herdeiro para continuar a linhagem da Casa de Tudor. Entretanto, nunca se casou apesar de vários pretendentes. Isabel ficou famosa por sua virgindade enquanto envelhecia. Um culto cresceu ao seu redor em que ela era celebrada em pinturas, desfiles e obras literárias. 

No governo, Isabel foi mais moderada que seu pai e seus meio-irmãos. Um de seus lemas era video et taceo (“Vejo e digo nada”). Era relativamente tolerante em questões religiosas, evitando perseguições sistemáticas. Depois de 1570, quando o papa a declarou ilegítima e liberou seus súditos de obedecê-la, várias conspirações ameaçaram sua vida. Todos os complôs foram derrotados com a ajuda do serviço secreto de seus ministros.

Isabel era cautelosa em assuntos estrangeiros, movimentando-se entre as grandes potências da França e Espanha. Ela apoiou, sem entusiasmo, várias campanhas militares ineficazes e mal equipadas nos Países Baixos do Sul, na França e Irlanda. Porém, por volta da década de 1580, uma guerra contra a Espanha já não podia mais ser evitada. Quando os espanhóis finalmente decidiram em 1588 tentar conquistar a Inglaterra, o fracasso da Invencível Armada associou Isabel a uma das maiores vitórias militares da história inglesa.

Seu reinado é conhecido como Período Isabelino, famoso acima de tudo pelo florescimento do drama inglês, liderado por dramaturgos como William Shakespeare e Christopher Marlowe, além das proezas marítimas de aventureiros ingleses como Sir Francis Drake. Alguns historiadores são mais contidos em suas avaliações de Isabel. Eles a representam como uma governante temperamental, às vezes indecisa e que teve muita sorte. Uma série de problemas econômicos e militares diminuíram sua popularidade ao final de seu reinado.

Isabel é reconhecida como uma intérprete carismática e uma sobrevivente obstinada em um período quando o governo era desorganizado e limitado, e monarcas de países vizinhos enfrentavam problemas internos que ameaçavam seus tronos. Assim foi o caso de sua rival Maria da Escócia, quem ela prendeu em 1568, e acabou por executar em 1587. Depois dos curtos reinados de Eduardo VI e Maria I, seu período de 44 anos no trono deu estabilidade ao reino e ajudou a criar um sentimento de identidade nacional. 

Início de vida

Isabel Tudor nasceu no Palácio de Placentia, Greenwich, em 7 de setembro de 1533, sendo nomeada em homenagem a suas avós: Isabel de Iorque e Isabel Howard. Era a segunda filha do rei Henrique VIII de Inglaterra a sobreviver a infância. Sua mãe era Ana Bolena, a segunda esposa de Henrique. Ao nascer, Isabel era a herdeira presuntiva do trono inglês. Sua meia-irmã mais velha, Maria, havia perdido sua posição como legítima quando o rei anulou seu casamento com sua mãe, Catarina de Aragão, para se casar com Ana e ter um herdeiro homem a fim de garantir a sobrevivência da dinastia da Casa de Tudor.

Ela foi batizada em 10 de setembro por Tomás Cranmer, Arcebispo da Cantuária; seus padrinhos foram Henrique Courtenay, 1º Marquês de Exeter; Isabel Howard, Duquesa de Norfolk; e Margarida Wotton, Viúva Marquesa de Dorset. 

Sua mãe foi executada por acusações de adultério, incesto e alta traição em 19 de maio de 1536, quando Isabel tinha apenas dois anos e oito meses. Ela foi declarada ilegítima e privada de seu lugar na sucessão real. Onze dias após a execução de Ana Bolena, Henrique se casou com Joana Seymour, porém ela acabou morrendo de complicações pós-parto depois de dar à luz em 1537 ao príncipe Eduardo. Desde seu nascimento, Eduardo era o herdeiro aparente incontestável do trono. Isabel foi colocada em sua criadagem e carregou o pano batismal em seu batizado.

A primeira governanta ou Senhora Patroa de Isabel, Margarida Bryan, escreveu que ela era “como para uma criança e tão gentil de condições que jamais conheci em outra em minha vida”. Isabel foi colocada aos cuidados de Branca Herbert por volta do outono de 1537, que permaneceu como Senhora Patroa até se aposentar no fim de 1545 ou início de 1546. Catarina “Kat” Ashley foi nomeada como governanta de Isabel em 1537 e permaneceu sua amiga até morrer em 1565, quando Branca Parry a sucedeu como Dama de Companhia Chefe da Câmara Privada.

Ashley ensinou a Isabel quatro línguas: francês, flamenco, italiano e espanhol. Na época em que Guilherme Grindal tornou-se seu tutor em 1544, ela já conseguia escrever em inglês, latim e italiano. Com Grindal, um tutor habilidoso e talentoso, Isabel também progrediu em francês e grego. Ele morreu em 1548, e Isabel passou a ser ensinada por Rogério Ascham, um professor simpático que acreditava que o ensino também deveria ser cativante. Quando sua educação formal terminou em 1550, ela era uma das mulheres mais bem educadas de sua geração. Isabel, ao final de sua vida, também supostamente falava galês, córnico, escocês e irlandês.

O embaixador veneziano afirmou em 1603, que ela “dominava [essas] línguas tão completamente que cada uma parecia ser sua língua nativa”. O historiador Mark Stoyle sugere que provavelmente Guilherme Killigrew, Criado da Câmara Privada e posteriormente Chanceler do Tesouro, ensinou-lhe o córnico. 

Tomás Seymour

Henrique VIII morreu em janeiro de 1547 e foi sucedido pelo filho de nove anos Eduardo VI, meio-irmão de Isabel. A sexta esposa e viúva do rei, Catarina Parr, logo se casou com Tomás Seymour, 1.º Barão Seymour de Sudeley, tio de Eduardo e irmão de Eduardo Seymour, 1.º Duque de Somerset e Lorde Protetor. O casal colocou Isabel em sua criadagem em Chelsea, Londres. Lá ela passou por uma crise emocional que alguns historiadores acreditam tê-la afetado pelo restante de sua vida.

Seymour, então com quase quarenta anos, porém possuindo charme e “poderoso apelo sexual”, envolveu-se em brincadeiras grosseiras com Isabel, então com quatorze anos. Isso incluía entrar em seu quarto durante a noite, cutucá-la e bater em suas nádegas. Parr juntava-se ao marido ao invés de confrontá-lo por suas atividades impróprias. Duas vezes ela também cutucou a menina e em uma ocasião a segurou enquanto Seymour cortava sua camisola “em milhares de pedaços”. Entretanto, Parr acabou a situação assim que descobriu os dois abraçados. Isabel foi mandada embora em maio de 1548. 

Tomás Seymour planejava controlar a família real e tentou ser nomeado Governador da Pessoa Real. Quando Parr morreu no parto em 5 de setembro de 1548, ele renovou seu interesse por Isabel e tinha a intenção de se casar com ela. Os detalhes de seu comportamento com Isabel tornaram-se públicos; isso foi a última gota para seu irmão e para o conselho regencial. Seymour foi preso em janeiro de 1549 sob suspeita de se casar com Isabel e depor o irmão. Vivendo na Casa Hatfield, Isabel não admitia nada. Sua teimosia irritou o interrogador sir Roberto Tyrwhitt, que relatou “Não vejo em seu rosto que é culpada”. Seymour foi decapitado em 29 de março. 

Reinado de Maria I

Eduardo VI morreu em 6 de julho de 1553 aos quinze anos de idade. Seu testamento colocava de lado o Terceiro Ato de Sucessão e excluía tanto Maria quanto Isabel da sucessão, declarando como herdeira, ao invés disso, Joana Grey, neta de Maria, Duquesa de Suffolk, irmã de Henrique VIII. Joana foi proclamada rainha pelo Conselho Privado, porém ela logo perdeu o apoio e foi deposta em nove dias. Maria entrou triunfantemente em Londres com Isabel ao seu lado. 

As demonstrações de solidariedade entre as irmãs duraram pouco. A católica devota Maria, estava determinada em esmagar a fé protestante em que Isabel havia sido educada, ordenando que todos comparecessem às missas católicas; Isabel tinha que obedecer. A popularidade inicial de Maria logo desapareceu em 1554, quando anunciou planos para se casar com o espanhol Filipe, Príncipe das Astúrias, um católico e filho do imperador Carlos V. O descontentamento rapidamente cresceu pelo país e muitos olhavam para Isabel como o centro da oposição religiosa.

A Rebelião de Wyatt estourou entre janeiro e fevereiro de 1554, porém foi logo suprimida. Isabel foi levada à corte e interrogada sobre seu papel, sendo aprisionada em 18 de março, na Torre de Londres. Ela fervorosamente declarou sua inocência. Apesar de ser improvável que ela tenha tramado junto aos rebeldes, sabe-se que alguns deles a abordaram. Simão Renard, embaixador de Carlos e confidente próximo de Maria, afirmou que o trono dela nunca estaria seguro enquanto Isabel vivesse, com o chanceler Estêvão Gardiner. trabalhando para colocá-la sob julgamento.

Os apoiadores de Isabel dentro do governo, incluindo Guilherme Paget, 1.º Barão Paget, convenceu a rainha a poupar sua irmã na falta de evidências conclusivas. Ao invés disso, Isabel foi levada da Torre a Woodstock, passando quase um ano em prisão domiciliar sob a supervisão de sir Henrique Bedingfeld. Multidões a aclamaram no caminho. 

Isabel foi chamada de volta à corte em 17 de abril de 1555 para comparecer aos estágios finais da aparente gravidez de Maria. Se a irmã e o filho morressem, Isabel tornaria-se rainha. Por outro lado, se Maria desse à luz uma criança saudável, suas chances de ascender ao trono muito diminuiriam. Quando ficou claro que Maria não estava grávida, ninguém mais acreditava que ela seria capaz de produzir um herdeiro. Assim, a sucessão de Isabel parecia garantida. 

Filipe ascendeu ao trono espanhol em 1556 como Filipe II, reconhecendo a nova realidade política e cultivando sua cunhada. Ela era uma melhor aliada que a principal alternativa, a rainha Maria da Escócia, que havia crescido na França e estava prometida a Francisco, Delfim da França. Quando Maria adoeceu em 1558, ele enviou Gómez Suárez de Figueroa e Córdoba, 1.º Duque de Feria, para consultar com Isabel.

A entrevista ocorreu na Casa Hatfield, onde tinha voltado a viver em outubro de 1555. Ela já estava fazendo planos para seu governo por volta de outubro de 1558. A rainha acabou reconhecendo a meia-irmã como sua herdeira em 6 de novembro. Maria morreu em 17 de novembro de 1558 e Isabel ascendeu ao trono. 

Ascensão

Isabel tornou-se rainha aos 25 anos de idade e declarou suas intenções a seu conselho e outros pariatos que haviam ido para a Casa Hatfield jurar lealdade. O discurso contém o primeiro relato de sua adoção da teologia política medieval dos “dois corpos” do soberano: o corpo natural e o corpo político. 

“Meus senhores, a lei da natureza faz-me lamentar por minha irmã; o fardo que caiu em cima de mim me deixa espantada, e mesmo assim, considerando que sou uma criatura de Deus, ordenada a obedecer Sua nomeação, vou dessa maneira render-me, desejando do fundo do meu coração que possa ter a assistência de Sua graça para ser meu ministro de Sua vontade divina no cargo agora comprometido a mim. E como sou apenas um único corpo naturalmente concebido, embora por Sua permissão de um corpo político para governar, assim desejo a todos ... que me ajudem, que eu com meu governo e vós com seu serviço possamos prestar bom serviço a Deus Todo Poderoso e deixarmos algum conforto em nossa posteridade na terra. Pretendo tomar todas as minhas ações por bons conselhos e consultas.” 

Ela foi recebida calorosamente por cidadãos e saudada por orações e desfiles, a maioria em forte protestantismo, enquanto progredia por Londres triunfantemente na véspera de sua cerimônia de coroação. As repostas graciosas e abertas de Isabel encantaram os espectadores, que estavam “maravilhosamente arrebatados”. No dia seguinte, 15 de janeiro de 1559, Ela foi coroada e ungida na Abadia de Westminster por Owen Oglethorpe, o católico Bispo de Carlisle. Isabel então foi apresentada à aceitação de seu povo, em meio aos sons ensurdecedores de órgãos, pífaros, trombetas, tambores e sinos. 

Resolução religiosa

As convicções religiosas pessoais de Isabel foram muito discutidas por historiadores. Era protestante, porém mantinha símbolos católicos como o crucifixo e diminuía o papel dos sermões, indo contra a crença protestante. 

Ela e seus conselheiros viam a ameaça de uma cruzada católica contra a Inglaterra. Isabel assim procurou uma solução protestante que não ofenderia muito os católicos enquanto ao mesmo tempo atendia os anseios dos protestantes ingleses; entretanto, não tolerava os puritanos mais radicais, que pressionavam por reformas drásticas. Assim, o parlamento começou a legislar em 1559 uma igreja baseada na resolução protestante de Eduardo VI, com o monarca como chefe, mas com elementos católicos como vestimentas sacerdotais.

A Câmara dos Comuns apoiava fortemente as propostas, porém o projeto de lei da supremacia encontrou oposição na Câmara dos Lordes, particularmente dos bispos. Isabel teve a sorte de que muitos bispados na época estavam vagos, incluindo o arcebispado da Cantuária. Isso permitiu que apoiadores dentre os pariatos tivessem mais votos que os bispos e pariatos conservadores. Mesmo assim, foi forçada a aceitar o título de Governadora Suprema da Igreja de Inglaterra em vez do mais controverso Chefe Suprema, que muitos achavam inaceitável uma mulher portar.

Aprovou-se o novo Ato de Supremacia em 8 de maio de 1559. Todos os oficiais públicos tinham de prestar juramento de lealdade a monarca como governadora suprema ou correrem o risco de perderem o cargo; revogaram-se as leis de heresia para impedir a perseguição de dissidentes que Maria praticara. Ao mesmo tempo também aprovou-se o novo Ato da Uniformidade, que obrigava o comparecimento à igreja e o uso de uma versão adaptada do Livro de Oração Comum de 1552, apesar das penas de não-conformidade ou de não comparecimento não serem extremas. 

Casamento

Esperava-se desde o início de seu reinado que Isabel se casasse, surgindo questões sobre com quem. Ela nunca se casou, apesar de ter tido vários pretendentes; as razões para isso não são claras. Historiadores especularam que Tomás Seymour facilitou-lhe relações sexuais, ou que ela sabia ser estéril. A rainha considerou vários pretendentes até os cinquenta anos. Sua última corte foi com o francês Francisco, Duque de Anjou, 22 anos mais novo. Apesar de correr o risco de perder o poder como sua irmã, que fazia o que Filipe II queria, o casamento oferecia a possibilidade de um herdeiro. Entretanto, a escolha de um marido poderia provocar instabilidade política ou até insurreições. 

Roberto Dudley

Ficou evidente no verão de 1559 que Isabel apaixonara-se por Roberto Dudley, seu amigo de infância. Disse-se que sua esposa Amy Robsart sofria de uma “doença em um de seus seios”, e que a rainha gostaria de se casar com Dudley se ela morresse. Vários pretendentes competiram pela mão de Isabel no outono do mesmo ano; seus impacientes interessados envolveram-se em conversas cada vez mais escandalosas e relataram que o casamento com seu favorito não era bem visto na Inglaterra: “Não há homem que não clama com indignação sobre ele e ela… ela não se casará com ninguém exceto seu favorito Roberto”.

Robsart morreu em setembro de 1560 ao cair de uma escada e, apesar do inquérito legista concluir por um acidente, muitos suspeitavam que Dudley arranjara a morte da esposa para poder se casar com Isabel. A rainha considerou seriamente por algum tempo se casar com Dudley. Porém, Guilherme Cecil, Nicolau Throckmorton e outros pariatos conservadores, deixaram claro sua desaprovação. Houve rumores também que a nobreza iria se revoltar caso o casamento ocorresse. 

Roberto foi considerado como um possível candidato entre outros pretendentes para a rainha por quase uma década. Isabel tinha muito ciúmes, mesmo depois de não mais pretender casar-se com ele. Ela lhe criou o título de Conde de Leicester em 1564. Dudley finalmente se casou outra vez em 1578 e a rainha respondeu com repetidas cenas de descontentamento e um ódio vitalício contra sua nova esposa, Letícia Knollys. Dudley mesmo assim “permaneceu no centro da vida emocional” de Isabel. Ele morreu pouco depois da derrota da Invencível Armada. Foi encontrada uma carta dele entre os pertences pessoais de Isabel após a morte da rainha, marcada como “sua última carta” com a letra dela. 

Pretendentes estrangeiros

As negociações de casamento eram parte de um importante elemento da política internacional de Isabel. Ela recusou a mão de Filipe II no início de 1559, porém contemplou por anos a proposta do rei Érico XIV da Suécia. Ela também negociou seriamente por muitos anos casar-se com o arquiduque Carlos II da Áustria, primo de Filipe.

As relações com os Habsburgo deterioraram-se por volta de 1569, e a rainha considerou se casar com dois príncipes franceses de Valois, primeiro Henrique, Duque de Anjou, e mais tarde seu irmão Francisco, Duque de Anjou, entre 1572 e 1581. A última proposta estava ligada a uma possível aliança contra a Espanha pelo controle dos Países Baixos do Sul. Isabel parece ter considerado seriamente o cortejo por algum tempo, e usava um brinco em formato de sapo que Francisco havia lhe enviado. 

Isabel disse a um enviado imperial em 1563: “Se eu seguir a inclinação de minha natureza, será esta: mulher pedinte e solteira ao invés de rainha e casada”. Mais tarde no mesmo ano, depois dela contrair varíola, a questão da sucessão passou a ser muito debatida no parlamento. Eles imploraram para que a rainha se casasse ou nomeasse um herdeiro para impedir uma guerra civil após sua morte. Isabel recusou-se a fazer as duas coisas. Ela suspendeu o parlamento em abril, e não o reconvocou até precisar aumentar os impostos em 1566. Tendo prometido anteriormente que se casaria, Isabel declarou ao incontrolável parlamento: 

“Nunca quebrarei a palavra de um príncipe dita em espaço público, pelo bem de minha honra. E, portanto, eu digo novamente: casarei-me assim que puder convenientemente, se Deus não levar embora quem eu pretendo casar-me, ou eu mesma, ou então alguma coisa grande deixe acontecer.”

Algumas das principais figuras do governo começaram aceitar, em particular por volta de 1570, que Isabel nunca se casaria ou nomearia um herdeiro. Guilherme Cecil já estava procurando soluções para o problema de sucessão. Foi frequentemente acusada de irresponsabilidade por nunca ter casado. Entretanto, seu silêncio fortaleceu sua própria segurança política: Isabel sabia que estaria vulnerável a um golpe se nomeasse um herdeiro; lembrava como “uma segunda pessoa, como fui” fora foco de tramas contra sua predecessora. 

O fato de Isabel não ter se casado inspirou um culto de virgindade. Era representada na poesia e literatura como uma virgem, uma deusa ou ambas, não como uma mulher normal. Apenas Isabel inicialmente fez de sua virgindade uma virtude: declarou na Câmara dos Comuns em 1559 que “No final, será para mim suficiente, que uma pedra de mármore deverá declarar que uma rainha, tendo reinado por um tempo, viveu e morreu virgem”.

Posteriormente, poetas e escritores adotaram o tema e o transformaram numa iconografia que exaltava a rainha. Tributos públicos a ela em 1578 agiam como uma asserção de oposição codificada contra as negociações de casamento de Isabel com Francisco, Duque de Anjou. Isabel, dando um aspecto positivo à sua situação conjugal, insistiu ser casada com seu reino e súditos, sob proteção divina. Declarou em 1599: “todos os meus maridos, meu bom povo”. 

Maria da Escócia

A política inicial de Isabel com a Escócia foi a de se opor à presença francesa. Ela temia que os franceses planejassem invadir a Inglaterra e colocar no trono a rainha Maria da Escócia, considerada por muitos como herdeira da coroa inglesa. Isabel foi persuadida a enviar uma força para a Escócia ajudar os rebeldes protestantes; apesar da campanha ter sido inepta, o resultante Tratado de Edimburgo de julho de 1560 retirou a ameaça francesa no norte.

A Escócia tinha uma estabelecida igreja protestante e um governo formado por um conselho de nobres protestantes apoiados por Isabel quando Maria voltou para o reino em 1561 para reassumir seu poder. Ela recusou-se a ratificar o tratado. Isabel propôs em 1563 que Roberto Dudley, seu próprio pretendente, se casasse com Maria, sem antes falar com nenhum dos dois envolvidos. Ambos não ficaram interessados e ela acabou se casando dois anos depois com Henrique Stuart, Lorde Darnley, que tinha sua própria reivindicação ao trono inglês.

O casamento foi o primeiro de uma série de erros de julgamento que Maria cometeu e que acabaram dando a vitória para os protestantes escoceses e Isabel. Stuart rapidamente ficou impopular e depois infame por participar do assassinato de David Rizzio, secretário italiano de sua esposa. Ele mesmo acabou sendo morto em fevereiro de 1567 por conspiradores quase certamente liderados por Jaime Hepburn, 4.º Conde de Bothwell. Pouco tempo depois, em maio, Maria se casou com Hepburn e levantou suspeitas que havia participado do assassinato do marido. Isabel escreveu a ela: 

“Como pôde fazer pior escolha para a sua honra do que na pressa que teve em casar-se com tal sujeito que, além de outros notórios defeitos, foi acusado em praça pública do assassinato do seu falecido marido, além de alguma culpa também lhe tocar, apesar de acreditarmos que essa parte seja falsa.”

Esses evento rapidamente levaram a derrota de Maria e seu aprisionamento no Castelo de Lochleven. Os lordes escoceses forçaram sua abdicação em favor do filho Jaime, que havia nascido em junho de 1566. O novo rei foi levado ao Castelo de Stirling para ser criado como protestante. Maria escapou de Loch Leven em 1568, porém fugiu para a Inglaterra depois de uma nova derrota, onde haviam lhe garantido que teria apoio de Isabel.

O primeiro instinto de Isabel foi de restaurar a outra monarca, entretanto ela e o conselho decidiram jogar seguro. Ao invés de arriscarem-se a levar Maria de volta a Escócia com um exército inglês ou enviá-la a França para seus inimigos católicos, foi decidido mantê-la na Inglaterra onde ficou aprisionada pelos dezenove anos seguintes. 

Maria e a causa católica

Maria logo foi o foco de uma rebelião. Houve um grande levante católico no Norte em 1569; o objetivo era libertar Maria, casá-la com Tomás Howard, 4.º Duque de Norfolk, e colocá-la no trono inglês. Mais de 750 rebeldes foram executados sob as ordens de Isabel após sua derrota. Acreditando que a revolta havia sido bem sucedida, o Papa Pio V emitiu em 1570 uma bula papal chamada Regnans in Excelsis em que declarava “Isabel, a pretensa Rainha da Inglaterra e servente de crime” excomungada e herética, liberando todos seus súditos de qualquer lealdade a ela.

Católicos que obedecessem suas ordens estavam ameaçados com excomungação. A bula papal provocou respostas legislativas contra católicos no parlamento, que acabaram mitigadas pela intervenção de Isabel. A conversão de ingleses para o catolicismo com “o intuito” de remover sua lealdade da rainha foi transformada em alta traição em 1581, punível com pena de morte. Padres missionários vindos de seminários continentais foram para a Inglaterra secretamente a partir da década de 1570 para causar a “reconversão”. Muitos foram executados, criando um culto de martírio. 

Regnans in Excelsis deu aos católicos ingleses uma forte iniciativa para verem Maria como sua verdadeira soberana. Maria talvez não tenha adquirido conhecimento de todas as tramas católicas para colocá-la no trono da Inglaterra, porém da Conspiração de Ridolfi de 1571 (que fez com que Howard fosse decapitado) até a Conspiração de Babington de 1586, sir Francisco Walsingham, mestre espião de Isabel, e o conselho sutilmente reuniram um caso contra ela.

Isabel inicialmente resistiu aos pedidos de execução de Maria. No final de 1586 ela foi persuadida a autorizar seu julgamento e execução sob as evidências de cartas escritas durante a Conspiração de Babington. A proclamação de Isabel da sentença anunciava que “a dita Maria, pretendendo o título da mesma Coroa, tinha cercado-se e imaginado-se dentro do mesmo reino diversas coisas com a intenção de ferir, matar e destruir nossa pessoa real”. Maria acabou sendo decapitada em 8 de fevereiro de 1587 no Castelo de Fotheringhay, Northamptonshire.

Após a execução, Isabel afirmou nunca tê-la ordenado e a maioria dos relatos conta que ela pediu ao secretário Guilherme Davison, quem lhe trouxe o mandato, para não enviar o documento mesmo estando assinado. A sinceridade do remorso da rainha e seus motivos para pedir a Davison não executar o mandato foram questionados por historiadores contemporâneos e posteriores. 

Guerras e comércio estrangeiro

A política internacional de Isabel foi principalmente defensiva. A exceção foi a ocupação inglesa de Le Havre de outubro de 1562 a junho de 1563, que terminou em fracasso quando seus aliados huguenote juntaram-se aos católicos para retomar a cidade. A intenção da rainha era trocar Le Havre por Calais, retomada pela França em janeiro de 1558.

Isabel procurou políticas agressivas apenas através das atividades de suas frotas. Isso acabou tendo bons resultados na guerra contra a Espanha, lutada 80% nos mares. Ela fez de Francis Drake um cavaleiro após sua circum-navegação entre 1577 e 1580, e ele acabou ganhando fama por ataques a portos e frotas espanholas. Um elemento de pirataria e auto-enriquecimento motivava os marinheiros, sob os quais Isabel tinha pouco controle. 

Expedição aos Países Baixos

Isabel evitou expedições continentais depois da ocupação e perda de Le Havre até 1585, quando enviou um exército inglês para ajudar rebeldes protestantes holandeses contra Filipe II. Isso ocorreu após as mortes de seus aliados Guilherme I, Príncipe de Orange, e Francisco, Duque de Anjou, ambos em 1584, junto com a conquista de várias cidades holandesas por Alexandre Farnésio, Duque de Parma e Placência, governador dos Países Baixos do Sul.

Uma aliança em dezembro de 1584 entre Filipe e a Liga Católica francesa minou a capacidade de Henrique III de França, irmão de Francisco, de conter a dominação espanhola dos Países Baixos. Isso também expandiu a influência espanhola ao longo do Canal da Mancha na costa da França, onde a Liga Católica era forte, expondo a Inglaterra a uma invasão. O cerco de Antuérpia no verão de 1585 por Farnésio fez necessária uma reação por parte dos ingleses e holandeses. O resultado foi o Tratado de Nonsuch, em que Isabel prometia apoio militar aos holandeses. 

A expedição foi liderada por Roberto Dudley, Conde de Leicester. Desde o início Isabel não apoio muito esse curso de ação. Sua estratégia era apoiar os holandeses com um exército inglês enquanto secretamente negociava a paz com a Espanha dias antes da chegada de Dudley, porém necessariamente entrava em conflito com a estratégia do conde, quem os holandeses queriam e era esperado para lutar ativamente em uma campanha.

A rainha queria “evitar a todos os custos qualquer ação decisiva contra o inimigo”. Ele irritou Isabel ao aceitar o cargo de Governador Geral oferecido pelos Estados Gerais. Ela viu isso como uma tentativa holandesa de fazê-la aceitar a soberania sobre os Países Baixos, que até então ela tinha recusado. Isabel escreveu a Dudley: 

“Nunca poderíamos ter imaginado (se não tivéssemos tido a experiência) que um homem criado por nós e extraordinariamente favorecido por nós, acima de qualquer outro súdito desta terra, poderia ser tão desprezível em espécie e quebrado nosso mandamento em uma causa que nos toca com tanta honra … E portanto o nosso espresso prazer e comando é que, colocadas de lado todos os atrasos e desculpas, você fará atualmente sobre o dever de obedecer a sua lealdade e cumprir tudo o que o portador deste Estatuto Social deverá direcioná-lo para fazer em nosso nome. Do qual você não falhará, como você vai responder pelo contrário no maior risco.”

O “comando” de Isabel era que seu emissário lesse suas cartas de desaprovação em público diante do Conselho de Estado holandês e com Dudley presente. Essa humilhação pública de seu “tenente general” junto com suas conversas de paz em separado com a Espanha minaram irreversivelmente sua posição entre os holandeses. A campanha militar foi repetidas vezes prejudicada pelas várias recusas da rainha de enviar os fundos prometidos para os soldados famintos. Sua falta de vontade de comprometer-se à causa, as deficiências de Dudley como político e líder militar e a situação caótica da política holandesa foram as razões do fracasso da campanha. 

Invencível Armada

Enquanto isso, sir Francis Drake realizou entre 1585 e 1586 uma grande viagem contra navios e portos espanhóis no Caribe, conseguindo atacar Cádis em 1587 e destruindo a frota espanhola de navios de guerra destinada para a Empreitada da Inglaterra. Filipe havia decidido fazer guerra contra os ingleses. 

A Invencível Armada, uma grande frota de navios, partiu para o Canal da Mancha em 12 de julho de 1588 planejando levar uma força de invasão espanhola sob comando de Alexandre Farnésio, Duque de Parma e Placência, para a costa sul da Inglaterra a partir dos Países Baixos. Uma combinação de erros de cálculo, má sorte e um ataque inglês com navios de fogo em 29 de julho perto de Gravelines acabou dispersando os navios espanhóis para o nordeste e a Armada acabou sendo derrotada.

Ela voltou para a Espanha em restos despedaçados, após enormes perdas ao oeste da costa da Irlanda (alguns navios tentaram voltar para casa através do Mar do Norte, virando para o sul depois da costa irlandesa). Milícias inglesas, sem saber do destino da Armada, reuniram-se para defender o reino sob o comando de Roberto Dudley. Ele convidou Isabel para inspecionar as tropas em Tilbury, Essex, no dia 8 de agosto. Usando uma armadura peitoral de prata sobre um vestido de veludo branco, ela dirigiu-se aos homens em um de seus discursos mais famosos: 

“Meu amado povo, fomos persuadidos por alguns que se preocupam com nossa segurança, para termos cuidado com a forma como nos empenhamos em armar multidões por medo de traição; porém garanto-vos, não desejo viver para desconfiar de meu fiel e amado povo ... sei que tenho apenas o corpo de uma mulher fraca é débil, porém tenho o coração e estômago de um rei, e também de um Rei da Inglaterra, e desprezo que Parma ou a Espanha, ou qualquer outro Príncipe da Europa ouse invadir as fronteiras de meu reino.”

A nação comemorou quando não houve nenhuma invasão. A procissão de Isabel para um serviço de ação de graças na Catedral de São Paulo rivalizou em espetáculo com aquela ocorrida em sua coroação. A derrota da Armada foi também uma enorme vitória em propaganda, tanto para a rainha quanto para a Inglaterra protestante.

Os ingleses consideraram o ocorrido como um símbolo da preferência divina e a inviolabilidade da nação sob uma rainha virgem. Entretanto, a vitória não foi um ponto de virada na guerra, que prosseguiu e frequentemente favorecia a Espanha. Os espanhóis ainda controlavam os Países Baixos e a ameaça de uma invasão continuou. Sir Valter Raleigh afirmou após a morte de Isabel que a precaução dela impediu a guerra contra a Espanha: 

“Se a falecida rainha tivesse confiado em seus homens de guerra como fez com seus escribas, teríamos em sua época derrotado aquele grande império em pedaços e feito seus reis em figas e laranjas como nos velhos tempos. Porém sua Majestade fez tudo pela metade, e por invasões mesquinhas ensinou o Espanhol como se defender, e ver suas próprias fraquezas.”

Apesar de alguns historiadores terem criticado Isabel por razões semelhantes, o veredito de Raleigh foi frequentemente considerado como injusto. A rainha tinha bons motivos para não confiar em seus comandantes, que uma vez em ação tendiam “a serem transportados com um tamento de vanglória”, como ela mesma colocou. 

Apoio a Henrique IV de França

Quando o protestante Henrique III de Navarra herdou o trono da França em 1589, Isabel lhe enviou apoio militar. Foi sua primeira empreitada no país desde a retirada de Le Havre em 1563. A ascensão de Henrique foi muito contestada pela Liga Católica e por Filipe, com Isabel temendo que os espanhóis tomassem os portos franceses ao longo do canal. Entretanto, as campanhas seguintes da Inglaterra em território francês foram desorganizadas e ineficientes Lorde Peregrine Bertie, 13.º Barão Willoughby de Eresby, ignorou as ordens da rainha e marchou para o norte da França com quatro mil homens, porém acabou realizando muito pouco.

Ele recuou em desordem em dezembro de 1589, perdendo metade de suas tropas. A campanha de João Norreys em 1591 levou três mil homens a Bretanha, terminando em um desastre ainda maior. Isabel não queria investir em suprimentos e reforços como seus comandantes pediam por causa de tais expedições. Norreys foi para Londres pedir apoio a rainha pessoalmente. O exército da Liga Católica praticamente destruiu em maio de 1591 o restante de seu exército em Craon, noroeste da França, durante sua ausência. Isabel enviou outra força em julho sob o comando de Roberto Devereux, 2.º Conde de Essex, para ajudar Henrique no cerco a Ruão.

O resultado foi outro desastre. Devereux não conseguiu realizar nada e voltou em janeiro de 1592. Henrique abandonou o cerco em abril seguinte. Como sempre, a rainha não tinha controle sobre seus comandantes uma vez que eles estivessem no exterior. “Onde ele está, ou o que ele faz, ou o que ele fará”, ela escreveu a Devereux, “somos ignorantes”. 

Irlanda

Apesar da Irlanda ser um de seus reinos, Isabel enfrentava em certos lugares uma população hostil e até mesmo autônoma que aderia ao catolicismo e estava disposta a desafiar sua autoridade e conspirar com seus inimigos. Sua política na região era entregar terras a seus cortesãos e impedir que os rebeldes dessem a Espanha uma base de onde pudesse atacar a Inglaterra. As forças da coroa utilizaram táticas de terra arrasada contra uma série de levantes, queimando a terra e chacinando homens, mulheres e crianças.

Durante uma revolta liderada por Geraldo FitzGerald, 15.º Conde de Desmond, em Munster em 1582, por volta de trinta mil irlandeses morreram de fome. O poeta e colono Edmund Spenser escreveu que as vítimas “foram levadas a tal miséria como que qualquer coração de pedra teria lamentado o mesmo”. Isabel aconselhou seus comandantes que “aquela nação rude e bárbara” fosse bem tratada, porém não demonstrou remorso quando a força e derramamento de sangue foram necessários. Isabel enfrentou seu teste mais severo na Irlanda entre 1594 e 1603 durante a Guerra dos Nove Anos, uma guerra que aconteceu no ponto alto das hostilidades contra a Espanha, que apoiava o líder rebelde Hugo O’Neill, 2.º Conde de Tyrone.

Isabel enviou Roberto Devereux na primavera de 1599 para acabar com a revolta. Ele fez pouco progresso e voltou para a Inglaterra contra suas ordens, para a frustração da rainha. Devereux foi substituído por Carlos Blount, 8.º Barão Mountjoy, que precisou de três anos para derrotar os rebeldes. O’Neill finalmente se rendeu em 1603, alguns dias após a morte de Isabel. 

Rússia

Isabel continuou a manter as relações diplomáticas que Eduardo VI havia estabelecido com o Czarado da Rússia. Ela frenquentemente escrevia ao imperador Ivã IV em termos amigáveis, apesar dele ficar frequentemente irritado por seu foco em comércio ao invés de uma possível aliança militar. Ivã até a pediu em casamento, também pedindo garantias durante a segunda metade do reinado de Isabel que recebesse asilo na Inglaterra caso seu reinado fosse colocado em risco.

Seu simplório filho Teodoro I o sucedeu depois de sua morte. Diferentemente do pai, o novo imperador não queria manter direitos exclusivos de comércio com a Inglaterra. Ele declarou seu reino aberto a todos os estrangeiros, dispensando o embaixador inglês sir Jerônimo Bowes, cuja pomposidade havia sido tolerada por Ivã. Isabel enviou o dr. Giles Fletcher como novo embaixador para exigir que o regente Bóris Godunov convencesse Teodoro a reconsiderar. As negociações falharam pois Fletcher omitiu dois títulos ao dirigir-se a ele. A rainha continuou a falar com Teodoro em cartas meio suplicantes e meio reprovatórias. Ela propôs uma aliança, algo que sempre recusou com Ivã, mas nada adiantou. 

Berbéria e Império Otomano

A Inglaterra desenvolveu relações diplomáticas e de comércio com Berbéria durante o reinado de Isabel. Ela estabeleceu relações de comércio com o Marrocos em oposição a Espanha, vendendo armaduras, munição, madeira e metais em troca de açúcar, mesmo com uma proibição papal. Abd el-Ouahed ben Messaoud, principal secretário de Amade Almançor Saadi do Marrocos, visitou a Inglaterra em 1600 como embaixador na corte para negociar uma aliança anglo-marroquina contra os espanhóis. Isabel “concordou em vender munições e suprimentos aos Marrocos, e ela e Mulai Amade Almançor conversaram de vez em quando sobre montarem uma operação conjunta contra os espanhóis”. As discussões permaneceram inconclusivas, com os dois morrendo dois anos depois da visita de ben Messaoud. 

Também foram estabelecidas relações diplomáticas com o Império Otomano através do estabelecimento da Companhia de Levante e o envio em 1578 do primeiro embaixador à Sublime Porta, Guilherme Harborne. Um tratado de comércio foi assinado pela primeira vez em 1580. Os dois países mandaram vários enviados uns ao outro e trocas epistolares ocorreram entre Isabel e o sultão Murade III.

Ele expressou sua noção em uma das cartas que o islamismo e o protestantismo tinham “muito mais em comum que ambos tinham com o Catolicismo Romano, já que os dois rejeitavam a idolatria de ídolos”, discutindo para uma aliança entre a Inglaterra e o Império Otomano. Os inglês exportaram estanho e chumbo (para a criação de canhões) e munição, para o desalento da Europa católica, com Isabel discutindo seriamente com Murade operações militares conjuntas durante o início da guerra contra a Espanha em 1585, já que Francisco Walsingham estava fazendo lobby para um envolvimento otomano direto contra o inimigo em comum. 

Últimos anos

O período após a derrota da Invencível Armada em 1588 trouxe novas dificuldades a Isabel que duraram pelos quinze últimos anos de seu reinado. Os conflitos com a Espanha e Irlanda se arrastaram, os impostos ficaram mais pesados e a economia foi atingida por colheitas ruins e os custos das guerras. Os preços subiram e a qualidade de vida caiu. A repressão contra os católicos se intensificou nessa época, com a rainha autorizando em 1591 comissões para monitorar e interrogar chefes de família católicos. Ela dependia cada vez mais de espiões internos e propaganda para manter a ilusão de paz e prosperidade. As críticas cada vez maiores refletiam o declínio da afeição pública por Isabel em seus últimos anos. 

Uma das causas para esse “segundo reinado”, como é as vezes chamado, foi a mudança da personalidade do Conselho Privado na década de 1590, o órgão de governo de Isabel. Havia uma nova geração no poder. Com a exceção de Guilherme Cecil, os políticos mais importantes do reino haviam morrido por volta de 1590: Dudley em 1588, Walsingham em 1590 e sir Cristóvão Hatton em 1591.

Brigas entre facções no governo, que não existiram de forma notória antes de 1590, agora eram uma característica. Surgiu uma grande rivalidade entre Devereux e Roberto Cecil, filho de Guilherme, com a disputa pelas posições mais poderosas no reino interferindo na política. A autoridade pessoal da rainha estava diminuindo, como foi demonstrado em 1594 pelo caso do dr. Lopez, seu médico. Quando ele foi erroneamente acusado de traição por Devereux em uma disputa pessoal, Isabel não conseguiu impedir sua execução, mesmo tendo ficado brava por sua prisão e aparentando não ter acreditado que ele era culpado.

Isabel passou a depender da concessão de monopólios durante os últimos anos de seu reinado; era um sistema de patronagem de custo zero ao invés de pedir ao parlamento mais subsídios em tempos de guerra. A prática logo levou à fixação de preços, o enriquecimento de cortesãos aos custos públicos e grande indignação. Isso culminou em 1601 com uma agitação na Câmara dos Comuns. Em seu famoso “Discurso Dourado” de 30 de novembro de 1601 no Palácio de Whitehall para 140 membros, Isabel professou sua ignorância dos abusos e conquistou os presentes com promessas a o apelo usual às emoções: 

“Quem mantém sua soberana do lapso do erro, em que, por ignorância e não pela intenção que podem ter recaído, o agradecimento que merecem, sabemos, por vós podem imaginar. E como há nada mais caro a nós que a conservação dos corações de nossos súditos, o que é uma dúvida imerecida que poderíamos ter incorrido se os abusadores da nossa liberalidade, os ameaçadores de nosso povo, os espremedores dos pobres, não tivessem sido nos avisado!.”

Entretanto, esse mesmo período de incerteza política produziu um florescimento literário insuperável na Inglaterra. Os primeiros sinais de um novo movimento literário apareceram ao final da segunda década do reinado de Isabel, com Euphues de John Lyly e The Shepheardes Calender de Edmund Spenser em 1578. Alguns grandes nomes da literatura inglesa entraram em sua maturidade durante a década de 1590, incluindo William Shakespeare e Christopher Marlowe. O teatro inglês alcançou seu auge nesse período e no Período Jacobino que seguiu-se. A noção de um grande Período Isabelino depende muito dos construtores, dramaturgos, poetas e músicos que estavam em atividade no reinado de Isabel. Deviam pouco diretamente à rainha, que nunca foi uma grande patrona das artes. 

A imagem de Isabel mudou gradualmente enquanto envelhecia. Ela foi retratada como Belphoebe e Astreia, e também como Gloriana, a eternamente jovem Rainha das Fadas do poema de Spenser, após a derrota da Invencível Armada. Seus retratos deixaram de ser realistas e passaram a ser um conjunto de ícones enigmáticos que a faziam parecer muito mais jovem que era. Na realidade, sua pele havia sido marcada e 1562 pela varíola, a deixando meia careca e dependente de perucas e cosméticos. Sir Valter Raleigh a chamou de “uma senhora cujo tempo ultrapassou”. Entretanto, enquanto mais diminuía sua beleza, mais seus cortesãos a elogiavam. 

Isabel gostava de representar o papel, porém é possível que ela passou a acreditar em sua própria interpretação na última década de sua vida. Ela se afeiçoou e ficou indulgente ao charmoso e petulante Roberto Devereux, que era sobrinho de Dudley e tomava certas liberdades com ela que acabavam sendo perdoadas. Isabel repetidas vezes o nomeou para cargos militares apesar de seu histórico cada vez maior de irresponsabilidade.

A rainha o colocou em prisão domiciliar depois de desertar em 1599 de seu comando na Irlanda, tirando seus monopólios no ano seguinte. Devereux tentou armar uma rebelião em Londres em fevereiro de 1601 com a intenção de tomar posse de Isabel, porém não conseguiu reunir apoio e foi executado no dia 25 do mesmo mês. A rainha sabia que seus próprios erros de julgamento eram em parte responsáveis pelos acontecimentos. Como um observador relatou em 1602, “Seu prazer é sentar-se no escuro, e por vezes derramar lágrimas para lamentar Essex”. 

Morte

Guilherme Cecil, 1.º Barão Burghley, o principal conselheiro de Isabel, morreu em 4 de agosto de 1598. Seu manto político foi passado ao filho Roberto Cecil, que logo tornou-se o líder do governo. Uma das tarefas que ele tomou conta foi preparar o caminho para uma sucessão tranquila. Cecil foi obrigado a trabalhar em segredo já que Isabel nunca nomeou um sucessor.

Assim ele entrou em correspondências codificadas com o rei Jaime VI da Escócia, que tinha uma reivindicação forte mas não reconhecida. Cecil aconselhou o impaciente rei escocês a ser gentil com Isabel e “assegurar o coração da mais elevada, para cujo sexo e qualidade nada é assim inadequado quer como admoestações desnecessárias ou sobre muita curiosidade em suas próprias ações”.

O conselho funcionou. O tom de Jaime encantou a rainha, que respondeu: “Então confio que vós não duvidará que tuas últimas cartas são tão aceitas e tomadas como meus agradecimentos que não faltam à mesma, mas oferecei-los a vós de maneira grata”. Na visão do historiador J. E. Neale, Isabel pode não ter abertamente declarado seus desejos a Jaime, porém os fez conhecidos por meio de “frases inconfundíveis, senão veladas”. 

A saúde da rainha permaneceu boa até o outono de 1602, quando uma série de mortes entre seus amigos a colocaram em uma grande depressão. A morte de Catherine Carey, Condessa de Nottingham e sobrinha de sua amiga Catarina Carey, em fevereiro de 1603 a atingiu severamente. Isabel adoeceu no mês seguinte e permaneceu em uma “melancolia assentada e irremovível”. Isabel morreu no dia 24 de março de 1603 no Palácio de Richmond entre às 2h e 3h da madrugada.

Cecil e o conselho colocaram seus planos em movimento algumas horas depois e proclamaram Jaime VI da Escócia como Jaime I da Inglaterra. O caixão de Isabel foi carregado pelo rio Tâmisa em uma barca com tochas durante a noite até o Palácio de Whitehall. Seu funeral ocorreu no dia 28 de abril, com o caixão sendo levado até a Abadia de Westminster em um carro fúnebre puxado por quatro cavalos decorados com veludo preto. Nas palavras do crônico John Stow: 

“Westminster estava sobrecarregada com multidões de todos os tipos de pessoas em suas ruas, casas, janelas, pistas e sarjetas, que sairam para ver o funeral, e quando eles viram a sua estátua deitada sobre o caixão, houve tal suspiro, gemino e choro como nunca tenha se visto ou conhecido na história do homem.”

Isabel foi enterrada na Abadia de Westminster ao lado de sua meia-irmã Maria. A inscrição em latim da tumba, Regno consortes & urna, hic obdormimus Elizabetha et Maria sorores, in spe resurrectionis, se traduz para “Consortes em reino e tumba, aqui dormimos, Isabel e Maria, irmãs, na esperança de ressurreição”. 

Legado e memória

Isabel foi lamentada por muitos de seus súditos, porém outros ficaram aliviados por sua morte. As expectativas para Jaime começaram altas porém caíram, então por volta da década de 1620 houve um reavivamento nostálgico do culto a Isabel. Ela foi louvada como uma heroína da causa protestante e governante de uma era de ouro. Jaime era representado como um simpatizante católico que presidia sobre uma corte corrupta. A imagem triunfalista que Isabel cultivou ao final de seu reinado, contra um fundo de dificuldades econômicas, faccionalistas e militares, foi tomada como se realidade fosse e sua reputação foi inflada.

Godofredo Goodman, Bispo de Gloucester, lembra: “Quando tivemos a experiência de um governo escocês, a Rainha parecia reviver. Então sua memória foi muito ampliada. Seu reinado foi idealizado em uma época que a coroa, igreja e parlamento trabalhavam em equilíbrio constitucional. A imagem de Isabel retratada por seus admiradores protestantes no início do século XVII mostrou-se duradoura e influente. Sua memória também foi reavivada durante a Guerras Napoleônicas, quando a nação encontrou-se novamente a beira de uma invasão.

Na Era Vitoriana, a lenda Isabelina foi adaptada para a ideologia imperial da época, e no meio do século XX ela era um símbolo romântico da resistência nacional contra uma ameaça estrangeira. Alguns historiadores do período como J. E. Neale e A. L. Rowse interpretaram seu reino como uma época de ouro do progresso. Neale e Rowse também idealizaram a rainha pessoalmente: ela sempre fez tudo corretamente; seus traços mais desagradáveis foram ignorados ou explicados como sinais de estresse. 

Entretanto, historiadores recentes assumiram uma visão mais complicada de Isabel. Seu reinado é mais famoso pela derrota da Invencível Armada e por ataques bem sucedidos contra os espanhóis, como aqueles em Cádiz em 1587 e 1596, porém alguns historiadores salientam fracassos militares tanto em terra quanto no mar. As forças de Isabel acabaram prevalecendo na Irlanda, porém suas táticas sujaram o registro. Ela é mais frequentemente considerada como cautelosa em questões estrangeiras ao invés de uma corajosa defensora das nações protestantes contra a Espanha e os Habsburgo. Isabel ofereceu apenas apoio bem limitado a protestantes estrangeiros e não conseguiu prover fundos suficientes para seus comandantes fazerem a diferença internacionalmente.

Isabel estabeleceu uma igreja inglesa que ajudou a moldar uma identidade nacional que permanece até hoje. Aqueles que posteriormente a elogiaram como heroína protestante negligenciaram o fato dela ter se recusado a abandonar todas as práticas de origem católica na Igreja Anglicana. Historiadores perceberam que os protestantes fervorosos da época consideravam o Ato de Resolução e Uniformidade de 1559 como um compromisso. Na realidade, a rainha acreditava que a fé era pessoal e não queria “criar janelas nos corações e pensamentos secretos dos homens”, como Francis Bacon colocou. 

Veja mais:

Apesar de Isabel ter seguido uma política internacional defensiva, seu reinado valorizou a Inglaterra no estrangeiro. “Ela é apenas uma mulher, apenas a senhora de meia ilha”, afirmou o Papa Sisto V, “e mesmo assim se faz temida pela Espanha, pela França, pelo Império, por todos!” Sob Isabel, a nação ganhou uma nova auto-confiança e senso de soberania, uma cristandade fragmentada. A rainha foi a primeira Tudor a perceber que o monarca governa por consenso popular.

Assim ela sempre trabalhou com o parlamento e conselheiros em quem confiava para lhe dizerem a verdade – uma forma de governo que seus sucessores Stuart falharam em seguir. Alguns historiadores a chamaram de sortuda. Isabel acreditava que Deus a estava protegendo. Orgulhando-se de ser “meramente inglesa”, ela confiava em Deus, em conselhos honestos e no amor de seus súditos para governar. Em oração, agradeceu: 

“[Em uma época] que guerras e sedições com cruéis perseguições contrariaram todos os reis e países ao meu redor, meu reinado foi pacífico, e meu reino um receptáculo a tua aflita Igreja. O amor de meu povo parece ser firme, e frustrados os dispositivos de meus inimigos."
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James Clerk Maxwell https://canalfezhistoria.com/james-clerk-maxwell/ https://canalfezhistoria.com/james-clerk-maxwell/#respond Tue, 18 Mar 2025 13:07:02 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6327 James Clerk Maxwell (Edimburgo, 13 de junho de 1831 — Cambridge, 5 de novembro de 1879) foi um físico e matemático britânico. É mais conhecido por ter dado forma final à teoria moderna do eletromagnetismo, que une a eletricidade, o magnetismo e a óptica. Esta é a teoria que surge das equações de Maxwell, assim chamadas em sua honra e porque foi o primeiro a escrevê-las juntando a lei de Ampère, modificada por Maxwell, a lei de Gauss, e a lei da indução de Faraday. Maxwell demonstrou que os campos elétricos e magnéticos se propagam com a velocidade da luz.

Apresentou uma teoria detalhada da luz como um efeito electromagnético, isto é, que a luz corresponde à propagação de ondas eléctricas e magnéticas, hipótese que tinha sido posta por Michael Faraday. Foi demonstrado em 1864 que as forças elétricas e magnéticas têm a mesma natureza: uma força elétrica em determinado referencial pode tornar-se magnética se analisada noutro, e vice-versa. Ele também desenvolveu um trabalho importante em mecânica estatística, estudou a teoria cinética dos gases e descobriu a distribuição de Maxwell-Boltzmann. Seu trabalho em eletromagnetismo foi a base da relatividade restrita de Einstein e o seu trabalho em teoria cinética de gases fundamental ao desenvolvimento posterior da mecânica quântica. 

Importância

Maxwell é geralmente lembrado como o cientista do século XIX a ter mais influência sobre a física do século XX e o responsável por contribuições básicas nos modelos naturais, sendo considerado uma ponte entre a matemática e a física. Poucos anos após a morte de James Clerk Maxwell, seus trabalhos científicos foram aceitos mundialmente a partir de suas explorações sobre eletromagnetismo. Em 1931, comemorando o centenário do nascimento de Maxwell, descrevendo seu trabalho Albert Einstein disse “o mais profundo e frutífero que a física descobriu desde Newton”. 

Medicina

Sua pesquisa sobre a natureza do espectro eletromagnético foi de fundamental importância, posteriormente, para o emprego dos raios X e da ressonância magnética na Medicina. Maxwell mostrou, a partir de suas equações, que era possível encontrar uma equação da onda para descrever a propagação do campo elétrico e outra para o campo magnético. Contribuindo assim para a medicina atual, que utiliza desse conhecimento para cada vez mais se revolucionar. 

Contribuições no ramo da biofísica

Ótica

Por sempre possuir interesses na percepção de cores pelo olho humano, Maxwell, usando sua invenção do filtro de cores triplo (que mais tarde resultaria no sistema RGB), desvendou informações sobre o daltonismo, mostrando que esse problema provém da ausência de um dos três receptores de cores no nervo ótico (vermelho, verde ou azul). 

Reologia

Apesar de não haver registros sobre pesquisas de Maxwell diretamente ligadas a fluidos corporais, seus estudos diretamente causaram impacto na reologia, majoritariamente em estudos referentes à biofísica voltada ao corpo humano, pois seu pioneirismo em tópicos relativos à viscosidade e à elasticidade de materiais proveu grande ajuda nos estudos de fluidos corporais, como o sangue. 

Vida de James Clerk Maxwell

Primeiros anos

James Clerk Maxwell nasceu em 13 de junho de 1831 na Rua India, 14, em Edimburgo, filho de John Clerk Maxwell, um advogado, e Frances Maxwell O pai de Maxwell era um homem com confortáveis meios financeiros, aparentado com a família Clerk de Penicuik, Midlothian, os titulares do baronato de Clerk de Penicuik, sendo seu irmão o sexto barão. Nascera John Clerk, adicionando o sobrenome Maxwell ao seu próprio depois de ter herdado uma propriedade rural em Middlebie, Kirkcudbrightshire, a partir das conexões com a família de Maxwell, eles próprios membros do pariato. 

Os pais de Maxwell não se conheceram e se casaram até que tivessem passado dos trinta anos, o que era incomum para a época. Sua mãe, Frances Maxwell, tinha quase 40 quando James nasceu. Eles tinham tido anteriormente uma criança, uma filha, Elizabeth, que morrera na infância. Chamaram seu único filho sobrevivente de James, um nome que tinha sido usado não só pelo seu avô, mas também por muitos outros de seus ancestrais. Seus pais John Clerk Maxwell e Frances Maxwell possuíam extensas terras no campo escocês, onde Maxwell cresceu. Sua mãe adoeceu, provavelmente com cancro, e morreu em 1839.

Aos 10 anos de idade, Maxwell foi para escola em Edimburgo. Publicou seu primeiro artigo aos quatorze anos, num trabalho incentivado pela necessidade do artista e decorador D. R. Hay de construir uma figura oval “perfeita” (artisticamente e matematicamente). Nessa época, Maxwell redescobriu as ovais de Descartes. Elas já tinham sido estudadas anteriormente por Descartes, mas Maxwell também as generalizou para mais de dois focos.

Desconhecendo o trabalho de Descartes, a originalidade do trabalho de Maxwell foi a forma simples apresentada por ele para resolver o problema de desenhá-las, e a definição de uma classe mais geral de curvas (que agora são por vezes chamadas de “curvas de Maxwell”). Três do quatro artigos seguintes foram sobre geometria. On the Theory of Rolling Curves (Sobre a teoria das curvas rolantes), de 1848, estuda a geometria diferencial de curvas geradas como a cicloide, com uma figura rolando sobre outra.

O artigo de 1853 foi uma curta investigação sobre óptica geométrica, e este trabalho levou à descoberta da lente “olho-de-peixe”. O terceiro trabalho dessa época, Transformation of Surfaces by Bending (Transformações de superfícies por flexão), ampliação de um trabalho iniciado por Gauss. O único artigo desse período a abordar apenas física foi On the Equilibrium of Elastic Solids (Sobre o equilíbrio de sólidos elásticos), escrito em 1850, pouco antes da ida para Cambridge. 

Em 1847 matriculou-se na universidade de Edimburgo, pensando que aí teria mais possibilidade de vir a ser cientista do que em uma universidade mais prestigiosa, como por exemplo, Cambridge, onde também fora aceito. Na universidade de Edimburgo, graduou-se em Filosofia Natural (como era nessa época denominada a Física), Filosofia Moral e Filosofia Mental. Em 1850 foi estudar matemática na Universidade de Cambridge, mais precisamente no Trinity College.

É nesta época que Maxwell inicia o seu estudo das equações do eletromagnetismo, que continuaria praticamente toda a sua vida. Em 1854 graduou-se, entre os melhores estudantes do seu ano, e imediatamente depois apresenta um brilhante artigo à Sociedade Filosófica de Cambridge com o título On the Transformation of Surfaces by Bending, um dos poucos artigos puramente matemáticos que escreveu. 

Vida adulta

Em 1856 Maxwell se tornou professor em Aberdeen, e casa-se aos 27 anos com Katherine_Clerk_Maxwell, com quem nunca teve filhos. De 1855 a 1872 publicou com intervalos uma série de investigações sobre a percepção da cor e o daltonismo pela qual receberia a medalha Rumford da Royal Society no ano de 1860. Em 1859 recebeu o prémio Adams por um artigo sobre a estabilidade dos anéis de Saturno, em que demonstra que estes não podem ser completamente sólidos nem fluidos. A estabilidade destes anéis implica que eles têm de ser constituídos por numerosas pequenas partículas sólidas.

Do mesmo modo provou que o sistema solar não podia ser formado pela condensação de uma nébula puramente gasosa, mas que esta nébula tinha que conter também pequenas partículas sólidas. Foi também nesta época que Maxwell fez os seus trabalhos mais importantes em física estatística, tendo generalizado o trabalho iniciado por Clausius em que este punha a hipótese de que um gás era formado por moléculas que se movem a uma certa velocidade e que vão mudando de velocidade ao chocar entre si.

Maxwell considerou que as partículas se tinham que mover a diferentes velocidades e estudou a distribuição da velocidade destas. Em 1868 a continuação deste trabalho feita por Boltzmann daria origem à chamada distribuição de Maxwell-Boltzmann e ao campo da mecânica estatística. 

Em 1860 foi nomeado professor no King’s College de Londres e em 1861 foi eleito membro da Royal Society. Durante este período investigou temas em elasticidade e em geometria pura, mas também prosseguiu os seus estudos em visão e óptica, tendo por exemplo demonstrado que se pode produzir uma fotografia a cores utilizando filtros vermelho, verde e azul e sobrepondo as três imagens assim obtidas (ver ao lado imagem da primeira fotografia a cores na história, obtida por este método).

Após a morte de seu pai, em 1865, Maxwell se aposentou para cuidar das terras da família. Nesta época faz importantes contribuições à física experimental, realizando com a sua esposa uma série de experiências sobre a viscosidade dos gases, em que demonstraram por exemplo que a viscosidade de um gás é independente da sua densidade.

Maxwell tinha como hábito trabalhar ao mesmo tempo em vários assuntos, com intervalos longos entre artigos sucessivos no mesmo campo. Por exemplo, seis anos se passaram entre o primeiro e o segundo de seus artigos sobre eletricidade (1855, 1861), doze anos entre o segundo e o terceiro artigos mais notáveis sobre teoria cinética (1867, 1879). 

Últimos anos

Em 1870 publicou o livro “A teoria do calor”, que dá forma final à termodinâmica moderna e será enormemente influente na física do século XX, e em 1871 inventou o conceito de Demônio de Maxwell, para demonstrar que a segunda lei da termodinâmica, que diz que a entropia nunca decresce, tem um carácter estatístico. Neste ano ainda aceita dirigir o novo Laboratório Cavendish, em Cambridge. Ele mesmo supervisionou a construção do edifício e a compra de todos os aparelhos científicos.

Professor Cavendish de Física, de 1871 a 1879, tinha acabado de estabelecer o laboratório como centro de excelência científica quando morreu. Durante este período, Maxwell preparou zelosamente a publicação das investigações completas de Henry Cavendish, incluindo os seus estudos de electricidade, o que viria a ser a sua última importante contribuição para a ciência. 

Veja mais:

Em 1873 Maxwell publicou o Tratado sobre Electricidade e Magnetismo, livro que continha todas as suas ideias sobre este tema e que condensa todo o trabalho que foi fazendo ao longo dos anos. Ele estava preparando uma revisão abrangente deste tratado com as suas novas descobertas neste tema quando morreu em Cambridge prematuramente de cancro do abdómen. Foi enterrado em Parton Kirk, na Escócia.

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James Watt https://canalfezhistoria.com/james-watt/ https://canalfezhistoria.com/james-watt/#respond Tue, 18 Mar 2025 12:04:49 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6321 James Watt (Greenock, Reino Unido, 19 de janeiro de 1736 — Heathfield Hall, Reino Unido, 25 de agosto de 1819) foi um matemático e engenheiro britânico. 

Construtor de instrumentos científicos, destacou-se pelos melhoramentos que introduziu no motor a vapor, que se constituíram num passo fundamental para a Revolução Industrial. Foi um importante membro da Lunar Society. Muitos dos seus textos estão atualmente na Biblioteca Central de Birmingham. Nasceu em 19 de janeiro de 1736 em Greenock, uma cidade portuária. Gostava de passar seu tempo livre na oficina do pai, um construtor de casas e barcos, construindo modelos.

Enquanto sua mãe Agnes Muirhead, veio de uma família muito importante, onde fora bem educada. Ambos presbiterianos e muito conservadores. Watt frequentou a escola irregularmente, devido à saúde frágil, Watt educou-se em casa com a mãe, posteriormente foi à escola para aprender grego, latim e matemática. Possuía grande destreza manual e facilidade em matemática. Dedicou-se a lendas da cultura escocesa. 

Aos dezoito anos, falece sua mãe e a saúde de seu pai começa a decair. Então Watt resolve viajar para Londres a fim de estudar fabricação de instrumentos, durante um ano, porém teve que deixar a cidade em 1756 devido a problemas de saúde. Posteriormente retornou para a Escócia, e investiu na fabricação de seus próprios instrumentos. Todavia, por não ter servido como aprendiz durante os sete anos obrigatórios, a “Glasgow Guilg Hammermen” (associação local dos artesãos que utilizam “martelos”) não permitiram dar continuidade em suas atividades, assim proibindo a prática de confeccionador de instrumentos na Escócia.

Mas Watt foi apoiado por três professores da Universidade de Glasgow, que ofereceram a ele a oportunidade de participar de uma pequena oficina com a universidade. Que teve início em 1758, sendo que Joseph Black, professor físico-químico, acabou por tornar-se seu amigo. Em 1764, Watt casa-se com sua prima Margaret Miller, com a qual teve cinco filhos, mas em 1772, ela morre ao dar a luz. 

Investigação na área do vapor

Quatro anos após ter aberto sua loja, Watt iniciou seus experimentos com vapor, incentivado por seu amigo, o professor John Robinson. Watt nunca havia trabalhado com máquinas a vapor, mas mesmo assim ele persistiu na construção de um modelo. Encontrou muita dificuldade a princípio, mas continuou com seus experimentos, descobriu a importância do calor latente, e compreendeu a engenharia aplicada em tais máquinas, ao qual Watt acabou por tornar-se famoso alguns anos mais tarde. 

E com o apoio da Universidade, através de máquinas e equipamentos, pode pesquisar e fazer diversos experimentos na área. Até que ele mostrou que 80% do calor do aquecedor é consumido para esquentar o cilindro, por que o vapor é condensado e separado em um compartimento no pistão, que mantém o cilindro na mesma temperatura do vapor injetado. Tal pesquisa teve fim em 1765, e ele logo iniciou um novo trabalho.

Neste mesmo ano, inventou uma máquina a vapor com menores problemas de perda de energia em relação às bombas anteriores e que poderia também gerar movimento circular. Com o progresso da metalurgia, a máquina pode obter a precisão que requeria. 

Sendo agora seu novo trabalho a produção em grande escala desta máquina. Precisou de muito capital, do qual maior parte teve origem de Black. Conseguiu também um bom patrocínio de John Roebuck, o fundador da Carron Iron Works, com o qual tornou-se sócio. Todavia, sua principal dificuldade fora com máquinas cilíndricas e pistões cilíndricos. Muito capital foi gasto na tentativa de adquirir patentes, pois naquela época era necessário uma lei Parlamentar.

Foi também forçado a empregar um oficial do governo que verificou seu trabalho por oito anos. Posteriormente Roebuck entra em falência, e Matthew Boulton, dono da Soho, assume sua posição, iniciando seu trabalho próximo de Birmingham, adquirindo também suas patentes legais. Assim Watt e Boulton formam uma grande e promissora parceria (Boulton & Watt), que durou vinte cinco anos. 

E assim, finalmente Watt teve acesso ao melhor ferro do mundo. Suas maiores dificuldades na confecção de largos cilindros com pistões firmes foram solucionadas por John Wilkinson, que desenvolveu técnicas precisas de perfuração. Contudo, em 1776, a primeira máquina foi instalada e operada em uma empresa. Nos cinco anos seguintes, Watt manteve-se muito ocupado com instalações de máquinas, e principalmente em Cornwall com bombas para retirar água de minas.

Em 1763, foi chamado para reparar um modelo da maquina de Newcomen, pertencente à universidade de Glasgow. Durante o processo, Watt reparou que o arrefecimento do vapor dentro do cilindro levava ao arrefecimento desnecessário de toda a máquina, e pensou em vários tipos de melhoramentos que poderiam torná-la muito mais eficiente em termos energéticos.

A adição de uma câmara de condensação separada evitaria as perdas de energia verificadas por meio do resfriamento do cilindro para a condensação do mesmo. Endividado, associou-se a John Roebuck, que o ajudou financeiramente. Um protótipo foi construído e sobre ele se realizou a correcção de algumas falhas. Matthew Boulton, dono de uma firma de engenharia, comprou a parte de Roebuck e deu início à construção das máquinas projectadas por Watt. 

Auge de James Watt

Essa máquina, que permitiu aumentar em 75% o rendimento da maquina de Newcomen, foi patenteada por Watt em 1769. O ápice de suas invenções ocorreu depois que Boulton o instigou a converter o movimento recíproco do pistão para produzir uma grande força rotacional, tornando a manivela uma solução mais lógica e prática. Esta, juntamente com o mecanismo de biela-manivela inventado pelo inglês James Pickard em 1780, permitiu transformar o movimento retilíneo alternativo do êmbolo da máquina a vapor em um movimento rotativo de volante, contribuíram decisivamente para o avanço da Revolução Industrial.

De 1776 a 1781 ele viajou pelo Reino Unido ajudando a instalar suas máquinas. Fez inúmeras outras melhorias e modificações nas máquinas a vapor, e também algumas que facilitaram a manufatura e instalação que foram continuamente implementadas. Criou a engrenagem central de sistema planetário, que permitiu à máquina desenvolver o movimento rotativo. Desenvolveu também um sistema de hastes conectadas a um pistão motriz, em um cilindro instalado verticalmente.

Além de várias invenções que posteriormente foram por ele patenteadas, inclusive ajudou a produzir uma máquina que fora cinco vezes mais eficiente que as similares, iniciando a nova era industrial, pois utilizava combustível. Escreveu também um artigo para a Royal Society de Londres, em 1783, sugerindo que a água seria uma combinação de dois gases, ideia que viria a ser confirmada por Antoine Lavoisier. Watt descobriu também métodos de trabalhar com a expansão do vapor. 

E em 1777, Watt casou-se com Ann McGregor, com quem teve mais dois filhos, filha de um fabricante de tintas de Glasgow, que muito lhe ajudou. Sua segunda esposa falece em 1832. Por conta do perigo devido às altas temperaturas nas caldeiras, poderiam ocorrer vazamentos, tornando a manipulação perigosa. Watt foi contra a ideia de ser o pioneiro na utilização de altas pressões de vapor, utilizando apenas baixíssimas pressões em suas máquinas. 

A fim de garantir os créditos de suas invenções e assegurar que nenhum outro estaria apto para realizar algo semelhante, arquivou suas patentes, escreveu em uma carta para Boulton, em 17 de agosto de 1784: “I have given such descriptions of engines for wheel carriages as I could do in the time and space I could allow myself; but it is very defective and can only serve to keep other people from similar patents” (Tenho dado tantas descrições de motores para vagões com rodas quanto pude no tempo e espaço que pude permitir; mas isso é muito defeituoso e apenas serve para manter outras pessoas com patentes semelhantes). 

Em 1785, Watt e Boulton tornaram-se membros da Royal Society. E Watt em 1790 completou os aperfeiçoamentos de sua máquina a vapor, a qual recebeu o seu nome e se tornou fundamental para o sucesso da Revolução Industrial. Essa então começou a ser rapidamente empregada ao bombeamento de água de minas, ao aquecimento de máquinas em moinhos de farinha, fiações, tecelagens e à fabricação de papel. 

Veja mais:

Últimos anos

Em 1800 a primeira patente de Watt expirou e ele, já na condição de um homem muito rico, aposentou-se, deixando para os filhos a direção de seus negócios. E em 1814, James tornou-se membro estrangeiro da Académie des Sciences (Academia Francesa de Ciência), e também da Sociedade Real de Edimburgo (Royal Society of Edinburgh) e da Sociedade Real de Londres (Royal Society of London). 

No ano de 1824 foram produzidas 1164 máquinas a vapor, tendo a potência de cerca de 26000 hp. E em 1974, Boulton & Watt estabeleceu a exclusiva manufatura de máquinas a vapor, tornando um ótimo empreendimento. Watt começou então a dedicar-se exclusivamente a novas invenções, como aperfeiçoamentos do motor a vapor, um pantógrafo para escultores e um copiador de cartas, por exemplo. Viveu de 1736 a 1819 e em sua homenagem, devido a suas contribuições científicas, a unidade de potência do “International System of Units” (SI) recebeu o seu nome.

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Jean-Jacques Rousseau https://canalfezhistoria.com/jean-jacques-rousseau/ https://canalfezhistoria.com/jean-jacques-rousseau/#respond Tue, 18 Mar 2025 11:32:24 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6313 Jean-Jacques Rousseau, também conhecido como J.J. Rousseau ou simplesmente Rousseau (Genebra, 28 de Junho de 1712 — Ermenonville, 2 de Julho de 1778), foi um importante filósofo, teórico político, escritor e compositor autodidata genebrino. É considerado um dos principais filósofos do iluminismo e um precursor do romantismo. 

Para ele, as instituições educativas corrompem o homem e tiram-lhe a liberdade. Para a criação de um novo homem e de uma nova sociedade, seria preciso educar a criança de acordo com a Natureza, desenvolvendo progressivamente seus sentidos e a razão com vistas à liberdade e à capacidade de julgar. 

Biografia

Jean-Jacques Rousseau não conheceu a mãe, pois ela morreu de infeção puerperal nove dias depois do parto, acontecimento que seria por ele descrito como “a primeira das minhas desventuras”. Foi criado pelo pai, Isaac Rousseau, um relojoeiro calvinista, cujo avô fora um huguenote fugido da França. Aos 10 anos teve de afastar-se do pai, mas continuaram mantendo contato. 

Na adolescência, foi estudar numa rígida escola religiosa sendo aluno do pastor Lambercier. Gostava de passear pelos campos. Em certa ocasião, encontrando os portões da cidade fechados, quando voltava de uma de suas saídas, opta por vagar pelo mundo.

Acaba tendo como amante uma rica senhora e, sob seus cuidados, desenvolve o interesse pela música e filosofia. Longe de sua protetora, que agora estava em uma situação financeira ruim e com outra amante, ele parte para Paris. 

Havia inovado muitas coisas no campo da música, o que lhe rendeu um convite de Diderot para que escrevesse sobre isso na famosa Enciclopédia. Além disso, obteve sucesso com uma de suas óperas, intitulada O Adivinho da Vila. Aos 37 anos, participando de um concurso da academia de Dijon cujo tema era: “O restabelecimento das ciências e das artes terá favorecido o aprimoramento dos costumes?”, torna-se famoso ao escrever respondendo de forma negativa o Discurso Sobre as Ciências e as Artes, ganhando o prêmio em 1750. 

Após isso, Rousseau, então famoso na elite parisiense, é convidado para participar de discussões e jantares para expôr suas ideias. Ao contrário de seu grande rival Voltaire, que também não era nobre, aquele ambiente não o agradava. 

Rousseau teve cinco filhos com sua amante de Paris, porém, acaba por colocá-los todos em um orfanato. Uma ironia, já que anos depois escreve o livro Emílio, ou Da Educação que ensina sobre como deve-se educar as crianças.

O que escreve como peça mestra do Emílio, a “Profissão de Fé do Vigário Saboiano”, acarretar-lhe-á perseguições e retaliações tanto em Paris como em Genebra. Chega a ter obras queimadas. Rousseau rejeita a religião revelada e é fortemente censurado. Era adepto de uma religião natural, em que o ser humano poderia encontrar Deus em seu próprio coração. 

Entretanto, seu romance A Nova Heloísa mostra-o como defensor da moral e da justiça divina. Apesar de tudo, o filósofo era um espiritualista e terá, por isso e entre outras coisas, como principal inimigo Voltaire, outro grande iluminista. 

Em sua obra Confissões, responde a muitas acusações de François-Marie Arouet (Voltaire). Para alguns, Jean-Jacques Rousseau revela-se um cristão rebelado, desconfiado das interpretações eclesiásticas sobre os Evangelhos. 

Politicamente, expõe suas ideias no Do contrato social, publicado em 1762. Procura um Estado social legítimo, próximo da vontade geral e distante da corrupção. A soberania do poder, para ele, deve estar nas mãos do povo, através de um corpo político dos cidadãos. Segundo suas ideias, a população tem que tomar cuidado ao transformar seus direitos naturais em direitos civis, afinal “o homem nasce bom e a sociedade o corrompe”. 

Ainda no ano de 1762, Rousseau começou a ser perseguido na França, pois suas obras foram consideradas uma afronta aos costumes morais e religiosos. Refugiou-se na cidade suíça de Neuchâtel. Em 1765, foi morar na Inglaterra a convite do filósofo David Hume. De volta à França, no ano de 1767, casou-se com Thérèse Levasseur. 

Depois de toda uma produção intelectual, suas fugas às perseguições e uma vida de aventuras e de errância, Rousseau passa a levar uma vida retirada e solitária. Por opção, ele foge das pessoas e vive em certa misantropia. 

Nesta época, dedica-se à natureza, que sempre foi uma de suas paixões. Seu grande interesse por botânica o leva a recolher espécie e montar um herbário. Seus relatos desta época estão no livro “Devaneios de Caminhante Solitário”. Falece aos 66 anos, em 2 de julho de 1778, no castelo de Ermenonville, onde estava hospedado. 

Os grandes princípios da filosofia rousseauniana

O estado de natureza

O estado de natureza, tal como concebido por Rousseau, está descrito principalmente em seu livro Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. A definição da natureza humana é um equilíbrio perfeito entre o que se quer e o que se tem. O homem natural é um ser de sensações, somente. O homem no estado de natureza deseja somente aquilo que o rodeia, porque ele não pensa e, portanto, é desprovido da imaginação necessária para desenvolver um desejo que ele não percebe.

Estas são as únicas coisas que ele poderia “representar”. Então, os desejos do homem no estado de natureza são os desejos de seu corpo. “Seus desejos não passam de suas necessidades físicas, os únicos bens que ele conhece no universo são a alimentação, uma fêmea e o repouso”. 

Em algumas passagens de suas obras, Rousseau dá à palavra natureza um sentido quase divino e nela encerra uma espécie de absoluto a ser buscado e seguido. Tal sentido deixa transparecer que há uma natureza da natureza, a qual até poderia ser grafada Natureza, com letra maiúscula, por coincidir com o princípio divino. Nesse sentido, haveria uma natureza absoluta (N) que gera a natureza (n) e o estado de natureza. Como força ativa que estabelece e conserva a ordem de tudo quanto existe (seja num sentido metafísico ou no sentido puramente científico atual), seu sentido é substantivo e não meramente qualificativo, que pode ser expresso na locução adjetiva de nature.

É a força de onde emana o próprio estado original e visível da ordem existente, o qual chamamos de estado natural. Presente em diversas partes do Emílio, sobretudo nas palavras do vigário saboiano, essa metafísica é expressa de maneira a propiciar uma leitura de que Natureza (N) e natureza (n) são forças criadoras que se complementam e traduzem a manifestação benfazeja de Deus na vida dos homens. (PAIVA, 2007).

Além disso, o homem natural não pode prever o futuro ou imaginar coisas além do presente. Em outras palavras, a natureza de si corresponde perfeitamente ao exterior. No Ensaio, Rousseau sugere que o homem natural não é sequer capaz de se distinguir de outro ser humano. Essa distinção requer a habilidade de abstração que lhe falta. O homem natural também ignora o que é comum entre ele e um outro ser humano. Para o homem natural, a humanidade para no pequeno círculo de pessoas com quem ele está no momento. “Eles tiveram a ideia de um pai, filho, irmão, e não de um homem.

A cabine continha todos os seus companheiros … Fora eles e suas famílias, não havia mais nada no universo. ” (Ensaio, IX) A compaixão não poderia ser relevante fora do pequeno círculo, mas também essa ignorância não permitia a guerra, como os homens não se encontravam com praticamente ninguém. Homens, se quisessem, atacavam em seus encontros, mas estes raramente aconteciam. 

Até então, Rousseau toma posição contra a teoria do estado de natureza hobbesiano. O homem natural de Rousseau não é um “lobo” para seus companheiros. Mas ele não está inclinado a se juntar a eles em uma relação duradoura e a formar uma sociedade com eles. Ele não sente o desejo. Seus desejos são satisfeitos pela natureza, e a sua inteligência, reduzida apenas às sensações, não pode sequer ter uma ideia do que seria tal associação.

O homem tem o instinto natural, e seu instinto é suficiente. Esse instinto é individualista, ele não induz a qualquer vida social. Para viver em sociedade, é preciso a razão ao homem natural. A razão, para Rousseau, é o instrumento que enquadra o homem, nu, ao ambiente social, vestido. Assim como o instinto é o instrumento de adaptação humana à natureza, a razão é o instrumento de adaptação humana a um meio social e jurídico. 

É justamente a falta de razão que possibilita o homem a viver naturalmente: a razão, ou a imaginação que o permite considerar outro homem como seu alter-ego (ou seja, como um ser humano também), a linguagem e a sociedade, tudo isso constitui a cultura, e não são faculdades do estado de natureza. Mesmo assim, o homem natural já possui todas essas características; ele é anti-social, mas é associável: “não é hostil à sociedade, mas não é inclinável a ela.

Foram os germes que se desenvolveram, e podem se tornar as virtudes sociais, tendências sociais, mas eles são apenas potenciais.”(Segundo Discurso, Parte I). O homem é sociável, antes mesmo de socializar. Possui um potencial de sociabilidade que somente o contato com algumas forças hostis podem expor. 

Teoria da Vontade Geral

Segundo Rousseau a “Vontade Geral” não é consenso, nem vontade da maioria e muito menos a soma das vontades individuais. Um exemplo seria que cada indivíduo tem pelo menos duas vontades, vontades de longo prazo e as imediatistas, em que uma se sobrepõe a outra, sendo essa a vontade geral. Com isso, todos devem se submeter a ela. Como a sociedade não tem objetivo estabelecido, é auto determinante, a vontade geral não seria constrangida por nada, tendo o “Todo” (sociedade) se submetendo a ela, recebendo cada um parte individual do “Todo”.

Uma forma de exemplificar tal teoria seria compará-la com Locke, pois a vontade geral entra em contradição com Locke, que diz que o homem não deve se submeter a nada, que ele é livre, mas Rousseau enfatiza que todos devem estar sob a vontade geral. Para atingir a vontade geral é necessário que a sociedade reduza a desigualdade social, pois assim as opiniões, conceitos e principalmente vontades seriam mais próximos e estreitos. Como também maior educação na sociedade. Porque Rousseau salienta que a educação deve fazer parte do Estado, já Locke defende a ideia de que cada um tem a educação que deseja , sendo ela baseada na vontade individual de cada um.

Pelo ponto de vista legislativo, as leis deveriam ser aprovadas pela religião, sendo utilizadas de forma cívica, tendo o lema e como justificativa que “Um bom cidadão será um bom religioso”. Caso haja o descumprimento da vontade geral ou recusa a aceita-lá, o indivíduo será constrangido pelo corpo, ou seja, pelos demais da sociedade, sendo esse indivíduo forçado a ser livre e independente, sem vínculo com os outros. De acordo com Rousseau o Contrato Social tem por fim a vontade geral. Porém, Locke diz o contrário, ele defende a ideia de que o fim deste contrato são as leis , ou seja, o estado de direito.

Para ele o conceito de soberania seria a vontade geral, pois a deliberação comunitária torna a comunidade soberana, ou melhor , o conjunto de vontades em comum gera a vontade geral. O legislador tem a função de liberar a vontade da sociedade, podendo ser um legislador ditador ou liberal. Tudo isso porque no Estado de Natureza o indivíduo faz o que deseja, mas quando sai desse estado e entra na sociedade civil, há a necessidade e obrigação de se submeter a vontade geral, ou seja , a vontade popular. 

Amor e ódio

Não há dúvida alguma de que Rousseau fez soprar um vento revolucionário sobre as ideias de amor e ódio: ele debate a sexualidade como uma experiência fundamental na vida do ser humano, a tomada de consciência da importância dos sentimentos de amor e ódio na construção da sociedade humana e no seu desenvolvimento pessoal, e enfim, essa abertura para o debate moderno sobre a divisão do amor entre amor conjugal e amor passional. Pode-se atribuir a Rousseau a tentativa de estabelecer, na sociedade do século XVIII, uma nova noção: a de que a personalidade do indivíduo, que concerne o tratamento que ele dá aos outros e a sua própria sexualidade, é formada na infância. 

O contrato social

A obra Do Contrato Social, publicada em 1762, propõe que todos os homens façam um novo contrato social onde se defenda a liberdade do homem baseado na experiência política das antigas civilizações onde predomina o consenso, garantindo os direitos de todos os cidadãos, e se desdobra em quatro livros. No primeiro livro “Onde se indaga como passa o homem do estado natural ao civil e quais são as condições essenciais desse pacto”, composto de nove capítulos. Primeiramente se aborda a liberdade natural, nata, do ser humano, como ele a havia perdido, e como ele haveria de a recuperar.

Dessa forma, já no quarto capítulo, Rousseau condena a escravidão, como algo paradoxal ao direito. A conclusão é que, se recuperando a liberdade, o povo é quem escolhe seus representantes e a melhor forma de governo se faz por meio de uma convenção. 

No início, Jean-Jacques Rousseau questiona porque o homem vive em sociedade e porque se priva de sua liberdade. Vê num rei e seu povo o senhor e seu escravo, pois o interesse de um só homem será sempre o interesse privado. Os homens, para se conservarem, se agregam e formam um conjunto de forças com objetivo único.

Essa convenção é formada pelos homens como uma forma de defesa contra aqueles que fazem o mal. É a ocorrência do pacto social. Feito o pacto, pode-se discutir o papel do “soberano”, e como este deveria agir para que a soberania verdadeira, que pertence ao povo, não seja prejudicada. Além de uma forma de defesa, na verdade o principal motivo que leva à passagem do estado natural para o civil é a necessidade de uma liberdade moral, que garante o sentimento de autonomia do homem. No segundo livro Onde se trata da legislação, o autor aborda os aspectos jurídicos do Estado Civil, em doze capítulos.

As principais ideias são desenvolvidas a partir de um princípio central, a soberania do povo, que é indivisível. O povo, então, tem interesses, que são nomeados como “vontade geral”, que é o que mais beneficia a sociedade. Evidentemente, o “soberano” tem que agir de acordo com essa vontade, o que representa o limite do poder de tal governante: ele não pode ultrapassar a soberania do povo ou a vontade geral.

Mais a frente no livro, a corrupção dos governantes quanto à vontade geral é criticada, garantindo-se o direito de tirar do poder tal governante corrupto. Assim, se esse é o limite, o povo é submisso à lei, porque em última análise, foi ele quem a criou; sendo a lei a condição essencial para a associação civil. 

A terceira análise rousseauniana, corresponde ao livro terceiro, se refere às possíveis formas de governo, que são a democracia, a aristocracia e a monarquia, e suas características e princípios. A principal conclusão desse livro é a partir do oitavo capítulo, em que tipo de Estado, que forma de governo funciona melhor – para Rousseau, a democracia é boa em cidades pequenas, a aristocracia em Estados médios e a monarquia em Estados grandes. Em contrapartida a essas adequações, no capítulo décimo, o autor mostra como o abuso dos governos pode degenerar o Estado. Ainda, é destacado no capítulo nono que o principal objetivo de uma sociedade política é a preservação e prosperidade dos seus membros. 

Observando as ideias contidas no livro O Contrato Social, não é difícil entender porque certas pessoas chamam a obra de “a Bíblia da Revolução Francesa”. Foi grande a influência política de suas ideias na França. A inspiração causadora das revoluções se baseiam principalmente no conceito da soberania do povo, mudando o direito da vontade singular do príncipe para a vontade geral do povo. 

Liberdade em Rousseau 

Liberdade natural

Para Rousseau, a liberdade natural caracteriza-se por ações tomadas pelo indivíduo com o objetivo de satisfazer seus instintos, isto é, com o objetivo de satisfazer suas necessidades. O homem neste estado de natureza desconsidera as consequências de suas ações para com os demais, ou seja, não tem a vontade e nem a obrigação de manter o vínculo das relações sociais. Outra característica é a sua total liberdade, desde que tenha forças para colocá-la em prática, obtendo as satisfações de suas necessidades, moldando a natureza. “O homem realmente livre faz tudo que lhe agrada e convém, basta apenas deter os meios e adquirir força suficiente para realizar os seus desejos.”(SAHD,2005, p. 101)

Ao perder uma disputa com outros indivíduos o sujeito não consegue exercer a sua liberdade, uma vez que a liberdade nesse estágio se estabelece a partir da correlação de forças entre os indivíduos. Não há regras, instituições ou costumes que se sobrepõem às vontades individuais para a manutenção do “bem coletivo”. Contudo, na concepção de Rousseau, o homem selvagem viveria isolado e por isso, não faz sentido pensar em um bem coletivo. Também não haveria tendência ao conflito entre os indivíduos isolados quando se encontrassem, pois seus simples desejos (necessidades) seriam satisfeitas com pouco esforço, devido à relação de comunhão com a natureza.

O isolamento entre os indivíduos só era quebrado para fins de reprodução, pois sendo autossuficientes não tinham outra necessidade para viverem em agrupamentos humanos. Foi a partir do isolamento que o homem adquiriu qualidades como amor de si mesmo e a piedade. 

Vale ressaltar que, para Rousseau, o homem se completa com a natureza , portanto não é um estado a ser superado, como Locke e Hobbes acreditavam. Rousseau em o Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, afirma que “a maioria de nossos males é obra nossa e (…) os teríamos evitado quase todos conservando a maneira de viver simples, uniforme e solitária que nos era prescrita pela natureza” (ROUSSEAU apud LEOPOLDI , 2002, p. 160 )

A consciência no estado selvagem não estabelece distinção entre bem ou mal, uma vez que tal distinção é característica do indivíduo da sociedade civil. Para Rousseau, o que faz o indivíduo em estado de natureza parecer bom é, justamente, o fato de conseguir satisfazer suas necessidades sem estabelecer conflitos com outros indivíduos, sem escravizar e não sentindo vontade de impor a sua força a outros para sobreviver e ser feliz.

Transição do estado de natureza para o estado civil

A transição do estado de natureza para a ordem civil transforma a liberdade do sujeito, ocorrendo durante um período de “guerra de todos contra todos” que se iniciou com o estabelecimento da propriedade privada e da ausência de instituições políticas e de regras que impedissem a exploração entre as pessoas. Não havia cidadania neste período pré-social (esse período, existente antes do contrato social, se caracterizava por uma vida comum de disputas pela propriedade e pela riqueza). Para evitar as desigualdades, advindas da propriedade privada e do poder que devido a ela as pessoas (ricos proprietários) passam a exercer sobre outras pessoas (pequenos proprietários e despossuídos), é firmado o contrato social. 

Na transição para a vida em sociedade Rousseau é claro em escrever que: “O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar. O que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui.” (ROUSSEAU, 1978, p. 36) Esta perda representa não apenas o desenvolvimento de faculdades racionais e emocionais do indivíduo como também abre os precedentes para toda a violação da liberdade, da segurança e da igualdade entre os sujeitos em coletividade. 

As principais decorrências do estabelecimento da vida comunitária, segundo Rousseau, se dão tanto no desenvolvimento (da consciência, da afetividade e dos desejos) de cada indivíduo quanto nas novas organizações e ações que se impõem aos sujeitos com advento da vida em sociedade. No que tange ao indivíduo a sua forma de viver é alterada quando a vida coletiva potencializa as suas capacidades intelectuais. Para Rousseau, isso ocorre tanto como causa quanto como efeito do contrato social; os indivíduos têm de ter uma consciência e um amor não apenas de si, como outrora, como também devem pensar nas consequências de seus atos em relação a outros indivíduos e reconhecer a necessidade da convivência com estes outros indivíduos. 

Em suma o que aparece no Contrato Social como pensamento racional-moral diz respeito às capacidades de compreensão (sensorial e lógica), de formulação racional, de ação (individual e coletiva) e de comunicação dos sujeitos que exercem tais faculdades nas suas relações dentro da ordem civil. A própria ordem civil seria inviável se os sujeitos não possuíssem tais capacidades cognitivas e afetivas e, assim não haveria como estabelecer o contrato social se os indivíduos permanecessem apenas centrados no amor próprio e agindo de forma irrestrita na satisfação de suas necessidades.

Se bem que neste ponto o argumento rousseauniano não é totalmente claro quanto às causas e aos efeitos, pois ao mesmo tempo em que é preciso que o homem abandone alguns de seus instintos naturais e aprenda a limitar a sua liberdade em função da sua necessidade do outro, somente a vida em sociedade permite o desenvolvimento de tais capacidades.Ele buscava a liberdade e a igualdade. 

Liberdade civil

Na resolução do estágio de conflito generalizado é estabelecido o contrato social. Tal contrato é para Rousseau o que forma um povo enquanto tal, sendo precedente a formação do Estado e do governo. Esses são decorrentes da organização e do acordo vigentes na constituição do povo. Aqui Rousseau estabelece um princípio de organização das instituições políticas, no qual a organização de um povo em relação à propriedade, aos direitos e aos deveres de cada indivíduo são estipulados na lei, a partir do contrato social que orienta a constituição do Estado e da legislação. 

Um dos aspectos normativos do projeto rousseauniano é o de querer demonstrar a lógica dos princípios políticos do Estado e, simultaneamente, medidas utilitárias para a ação política dos indivíduos e do Estado, por exemplo, estipular que a igualdade se dê juridicamente mesmo reconhecendo que o princípio da desigualdade decorrente da propriedade privada ainda se mantém na ordem civil. Assim estipula uma reformulação nas instituições políticas que não dá conta do problema econômico-político, delineado pelo próprio Rousseau, da desigualdade de recursos e de propriedades.

Referindo-se a lei, Rousseau não considera as leis vigentes satisfatórias (leis instituídas na monarquia, na aristocracia). Sua intenção é estabelecer um padrão das leis (que seria uma forma de superar as oposições entre indivíduo e Estado), baseado na igualdade, sendo esse critério indispensável para o contrato social. Portanto, a justiça estabelecida na lei deve ter reciprocidade entre os indivíduos, cada um tendo seus direitos e deveres, tanto o soberano quanto os súditos. Por isso, as leis devem representar toda a sociedade, sendo consideradas como vontade geral (não no sentido de uma união das vontades individuais e sim da vontade do corpo político ). 

Porém, Rousseau não descarta a possibilidade de “guias” para a tomada de decisões, isto é, um Legislador que possua uma “inteligência superior ”. Tal legislador teria uma das tarefas mais exigentes na sociedade: estipular regras e normas que limitam a liberdade de cada indivíduo em nome do bem desses. Para tanto deve ser capaz de exercer tal poder sem beneficiar-se, o legislador não deve tornar-se um governante autoritário afastado do corpo político. “The laws, it seems, have to be made, as well as be executed, by representatives.”(HARRISON, 1995, p. 61). 

Portanto, as leis estabelecidas no contrato social asseguram a liberdade civil através dos direitos e deveres de cada cidadão no corpo político da sociedade. Mas para isso, cada cidadão deve “doar-se” completamente, submetendo-se ao padrão coletivo. 

Vale ressaltar que o fator limitante da liberdade civil é a vontade geral, uma vez que ela visa à igualdade (o que torna os indivíduos realmente livres), pois a liberdade no estado civil não se dá apenas pelos interesses particulares, mas também pelos interesses do corpo político. Assim, o contrato social não apenas iguala todos os cidadãos, como também fortalece a liberdade de cada indivíduo, a partir de seus interesses particulares. Uma vez que um dos principais objetivos do contrato social é garantir a segurança e a liberdade de cada indivíduo, ainda que a última seja limitada por normas.

“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes. Esse, o problema fundamental cuja solução o contrato social oferece”. (ROUSSEAU, 1978, p. 32) 

Contudo o contrato de Rousseau oferece outra solução: a separação nominal jurídica do público e do privado . Tal separação é o que garante a igualdade política a cada pessoa que passa a ser um cidadão de direitos e deveres na esfera pública e com liberdade comercial e livre expressão de ideias, uma vez que é um indivíduo único. Tal princípio de separação, além de ser uma tentativa lógica de equacionar o problema – liberdade e igualdade – é um pesado ataque a ordem política feudal, na qual os laços de sangue e de parentesco determinavam o tratamento político diferenciado e limitavam a participação política de cada cidadão. 

O Estado, tal como é proposto por Rousseau no Contrato Social, assegura a liberdade de cada cidadão através da independência individual privada e da livre participação política. Sendo que para Robert Nisbet: “Esta predominância do Estado na vida do indivíduo não constitui, entretanto, despotismo; constitui a base necessária da verdadeira liberdade individual.” (NISBET, 1982, p. 158). 

Veja mais:

Principais obras

• Discurso Sobre as Ciências e as Artes
• Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens
• Do Contrato Social
• Emílio, ou da Educação
• Os Devaneios de um Caminhante Solitário
• Confissões

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Jesus https://canalfezhistoria.com/jesus/ https://canalfezhistoria.com/jesus/#respond Tue, 18 Mar 2025 10:32:25 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6308 Jesus, também chamado Jesus de Nazaré (n. 7–2 a.C. – m. 30–33 d.C.) é a figura central do cristianismo e aquele que os ensinamentos de maior parte das denominações cristãs, além dos judeus messiânicos, consideram ser o Filho de Deus. O cristianismo e o judaísmo messiânico consideram Jesus como o Messias aguardado no Antigo Testamento e referem-se a ele como Jesus Cristo, um nome também usado fora do contexto cristão. 

Praticamente todos os académicos contemporâneos concordam que Jesus existiu realmente, embora não haja consenso sobre a confiabilidade histórica dos evangelhos e de quão perto o Jesus bíblico está do Jesus histórico. A maior parte dos académicos concorda que Jesus foi um pregador judeu da Galileia, foi batizado por João Batista e crucificado por ordem do governador romano Pôncio Pilatos.

Os académicos construíram vários perfis do Jesus histórico, que geralmente o retratam em um ou mais dos seguintes papéis: o líder de um movimento apocalíptico, o Messias, um curandeiro carismático, um sábio e filósofo, ou um reformista igualitário. A investigação tem vindo a comparar os testemunhos do Novo Testamento com os registos históricos fora do contexto cristão de modo a determinar a cronologia da vida de Jesus.

Quase todas as linhas cristãs acreditam que Jesus foi concebido pelo Espírito Santo, nasceu de uma virgem, praticou milagres, fundou a Igreja, morreu crucificado como forma de expiação, ressuscitou dos mortos e ascendeu ao Céu, do qual regressará. A grande maioria dos cristãos venera Jesus como a encarnação de Deus, o Filho, a segunda das três pessoas na Santíssima Trindade. Alguns grupos cristãos rejeitam a Trindade, no todo ou em parte. 

No contexto islâmico, Jesus (transliterado como Isa) é considerado um dos mais importantes profetas de Deus e o Messias. Para os muçulmanos, Jesus foi aquele que trouxe as escrituras e é filho de uma virgem, mas não é divino, nem foi vítima de crucificação. O judaísmo rejeita a crença de que Jesus seja o Messias aguardado, argumentando que não corresponde às profecias messiânicas do Tanakh.

Etimologia

Um judeu contemporâneo de Jesus possuía um único nome, por vezes complementado com o nome do pai ou cidade de origem. Ao longo do Novo Testamento, Jesus é denominado “Jesus de Nazaré” (Mateus 26:71), “Filho de José” (Lucas 4:22) ou “Jesus, filho de José de Nazaré” (João 1:45). No entanto, em Marcos 6:3, em vez de ser chamado “filho de José”, é referido como “o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão”. O nome “Jesus”, comum em várias línguas modernas, deriva do latim “Iesus”, uma transliteração do grego Ἰησοῦς (Iesous).

A forma grega é uma tradução do aramaico ישוע‎ (Yeshua), o qual deriva do hebraico יהושע‎ (Yehoshua). Aparentemente, o nome Yeshua foi usado na Judeia na época do nascimento de Jesus. Os textos do historiador Flávio Josefo, escritos durante o século I em grego helenístico, a mesma língua do Novo Testamento, referem pelo menos vinte pessoas diferentes com o nome Jesus (i.e. Ἰησοῦς). A etimologia do nome de Jesus no contexto do Novo Testamento é geralmente indicada como “Javé é a salvação”.

Desde os primórdios do cristianismo os cristãos se referem a Jesus como “Jesus Cristo”.A palavra Cristo tem origem no grego Χριστός (Christos), o qual é uma tradução do hebraico מָשִׁיחַ (Masiah), e que significa “o ungido” e é geralmente traduzido como Messias. Jesus é denominado pelos cristãos de “Cristo”, uma vez que acreditam que ele é o Messias esperado, profetizado na Bíblia Hebraica. Embora originalmente se tratasse de um título, ao longo dos séculos o termo “Cristo” foi sendo associado a um apelido – parte de “Jesus Cristo”. O termo “cristão”, que significa “aquele que professa a religião de Cristo”, tem sido usado desde o século I. 

Cronologia

A maior parte dos académicos concorda que Jesus foi um judeu da Galileia, nascido por volta do início do primeiro século, e que morreu entre os anos 30 e 36 d.C. na Judeia. O consenso académico é que Jesus foi contemporâneo de João Batista e foi crucificado por ordem do governador romano Pôncio Pilatos, que governou entre 26 e 36 d.C. Grande parte dos académicos sustentam que Jesus viveu na Galileia e na Judeia e que não pregou ou estudou em qualquer outro local. 

Os evangelhos oferecem diversas pistas no que diz respeito ao ano de nascimento de Jesus. Mateus 2:1 associa o nascimento de Jesus ao reinado de Herodes, o Grande, que morreu cerca de 4 a.C., enquanto que Lucas 1:5 menciona que Herodes reinava pouco antes do nascimento de Jesus, embora este evangelho também associe o nascimento com o censo de Quirino, que decorreu dez anos mais tarde.

Lucas 3:23 declara que Jesus tinha cerca de trinta anos de idade no início do seu ministério; ministério esse que, de acordo com Atos 10:37, foi precedido pelo ministério de João, que Lucas 3:1 afirma ter começado no 15º ano do reinado de Tibério (28 ou 29 d.C.). Ao comparar os relatos do evangelho com dados históricos e usando vários outros métodos, a maior parte dos académicos determina a data de nascimento de Jesus entre 6 e 4 a.C.

Os anos do ministério de Jesus foram estimados usando diversas abordagens diferentes. Uma delas aplica as referências em Lucas 3:1, Atos 10:37 e as datas do reinado de Tibério, que são conhecidas com precisão, para determinar a data de início em 28-29 d.C. Outra abordagem usa a declaração em João 2:13-20, que afirma que no início do ministério de Jesus o Templo de Jerusalém se encontrava no seu 46º ano de construção; sabendo que a reconstrução do templo foi iniciada por Herodes no 18º ano do seu reino, estima-se que a data seja 27-29 d.C..

Outro método usa a data da morte de João Batista e o casamento de Herodes Antipas com Herodíade, com base no testemunho de Josefo, relacionando-os com Mateus 14:4 e Marcos 6:18. Dado que a maior parte dos investigadores data o casamento em 28-35 d.C., isto determina a data do ministério entre 28 e 29 d.C. 

Têm sido usadas várias abordagens diferentes para estimar o ano da crucificação de Jesus. A maior parte dos académicos concorda que ele morreu entre os anos 30 e 33 d.C. Os evangelhos declaram que o evento ocorreu durante o governo de Pilatos, que governou a Judeia entre 26 e 36 d.C. A data para a conversão de Paulo (estimada entre 33 e 36 d.C.) é o limite superior para a data de crucificação. As datas da conversão de Paulo e do ministério podem ser determinadas através da análise das epístolas de Paulo e do Livro dos Atos.

Desde Isaac Newton que os astrónomos tentam estimar a data precisa da crucificação através da análise do movimento lunar e do cálculo das datas históricas do Pessach, um festival com base no calendário hebraico lunissolar. As datas mais aceites a partir deste método são 7 de abril de 30 d.C. e 3 de abril de 33 d.C. (ambas julianas). 

Vida e ensinamentos no Novo Testamento

Os quatro evangelhos canónicos (Mateus, Marcos, Lucas e João) são as principais fontes para a biografia de Jesus. No entanto, outras partes do Novo Testamento, como as epístolas paulinas, escritas provavelmente décadas antes dos evangelhos, incluem também referências a episódios chave da sua vida, como a Última Ceia em Coríntios 11:23-26. Os Atos dos Apóstolos (Atos 10:37-38 e Atos 19:4) referem-se ao início do ministério de Jesus e ao do seu antecessor João Batista.

Os Atos 1:1-11 revelam mais acerca da Ascensão de Jesus do que os evangelhos canónicos. Alguns dos primeiros grupos cristãos e gnósticos tinham descrições distintas da vida e ensinamentos de Jesus que não estão incluídas no Novo Testamento. Entre elas estão o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Pedro e o Apócrifo de Tiago, entre várias outras narrativas apócrifas. A maior parte dos académicos considera-as fontes muito posteriores e muito menos confiáveis do que os evangelhos canónicos. 

Descrição nos evangelhos canónicos

Os evangelhos canónicos são constituídos por quatro narrativas, cada uma escrita por um autor diferente. O primeiro a ser escrito foi o Evangelho segundo Marcos (entre 60 e 75 d.C.), seguido pelo de Mateus (65-85 d.C.), o de Lucas (65-95 d.C.) e o de João (75-100 d.C.). Eles muitas vezes diferem em termos de conteúdo e cronologia dos eventos. 

Três deles, Mateus, Marcos e Lucas, são conhecidos como evangelhos sinópticos, a partir do grego σύν (syn “junto”) e ὄψις (opsis “óptica”). São semelhantes em conteúdo, composição da narrativa, linguagem e estrutura dos parágrafos. Os académicos geralmente concordam que é impossível encontrar qualquer relação direta entre os evangelhos sinópticos e o Evangelho segundo João.

Enquanto que a sequência de alguns eventos da vida de Jesus, como o batismo, transfiguração, crucificação e interação com os apóstolos, são partilhados por todos os evangelhos sinópticos, alguns eventos, como a transfiguração, não aparecem no Evangelho de João, que também difere noutros temas, como a Limpeza do Templo. A maior parte dos académicos concorda que os autores de Mateus e Lucas usaram Marcos como fonte ao escrever os seus evangelhos. Mateus e Lucas partilham também outro conteúdo que não se encontra em Marcos. Para explicar esta situação, muitos académicos acreditam que para além de Marcos, os dois autores recorreram a outra fonte – denominada Fonte Q.

De acordo com o ponto de vista da maioria, os evangelhos sinópticos são as fontes primárias de informação histórica sobre Jesus.(Sanders 1993, p. 73) No entanto, nem tudo o que está nos evangelhos é considerado verídico em termos históricos. (Sanders 1993, p. 3) Entre os elementos cuja autenticidade histórica é posta em causa estão a natividade, a ressurreição, a ascensão, alguns dos milagres e o Julgamento no Sinédrio. Os pontos de vista nos evangelhos variam entre descrições inerrantes da vida de Jesus a descrições que não dão qualquer informação histórica da sua vida.

No geral, os autores do Novo Testamento mostraram pouco interesse numa cronologia absoluta da vida de Jesus ou em sincronizar os episódios da sua vida com a história secular do seu tempo. Tal como evidenciado em João 21:25, os evangelhos não pretendem fornecer uma lista exaustiva dos eventos na vida de Jesus. As narrativas foram escritas fundamentalmente como documentos teológicos no contexto do cristianismo primitivo, sendo as cronologias considerações secundárias. Uma das principais manifestações de que os evangelhos são documentos teológicos e não crónicas históricas é o facto de dedicarem mais de um terço do texto a apenas sete dias, nomeadamente à última semana de Jesus em Jerusalém, conhecida como Paixão.

Embora os evangelhos não forneçam detalhes suficientes para satisfazer a exigência de historiadores contemporâneos no que diz respeito a datas precisas, é possível obter deles uma visão genérica da história de vida de Jesus. 

Os evangelhos incluem diversos discursos de Jesus em ocasiões específicas, como o Sermão da Montanha e o Discurso de adeus. Também incluem mais de trinta parábolas ao longo da narrativa, muitas vezes sobre temas relacionados com os sermões. Os milagres realizados por Jesus ocupam grande parte dos evangelhos. Em Marcos, 31% do texto é dedicado aos seus milagres. As descrições dos milagres são muitas vezes acompanhadas por registos dos seus ensinamentos. 

Genealogia e Natividade

As narrativas da genealogia e da natividade de Jesus no Novo Testamento só aparecem nos evangelhos de Lucas e Mateus, sendo estas as principais fontes de informação sobre o tema. Fora do Novo Testamento, existem documentos mais ou menos contemporâneos de Jesus e dos evangelhos, mas poucos são os que esclarecem detalhes biográficos da sua vida. Mateus começa o seu evangelho com a genealogia de Jesus (Mateus 1:1), antes de narrar o seu nascimento. Identifica a ascendência de Jesus até Abraão através de David.

Lucas 3:22 discute a genealogia depois de descrever o batismo de Jesus, no qual uma voz celestial se dirige a Jesus e o identifica como o Filho de Deus. Mateus 3:23 determina a ascendência de Jesus desde “José, filho de Eli”, até “Adão, filho de Deus”.

A natividade é um elemento proeminente no Evangelho de Lucas, correspondente a 10% do texto e três vezes mais longo do que o texto da Natividade de Mateus. A narração de Lucas dá ênfase a acontecimentos anteriores ao nascimento de Jesus e foca-se em Maria, enquanto que Mateus narra acontecimentos posteriores ao nascimento e se foca em José. Ambos os textos afirmam que Jesus é filho de José e da sua noiva Maria e que nasceu em Belém, e ambos apoiam a doutrina do nascimento virginal de Jesus, segundo a qual Jesus foi concebido de forma milagrosa pelo Espírito Santo no ventre de Maria enquanto ainda era virgem. 

Em Lucas 1:31, o arcanjo Gabriel diz a Maria que ela irá conceber e carregar uma criança chamada Jesus por obra do Espírito Santo. Estando noivo de Maria, José fica preocupado com a sua gravidez (Mateus 1:19-20), mas no primeiro dos seus três sonhos, um anjo assegura-lhe que não tenha medo de casar com Maria, uma vez que a criança foi concebida pelo Espírito Santo. Quando se aproxima o momento do parto, Maria e José viajam de Nazaré até à casa de José em Belém para se registarem no censo ordenado pelo imperador romano. É aí que Maria dá à luz Jesus.

Uma vez que não encontraram vaga na estalagem, o recém-nascido é colocado numa manjedoura (Lucas 2:1-7). Um anjo anuncia o nascimento a alguns pastores, que se deslocam a Belém para ver Jesus e posteriormente divulgar a notícia (Lucas 2:8-20). Depois de apresentarem Jesus no Templo, a família regressa a Nazaré. Em Mateus 1:1-12, três reis magos do Oriente levam ofertas ao recém-nascido como o Rei dos Judeus. Herodes toma conhecimento do nascimento de Jesus e, pretendendo vê-lo morto, ordena a execução de todas as crianças do sexo masculino de Belém.

No entanto, um anjo avisa José no seu segundo sonho, o que leva a família a fugir para o Egito, de onde mais tarde regressaria para se fixar em Nazaré. 

Infância

Os evangelhos de Lucas e Mateus situam a casa de infância de Jesus na cidade de Nazaré na Galileia. José, o marido de Maria, está presente na descrição dos episódios da infância de Jesus, embora posteriormente não lhe seja feita qualquer referência. Os livros do Novo Testamento de Mateus e Marcos e a epístola aos Gálatas mencionam os irmãos e irmãs de Jesus. No entanto, a palavra grega “adelfos” nestes versos pode também ser traduzida por “parente”, em vez do mais comum “irmão”.

A contradição manifesta entre a existência de irmãos e a doutrina da virgindade perpétua de Maria levou a que alguns dos primeiros teólogos tivessem argumentado que se tratavam de filhos de José, fruto de um casamento anterior, ou que o texto se referia a primos, e não a irmãos. Estas interpretações encontram-se hoje em dia refutadas entre o meio académico contemporâneo. 

Originalmente escrito em grego helenístico, o Evangelho de Marcos refere em Marcos 6:3 que Jesus era um τέκτων (tekton), enquanto que Mateus 13:55 refere que ele próprio era filho de um tekton. Embora tradicionalmente tekton seja traduzido por “carpinteiro”, tekton é um termo bastante genérico, da mesma raiz que está na origem de “técnico” e “tecnologia”, e que pode ser aplicado a construtores de objetos nos mais diversos materiais e até mesmo a construtores.

Para além das narrações do Novo Testamento, a associação de Jesus à carpintaria é constante em tradições dos séculos I e II. Justino (m. c. 165 d.C.) escreveu que Jesus fabricava arados e gadanhos. Os evangelhos indicam que Jesus era capaz de ler e debater textos, embora isto não signifique que tenha recebido qualquer formação. 

Batismo e Tentação

Todas as narrativas do batismo de Jesus nos evangelhos são antecedidas por informações sobre o ministério de João Batista. Em todas, João é retratado a pregar a penitência e arrependimento para remissão dos pecados e a encorajar a oferta de esmolas aos pobres (Lucas 3:11) enquanto batiza os crentes no rio Jordão, nas proximidades de Pereia, por volta da época em que Jesus inicia o seu ministério. O Evangelho de João (João 1:28) refere inicialmente “Betânia” e posteriormente (João 3:23) na margem oposta. 

Nos evangelhos, refere-se que João tinha vindo a anunciar (Lucas 3:16) a chegada de alguém mais poderoso que ele, o que também é referido por Paulo de Tarso (Atos 19:4). Em Mateus 3:14, durante o encontro com Jesus, João afirma “Eu preciso de ser batizado por ti”, embora seja persuadido por Jesus a ser ele a batizá-lo. Depois de o fazer e de Jesus emergir das águas, o céu abre-se e ouve-se uma voz celestial: “Este é o meu Filho amado, de quem me agrado” (Mateus 3:17).

O Espírito Santo desce então até Jesus na forma de uma pomba. Este é um de dois eventos descritos nos evangelhos nos quais uma voz celestial chama a Jesus “Filho”, sendo a outra a Transfiguração.

Após o batismo, os evangelhos sinópticos descrevem a Tentação de Cristo, na qual Jesus resiste a tentações do Diabo enquanto jejua por quarenta dias e noites no deserto da Judeia. O batismo e tentação de Jesus servem de preparação para o seu ministério público. O Evangelho de João não menciona nenhum dos eventos, embora inclua um testemunho de João no qual ele vê o Espírito a descer sobre Jesus (João 1:32). 

Ministério público

Os evangelhos apresentam o ministério de João Batista enquanto precursor do ministério de Jesus. Iniciado com o seu batismo, Jesus dá início ao seu ministério nas áreas rurais da Judeia, perto do rio Jordão, com cerca de trinta anos de idade (Lucas 3:23). Jesus viaja, prega e realiza milagres, completando o ministério durante a Última Ceia com os seus discípulos em Jerusalém. 

No início do ministério, Jesus designa doze apóstolos. Em Mateus e Marcos, apesar de Jesus ser breve no pedido, descreve-se que os primeiros quatro apóstolos, que eram pescadores, imediatamente consentiram e abandonaram as suas redes e embarcações (Mateus 4:18-22, Marcos 1:16-20). Em João, os primeiros dois apóstolos de Jesus são descritos como tendo sido discípulos de João Batista. Ao ver Jesus, João denomina-o Cordeiro de Deus. Ao ouvir isto, os dois apóstolos seguem Jesus.

Para além dos Doze Apóstolos, o início da passagem do Sermão da Planície identifica como discípulos um grupo muito maior de pessoas (Lucas 6:17). Ainda em Lucas 10:1-16, Jesus envia setenta ou setenta e dois discípulos em pares para preparar cidades para a sua visita. São-lhes dadas instruções para aceitar hospitalidade, curar os doentes e espalhar a palavra de que se aproxima o Reino de Deus. 

Os académicos dividem o ministério de Jesus em diferentes períodos. O ministério da Galileia começa quando Jesus regressa à Galileia vindo do deserto da Judeia, depois de rejeitar a tentação de Satanás. Jesus prega na Galileia, e em Mateus 4:18-20 encontra-se com os seus primeiros discípulos, que o passam a acompanhar. Este período inclui o Sermão da Montanha, um dos principais discursos de Jesus, a calma da tempestade, a multiplicação dos pães e peixes, a caminhada sobre as águas e diversos milagres e parábolas. Termina com a Confissão de Pedro e a Transfiguração. 

À medida que Jesus viaja em direção e Jerusalém, durante o ministério de Pereia, regressa ao local onde foi batizado, a cerca de um terço do caminho do mar da Galileia, ao longo do Jordão (João 10:40-42). O último ministério em Jerusalém tem início com a sua entrada triunfal na cidade durante o Domingo de Ramos. Nos evangelhos sinópticos, durante essa semana afasta os cambistas do Templo e Judas negocia a sua traição. Este período culmina na Última Ceia e no Discurso de despedida. 

Ensinamentos, sermões e milagres

Os ensinamentos de Jesus são muitas vezes analisados em termos de palavras e obras. As palavras incluem uma série de sermões, assim como parábolas que aparecem ao longo de toda a narrativa dos evangelhos sinópticos (o Evangelho de João não inclui parábolas). As obras contemplam os milagres e outras ações realizadas durante o ministério de Jesus. Embora os evangelhos canónicos sejam a principal fonte dos ensinamentos de Jesus, as epístolas paulinas oferecem alguns dos primeiros registos escritos. 

O Evangelho de João apresenta os ensinamentos de Jesus não apenas enquanto sermões, mas também como revelação divina. João Batista, por exemplo, afirma em João 3:34: “Porque aquele que Deus enviou fala as palavras de Deus; pois não lhe dá Deus o Espírito por medida.” Em João 7:16 Jesus afirma: “A minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou”, o que confirma em João 14:10: “Não crês tu que eu estou no Pai, e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo, não as digo de mim mesmo, mas o Pai, que está em mim, é quem faz as obras.” 

O Reino de Deus é um dos elementos chave dos ensinamentos de Jesus no Novo Testamento. Jesus promete a inclusão no reino de todos aqueles que aceitarem a sua mensagem. Chama as pessoas a renegar os seus pecados e a dedicarem-se completamente a Deus. Jesus pede aos seus seguidores que não descartem a Lei, embora haja quem considere que ele próprio a tenha infringido, por exemplo na questão do sabath (veja Críticas aos fariseus).

Por isso, quando questionado sobre qual seria o principal mandamento, Jesus responde: «Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento.» (Mateus 22:37-38); continuando: «E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos depende toda a lei e os profetas.» (Mateus 22:39-40). Entre os diversos ensinamentos de Jesus sobre ética estão amar os inimigos, reprimir o ódio e a luxúria, e oferecer a outra face (Mateus 5:21-44). 

As cerca de trinta parábolas dos evangelhos correspondem a cerca de um terço dos ensinamentos escritos de Jesus. As parábolas na narrativa aparecem com sermões mais longos e em locais diferentes. Muitas vezes apresentam elementos simbólicos e fazem a ponte entre os universos físico e espiritual. Entre os temas mais comuns das parábolas estão a bondade e generosidade de Deus e os riscos da transgressão. Algumas das parábolas, como a do Filho Pródigo (Lucas 15:11), são relativamente simples, enquanto outras, como a Parábola da Semente (Marcos 4:26-29), são de difícil compreensão. 

Nos textos dos evangelhos, Jesus dedica grande parte do seu ministério à realização de milagres, especialmente curas. O conjunto dos quatro textos regista cerca de 35 ou 36 milagres. Os milagres podem ser classificados em duas categorias principais: milagres de cura e milagres de natureza. Os milagres de cura englobam curas para doenças físicas, exorcismos e ressurreições dos mortos.

Os milagres de natureza demonstram o domínio de Jesus sobre a natureza, entre os quais a transformação de água em vinho, o caminhar sobre as águas e a acalmia de uma tempestade. Jesus afirma que os seus milagres têm origem divina. Quando os seus oponentes o acusam de praticar exorcismos com o poder de Satanás, príncipe dos demónios, Jesus responde que os pratica pelo “Espírito de Deus” (Mateus 12:28) ou “Dedo de Deus” (Lucas 11:20) 

Em João, os milagres de Jesus são descritos como sinais, realizados com o intuito de demonstrar a sua missão e divindade. No entanto, nos sinópticos, quando lhe é pedido que dê alguns sinais miraculosos para demonstrar a sua autoridade, Jesus recusa. Ainda nos evangelhos sinópticos, é frequente a multidão reagir com deslumbramento e pressioná-lo para curar os doentes. Pelo contrário, o Evangelho de João indica que Jesus nunca foi pressionado pela multidão, e que esta muitas vezes respondia aos milagres com confiança e fé.

Uma característica comum em todos os milagres de Jesus no texto dos evangelhos é que eram feitos de livre vontade e nunca por pedido ou a troco de qualquer forma de pagamento. Os episódios que contemplam descrições dos milagres de Jesus muitas vezes também incluem ensinamentos, enquanto os próprios milagres envolvem determinado elemento de ensino. Muitos dos milagres ensinam a importância da fé. Na cura dos leprosos e na ressurreição da filha de Jairo, por exemplo, é dito aos beneficiários que a sua cura se deveu à sua fé. 

Proclamação de Cristo e Transfiguração

A cerca de metade do texto de cada um dos três Evangelhos, dois episódios relacionados entre si marcam um ponto de charneira na narrativa: a confissão de São Pedro e a Transfiguração de Jesus. Ambos têm lugar perto de Cesareia de Filipe, ligeiramente a norte do mar da Galileia, durante o início da viagem final para Jerusalém que termina na Paixão e Ressurreição de Jesus. Estes eventos marcam o início da revelação progressiva da identidade de Jesus aos seus discípulos e a sua previsão do seu próprio sofrimento e morte. 

A Confissão de Pedro começa com um diálogo entre Jesus e os seus discípulos em Mateus 16:13, Marcos 8:27 e Lucas 9:18. Em Mateus, Jesus pergunta aos discípulos: “E vós, quem dizeis que eu sou?”. São Pedro responde “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo.” Jesus responde: “Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas, porque to não revelou a carne e o sangue, mas meu Pai, que está nos céus.” Com esta bênção, Jesus afirma que os títulos que Pedro lhe atribui são revelados de forma divina, desta forma declarando inequivocamente ser tanto Cristo como o Filho de Deus. 

O texto da Transfiguração aparece em Mateus 17:1-9, Marcos 9:2 e Lucas 9:28-36. Jesus leva Pedro e dois apóstolos para uma montanha sem nome, onde se “transfigurou diante deles; e o seu rosto resplandeceu como o sol, e os seus vestidos se tornaram brancos como a luz.” Uma nuvem brilhante aparece à sua volta, ouvindo-se uma voz celestial: “Este é o meu amado Filho, em quem me comprazo; escutai-o.” (Mateus 17:1-9). A Transfiguração confirma que Jesus é o Filho de Deus (tal como no seu batismo), e o pedido “escutai-o” identifica-o como mensageiro e porta-voz de Deus. 

Última semana: traição, prisão, julgamento e morte

A descrição da última semana de vida de Jesus, frequentemente chamada semana de Páscoa, ocupa cerca de um terço da narrativa nos evangelhos canónicos, tendo início com a descrição da entrada triunfal em Jerusalém e terminando com a Crucificação. A última semana em Jerusalém é a conclusão da jornada que Jesus iniciou na Galileia e que atravessou Pereia e a Judeia. Pouco antes da entrada em Jerusalém, o Evangelho de João inclui a Ressurreição de Lázaro, a qual aumenta a tensão entre Jesus e as autoridades. 

Entrada final em Jerusalém

Nos quatro evangelhos canónicos, a entrada final de Jesus em Jerusalém tem lugar durante o início da última semana da sua vida, poucos dias antes da Última Ceia, marcando o início da narrativa da Paixão. Marcos e João identificam o dia da entrada em Jerusalém como sendo domingo, enquanto que Mateus indica que foi uma segunda; Lucas não indica o dia. Depois de deixar Betânia, Jesus monta num burro em direção a Jerusalém. Pelo caminho, a população estende à sua frente capas e pequenos ramos, ao mesmo tempo que canta parte dos Salmos 118:25-26 A multidão em ânimo que saudava Jesus ao entrar em Jerusalém ajudou a aumentar a animosidade contra ele por parte das instituições locais.

Nos três evangelhos sinópticos, à entrada em Jerusalém segue-se a Purificação do Templo, durante a qual Jesus expulsa os cambistas do templo, acusando-os de o terem tornado um covil de ladrões através das suas atividades comerciais. Este é o único relato de todos os evangelhos em que Jesus recorre a força física. João 2:13 inclui uma narração semelhante decorrida muito mais cedo, pelo que existe debate entre académicos sobre se a passagem se refere ao mesmo episódio. Os sinópticos descrevem uma série de parábolas e sermões bastante conhecidos, como o Tostão da Viúva ou a Profecia da Segunda Vinda, que decorreram ao longo dessa semana. 

Os sinópticos registam episódios de conflitos entre Jesus e os anciãos judeus durante a Semana Santa, como o da autoridade de Jesus questionada e as críticas aos fariseus, nos quais Jesus os critica e acusa de hipocrisia. Judas Iscariotes, um dos doze apóstolos, aborda os anciãos e negoceia o pagamento de uma recompensa de trinta moedas de prata, pela qual se compromete a trair Jesus e a entregá-lo às autoridades. 

Última Ceia

A Última Ceia é a última refeição que Jesus partilha com os seus doze apóstolos em Jerusalém antes da sua crucificação. A Última Ceia é mencionada nos quatro evangelhos canónicos, sendo também referida na Primeira Epístola aos Coríntios de Paulo (Coríntios 11:23). Durante a refeição, Jesus prevê que um de seus apóstolos o trairá. Apesar de cada apóstolo ter afirmado que não o iria trair, Jesus reitera que o traidor seria um dos presentes. Mateus 26:23-25 e João 13:26-27 identificam especificamente Judas como traidor. 

Nos sinópticos, Jesus reparte o pão pelos discípulos ao mesmo tempo que diz: “Isto é o meu corpo, que por vós é dado; fazei isto em memória de mim.” Depois fá-los beber vinho por um cálice, dizendo: “Este cálix é o Novo Testamento no meu sangue, que é derramado por vós.” (Lucas 22:19-20). O sacramento cristão da Eucaristia baseia-se neste evento. Embora o Evangelho de João não inclua uma descrição do ritual do pão e do vinho durante a Última Ceia, a maior parte dos académicos concorda que o Discurso do Pão da Vida (João 6:58-59) possui um carácter eucarístico e se relaciona com as narrativas dos evangelhos sinópticos e com os textos de Paulo sobre a Última Ceia. 

Em todos os evangelhos, Jesus prevê que Pedro negará que o conhece por três vezes antes de o galo cantar na manhã seguinte. Em Lucas e João, a profecia é feita durante a Ceia (Lucas 22:34, João 22:33). Em Mateus e Marcos, a profecia é feita após a Ceia, sendo também profetizado que Jesus será abandonado por todos os seus discípulos (Mateus 26:31-34, Marcos 14:27-30).

O Evangelho de João oferece o único relato de Jesus a lavar os pés dos discípulos antes da refeição. João também inclui um longo sermão de Jesus, preparando os discípulos (agora sem Judas) para a sua partida. Os capítulos 14 a 17 do Evangelho de João são conhecidos por Discurso de despedida e são uma fonte significativa de conteúdos cristológicos. 

Agonia no jardim, traição e prisão

pelos discípulos. Mateus e Marcos identificam o local como sendo o jardim do Getsémani, enquanto Lucas o identifica como sendo o Monte das Oliveiras. Judas aparece no jardim acompanhado por uma multidão, entre a qual se encontram clérigos judaicos, anciãos e pessoas armadas. Judas beija Jesus para o identificar à multidão, que então o prende. Tentando impedi-los, um dos discípulos de Jesus empunha uma espada para cortar a orelha de um homem.

Lucas afirma que Jesus cura a ferida por milagre, enquanto João e Mateus afirmam que Jesus critica o ato violento, ao mesmo tempo que incentiva os discípulos a não resistir à prisão. Em Mateus 26:52 Jesus afirma: “Todos os que lançarem mão da espada à espada morrerão.” Após a prisão de Jesus, os seus discípulos escondem-se e Pedro, quando interrogado, por três vezes nega conhecer Jesus. Após a terceira negação ouve-se o galo cantar e Pedro, ao se lembrar da profecia, chora em amargura. 

Julgamentos pelo Sinédrio, Herodes e Pilatos

Depois de ser preso, Jesus é levado para o Sinédrio, um corpo jurídico judaico. O texto dos evangelhos difere nos detalhes dos julgamentos. Em Mateus 26:57, Marcos 14:53 e Lucas 22:54, Jesus é levado para a casa do sacerdote Caifás, onde é espancado durante a noite. De manhã cedo, os clérigos e escribas levam Jesus ao tribunal. João 18:12-14 afirma que Jesus é levado primeiro a Anás, sogro de Caifás, e depois ao sumo sacerdote, sem menção ao Sinédrio. 

Durante os julgamentos, Jesus pouco fala, não articula nenhuma defesa e responde de forma vaga às questões dos clérigos, o que leva um oficial a esbofeteá-lo. Em Mateus 26:62, a falta de resposta de Jesus leva a que Caifás lhe pergunte: “Não respondes coisa alguma ao que estes depõem contra ti?” Em Marcos 14:61 o sumo sacerdote pergunta a Jesus: “És Tu o Cristo, Filho do Deus Bendito?” Jesus responde “Eu o sou”, e em seguida profetiza a vinda do Filho do Homem.

Esta provocação faz com que Caifás se irrite e rasgue a própria túnica, acusando Jesus de blasfémia. Em Mateus e Lucas, a resposta de Jesus é mais ambígua. Em Mateus 26:64 responde: “Tu o disseste”, e em Lucas 22:70 diz: “Vós dizeis que eu sou”. 

Ao levar Jesus para o tribunal de Pilatos, os anciãos pedem ao governador que julgue e condene Jesus, acusando-o de se proclamar o Rei dos Judeus. O uso do termo “rei” é essencial na discussão entre Jesus e Pilatos. Em João 18:36 Jesus declara: “O meu reino não é deste mundo”, mas não nega inequivocamente ser o Rei dos Judeus. Em Lucas 23:7-15 Pilatos apercebe-se de que Jesus é um galileu, estando portanto na jurisdição de Herodes.

Pilatos envia Jesus a Herodes para ser julgado, mas este mantém o silêncio face às perguntas de Herodes. Herodes e os seus soldados escarnecem Jesus, vestem-lhe um manto luxuoso para o fazer parecer um rei, e o levam de volta a Pilatos, que reúne os anciãos e anuncia que não considera este homem culpado. 

De acordo com um costume da época, Pilatos permite que a multidão escolha um prisioneiro para ser libertado. Dá a escolher entre Jesus e um assassino chamado Barrabás. Persuadida pelos anciãos (Mateus 27:20), a multidão escolhe libertar Barrabás e crucificar Jesus. Pilatos escreve um sinal onde se lê: “Jesus Nazareno Rei dos Judeus”, abreviado para INRI nas representações do tema, para ser afixado na cruz de Jesus (João 19:9), e em seguida flagela e envia Jesus para ser crucificado. Os soldados colocam-lhe na cabeça uma coroa de espinhos, ridicularizando-o como Rei dos Judeus, e espancando-o antes de o levarem para o Calvário para ser crucificado. 

Crucificação e deposição

A crucificação de Jesus é descrita nos quatro evangelhos canónicos. Depois dos julgamentos, Jesus é levado para o Calvário carregando a cruz. O caminho que se pensa ter sido usado é conhecido por Via Dolorosa. Os três evangelhos sinópticos indicam que Simão de Cirene foi obrigado pelos romanos a ajudar Jesus. Em Lucas 23:27-28 Jesus diz às mulheres no meio da multidão que o segue para não chorarem por ele, mas por si próprias e pelas suas crianças. No Calvário, oferecem a Jesus um preparado analgésico. De acordo com Mateus e Marcos, Jesus recusa. 

Os soldados crucificam Jesus e removem a sua roupa. Acima da sua cabeça na cruz estava a inscrição de Pilatos, “Jesus Nazareno Rei dos Judeus”, ridicularizado por soldados e pessoas que passavam a pé. Jesus é crucificado entre dois ladrões condenados, um dos quais ataca Jesus, enquanto outro o defende. Os soldados romanos partem as pernas a ambos os ladrões, uma técnica usada para acelerar a morte na cruz, mas não chegam a partir as de Jesus, uma vez que este já se encontra morto.

Em João 19:34, um soldado perfura Jesus com uma lança, de cuja ferida brota água. Em Mateus 27:51-54, quando Jesus morre, a cortina pesada do Templo volve-se e um terramoto abre os túmulos. Aterrorizado pelo evento, um centurião romano afirma que Jesus era de facto o Filho de Deus. 

No mesmo dia, José de Arimateia, com a permissão de Pilatos e a ajuda de Nicodemus, remove o corpo de Jesus da cruz, envolve-o em roupas lavadas e enterra-o num túmulo de pedra talhada. Em Mateus 27:62, no dia seguinte os judeus pedem a Pilatos para o túmulo ser selado com uma pedra e vigiado, de modo a assegurar que o corpo aí permaneça. 

Ressurreição e ascensão

O texto do Novo Testamento sobre a ressurreição de Jesus afirma que no primeiro dia da semana após a crucificação (geralmente interpretado como sendo o domingo), o seu túmulo é descoberto vazio e que os seus discípulos o encontram ressuscitado dentre os mortos. Os discípulos chegam ao túmulo de manhã cedo e encontram um ou dois seres (homens ou anjos) vestidos com túnicas brancas. Marcos 16:9 e João 20:15 indicam que Jesus aparece primeiro a Maria Madalena, e Lucas 24:1 afirma que ela é uma dos mirróforos (na tradição oriental) ou das Três Marias (na ocidental). 

Depois de descobrirem o túmulo vazio, Jesus realiza uma série de aparições aos discípulos. Entre elas está a Dúvida de Tomé e a aparição na estrada aos Emaús, em que Jesus encontra dois discípulos. A segunda pesca milagrosa é um milagre no mar da Galileia, após o qual Jesus encoraja Pedro a servir os seus seguidores. 

Antes de ascender ao Céu, Jesus instrui os discípulos a espalhar a palavra sobre os seus ensinamentos em todas as nações do mundo. Lucas 24:51 afirma que Jesus é então levado ao Céu. O relato da ascensão é elaborado em Atos 1:1-11 e mencionado em Timóteo 3:16. Nos Atos, quarenta dias depois da Ressurreição, quando os discípulos olham para cima, encontram Jesus elevado, tendo sido levado por uma nuvem. Pedro 3:22 afirma que Jesus foi levado para o Céu e é agora a mão direita de Deus. 

Os Atos dos Apóstolos descrevem várias aparições de Jesus em visões após a sua Ascensão. Atos 7:55 descreve uma visão vivenciada por Santo Estêvão pouco antes de morrer. Na estrada para Damasco, o apóstolo Paulo é convertido ao cristianismo depois da visão de uma luz ofuscante e de ter ouvido uma voz dizer: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues” (Atos 9:5). Em Atos 9:10-18, Jesus instrui Ananias de Damasco a curar Paulo. É o último diálogo com Jesus citado na Bíblia até ao Livro da Revelação, no qual um homem chamado João vivencia uma revelação de Jesus sobre os últimos dias. 

Perspetiva histórica

Até ao Iluminismo os evangelhos eram geralmente vistos como relatos históricos precisos, tendo a partir de então surgido interrogações sobre a sua fiabilidade por parte de académicos e a distinção clara entre o Jesus descrito nos evangelhos e o Jesus na História. A partir do século XVIII começam a ter lugar três vertentes de pesquisa académica sobre o Jesus histórico, cada uma com diferentes características e com base em diferentes critérios de investigação, os quais são muitas vezes elaborados durante a investigação que os aplica.

Os académicos têm vindo a estudar e debater uma série de questões no que diz respeito ao Jesus histórico, como a sua existência, origem, fiabilidade histórica dos evangelhos e de outras fontes e um retrato preciso da figura histórica. 

Existência

A teoria do mito de Cristo, que questiona a existência de Jesus e a veracidade dos relatos sobre ele, apareceu no século XVIII. Alguns dos apoiantes argumentam que Jesus é um mito inventado pelos primeiros cristãos, salientando a inexistência de quaisquer referências escritas a Jesus durante a sua vida e a relativa escassez de referências fora do contexto cristão durante o século I. Ao longo do século XX, académicos como George Albert Wells, Robert M. Price e Thomas Brodie têm apresentando vários argumentos que apoiam a teoria do mito de Cristo.

No entanto, na atualidade praticamente todos os académicos que estudam a Antiguidade concordam que Jesus existiu e encaram determinados eventos, como o seu batismo e crucificação, como factos históricos. Robert E. Van Voorst e Michael Grant afirmam que os investigadores bíblicos e historiadores clássicos veem as teorias da inexistência de Jesus como efetivamente refutadas. 

Em resposta ao argumento de que a inexistência de fontes contemporâneas significa que Jesus não existiu, Van Voorst afirmou que “tal como é do conhecimento de qualquer estudante de História”, tais argumentos pelo silêncio são “particularmente perigosos” e geralmente fracassam, a não ser que um facto seja conhecido pelo autor e relevante o suficiente para ser mencionado no contexto de um documento. Bart D. Ehrman argumenta que embora Jesus tenha tido um enorme impacto em gerações futuras, o seu impacto na sociedade do seu tempo foi praticamente nulo. Seria portanto insensato esperar que existissem textos contemporâneos das suas ações. 

Ehrman refere que argumentos baseados na inexistência de evidências físicas ou arqueológicas de Jesus ou de quaisquer textos sobre ele são fracos, uma vez que também não existem tais evidências de “praticamente ninguém que tenha vivido durante o século I”. Teresa Okure escreveu que a existência de figuras históricas é estabelecida pela análise de referências que lhes sejam posteriores, e não por relíquias ou restos contemporâneos. Diversos académicos referem o perigo de usar tais argumentos pela ignorância e geralmente consideram-nos inconclusivos ou falaciosos. Douglas Walton afirma que argumentos pela ignorância são capazes de levar a conclusões apenas em casos onde se assume que toda a nossa base de conhecimento está completa. 

Entre as fontes fora do contexto cristão para determinar a existência histórica de Jesus está a obra dos historiadores do século I Josefo e Tácito. Louis H. Feldman, investigador de Josefo, afirmou que “poucos duvidaram da autenticidade” da referência de Josefo a Jesus no livro 20 de Antiguidades Judaicas, e tal facto é disputado apenas por um número muito reduzido de académicos. Tácito refere-se a Cristo e à sua execução por Pilatos no livro 15 da sua obra Anais. Os académicos geralmente consideram que a referência de Tácito à execução de Jesus seja simultaneamente autêntica e de valor histórico enquanto fonte independente romana. 

Historicidade dos eventos

A abordagem à reconstituição histórica da vida de Jesus varia entre as abordagens maximalistas do século XIX, nas quais os relatos dos evangelhos eram aceites como evidências fiáveis sempre que possível, e as abordagens minimalistas do início do século XX, nas quais era muito difícil qualquer coisa sobre Jesus ser aceite como histórica. Na década de 1950, à medida que toma lugar a segunda procura pelo Jesus histórico, a abordagem minimalista vai desaparecendo até que, no século XXI, minimalistas como Price são uma pequena minoria.

Embora a crença na infalibilidade dos evangelhos não possa ser sustentada em termos históricos, muitos académicos desde a década de 1980 sustentam que, para além dos poucos factos que se considera serem historicamente válidos, há outros elementos da vida que Jesus que são “historicamente prováveis” A pesquisa académica sobre o Jesus histórico moderna foca-se então na identificação dos elementos mais prováveis. 

A maior parte dos académicos contemporâneos considera que o batismo e a crucificação de Jesus são inequivocamente factos históricos. James Dunn afirma que são factos quase universalmente aceites e que “se classificam tão alto na escalada dos factos históricos dos quais é impossível duvidar ou renegar” que são quase sempre o ponto de partida para o estudo do Jesus histórico. Os académicos citam o critério do embaraço, afirmando que os primeiros cristãos não teriam inventado a morte dolorosa do seu líder, ou um batismo que pudesse implicar que Jesus teria cometido pecados dos quais se quisesse arrepender.

Os académicos usam uma série de critérios para julgar a autenticidade histórica dos eventos, como o critério de coerência, a confirmação por múltiplas fontes e o critério de descontinuidade. A historicidade de um evento depende também da fiabilidade da fonte. Marcos, o primeiro evangelho a ser escrito, é geralmente considerado o mais fiável em termos históricos. João, o último evangelho escrito, difere consideravelmente dos evangelhos sinópticos, sendo por isso considerado o menos fiável. Por exemplo, muitos académicos não consideram que a Ressurreição de Lázaro seja histórica devido, em parte, a ser apenas mencionada em João.

Amy-Jill Levine refere que existe algum consenso nos traços gerais da biografia de Jesus, e que a maior parte dos académicos concorda que Jesus foi batizado por João Batista, debateu com as autoridades judaicas o tema de Deus, curou algumas pessoas, ensinou através de parábolas, angariou seguidores e foi crucificado por ordem de Pilatos. 

Retratos de Jesus

A investigação moderna sobre o Jesus histórico não produziu ainda um perfil unificado da figura histórica, devido em parte à diversidade de abordagens entre os académicos. Ben Witherington afirma que “existem agora tantos retratos do Jesus histórico como existem pintores académicos”. Bart Ehrman e Andreas Köstenberger argumentam que, dada a escassez de fontes históricas, é difícil para qualquer académico construir um perfil de Jesus para além dos elementos básicos da sua biografia que possa ser considerado válido em termos históricos. Os perfis de Jesus construídos muitas vezes diferem entre si e da imagem retratada nos evangelhos. 

Os perfis mais divulgados na investigação contemporânea podem ser agrupados segundo a forma principal como Jesus é retratado: se um profeta apocalíptico, um curandeiro carismático, um filósofo cínico, o verdadeiro Messias ou um profeta igualitário de mudanças sociais. Cada um destes tipos tem uma série de variantes, e alguns académicos rejeitam os elementos básicos de alguns perfis. No entanto, os atributos descritos em cada um dos perfis por vezes sobrepõem-se, e os investigadores que discordam de alguns atributos por vezes concordarm com outros. 

Língua, etnia e aparência

Jesus cresceu na Galileia, sendo nessa região que grande parte do seu ministério teve lugar. Entre as línguas faladas na Galileia e Judeia durante o primeiro século d.C. estão o aramaico, hebraico e grego, sendo o aramaico predominante. A maior parte dos académicos concorda que, no início do século, o aramaico era a língua-mãe de praticamente todas as mulheres na Galileia e Judeia. A maior parte dos académicos apoia a teoria de que Jesus falava aramaico, podendo também ter falado hebraico e grego. Dunn afirma que há um consenso substancial de que Jesus tenha pregado em aramaico. 

Os académicos modernos concordam que Jesus foi um judeu que viveu na Palestina durante o século I. No entanto, no contexto contemporâneo o termo “judeu” (“Ioudaios” no grego do Novo Testamento) pode referir-se tanto à religião judaica, como à etnia judaica, como a ambas. Numa revisão do estado da arte do conhecimento contemporâneo, Levine escreve que toda a questão da etnia está “carregada de questões difíceis” e que “para além de reconhecer que «Jesus era judeu», raramente a investigação esclarece o que significa «ser judeu»”. 

O Novo Testamento não fornece nenhuma descrição da aparência física de Jesus antes da sua morte, sendo na generalidade indiferente à questão da raça e nunca se referindo aos traços das pessoas que menciona. O Livro do Apocalipse descreve numa visão as feições de Jesus glorificado (Revelação 1:13-16), mas a visão refere-se a Jesus numa forma divina, já depois da sua morte e ressurreição.

Provavelmente, Jesus assemelhar-se-ia a qualquer judeu seu contemporâneo e, de acordo com alguns investigadores, seria provável que tivesse uma aparência musculada devido ao seu estilo de vida itinerante e ascético. James H. Charlesworth afirma que o rosto de Jesus era “provavelmente de tez escura e bronzeada” e que a sua estatura “pode ter sido de 1,65 a 1,70 m.” 

Arqueologia

Apesar da inexistência de vestígios arqueológicos que sejam indubitavelmente associados a Jesus, a investigação no século XXI tem-se interessado cada vez mais por recorrer à arqueologia de modo a obter maior compreensão do contexto sócio-económico e político da vida de Jesus. Charlesworth afirma que hoje em dia poucos investigadores seriam capazes de ignorar algumas descobertas arqueológicas que fornecem dados sobre o quotidiano da Galileia e Judeia durante a época de Jesus. Jonathan Reed afirma que a principal contribuição da arqueologia para o estudo do Jesus histórico é a reconstrução do seu mundo social. 

David Gowler afirma que o estudo interdisciplinar com recurso a arqueologia, análise textual e contexto histórico pode esclarecer determinados aspetos sobre Jesus na História. Um exemplo são as investigações arqueológicas em Cafarnaum, uma cidade bastante referida no Novo Testamento, mas da qual se fornecem poucos detalhes. No entanto, as evidências arqueológicas recentes mostram que, ao contrário do que se acreditava, Cafarnaum era pequena e relativamente pobre, e nem sequer tinha um fórum ou ágora. Esta descoberta arqueológica apoia a perspectiva académica de que Jesus advogava a partilha de riqueza entre os mais desfavorecidos naquela região da Galileia.

Perspetivas religiosas

À exceção dos seus próprios discípulos e seguidores, os judeus contemporâneos de Jesus rejeitavam a crença de que ele pudesse ser o Messias, tal como é ainda rejeitada hoje em dia pela grande maioria dos judeus. Ao longo dos séculos, Jesus tem sido tema de amplo debate e inúmeras publicações por parte de teólogos, concílios ecuménicos e reformistas. As denominações cristãs e cismas são muitas vezes definidas ou caracterizadas em função da descrição que apresentam de Jesus. Ao mesmo tempo, Jesus tem um papel proeminente entre crentes de outras religiões, como os maniqueístas, gnósticos e muçulmanos.

Perspetivas cristãs

Jesus é a figura central do cristianismo. Embora entre os cristãos haja diferentes pontos de vista sobre Jesus, é possível resumir as crenças partilhadas entre as principais denominações de acordo com os seus textos. Os pontos de vista cristãos sobre Jesus têm origem em várias fontes, entre as quais os evangelhos canónicos e cartas do Novo Testamento, como as epístolas paulinas e os documentos joaninos. Estes documentos resumem as crenças fundamentais sobre Jesus por parte dos cristãos, incluindo a sua divindade, humanidade e vida terrena, e que é Cristo e o Filho de Deus.

Apesar de partilharem grande parte das crenças, nem todas as denominações cristãs concordam com todas as doutrinas, e existem várias diferenças entre si em termos de crença e ensinamentos que persistiram ao longo de séculos. O Novo Testamento afirma que a ressurreição de Jesus é o fundamento da fé cristã (Coríntios 15:12). Os cristãos acreditam que pela sua morte e ressurreição, os seres humanos se podem reconciliar com Deus, sendo-lhes oferecida salvação e a promessa de vida eterna.

Recordando as palavras de João Batista a seguir ao batismo de Jesus, estas doutrinas por vezes denominam-no Cordeiro de Deus, por ter sido sacrificado para cumprir o seu papel enquanto servo de Deus. Jesus é assim visto como o novo e último Adão, cuja obediência contrasta com a desobediência de Adão. Os cristãos veem Jesus como um modelo de vida, sendo encorajados a imitar a sua vida focada em Deus. 

Muitos cristãos acreditam que Jesus foi ao mesmo tempo humano e o Filho de Deus. Embora a sua natureza seja alvo de debate teológico, Os cristãos trinatários acreditam que Jesus é o Logos, a encarnação de Deus e Deus, o Filho, simultaneamente divino e humano. No entanto, a doutrina da Trindade não é universalmente aceite entre os cristãos, sendo rejeitada por denominações como A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, as Testemunhas de Jeová ou a Ciência Cristã. Os cristãos veneram não apenas Jesus, mas também o seu nome. A devoção ao Santo Nome de Jesus remonta aos primeiros dias do cristianismo. Estas devoções e comemorações existem tanto no cristianismo ocidental como no oriental. 

Perspetivas judaicas

A corrente dominante do judaísmo rejeita a proposta de Jesus ser Deus, um mediador de Deus, ou parte de uma Trindade. Argumenta que Jesus não é o Messias por não ter nem realizado as profecias messiânicas do Tanach, nem apresentar as qualificações pessoais do Messias. Jesus não teria cumprido as profecias por não ter construído o Terceiro Templo (Ezequiel 37:26-28), não ter feito regressar os judeus a Israel (Isaías 43:5-6), não ter trazido a paz mundial (Isaías 2:4) nem ter unido a humanidade sob o Deus de Israel (Zacarias 14:9).

De acordo com a tradição judaica, não houve qualquer profeta após Malaquias, que enunciou as profecias no século V a.C. Um grupo denominado judaísmo messiânico considera Jesus o Messias, embora seja disputado se este grupo corresponde ou não a uma seita do judaísmo. 

A crítica do judaísmo a Jesus é de longa data. O Novo Testamento afirma que Jesus foi criticado pelas autoridades judaicas do seu tempo. Os fariseus e escribas criticavam Jesus e os seus discípulos por não respeitarem a Lei de Moisés, por não lavarem as mãos antes das refeições (Marcos 7:1-23, Mateus 15:1-20) e por apanharem cereais durante o sabat (Marcos 2:23, Marcos 3:6).

O Talmude, escrito e compilado entre os séculos III e V d.C., inclui narrativas que alguns consideram ser relatos de Jesus. Numa dessas narrativas, Yeshu ha-nozri (“Jesus, o Cristão”) é executado por um tribunal judaico por promover idolatria e praticar magia. Há um amplo espectro de opiniões entre académicos no que respeita a estas narrações. A maioria dos historiadores contemporâneos consideram que este material não oferece qualquer informação do Jesus histórico. A ‘’Mishné Torá’’, uma obra de lei judaica escrita por Maimónides em finais do século XII, afirma que Jesus é uma “força de bloqueio” que “faz com que a maioria do mundo peque e sirva outro deus que não o verdadeiro”. 

Perspetiva islâmica

O islão considera Jesus (“Isa”) um mensageiro de Deus (Alá) e o Messias (‘’al-Masih’’) enviado para guiar as tribos de Israel (bani isra’il) através de novas escrituras, o Evangelho (‘’Injil’’). Os muçulmanos não reconhecem a autenticidade do Novo Testamento e acreditam que a mensagem original de Jesus foi perdida, sendo mais tarde reposta por Maomé. A crença em Jesus, e em todos os outros mensageiros de Deus, faz parte dos requisitos para ser um muçulmano.

O Alcorão menciona o nome de Jesus vinte e cinco vezes, mais do que o próprio Maomé, e enfatiza que Jesus foi também um ser humano mortal que, tal como todos os outros profetas, foi escolhido de forma divina para divulgar a mensagem de Deus. No entanto, o islão considera que Jesus nem é a encarnação nem o filho de Deus. Os textos islâmicos sublinham a noção estrita de monoteísmo (‘’tawhid’’) e proíbem a associação de elementos a Deus, o que seria considerado idolatria.

O Alcorão refere que o próprio Jesus nunca alegou ser divino, e profetiza que durante o julgamento final, Jesus negará ter alguma vez alegado tal (Alcorão 5:116). Tal como todos os profetas do islão, Jesus é considerado um muçulmano, acreditando-se que tenha pregado que os seus seguidores deveriam prosseguir um modo de vida correto, conforme ordenado por Deus. 

O Alcorão não menciona José, mas descreve a Anunciação a Maria (‘’Mariam’’), na qual um anjo a informa de que daria à luz Jesus ao mesmo tempo que permaneceria virgem. O nascimento virginal é descrito como milagre realizado pela vontade de Deus. O Alcorão (21:91 e 66:12) afirma que Deus soprou o Seu Espírito a Maria enquanto era ainda casta. No islão, Jesus é denominado “Espírito de Deus” por ter nascido através da ação do Espírito, embora essa crença não inclua a doutrina da Sua preexistência, como acontece no cristianismo. 

Os muçulmanos acreditam que Jesus foi o último profeta enviado por Deus para guiar os Israelitas. Para o auxiliar no seu ministério entre os Judeus, Deus teria dado permissão a Jesus para realizar milagres. Jesus é visto como precursor de Maomé e os muçulmanos acreditam que previu a sua chegada. Os muçulmanos negam que Jesus tenha sido crucificado, que tenha ressuscitado dos mortos ou que se tenha sacrificado pelos pecados da Humanidade.

De acordo com a tradição muçulmana, Jesus não foi crucificado, mas foi erguido fisicamente por Deus para o Paraíso. A Comunidade Ahmadi acredita que Jesus foi um mortal que sobreviveu à sua própria crucificação e morreu de causas naturais aos 120 anos em Caxemira. A maior parte dos muçulmanos acredita que Jesus regressará à terra pouco depois do Juízo Final para derrotar o Anticristo (‘’dajjal’’). 

Outras perspetivas

No sincretismo das religiões africanas com o catolicismo, no Brasil, a imagem de Jesus foi associada no Candomblé ao orixá Oxalá, o maior de todos no panteão desta religião; o sincretismo também vale para a imagem de “Jesus Menino”, equivalente à personificação de Oxalá quando jovem, em Oxaguian. A fé bahá’í considera Jesus uma manifestação de Deus, um conceito para profetas, e aceita Jesus enquanto Filho de Deus. Seus textos confirmam muitos, mas não todos, os aspetos do Jesus retratado nos evangelhos. Os crentes acreditam no nascimento virginal e na crucificação, mas interpretam a ressurreição e os milagres de Jesus como meramente simbólicos. 

Alguns hinduístas consideram que Jesus seja um avatar ou um ‘’sadhu’’ e enumeram várias semelhanças entre os ensinamentos de Jesus e os do hinduísmo. Paramahansa Yogananda, um guru hinduísta, afirmou que Jesus foi a reencarnação de Eliseu e aluno de João Batista, reencarnação de Elias. Alguns budistas, entre os quais Tenzin Gyatso, XIV Dalai Lama, veem Jesus como um ’’bodisatva’’ que dedicou a vida ao bem-estar do próximo. 

Na perspetiva espírita, Jesus é o modelo humano de perfeição, segundo diz Allan Kardec em O Livro dos Espíritos. Para a doutrina espírita Jesus veio com a missão divina de cumprir a lei, que fora anteriormente revelada por Moisés (primeira e segunda revelações); ele, contudo, não disse tudo, e foi completado pela “terceira revelação”: o Espiritismo. Kardec examina a natureza do Cristo nas Obras Póstumas, onde é taxativo: as discussões sobre a natureza corpórea do Cristo foi causa dos principais cismas da Igreja, e refuta todos os fundamentos para o dogma da divindade de Jesus, razão pela qual a crença na “trindade” não tem qualquer embasamento no Espiritismo. 

A Teosofia, a partir da qual derivam muitos textos new age, refere-se a Jesus como Mestre Jesus e acredita que Cristo, depois de várias reencarnações, ocupou o corpo de Jesus. A cientologia reconhece Jesus (a par de outras figuras religiosas como Zaratustra, Maomé e Buda) como parte da sua herança religiosa. No gnosticismo, hoje em dia uma religião praticamente extinta, Jesus foi enviado do reino divino para oferecer o conhecimento secreto essencial para a salvação (gnose).

A maior parte dos gnósticos acreditavam que Jesus era um humano que foi possuído pelo espírito de Cristo no momento do batismo. O espírito abandonou o corpo de Jesus durante a crucificação, porém mais tarde ressuscitou o corpo do mundo dos mortos. No entanto, alguns gnósticos eram docéticos, acreditando que Jesus não teve qualquer corpo físico, apenas aparentando ter um. O maniqueísmo, uma seita gnóstica, aceitava Jesus enquanto profeta, a par de Siddhartha Gautama e Zaratustra. 

O ateísmo rejeita a divindade de Jesus, embora muitos ateus tenham sobre ele uma perspetiva positiva; Richard Dawkins, por exemplo, refere-se a Jesus como um excelente mestre de moral, afirmando em seu livro The God Delusion que Jesus é uma figura louvável pois sua ética não é derivada da escritura bíblica. 

Entre os críticos de Jesus estão Celso no século II e Porfírio, o qual escreveu uma obra em quinze volumes na qual criticava o cristianismo no seu todo. No século XIX, Nietzsche foi um dos mais críticos em relação a Jesus, cujos ensinamentos considerava serem antinaturais no que diz respeito a tópicos como a sexualidade. Já no século XX, Bertrand Russell escreveu em Why I Am Not a Christian que Jesus “não foi tão sábio como outras pessoas, e com certeza não o foi de forma tão superlativa”.

Relíquias associadas a Jesus

A destruição total que se seguiu ao cerco de Jerusalém pelos romanos em 70 d.C. fez com que os artigos sobreviventes da Judeia do primeiro século se tornassem extremamente raros e com que praticamente não existam registos da história do judaísmo na última parte do século I e ao longo de todo o século II. Margaret M. Mitchell afirma que embora Eusébio de Cesareia relate que os primeiros cristãos tenham deixado Jerusalém para se instalar em Pela pouco antes da sua destruição, deve-se aceitar que não tenham chegado até nós artigos cristãos em primeira mão sobreviventes do período inicial da Igreja de Jerusalém.

No entanto, ao longo da história do cristianismo são várias as alegações de relíquias atribuídas a Jesus, às quais estão sempre associadas dúvidas e controvérsias. No século XVI o teólogo Erasmo de Roterdão escreveu de forma satírica acerca da proliferação de relíquias e dos edifícios que poderiam ser construídos com a quantidade de madeira que se alegava ter pertencido à cruz usada durante a Crucificação. De igual modo, enquanto os teólogos debatem se Jesus foi crucificado com três ou quatro pregos, por toda a Europa continuam a ser veneradas as relíquias de pelo menos trinta pregos da cruz.

Algumas relíquias, como os alegados vestígios da coroa de espinhos, são visitados apenas por um reduzido número de peregrinos, enquanto outras, como o Sudário de Turim (o qual está associado com a devoção católica aprovada da Santa Face de Jesus) são veneradas por milhões de pessoas, entre as quais os papas João Paulo II e Bento XVI. Não existe consenso académico sobre a autenticidade de qualquer relíquia atribuída a Jesus. 

Veja mais:

Representação na arte

Apesar da falta de referências na Bíblia ou de registos históricos, a representação de Jesus ao longo dos séculos tem assumido diversas formas e características, muitas vezes influenciada pelo contexto cultural, político e teológico. Ao longo do século I, não existiu praticamente qualquer arte figurativa na Judeia romana, dada a adesão rigorosa àquilo que é indicado por um dos Dez Mandamentos: “Não farás para ti imagem de escultura, nem figura alguma” (Êxodo 20:4-6).

No entanto, a partir do século III a interpretação deste mandamento passa a ser mais tolerante, o que proporciona o aparecimento das primeiras representações figurativas na sinagoga de Dura Europo e uma das primeiras representações de Jesus na igreja de Dura Europo, ambas datadas de um período anterior a 256. No entanto, é nas catacumbas romanas que se encontra o mais significativo espólio sobrevivente até aos nossos dias. 

A Oriente, a iconoclastia bizantina, que nos séculos VIII e IX proibiu o uso da figura humana em temas religiosos, foi um fator de resistência ao progresso artístico. A Transfiguração foi um dos principais temas na arte cristã oriental, e qualquer monge que se iniciasse na pintura de ícones deveria fazer prova da sua mestria com um ícone sobre esse tema. O Renascimento colocou em destaque uma série de artistas que se focaram em representações de Jesus, entre os quais Giotto e Fra Angelico.

A Reforma Protestante trouxe consigo movimentos que defendiam a abolição da representação gráfica de figuras religiosas, embora a proibição total tenha sido rara e as objeções tenham diminuído após o século XVI. Embora evitem imagens de grande dimensão, hoje em dia poucos protestantes se opõem a representações de Jesus em livros. Por outro lado, o uso de representações de Jesus é defendido pelos líderes religiosos católicos e anglicanos e é um elemento-chave na tradição Ortodoxa oriental.

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João Calvino https://canalfezhistoria.com/joao-calvino/ https://canalfezhistoria.com/joao-calvino/#respond Tue, 18 Mar 2025 10:23:00 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6299 João Calvino (Noyon, 10 de julho de 1509 — Genebra, 27 de maio de 1564) foi um teólogo cristão francês. Aos 14 anos foi estudar em Paris preparando-se para entrar na universidade. Estudou gramática, filosofia, retórica, lógica, aritmética, geometria, astronomia e música. Em 1523 foi estudar no famoso Colégio Montaigu. Em 1528, com 19 anos, iniciou seus estudos em Direito e, depois, em Literatura. Em 1532 escreveu seu primeiro livro, um comentário à obra De Clementia de Sêneca. Em 1533, na reabertura da Universidade de Paris, escreveu um discurso atacando a teologia dos escolásticos e foi perseguido. Possivelmente foi neste período 1533-34 que Calvino foi convertido pelo Senhor, por influência de seu primo Robert Olivétan. 

Calvino teve uma influência muito grande durante a Reforma Protestante, que continua até hoje. Portanto, a forma de protestantismo que ele ensinou e viveu é conhecida por alguns pelo nome calvinismo, embora o próprio Calvino tivesse repudiado contundentemente este apelido. Esta variante do protestantismo viria a ser bem sucedida em países como a Suíça (país de origem), Países Baixos, África do Sul (entre os africânderes), Inglaterra, Escócia e Estados Unidos. 

Nascido na casa dele , ao norte da França, foi batizado com o nome de Jehan Cauvin. A tradução do apelido de família “Cauvin” para o latim Calvinus deu a origem ao nome “Calvino”, pelo qual se tornou conhecido. Calvino foi inicialmente um humanista. Nunca foi ordenado sacerdote. Depois do seu afastamento da Igreja Católica, este intelectual começou a ser visto, gradualmente, como a voz do movimento protestante, pregando em igrejas e acabando por ser reconhecido por muitos como “padre”. Vítima das perseguições aos huguenotes na França, fugiu para Genebra em 1536, onde faleceu em 1564. Genebra tornou-se definitivamente num centro do protestantismo europeu e João Calvino permanece até hoje uma figura central da história da cidade e da Suíça.

Martinho Lutero escreveu as suas 95 teses em 1517, quando Calvino tinha oito anos de idade. Para muitos historiadores, Calvino terá sido para o povo de língua francesa aquilo que Lutero foi para o povo de língua alemã – uma figura quase paternal. Lutero era dotado de uma retórica mais direta, por vezes grosseira, enquanto que Calvino tinha um estilo de pensamento mais refinado e geométrico, quase de filigrana. 

Segundo Bernard Cottret, biógrafo francês de Calvino: “Quando se observa estes dois homens podia-se dizer que cada um deles se insere já num imaginário nacional: Lutero o defensor das liberdades germânicas, o qual se dirige com palavras arrojadas aos senhores feudais da nação alemã; Calvino, o filósofo pré-cartesiano, precursor da língua francesa, de uma severidade clássica, que se identifica pela clareza do estilo”.

Família

O avô de João Calvino morava nas proximidades de Noyon. Teve três filhos: Richard, que foi serralheiro e se instalou em Paris, Jacques, igualmente serralheiro e, finalmente, Gérard Cauvin, pai de João Calvino, que foi aquele que talvez mais se destacou dos três, tendo feito carreira em Noyon como funcionário administrativo. 

Gérard Cauvin estabeleceu-se em Noyon em 1481. Foi inicialmente notário da catedral. Seria, depois, representante do bispado de Noyon; mais tarde, funcionário relacionado com a cobrança de impostos e, finalmente, o promotor (representante) do bispado, antes de entrar em conflito com este. Faleceu em 1531 após uma disputa com o bispado, pela qual foi excomungado.

A mãe de Calvino, Jeanne Le Franc, de seu nome de solteira, era filha de um dono de uma hospedaria em Cambrai, que tinha enriquecido. Jeanne faleceu em 1515, quando João Calvino tinha apenas 6 anos de idade. 

Gérard e Jeanne tiveram cinco filhos: 

• Patricia 
• Charles (Carlos) – o mais velho, foi padre. Morreu em 1536.
• João Calvino.
• Antoine (Antônio) – iria mais tarde viver em Genebra, junto do irmão.
• François (Francisco) – morreu ainda em tenra idade.

Haveria ainda duas irmãs, que nasceram do segundo casamento de Gérard. Uma chamou-se Marie (Maria) e iria também viver em Genebra. Da outra irmã sabe-se pouco. João Calvino nasceu em 10 de julho de 1509, nos últimos anos do reinado de Luís XII. Frequentou inicialmente o “Collège des Capettes” em Nyon, onde adquiriu conhecimentos básicos de latim. Em 1 de janeiro de 1515 o rei Francisco I de França (François, roi des français), sucedeu a Luís XII. Inicialmente moderado em matéria de religião, a postura deste rei foi endurecendo ao longo do seu reinado, terminando na perseguição declarada aos protestantes. 

Pela Concordata de Bolonha, assinada no início do seu reinado, o papa Leão X concedia ao rei da França o direito a nomear os titulares dos rendimentos da Igreja. Em contrapartida, o papa via reforçados os seus direitos sobre a Igreja em França. 

Transferência a Paris

Em 1521, com doze anos, João Calvino ganhou o direito a uma “benefice”, ou seja, um rendimento anual que era concedido a elementos e familiares da hierarquia da Igreja. No seu caso, consistia numa determinada quantia anual de cereais pagos por uma comunidade de La Gésine. 

Em 1521 ou 1523 (data incerta) o pai enviou-o a Paris. Terá provavelmente vivido inicialmente com o tio Richard, na zona de Sain-Germain-l’Auxerrois. Calvino começou por frequentar o Collège de la Marche, onde foi aluno de Maturin Cordier, um grande pedagogo do tempo. Estabeleceu, aí, amizade com as crianças da família d’Hangest, do bispo de Noyon, que se assumia, de certa forma, como protector da família Cauvin. Os seus amigos eram Joachin (Joaquim), Yves (Ivo) e Claude (Cláudio), a quem mais tarde dedicaria o seu primeiro livro, um comentário a “De Clementia” de Sêneca, um autor conhecido pelo seu estoicismo.

Foi, de seguida, admitido no Collège Montaigu, uma escola de má reputação, conhecida pela sua rigidez, pelas sovas e má comida. A lista de professores em Montaigu, nesta época, incluía o espanhol Antonio Coronel e o escocês John Mair (que foi professor de Inácio de Loyola), mas não há provas definitivas de que eles tenham sido professores de Calvino. 

Em fevereiro de 1525, o rei francês Francisco I foi encarcerado temporariamente em Pavia, na Itália pelas tropas do imperador Carlos V. Com a intervenção do papa Clemente VII a favor de Francisco, a influência papal junto do rei de França aumenta consideravelmente. Numa bula de 17 de maio de 1525 dirige-se a Francisco para que tome providências contra o crescente número de “blasfemos” em França e contra os ataques a imagens religiosas. 

Em 1 de junho de 1528, teve lugar em Paris o caso da Rue des Roisiers. Uma figura de madeira situada nessa rua (uma madona) foi decapitada por desconhecidos. O rei reagiu de forma veemente, organizando procissões, que passaram a ser repetidas anualmente. O incidente ainda era lembrado no século XIX.

Vida em Orleães

Em 1529, pouco antes de atingir os vinte anos de idade, a vida de Calvino sofreu uma súbita viragem. Vindo inicialmente para Paris com uma renda anual concedida pela Igreja, com o fim de estudar Teologia, soube que o pai havia mudado de planos em relação ao seu futuro e queria então que ele seguisse com estudos de Direito. A “ciência das leis torna normalmente ricos aqueles que se debatem com ela”, referia o seu pai (ele próprio um advogado do bispado), segundo as próprias palavras de Calvino. Cumpriu a vontade do pai e foi estudar Direito em Orleães, mas nunca deixou de preferir a teologia.

Como disse mais tarde: “Se Deus me deu forças para que eu cumprisse a vontade de meu pai, determinou ele pela providência oculta que eu tomasse finalmente um outro caminho” (o da Teologia). Inicialmente Calvino preparava-se para ser padre, enveredaria pelo estudo do Direito, mas acreditava que Deus o havia trazido de novo ao caminho da Teologia. 

O biógrafo francês de Calvino, Bernard Cottret, escreveu: “Direito e leis: Calvino, o teólogo, é no fim, também, Calvino, o jurista. O seu pensamento fica marcado pela austeridade, a adstringência e a geometria da lei, pelo seu fascínio ou aspiração a ela. No início do século XVI assiste-se no Direito a uma verdadeira revolução. A retórica de Cícero tomou a primazia sobre a filosofia medieval, que se sustentava nos seus silogismos. Com a interpretação de textos jurídicos, Calvino tomou contacto pela primeira vez com a Filologia humanista”. O humanismo e o renascimento são, pois, os movimentos culturais que o influenciaram em primeiro lugar. 

Em Orleães, Calvino foi influenciado pelo seu professor Pierre de l’Estoile. Em 1529, dirigiu-se também a Bourges, para assistir a aulas do famoso professor de direito italiano Andrea Alciati, onde também assistiu a aulas do alemão Gräzist Wolmar, que o entusiasmou pela literatura grega da antiguidade. 

Em 1529, Louis de Berquin foi queimado vivo em Paris, numa altura em que o rei, Francisco, estava fora da cidade. Em 1531, Calvino, num prefácio ao livro de um amigo, tomou partido pelo seu professor Pierre de l’Estoile num texto que explorava a disputa entre este e Andrea Alciati, talvez por lealdade e nacionalismo. O que prova que o Calvino de 1531 ainda não é um reformador mas, acima de tudo, um humanista. Neste mesmo ano morre o pai, Gerard Cauvin. Calvino vai a Bourges, a Orleães e regressa de novo a Paris, onde se instala em Chaillot.

Em 1532, foi doutorado em Direito em Orleães. O seu primeiro trabalho publicado foi um comentário sobre o texto do filósofo romano Séneca “De Clementia”. Calvino cobriu os custos da publicação do livro com dinheiro do seu próprio bolso. Aos 23 anos era já um famoso humanista, seguindo os passos de Erasmo de Roterdão, que também escreveu sobre Séneca nestes anos. Em “De Clementia” não há da parte de Calvino uma alusão explicitamente religiosa. É antes uma obra que reflecte o estoicismo de Séneca e a predestinação no sentido estoico. Séneca escrevera o texto como forma de apelar Nero à moderação e à razão. 

Até 1532 não há, como se viu, qualquer indício de que Calvino tenha aderido à nova fé – nos seus diferentes focos e graus que surgem pela Europa – onde o luteranismo surge como um movimento mais moderado e os anabaptistas como uma força mais radical. 

A conversão de Calvino ao protestantismo permanece envolta em mistério. Sabe-se apenas que ela se deu entre 1532 e 1533 (Calvino tem 23 ou 24 anos). Um texto escrito por Calvino em 1557 como prefácio ao seu comentário sobre os Salmos oferece-nos alguns parcos pormenores: 

“Após tomar conhecimento da verdadeira fé e de lhe ter tomado o gosto, apossou-se de mim um tal zelo e vontade de avançar mais profundamente, de tal modo que apesar de eu não ter prescindido dos outros estudos, passei a ocupar-me menos com eles. Fiquei estupefacto, quando antes mesmo do fim do ano, todos aqueles que desejavam conhecer a verdadeira fé me procuravam e queriam aprender comigo – eu, que ainda estava apenas no início! Pela minha parte, por natureza algo tímido, sempre preferi o sossego e permanecer discreto, de modo que comecei a procurar um pequeno refúgio que me permitisse recolher dos Homens. Mas, pelo contrário, todos os meus refúgios se tornavam em escolas públicas.

Em resumo, apesar de eu sempre ter pretendido viver incógnito, Deus guiou-me por tais caminhos, onde não encontrei sossego, até que ele me puxou para a luz forte, contrariando o meu carácter, e como se costuma dizer, me colocou em jogo. E, na verdade, deixei a França e dirigi-me para a Alemanha para que ali pudesse viver em local desconhecido, incógnito, como sempre tinha desejado.”

Note-se que a França e Alemanha não existiam no sentido de hoje, como estados, mas sim em termos de zonas de língua francesa ou alemã. Entretanto, o papa Clemente VII pressionava o rei de França a reprimir os protestantes franceses. Em bulas de 30 de agosto de 1533 e de 10 de novembro do mesmo ano, o papa exortava à “aniquilação da heresia luterana e de outras seitas que ganham influência neste reino”. Os dois encontraram-se, então, nesse mesmo ano, em Marselha, onde discutiram entre outras coisas a “guerra contra os turcos, lá fora, e a repressão das heresias cá dentro”. 

O discurso de Nicolas Cop

Em 1 de novembro de 1533, o novo reitor da Universidade de Paris, o humanista Nicolas Cop, proferiu um discurso de abertura do ano lectivo na Igreja dos Franciscanos, em Paris, frente aos mais altos representantes das quatro faculdades: Teologia, Direito, Medicina e Artes. O seu discurso fazia eco de temas facilmente associados à nova teologia da Reforma. Nesse discurso, Nicolas fez, particularmente, o paralelismo entre a perseguição aos primeiros cristãos e a que ocorria agora, século XVI, na França, e que visava os cristãos protestantes. Argumentava: Não eram também chamados de heréticos os primeiros seguidores do cristianismo? O resultado foi a perseguição do próprio Nicolas Cop, que teve de se refugiar em Basileia. 

Simultaneamente, João Calvino fugia também de Paris. O seu quarto no Collège de Fortet foi revistado, e seus papéis e correspondência foram confiscados. Calvino encontrou refúgio em Angoulême, em casa do seu amigo Du Tillet.

Não foi até hoje esclarecido completamente o que se passou. Encontrou-se, contudo, em Genebra, um fragmento do discurso de Nicolas Cop, escrito pela mão de Calvino. O documento original completo encontra-se em Estrasburgo. Foi levantada a tese de que Calvino poderia, pelo menos, ter participado na elaboração do discurso. 

Calvino permaneceu em Angoulême até abril de 1534, altura em que se dirige a Nérac, onde se encontra com Lefèvre d’Étaples. Regressa depois a Noyon, onde em maio de 1534 renunciou às suas “benefices”. Voltou, então, a Paris e a Orleães. 

A Psychopannychia

Em 1534, Calvino escreveu o seu segundo livro, que foi também o primeiro sobre religião. Chamaou-se “Psychopannychia”, palavra que deriva do grego e que significa: “A vigília da alma”. A tradução francesa “Psychopannychia, un traité sur le sommeil de l’âme” (“A vigília da alma – contra o sono da alma”) introduziu a frase “sono da alma” como uma descrição crítica da crença na mortalidade da alma, ou “mortalismo cristão”, que foi ensinada por Martinho Lutero, entre outros. É um livro relativamente pouco conhecido, em comparação com as outras obras de Calvino.

Calvino fez uma crítica severa aos anabaptistas, que acusou de serem uma seita tresmalhada. O livro colocou questões teológicas, mais do que oferecer respostas. Calvino, nos seus 24 anos de idade, estava em processo de busca. Defendeu nessa obra a imortalidade da alma. O título completo era: “Psychopannychia – tratado pelo qual se prova que as almas permanecem vigilantes e vivas uma vez que tenham deixado os corpos, o que contraria o erro de alguns ignorantes que sustentam que elas dormem até ao último momento” – o que é, também, um ataque aos anabaptistas. Apesar de escrito em 1534, o livro foi apenas publicado em 1542. 

O caso dos cartazes de 1534 ou o caso dos Placards

Em 18 de outubro de 1534, a história do protestantismo francês viveu um dos seus momentos mais tensos: a disputa dos placards (paineis ou cartazes). Os placards, de 37cm por 25cm, afixados em vários locais, criticavam a celebração da missa tal como ela era realizada oficialmente pela igreja católica. O ano de 1534 foi o da criação da Companhia de Jesus e da organização do papa Paulo III, que viria a excomungar o rei Henrique VIII, o criador da Igreja Anglicana. 

Calvino ajudou seus conterrâneos picardos Antonie Marcout e Fefevre d´Etaples a espalhar os cartazes em algumas cidades próximas a Paris condenando a missa como blasfematória. Os placards foram vistos em Paris, em Orleans e até em Amboise, onde residia o rei Francisco I. Estava decretada a perseguição aos reformados. Os protestantes pregaram proclamações contra a missa até na própria porta do rei, no Castelo de Amboise. 

Até então, o rei francês Francisco I tinha mostrado muita abertura de espirito, sem hesitar aliar-se aos protestantes da Alemanha ou ao sultão. Em represália ao que ficou chamada affaire des placards, ordenou a caça aos heréticos. Depois de anos de trégua, a intolerância religiosa recomeçaria. 

Etapa em Basileia

Em janeiro de 1535, Calvino dirigiu-se (alguns sustentam que teria fugido) para Basileia, cidade onde viveu até março de 1536. Basileia era uma cidade conhecida por ter sido o lar de Erasmo de Roterdão e do reformador Johannes Oekolampad, falecido em 1531, sendo o seu seguidor Oswald Mykonius. 

A tradução da Bíblia de Olivétahn

Em 1535 é publicada a primeira bíblia traduzida por um protestante, em francês. Tratava-se de uma tradução directa do hebraico (o antigo testamento) e do Grego (o novo testamento) – línguas originais das escrituras – e não das versões então em uso, em latim. Algo totalmente natural no século do humanismo e de Erasmo de Roterdão. O autor é Olivétan, aliás Pierre Robert (1506-1538), primo de João Calvino e proveniente também de Noyon. Foi publicada em Neuchâtel por Pierre de Vingle.

Apesar de Pierre Robert ter demonstrado um bom conhecimento de hebraico e grego, o seu estilo de escrita foi considerado de difícil compreensão, além de uma certa falta de fluidez discursiva. O texto foi revisto (com a colaboração de Calvino) e publicado novamente em 1546. 

O Édito de Coucy

Em 16 de julho de 1535, o rei Francisco I de França fez publicar o Édito de Coucy, uma medida de contemporização para com os protestantes e que corresponde também a uma nova guerra de Francisco I contra o imperador Carlos V (Guerra de 1535-1538). Francisco I precisava do apoio dos protestantes alemães para o esforço de guerra e não convinha, necessariamente, perseguir os luteranos na França. Foi prometido que se deixariam os protestantes em paz desde que vivessem como “bons cristãos” e renunciassem à sua fé. Mas, em dezembro de 1538, o Édito de Coucy foi suspenso e as perseguições aos protestantes retomaram a intensidade anterior. 

Institutio Religionis Christianae

Em março de 1536, foi publicada em Basileia a primeira edição de “Institutio Religionis Christianae”. No prefácio, mencionava a sua estadia em Basileia, “enquanto na França são queimados na fogueira crentes e pessoas santas”. Falava de santos mártires. Dirigiu-se no livro ao rei Francisco I de França, que procurava convencer das boas intenções da Reforma Protestante. Ao mesmo tempo, a sua teologia começava a adquirir contornos mais marcados e mais autónomos em relação ao luteranismo. Uma tendência que se fortaleceria no futuro. Criticava a vida dos mosteiros, que comparava a bordéis. Calvino pretendia não só a reforma da Igreja mas de todos os indivíduos. A Institutio é “a organização da sociedade daqueles que acreditam em Jesus Cristo”. 

Em março de 1536, Calvino viajou até Ferrara na companhia de Louis Du Tillet. Calvino esperava um acolhimento aberto às ideias protestantes na sua estadia em Ferrara. Enganava-se. Teria de interromper a visita logo em abril. Foi então até Paris. Mas Calvino não teria futuro em França. Numa carta ao amigo Nicolas Duchemin, comparou a sua situação com a dos judeus no Egipto. A França era o seu Egipto. Queixou-se na mesma carta dos rituais da missa, considerando-os idólatras. Calvino saiu definitivamente da França em 1536, procurando terras politicamente independentes da França e de espíritos mais abertos para a reforma. Dirigiu-se, então, para cidades dos territórios que hoje constituem a Suíça. 

A Reforma em Genebra

Genebra era nesta altura já uma cidade de espíritos progressivos e abertos para a Reforma Protestante. Politicamente, a cidade estava desde 1285 sob vassalagem aos condes de Saboia ou à casa episcopal (ao bispo de Genebra), quase sempre ocupada por um bispo também da casa de Saboia desde que o papa Félix V (Amadeu VIII de Saboia) se auto-nomeou bispo da cidade. Na prática, no entanto, Genebra era quase uma cidade-estado, uma república que desde cedo se emancipou na conquista da sua liberdade municipal.

Em 1522 iniciou-se um conflito entre os pejorativamente chamados “mamelucos”, que eram conservadores e partidários da casa de Saboia e os “confederados” (alemão: Eidgenossen; francês: Eidguenot) de onde possivelmente se formará a palavra huguenotes (francês: huguenot). Estes últimos opunham-se a Saboia. Em 1524, Carlos III, Duque de Saboia, tinha ocupado militarmente Genebra. Porém, em 1526, Genebra decidiu-se pela união com os cantões suíços de Berna e Friburgo, iniciando-se no caminho helvético.

A reforma protestante não teve um papel determinante neste processo, segundo Bernard Cottret. Mas a partir daqui começaram a reunir-se em Genebra elementos da Reforma. Em 1533, houve o primeiro culto protestante de que há conhecimento nesta cidade. São então cunhadas moedas com a inscrição: “Post tenebras lux” (“após as trevas, a luz”). 

O ano de 1536 marcou uma viragem na cidade de Genebra. Neste ano, a reforma foi adoptada oficialmente pela cidade. Os clérigos da Igreja Católica foram intimados a deixar de celebrar a missa como o faziam, com o cerimonial papista e seus abusos (idolatria, aos olhos dos protestantes) e a juntarem-se aos protestantes. Num novo fôlego de zelo religioso, as raparigas foram obrigadas a usar o véu, cobrindo os seus cabelos. Já desde 1532 que se registavam ataques e destruições de imagens religiosas, estátuas, figuras, etc. A adoração destas figuras era vista pelos protestantes como idolatria.

Houve um episódio carismático deste fenómeno: num destes ataques à “idolatria papista”, uma multidão apoderou-se de cerca de 50 hóstias de um padre, dando-as a comer um cão. “Se as hóstias pertencem mesmo ao corpo de Deus, não se irão deixar comer por um cão!” – é argumentado. Em junho de 1536, são abolidos em Genebra, por decisão de um conselho, todos os feriados, excepto os domingos. Todas estas transformações deram-se sem a influência de Calvino. Aliás, ainda nem sequer aí tinha chegado. 

Chegada de Calvino a Genebra

1536 é também o ano da chegada de Calvino a Genebra. Calvino tinha nessa altura 26 anos. Após a estadia em Ferrara, na primavera de 1536, Calvino tinha estado em Paris, aproveitando-se de um período de relativa calma na perseguição aos protestantes. Tratou de assuntos pessoais e da família. Em junho, faz em Paris uma procuração em nome do seu irmão. Em julho de 1536, João Calvino, pretendendo dirigir-se a Estrasburgo, iniciou a viagem, juntamente com o irmão Antoine e a irmã Marie.

Em vez de tomar o caminho mais curto, Calvino fez um desvio pelo sul, evitando a área onde a guerra entre as forças de Francisco I e Carlos V são uma ameaça. Por coincidência, Calvino chegou a Genebra, onde permaneceu, apesar de ter inicialmente pretendido continuar viagem, o que foi vivamente desaconselhado pelo reformador Guillaume Farel (na altura de 47 anos de idade). O caminho para Estrasburgo encontrava-se inseguro por causa da guerra. A Genebra que Calvino encontrou vivia ainda a agitação dos conflitos entre mamelucos e confederados. 

João Calvino já tinha viajado até Estrasburgo durante as guerras otomanas, e passado através dos cantões da Suíça. Aquando da sua estadia em Genebra, Guillaume Farel pediu ajuda a Calvino na sua causa pela Igreja. Calvino escreveu sobre este pedido: “senti como se Deus no céu tivesse colocado a sua poderosa mão sobre mim para barrar-me o caminho”. Após 18 meses, as mudanças de Calvino e Farel levariam à expulsão de ambos. 

A disputa teológica de Lausana

Entre 1 e 8 de outubro de 1536, teve lugar na Catedral de Notre-Dame em Lausana uma disputa teológica entre protestantes e católicos, na qual Calvino e Farel participaram. Este tipo de conferências de disputa teve por modelo os debates que Ulrico Zuínglio tinha organizado em Zurique (1523) e Berna (1528). Do lado católico encontrava-se Pierre Caroli, que iria acusar, em Berna, Calvino e Farel de heresia. Calvino foi também acusado por Caroli de arianismo. 

A saída atribulada de Genebra

A 16 de janeiro de 1537, as autoridades da cidade de Genebra aprovaram o documento escrito pelo líder protestante Farell, que se destinava a servir de confissão de fé e orientação para todos os habitantes de Genebra. Calvino fez também algumas sugestões, parte das quais foram rejeitadas. Cerca de vinte artigos dispõem, entre outras coisas, que os idólatras, querulantes, assassinos, ladrões, bêbados (entre outros) sejam futuramente excomungados. As lojas deviam fechar ao domingos, assim que soassem os sinos da igreja. 

Estas disposições, apesar de aceites pelas autoridades criaram atritos com Farell e Calvino. O estigma da excomunhão é extremamente discriminador e destruidor de relações sociais no século XVI. Em março, os líderes anabaptistas de origem holandesa Hermann de Gerbihan e Benoît d’Anglen são expulsos de Genebra, juntamente com os seus seguidores. Em abril de 1537, por sugestão de Calvino, foi constituído um “syndic” (síndico) que teve por objectivo ir de casa em casa e inquirir sobre a confissão dos moradores. A acção foi contestada. Alguns moradores recusaram-se a pronunciar-se sobre a sua fé. Em junho de 1537, as autoridades de Genebra decidiram que o domingo seria o único dia feriado. Futuramente nenhum outro feriado seria considerado. 

O dia 30 de outubro foi definido como o prazo para todos os moradores de Genebra se pronunciarem quanto à sua religião. Aqueles que não reconhecem os decretos de Farell são obrigados a deixar a cidade em 12 de novembro. Após esta data, a situação complicou-se para Farell e Calvino. Particularmente provocante foi o facto de um estrangeiro (francês), como Calvino, decidir sobre a excomunhão e expulsão de habitantes naturais de Genebra. As autoridades, perante estes protestos, passam a ser mais críticas para com os líderes protestantes. 

A 3 de fevereiro de 1538 foram eleitos para as autoridades da cidade de Genebra quatro pessoas que eram inimigos de Calvino e dos protestantes. Em março, estas novas autoridades proibiram Calvino e Farell de se pronunciarem sobre assuntos não religiosos. Calvino e Farell negaram-se a celebrar a comunhão de acordo com a tradição de Berna. Foram proibidos de celebrar os serviços religiosos. No entanto, no domingo seguinte, 21 de abril de 1538, Farell e Calvino celebraram o culto de Ceia como habitualmente, Farell na Igreja de Saint-Gervais e Calvino na de Saint-Pierre. As autoridades deram-lhes três dias para saírem da cidade. 

Estrasburgo

Em 1538, Farell irá refugiar-se em Neuchâtel. Calvino dirige-se a Estrasburgo, após ter inicialmente pretendido ir para Basileia. Estrasburgo era na altura parte da zona de língua alemã, mas a proximidade da fronteira com a França significava que ali se tinha desenvolvido uma comunidade de exilados franceses. Tal como em Genebra Farell reconhecera o potencial de Calvino, em Estrasburgo Martin Bucer foi o protector de Calvino. Durante três anos, Calvino dirigiu em Estrasburgo uma igreja de protestantes franceses, a convite de Bucer. 

Segundo o biógrafo Courvoisier, Estrasburgo foi a cidade onde Calvino tornou-se verdadeiramente Calvino. O seu sistema de pensamento foi lá consubstanciado em algo de mais marcadamente original. A sua obra Institutio lá foi re-editada (1539). Era então três vezes maior do que a primeira edição. Em outubro de 1539, Pierre Caroli chegou a Estrasburgo, onde permaneceu pouco tempo. Caroli e Calvino, inimigos desde há anos, tiveram uma disputa. Caroli estava então algures entre o catolicismo e o protestantismo. Ele acusou Calvino de o ter confundido na sua fé. Calvino sofreu uma crise nervosa.

Neste outono de 1539, Calvino escreveu também um comentário à carta de Paulo aos Romanos. Este tema é particularmente querido do protestantismo, porque ali se encontra a justificação através da fé como a base de sustentação do movimento protestante, pois somente a fé salva e justifica. A Igreja é por este prisma mais uma comunidade de crentes do que um enquadramento jurídico. Os sacramentos só recebem o seu sentido através da fé. Sem fé não têm qualquer efeito. Já Lutero tinha destacado a carta de Paulo aos Romanos como o cerne do Novo Testamento e o mais alto do Evangelho. 

Matrimônio 

Em Estrasburgo, Calvino casou-se em agosto de 1540 com a viúva Idelette de Bure, que tinha sido previamente adepta do anabaptismo. Traz duas crianças do seu prévio casamento. Calvino tem 31 anos de idade. A cerimónia do casamento foi dirigida por Guillaume Farel. Em 1541 a peste negra (ou peste bubónica) recrudesceu em Estrasburgo. Idelette e as duas crianças procuram abrigo em casa de um irmão dela, nas redondezas. 

Regresso a Genebra

Após a expulsão de Calvino, Genebra tinha adoptado os ritos de Berna. O Natal, ascensão de Cristo e outras festividades cristãs voltaram a ser praticadas. Mas os católicos e os anabaptistas continuavam a ser perseguidos e “convidados” a deixar a cidade. A 18 de março de 1539 o jogo tinha sido proibido em Genebra. Pedintes e vagabundos eram expulsos da cidade. A ausência de Calvino não tinha significado qualquer laxismo na moral estrita imposta na cidade.

As relações de Genebra com Berna permanecem tensas. Entretanto, os líderes que se opunham a Calvino (os chamados “artichoques”) começaram a perder influência. Foram acusados de simpatia por Berna. Jean Philip (João Filipe), um de seus líderes, foi torturado e decapitado em 1540. Os oponentes, favoráveis a Calvino, chamados de “guillermins” ganham o poder. 

Calvino foi convidado em outubro de 1540 a regressar a Genebra, para reaver o seu posto na Igreja, tal como o tivera antes da expulsão. A 13 de setembro de 1541, Calvino chegou pela segunda vez a Genebra, mas, desta vez definitivamente. Começou, então, a organizar e estruturar, de acordo com as linhas bíblicas, os ministérios e a acção dos professores e diáconos. 

Zelo religioso radical

São ainda de 1541 as propostas de Calvino, no sentido da reorganização da igreja. As “Ordonnances de 1541” dispuseram a formação de quatro corpos: 

• Pasteurs (pastores, que pregam)
• Docteurs (ensinam)
• Anciens (os mais velhos, que chamam à ordem aqueles que prevaricam)
• Diacres (diáconos, que ocupam-se dos pobres e doentes) – mendigar é estritamente proibido Foi decidida também a criação de um Consistório – composto de elementos da Igreja e de laicos – que se reúne regularmente para julgar os comportamentos individuais, como um tribunal, “de acordo com a palavra de Deus”, sendo a excomunhão de pessoas a mais grave sentença que pode decidir. 

A eucaristia só era praticada quatro vezes por ano. Em 1542 Calvino publicou em Genebra o seu livro de catecismo: “Catéchisme de l’Église de Genève, c’est-a-dire, le formulaire d’instruire les enfants en la chrétienté”. A chave do projecto de Calvino passava pela pedagogia. O seu objectivo era a profunda transformação das mentalidades. Cada resquício de superstição, de práticas de magia, ou de catolicismo era perseguido como idolatria. 

O Consistório, do qual Calvino fazia parte, ocupava-se desses e de outros casos. Refiram-se alguns:

• Em 1542, uma mulher chamada Jeanne Petreman foi acusada de se recusar a participar da eucaristia, de dizer o Pai-nosso em língua “romana” e de proclamar que a Virgem Maria era a sua defensora. Dizia também que se negava a acreditar noutra fé que não a sua. Foi excomungada.

• Em 2 de setembro de 1546, apareceu em Genebra um franciscano que pedia na rua um jantar em nome de Deus e da Virgem Maria. Devemos pressupor que ele obteve o seu jantar mas foi também levado ao Consistório, que logo constatou que o “papista” mal conhecia a Bíblia, além de ser inofensivo. Foi expulso da cidade, para o lado da fronteira, com os católicos.

• A 23 de junho de 1547 compareceram perante o Consistório várias mulheres que tinham sido apanhadas a dançar – uma delas era a esposa de um dos membros do Consistório. O caso ganhou contornos de escândalo. As mulheres foram condenadas a alguns dias de prisão, apesar de vários apelos. Em reacção à decisão, foram colocados na cidade cartazes contra Calvino. O autor dos cartazes, Jacques Gruet, foi torturado. Depois de confessar a sua autoria, foi executado.

• Em 1548, Louis Le Barbier foi interrogado sobre a sua fé. Declarou que não tinha fé. Entretanto, descobriram livros de bruxaria e de escórnio na sua posse. Foi admoestado perante o Consistório mas não foi perseguido.

Os nomes de baptismo são regulamentados. Devem ser nomes que figuram na Bíblia. Um decreto de 22 de novembro de 1546 dispôs que certos nomes eram proibidos, entre os quais: 

• Suaire, Claude, Mama (lembram a idolatria)
• Baptistes, Juge, Evangéliste
• Dieu le Fils, Espoir, Emmanuel, Sauveur, Jésus (destinados apenas a nosso Senhor)
• Sépulcre, Croix, Noël, Pâques, Chrétien (nomes estúpidos ou absurdos)

O luxo e a pompa eram desprezados. Em setembro de 1558, Nicolas des Gallars, um amigo de Calvino, iniciou uma grande campanha na cidade em desprezo do supérfluo, as modas entre as mulheres e as más leituras. Foram queimados vários exemplares do livro “Amadis de Gaula”, na posse de um comerciante. O zelo religioso tomava a forma de censura moral. 

Peste Negra em Genebra

Em 1542, há um surto de peste negra em Genebra. A peste negra permanecia então um fenómeno incompreensível – para lidar com a epidemia, era normal que se multiplicassem os casos de feitiçaria e de rituais contra a peste. Este tipo de práticas já eram conhecidos em Genebra antes da Reforma e, tal como antes, os protestantes replicavam com a perseguição, tortura e morte dos suspeitos. Aquelas que são identificadas como bruxas são queimadas vivas, enquanto se propaga a ideia de que estas desgraças são um castigo de Deus. 

Em 1542, o filho de Calvino, Jacques, morreu pouco depois de nascer em 28 de julho. A caça às bruxas foi um fenômeno da Idade Moderna, uma espécie de onda persecutória que atingiu a Europa Central e Ocidental. Era praticada principalmente pelos magistrados das cidades. Por conta das epidemias que surgiram em Genebra, em 1545, foram julgados 43 “fomentadores de peste”, dos quais 39 foram executados (90% dos casos).

Crescimento demográfico

A partir de 1542 e sobretudo na década de 1550, a cidade de Genebra conheceu um grande crescimento demográfico, com a chegada de refugiados franceses, protestantes perseguidos em França. Consequentemente, há uma fase de expansão económica (relojoaria e tecelagem) e a língua francesa começou a ter preponderância sobre o dialecto franco-provençal da região. Mas também foi uma época marcada pelo crescimento de sentimentos xenófobos, em parte devidos a ressentimentos contra Calvino: 

  • Em janeiro de 1546 foi preso Pierre Ameaux, que tinha injuriado publicamente Calvino, ao referir-se a este como um “picard”, pregador de uma falsa fé.
  • Um outro senhor Ameaux foi preso mais tarde por razões semelhantes. Este senhor tinha boas razões para não gostar do extremo zelo religioso imposto por Calvino, já que era fabricante de cartas de jogo. Foi condenado a percorrer a cidade de uma ponta à outra, descalço, em camisa, com uma vela na mão.
  • A 23 de setembro de 1547, François Favre compareceu em tribunal por ter afirmado que Calvino se auto-nomeara bispo de Genebra e que os franceses tinham escravizado a sua cidade natal.
  • Mais tarde, em 1548, um senhor chamado Nicole Bromet declarou que os franceses deveriam ser todos colocados num barco e enviados pelo rio Reno abaixo.

Em 1547, Henrique II de França sucedeu a Francisco I. Henrique foi um rei menos reconhecido, em comparação com Francisco. Foi caracterizado como menos carismático, menos entusiasta pelas artes e ciências, mais introvertido e frio. Em 29 de março de 1549 morreu Idellete Calvino, após doença. Calvino não tornou a casar. Dedicou-se ainda mais decididamente ao trabalho. Em 1550, a repressão dos huguenotes em França cresceu. Foi estabelecida a chambre ardente. A censura foi fortalecida. 

Miguel Servet

Miguel Servet foi um cientista e reformador, primeiro a descrever a circulação pulmonar, condenado à morrer na fogueira por suas idéias teológicas pelo Conselho de Genebra. A relação entre Servet e Calvino inicia-se em 1553, quando Servet publicou uma obra religiosa com exibições anti-trinitárias, intitulada Restituição do Christianismo, um trabalho que rejeitou a ideia de predestinação e que Deus condenava almas para o inferno, independentemente do valor ou mérito.

Deus, insistiu Servet, não condenaria ninguém, Calvino, que havia recentemente escrito o resumo de sua doutrina em Institutas da Religião Cristã, considerou o livro de Servet um ataque a suas teorias, e enviou uma cópia de seu próprio livro como resposta. Servet prontamente devolveu, cuidadosamente anotando observações críticas. Servet escreveu a Calvino “eu não te odeio, nem te desprezo, nem quero vos perseguir, mas eu gostaria de ser tão duro como o ferro, quando eis que insultaste a doutrina com som e audácia tão grande”. 

As respostas de Calvino ficaram cada vez mais violentas, até que ele parou de falar com Servet. Servet enviou diversas outras cartas, mas Calvino se recusou à respondê-las e considerou-as heréticas. Posteriormente Calvino demonstrou suas opinões sobre Servet, quando escreve ao seu amigo Guilherme Farel em 13 de fevereiro de 1546: 

Servet acaba de me enviar um volume considerável dos seus delírios. Se ele vir aqui (…), se minha autoridade valer algo, eu nunca lhe permitiria sair vivo (“Si venerit, modo valeat mea autoritas, patiar nunquam vivum exire”).

Em 16 de fevereiro 1553, Servet, então em Vienne, foi denunciado como um herege por Antoine Arneys, que estava morando em Lyon, que por sua vez soube das idéias de Servet graças à uma carta enviada pelo seu primo, Guillaume Trie, um comerciante rico e um grande amigo de Calvino. O inquisidor francês Matthieu Ory, interrogou Servet e seu impressor sobre Christianismi Restitutio, mas eles negaram todas as acusações e foram liberados por falta de provas. Arneys escreveu sobre o ocorrido a Trie, exigindo provas.

Em 26 de março de 1553, as cartas enviadas por Servet a Calvino e algumas páginas do manuscrito Christianismi Restitutio foram transmitidas à Lyon por Trie. Em 4 de abril, de 1553 Servet foi preso pelas autoridades eclesiásticas, e preso em Vienne. Ele escapou da prisão três dias depois. Em 17 de junho, mesmo ausente, ele foi condenado por heresia pela Inquisição francesa, e seus livros foram queimados. 

Servet desejava fugir para a Itália, porém, inexplicavelmente, parou em Genebra. Em 13 de agosto de 1553, quando ouvia um sermão de Calvino, foi imediatamente reconhecido, Calvino e seus reformadores o denunciaram, e Servet foi preso. Calvino insistiu na condenação de Servet usando todos os meios ao seu comando. 

Em seu julgamento pelo Conselho de Genebra, segundo a maioria dos historiadores, Servet foi condenado pela difusão e pregação do antitrinitarismo e por ser contra o batismo infantil. O procurador (procurador-chefe público), acrescentou algumas acusações como “se ele não sabia que sua doutrina era perniciosa, considerando que ela favorece os judeus e os turcos, por inventar desculpas para eles, e se ele não estudou o Alcorão, a fim de desmentir e rebater as doutrina e a religião das igrejas cristãs(…)”. 

Calvino acreditava que Servet mereceu ser morto por causa do que ele denominou como “blasfêmias execráveis”. Todavia, não concordou que ele fosse morto à fogueira, mas sim à guilhotina. Porém, o Conselho não deu ouvidos à Calvino. Calvino então consultou outros reformadores sobre a questão de Servet, como os sucessores imediatos de Martinho Lutero, bem como reformadores de locais como Zurique, Berna, Basel e Schaffhausen, todos concordaram universalmente com sua execução.

Em 24 de outubro Servet foi condenado à morte na fogueira por negar a Trindade e o batismo infantil. Calvino sugeriu que Servet fosse executado por decapitação, em vez de fogo, mas seu pedido não foi atendido. Em 27 de outubro de 1553 a pena foi aplicada nos arredores de Genebra com o que se acreditava ser a última cópia de seu livro acorrentado a perna de Servet. Após o ocorrido Calvino escreveu: 

Quem sustenta que é errado punir hereges e blasfemadores, pois nos tornamos cúmplices de seus crimes (…). Não se trata aqui da autoridade do homem, é Deus que fala (…). Portanto se Ele exigir de nós algo de tão extrema gravidade, para que mostremos que lhe pagamos a honra devida, estabelecendo o seu serviço acima de toda consideração humana, que não poupamos parentes, nem de qualquer sangue, e esquecemos toda a humanidade, quando o assunto é o combate pela Sua glória. 

Relacionamento com a Reforma inglesa

Por volta de 1550, Calvino escreveu ao rei Eduardo VI de Inglaterra, um protestante, encorajando-o nas suas reformas. O rei Eduardo VI fez acolher protestantes franceses, perseguidos no país natal. Após o reinado de Eduardo VI (1547-1553) o catolicismo regressou à Inglaterra sob a liderança de Maria Tudor.

A discordância com Lutero

No movimento reformista, Lutero não concordou com o “estilo” de reforma de João Calvino. Martinho Lutero queria reformar a Igreja Católica, enquanto João Calvino acreditava que a Igreja estava tão degenerada que não havia como reformá-la. Calvino se propunha a organizar uma nova Igreja que, na sua doutrina (e também em alguns costumes), seria idêntica à Igreja Primitiva. Já Lutero decidiu reformá-la, mas afastou-se desse objetivo, fundando, então, o protestantismo, que não seguia tradições, mas apenas a doutrina registrada na Bíblia, e cujos usos e costumes não ficariam presos a convenções ou épocas. A doutrina luterana está explicitada no “Livro de Concórdia”, e não muda, embora os costumes e formas variem de acordo com a localidade e a época. 

Novas dificuldades

Entre 1553 e 1555, em Genebra, a relação tensa entre a Igreja – particularmente o Consistório, onde Calvino era uma figura de relevo – e as autoridades seculares da cidade, eleitas entre os habitantes (ricos) da cidade, atingiu o seu auge. Discutia-se, então, a questão de saber se o Consistório teria ou não o direito de excomungar pessoas, algo que se vinha a passar com relativa frequência. As amargas trocas de palavras entre estes dois pólos multiplicaram-se. Por um lado, o zelo religioso dos calvinistas, do outro, a autoridade política da cidade.

Em janeiro de 1555, houve uma procissão noturna de pessoas em Genebra, caminhando de vela na mão, com a pretensão de ridicularizar Calvino. Apesar disso, e em parte por causa do peso relativo da população protestante francesa que se tinha refugiado na cidade, as eleições dos quatro novos “Syndics” de Genebra em Fevereiro de 1555 é favorável aos calvinistas, que se impõem contra os “Enfants de Genève” sob a liderança de Perrin. Após as eleições, porém, há desacatos na rua entre as duas partes. Perrin e outros líderes da revolta são presos e serão decapitados e esquartejados. Os pedaços dos cadáveres foram, depois, exibidos nas ruas da cidade. 

Também a doutrina da predestinação foi muito atacada nestes anos, principalmente por um monge carmelita chamado Hiérome Bolsec, nascido em Paris, que se tinha estabelecido em Genebra. Argumentava que se Deus fosse o responsável por tudo o que se passa, então, também seria responsável pelos nossos pecados. Calvino responde que nunca disse isso e as autoridades apoiam-no. Em Berna, os críticos de Calvino foram expulsos da cidade em 1555. 

Em 1555, são erguidas as primeiras Igrejas calvinistas em França, nomeadamente em Paris, Meaux, Angers, Poitiers e Loudun. Nos três anos seguintes surgiram as comunidades de Orleães, Rouen, La Rochelle, Toulouse, Rennes e Lyon. 

Em 8 de junho de 1558, Calvino escreve a Antoine de Bourbon, o rei de Navarra e consorte de Jeanne d’Albret, exortando-o a seguir na sua vida privada os mesmos valores ascéticos que os seus súbditos. Entre 26 e 29 de maio de 1559, realizou-se em Paris um sínodo nacional protestante. Cerca de 30 paróquias aparecem aí representadas. O sínodo foi responsável pela elaboração de um texto de linhas orientadoras (com a participação de Calvino na sua criação), que se chamou Confession de La Rochelle (texto confirmado nesta cidade em 1571). Em 1559 Calvino fundou uma escola e um hospital. Em abril de 1559, foi assinado o pacto de paz entre a França e a Espanha, em Cateau-Cambrésis. 

Morte

Nos seus últimos anos de vida, a saúde de Calvino começou a vacilar. Sofrendo de enxaquecas, hemorragia pulmonar, gota e pedras nos rins foi, por vezes, levado carregado para o púlpito. Calvino continuava a ter detratores declarados que lhe dirigiam ameaças constantes. 

Entretanto, apreciava passar os seus tempos livres no lago de Genebra, lendo as escrituras e bebendo vinho tinto. No fim de sua vida disse a seus amigos que estavam preocupados com o seu regime diário de trabalho: “Qual quê? Querem que o Senhor me encontre ocioso quando ele chegar?”. João Calvino morreu em Genebra a 27 de maio de 1564. Foi enterrado numa sepultura simples e não marcada, conforme o seu próprio pedido no Cimetière des Rois, Genebra na Suíça. 

Publicações de Calvino

• De Clementia – Obra anotada de Séneca (1532)
• Psychopannychia (1534)
• Institutas da Religião Cristã
o publicado em Latim: 1536
o publicado em Francês: 1541
• Catéchisme de l’Église de Genève (1542)
• Calvino também publicou vários volumes de comentários sobre a Bíblia

Veja mais:

Calvinismo

O Calvinismo se tornou um sistema de regras e doutrinas fundamentadas nas Escrituras Sagradas. Dizer-se “calvinista” significa dizer que você é cristão apologeta dos princípios elementares ensinados na Bíblia como autoridade máxima, e o preceito a respeito da Soberania de Deus e da total incapacidade e estado de miserabilidade do homem, que, alcançando a Cristo unicamente por Sua Graça é capaz de ser salvo. As suas publicações espalharam as suas ideias de uma Igreja correctamente reformada para muitas partes da Europa.

O calvinismo tornou-se a religião principal na Escócia (Ver: John Knox), nos Países Baixos e em partes da Alemanha, tendo sido influente na Hungria e na Polónia. A maioria dos colonos de certas zonas do novo mundo, como Nova Inglaterra, eram igualmente calvinistas, incluindo os puritanos e os colonos neerlandeses que se estabeleceram em Nova Amsterdam (Nova Iorque). A África do Sul foi fundada em grande parte por colonos neerlandeses (também com franceses e portugueses) calvinistas do início de século XVII, que ficaram conhecidos como africânderes. Na França, os calvinistas eram chamados de Huguenotes. 

A Serra Leoa foi em grande parte colonizada por colonos calvinistas da Nova Escócia. John Marrant tinha organizado a congregação local sob o auspício da conexão Huntingdon. Os colonos eram na sua maioria loialistas negros, afro-americanos que tinham combatido pelos ingleses na guerra da independência americana.

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Johann Sebastian Bach https://canalfezhistoria.com/johann-sebastian-bach/ https://canalfezhistoria.com/johann-sebastian-bach/#respond Tue, 18 Mar 2025 10:14:22 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6288 Johann Sebastian Bach (Eisenach, 21 de março de 1685 — Leipzig, 28 de julho de 1750) foi um compositor, cravista, Kapellmeister, regente, organista, professor, violinista e violista oriundo do Sacro Império Romano-Germânico, atual Alemanha. 

Nascido numa família de longa tradição musical, cedo mostrou possuir talento e logo tornou-se um músico completo. Estudante incansável, adquiriu um vasto conhecimento da música europeia de sua época e das gerações anteriores. Desempenhou vários cargos em cortes e igrejas alemãs, mas suas funções mais destacadas foram a de Kantor da Igreja de São Tomás e Diretor Musical da cidade de Leipzig, onde desenvolveu a parte final e mais importante de sua carreira.

Absorvendo inicialmente o grande repertório de música contrapontística germânica como base de seu estilo, recebeu mais tarde a influência italiana e francesa, através das quais sua obra se enriqueceu e transformou, realizando uma síntese original de uma multiplicidade de tendências. Praticou quase todos os gêneros musicais conhecidos em seu tempo, com a notável exceção da ópera, embora suas cantatas maduras revelem bastante influência desta que foi uma das formas mais populares do período Barroco.

Sua habilidade ao órgão e ao cravo foi amplamente reconhecida enquanto viveu e se tornou lendária, sendo considerado o maior virtuoso de sua geração e um especialista na construção de órgãos. Também tinha grandes qualidades como maestro, cantor, professor e violinista, mas como compositor seu mérito só recebeu aprovação limitada e nunca foi exatamente popular, ainda que vários críticos que o conheceram o louvassem como grande. A maior parte de sua música caiu no esquecimento após sua morte, mas sua recuperação iniciou no século XIX e desde então seu prestígio não cessou de crescer.

Na apreciação contemporânea Bach é tido como o maior nome da música barroca, e muitos o vêem como o maior compositor de todos os tempos, deixando muitas obras que constituem a consumação de seu gênero. Entre suas peças mais conhecidas e importantes estão os Concertos de Brandenburgo, o Cravo Bem-Temperado, as Sonatas e Partitas para violino solo, a Missa em Si Menor, a Tocata e Fuga em Ré Menor, a Paixão segundo São Mateus, a Oferenda Musical, a Arte da Fuga e várias de suas cantatas.

Primeiros anos em Eisenach

Johann Sebastian Bach nasceu em Eisenach, pequena localidade da Turíngia, em 21 de março de 1685. Era o filho caçula de Johann Ambrosius Bach e Maria Elisabetha Lämmerhirt. Foi batizado na Igreja de São Jorge dois dias depois, tendo como padrinhos o músico Sebastian Nagel e o guarda-caça Johann Georg Koch. Os Bach eram uma família luterana integrada por músicos e compositores há várias gerações, entre eles Veit Bach (o fundador da dinastia Bach), Heinrich, Johann Michael, o próprio pai de Sebastian e muitos outros. A sua mãe era de uma família de peleteiros e agricultores, também com alguns músicos, todos profundamente religiosos, seguidores de uma doutrina anabatista de inclinação mística.

Pouco se conhece sobre sua primeira infância, salvo que desde cedo seu talento musical foi reconhecido, sendo instruído em instrumentos de cordas por seu pai e em órgão e teclado possivelmente por seu primo Johann Christoph. Com oito anos de idade ingressou na Lateinschule (escola latina) de Eisenach, a mesma escola onde Lutero havia estudado dois séculos antes. Ali o núcleo do aprendizado era a doutrina luterana, acompanhada de gramática, história e aritmética. Os níveis superiores incluíam latim, grego, hebreu, lógica, filosofia e retórica. Graças à educação musical que recebeu em casa, pôde logo ser aproveitado pelo coro da escola e também da congregação de São Jorge, destacando-se pela sua bela voz de soprano infantil. 

Ohrdruf

Contudo, as condições de vida na Turíngia naquela época eram precárias, seguidamente assolada por guerras e epidemias. Estando com apenas nove anos perdeu a mãe e, meses depois, o pai, depois de ter já perdido dois irmãos. Órfão, foi entregue aos cuidados de seu irmão mais velho, também chamado Johann Christoph, que era organista em Ohrdruf. Sua adaptação à nova vida não parece, segundo Geiringer, ter sido fácil. Sebastian mal conhecia seu irmão, que saíra de casa pouco anos antes de ele nascer e a esta altura estava casado e esperava um filho, contando com um salário magro.

Por outro lado, Christoph parece ter sido hospitaleiro e atencioso. Em seguida Bach conseguiu um emprego de cantor no coro local, contribuindo para cobrir as despesas domésticas, e ingressou na escola local para continuar seus estudos gerais, onde revelou-se um ótimo aluno, ultrapassando colegas mais velhos. Ao mesmo tempo, se aperfeiçoava na música com o irmão, que fora aluno de Pachelbel, e iniciava na composição, dedicando uma de suas primeiras peças para teclado ao seu irmão e mentor. 

Quando Elias Herda foi admitido como novo Kantor da escola de Ohrdruf, divulgou entre seus alunos a animação musical que existia então em Lüneburg. Bach entusiasmou-se com o cenário narrado e solicitou dispensa para lá estudar. Com as boas referências de que já dispunha, recebeu uma bolsa de estudos e no início de 1700, sem ter completado quinze anos e acompanhado de seu colega Georg Erdmann, deixou Ohrdruf e se dirigiu a Lüneburg, afortunadamente pouco antes de uma nova epidemia atingir a cidade.

Em abril já fazia parte do quadro de cantores do coro da Igreja de São Miguel em Lüneburg. Sua renda na posição era escassa, mas podia complementá-la, como era o hábito, cantando nas ruas, em funerais e casamentos, além de ter moradia e um auxílio extra garantidos pela sua pensão. 

Lüneburg

A vida musical em Lüneburg era muito mais dinâmica do que em Ohrdruf. A Igreja de São Miguel era um importante centro musical, oferecendo um variado repertório através de um corpo de músicos qualificados, além de ter uma enorme biblioteca de partituras, que vinha sendo compilada desde sua fundação em 1555 por Michael Praetorius. Pouco depois de sua chegada sua voz juvenil mudou. Ao contrário de outros lugares, onde isso significava a exclusão do coro, a prática local era de aproveitar os membros então como baixos ou tenores. Bach tinha a vantagem de ser proficiente em violino e viola, provavelmente participando também da orquestra.

O programa musical para os estudantes era extenso e pesado, e somava-se às obrigações do currículo extramusical da Michaelisschule (Escola de S. Miguel). Residia e se alimentava no convento da igreja, onde se instalara a Ritterakademie (Academia dos Cavaleiros), destinada aos filhos da nobreza e um centro da cultura francesa, e o contato com esse universo lhe foi muito instrutivo, conhecendo a língua, o teatro e a música da França.

Bach então conheceu o professor de dança da Ritterakademie, Thomas de la Selle, que fora aluno de Lully, e com ele fez visitas a Celle, cuja corte se esmerava por imitar a corte de Versalhes e tudo o que se referisse à França. Outros contatos importantes que fez em Lüneburg foram com o construtor de órgãos Johann Balthasar Held e com Georg Böhm, organista da Igreja de São João. 

É possível que Böhm tenha-lhe dado cartas de apresentação ao famoso organista Johann Adam Reincken, que atuava em Hamburgo. Bach fez a viagem de 50 km a pé para ouvir o grande músico, e com toda a probabilidade seu primo Johann Ernst Bach, que vivia na cidade, lhe apresentou outros músicos destacados. Não se sabe se Bach estudou com Böhm ou com Reincken, mas de fato tornou-se um amigo íntimo do último até que este faleceu cerca de vinte anos depois, e o visitou sempre que esteve em Hamburgo. Do período em Lüneburg sobrevivem poucas obras, entre elas algumas variações corais no estilo de Böhm. 

Weimar

No início de 1702 Bach terminou seus estudos regulares na Michaelisschule e se qualificara para ingressar na universidade, mas a perspectiva de uma vida acadêmica não parece ter-lhe atraído. Em 1703 solicitou um posto como organista da Jacobikirche (Igreja de S. Tiago) em Sangerhausen, perto de Halle. Foi eleito por unanimidade pelo conselho municipal, atestando que Bach já era reconhecido como um talento excepcional. Infelizmente, o duque de Saxe-Weissenfels anulou a nomeação em favor de Johann Kobelius, um músico mais maduro, sendo prometido a Bach, contudo, o favorecimento em alguma outra ocasião.

Alguns meses depois Bach estava em Weimar. Coexistiam ali duas cortes ducais, uma do duque reinante, e outra de seu irmão. Em março de 1703 Bach recebeu a nomeação de violinista e lacaio da corte do segundo duque, Johann Ernst, para quem o avô de Bach havia trabalhado. Bach certamente não encontrou em Weimar o ambiente musical que desejava, e possivelmente aceitou o cargo como um emprego temporário. Seus parentes começaram a ajudá-lo a encontrar uma posição, o que acabou se concretizando quando a Neue Kirche (Igreja Nova) de Arnstadt o convidou para testar seu órgão recém-construído.

Arnstadt

A récita de Bach ao novo órgão maravilhou os cidadãos de Arnstadt, que dispensaram a apresentação de outros organistas, como era a praxe, e lhe ofereceram o posto de organista titular com uma renda anual de 50 florins, mais 34 florins para alojamento e alimentação, uma soma considerável para um músico da época, sendo investido em suas funções em 14 de agosto de 1703. Suas obrigações não eram muitas: tocar por duas horas aos domingos, segundas e quintas-feiras. Como a igreja não contratara um Kantor, Bach também treinava o coro.

A posição parecia ideal para um jovem músico que precisava de tempo livre para se aprofundar na composição. A cidade era além disso agradável, belamente ajardinada, e vários de seus parentes viviam ali. Entre eles Maria Barbara Bach, sua prima em segundo grau, com quem anos mais tarde veio a se casar. 

Em outubro de 1705 obteve uma licença de um mês para poder ir a Lübeck e ouvir o famoso Buxtehude, o mais destacado organista do norte da Alemanha, e os concertos vespertinos que ele regia na época entre a festa da Trindade e a do Advento, e fez a pé o trajeto de mais de 350 km. Sua visita deve ter sido proveitosa, pois ele não retornou antes de janeiro de 1706, e de imediato sua maneira de acompanhar os hinos revelou a influência do outro mestre, com passagens virtuosísticas e grande elaboração contrapontística, o que não deixou de despertar protestos entre a congregação que, perplexa, estava acostumada com acompanhamentos simples.

Este não foi o único dos problemas que Bach enfrentou. Foi censurado pelo consistório pela sua longa ausência e por causa daquelas “escandalosas” liberdades e improvisos ao órgão que confundiam os fiéis. Tendo de acatar as ordens, pouco depois foi censurado por fazer os acompanhamentos demasiado curtos. Além disso, o coro de meninos que ele tinha de reger era tudo menos competente e dócil, registrando-se vários episódios de confrontos e altercações violentas, incluindo uma luta com espada, a despeito de repetidas reclamações e solicitações de Bach de medidas para melhorar a situação.

Logo se tornou claro para ele que não mais poderia permanecer em Arnstadt por muito tempo. Aparentemente o derradeiro pomo de discórdia foi a reprimenda que recebeu por ter acompanhado ao órgão uma donzela cantora – presumivelmente Maria Barbara – em uma ocasião em que a igreja estava vazia.

Sua obra deste período demonstra que ele tinha aprendido tudo o que seus antecessores alemães poderiam ensiná-lo e chegou a uma primeira síntese dos estilos do norte e do sul da Alemanha. Entre os poucos trabalhos que podem lhe ser atribuídos nesta fase estão o Capricho sobre a partida do seu amado irmão BWV 992, o prelúdio coral Wie schön leuchtet der Morgenstern BWV 739, e uma primeira versão, fragmentária, do Prelúdio e Fuga em sol menor BWV 535a. 

Mühlhausen

Em junho de 1707 Bach obteve um posto na Blasiuskirche em Mühlhausen. Ele se mudou para lá logo depois e casou com Maria Barbara em 17 de outubro. As coisas parecem por um tempo ter sido mais simples. Começou a produzir várias cantatas sacras, todas compostas em um molde conservador, sem exibirem qualquer influência do operismo italiano que mais tarde apareceu em sua obra.

Algumas de suas mais famosas peças para órgão datam deste período, como a Tocata e Fuga em ré menor BWV 565, escrita no estilo rapsódico do norte, o Prelúdio e Fuga em ré maior BWV 532 e a Passacaglia em dó menor BWV 582, um exemplo precoce do instinto de Bach para a organização em grande escala. A cantata Gott ist mein König BWV 71, de 4 de fevereiro de 1708, foi impressa a expensas da câmara municipal e foi a primeira das composições de Bach a ser publicada. 

Enquanto em Mühlhausen Bach copiou muita música para ampliar a biblioteca do coro, tentou incentivar a música das aldeias vizinhas, e convenceu seu empregador a reformar o órgão. Sua permanência ali também foi breve: em 25 de junho de 1708 demitiu-se. Segundo ele próprio, seu plano de prover a igreja de boa música foi prejudicado pelas pobres condições em Mühlhausen, e por causa de seu baixo salário.

Outra influência em sua decisão pode ter sido a controvérsia teológica que se formou entre os pietistas e os luteranos ortodoxos, que acabou afetando a música de Bach. Pouco depois mudou-se de volta para Weimar, mas continuou em bons termos com Mühlhausen, para a qual supervisionou a reconstrução do órgão e compôs uma cantata em 4 de fevereiro de 1709, que foi impressa, mas perdeu-se. 

Novamente em Weimar

Em Weimar Bach recebeu desde logo um excelente salário de 229 florins, e desempenhou as funções de organista e violinista da corte do novo duque reinante, Wilhelm Ernst, cujos interesses musicais eram semelhantes aos seus. Incentivado pelo patrão, que era um luterano ferrenhamente ortodoxo e valorizava muito a música sacra, durante os primeiros anos Bach concentrou-se na obra para órgão, mais uma vez induzindo seu empregador a reformar o instrumento.

Ocasionalmente visitava outras cidades e exibia seu talento como intérprete e improvisador virtuoso, e nesta época começaram a ser registradas várias narrativas altamente elogiosas sobre suas capacidades incomuns, bem como passou a ser reconhecido como um perito na construção de órgãos, seguidamente consultado por várias cidades e igrejas e convidado a testar instrumentos. 

Em fevereiro de 1713 participou em Weissenfels de uma celebração que incluiu uma performance da sua primeira cantata secular, Was mir behagt BWV 208, também chamada Cantata da Caça. No final do ano abriu-se-lhe a oportunidade de suceder Friedrich Wilhelm Zachow como organista da Liebfrauenkirche, em Halle, e supervisionar a construção de um gigantesco novo instrumento, mas o duque aumentou seu salário e ele desistiu da ideia.

Em 2 de março de 1714 assumiu o cargo adicional de Konzertmeister (Mestre de Concertos), devendo compor e apresentar uma nova cantata por mês, a um salário de 268 florins. Isso lhe permitiu trabalhar com os instrumentistas, o coro e os solistas vocais do duque, todos profissionais de gabarito, aptos a executar obras difíceis, e lançar os fundamentos de sua habilidade como regente.

Organista aplaudido, apoiado pelo patrão e bem pago, sua vida estava em uma fase auspiciosa, animada pela chegada dos primeiros filhos: Catharina Dorothea (1708–1774), Wilhelm Friedemann (1710–84) e Carl Philipp Emanuel (1714–88). Os dois últimos viriam a se tornar compositores importantes, especialmente Carl Philipp. Também dava aulas para os sobrinhos do duque e desenvolveu uma estreita amizade com outro excelente músico ativo na cidade, seu parente distante Johann Gottfried Walther, organista, compositor e lexicógrafo musical.

Outras relações amistosas que entabulou foram com o vice-diretor do Gymnasium de Weimar, Johann Matthias Gesner, e com o celebrado compositor Telemann, que residia em Frankfurt. Da mesma forma, alguns alunos talentosos estimulavam sua vocação como professor, estando entre eles um dos sobrinhos do duque, Johann Ernst, mais Johann Tobias Krebs, Johann Martin Schubart e Johann Caspar Vogler, além de seus próprios filhos. 

Infelizmente, o desenvolvimento de Bach não pode ser rastreado em pormenor durante os anos 1708-14, período em que seu estilo sofreu uma mudança profunda. Existem poucas obras datáveis com segurança. Da série de cantatas escrita em 1714-16, no entanto, transparece que ele sofreu decisiva influência da ópera italiana e das inovações introduzidas na música concertante por compositores italianos como Vivaldi, abrindo sua obra a estruturas muito maiores e afetando sua escrita vocal. Entre as obras compostas em Weimar está a maioria das peças do Orgelbüchlein (Pequeno Livro de Órgão), quase todos os chamados 18 “Grandes” prelúdios corais, os trios mais antigos para órgão e a maioria dos prelúdios e fugas para órgão. 

Köthen

Em 1 de dezembro de 1716, Johann Samuel Drese, diretor musical de Weimar, morreu, e foi sucedido por seu filho, que era incompetente para o cargo, quando de acordo com o costume o nomeado deveria ser Bach. Presumivelmente ressentido, Bach aceitou então uma nomeação como diretor musical do príncipe Leopoldo de Anhalt-Köthen, que foi confirmada em agosto de 1717, com um salário substancialmente mais elevado do que em Weimar.

O duque Wilhelm, no entanto, se recusou a aceitar sua renúncia, em parte, talvez, por causa da amizade de Bach com seus dois sobrinhos, com quem o duque estava no pior dos termos. Depois de várias solicitações de dispensa, que irritaram seu patrão, Bach acabou preso. Como Wilhelm aparentemente não estava interessado em um atrito aberto com a corte de Köthen, acabou cedendo e libertou o músico menos de um mês depois, mas com uma notificação de “exoneração indecorosa”. Poucos dias depois Bach mudou-se para Köthen. 

Ali, ao contrário de seu emprego anterior, esteve ocupado principalmente com a música de câmara e orquestral, uma vez que o príncipe era calvinista e, como consequência, não havia música instrumental nas igrejas da cidade, e as cantatas que escreveu durante este período foram executadas na corte. Köthen também não possuía nenhum órgão. Mesmo que algumas das obras tenham sido compostas anteriormente e agora revistas, foi em Köthen que as sonatas para violino e cravo e para viola da gamba e cravo, e as para violino e violoncelo solos consolidaram suas feições mais ou menos definitivas.

Os famosos Concertos de Brandenburgo também pertencem a este período, e o compositor ainda encontrou tempo para compilar obras pedagógicas para teclado: o Clavierbüchlein (Pequeno Livro de Teclado) de Wilhelm Friedrich, algumas das Suites Francesas, as Invenções (1720), e o primeiro livro (1722) de O Cravo Bem Temperado, contendo 24 prelúdios e fugas em todas as tonalidades. Esta notável coleção sistematicamente explora as potencialidades da recém-criada afinação temperada. Maria Barbara morreu inesperadamente e foi enterrada em 7 de julho de 1720, enquanto Bach estava fora, acompanhando o príncipe em uma temporada medicinal na estação de termas de Carlsbad.

Em novembro, talvez ainda perturbado pelo súbito desaparecimento da esposa, Bach visitou Hamburgo e solicitou uma posição na Jacobikirche (Igreja de S. Tiago). Nada resultou, mas ele tocou na Katharinenkirke na presença de Reincken. Depois de ouvir Bach improvisar variações sobre uma melodia coral, o velho organista disse: “Eu pensei que esta arte estava morta, mas vejo que ainda vive em vós”. 

Exceto pela morte da primeira esposa, os seus primeiros anos em Köthen foram muito felizes. Bach mantinha um ótimo relacionamento com o príncipe, que era genuinamente musical, e em 1720 disse que esperava terminar seus dias ali. Em 3 de dezembro de 1721 Bach casou novamente, com Anna Magdalena Wilcken, uma cantora profissional com metade de sua idade e também empregada na corte, filha de um trompetista de Weissenfels, e com quem teria treze filhos. Seu paraíso chegou ao fim quando o príncipe também casou, poucos dias depois, em 11 de dezembro de 1721.

A princesa, segundo o próprio Bach, não tinha qualquer interesse em música e atraiu a maior parte da atenção do marido, fazendo com que Bach começasse a se sentir esquecido. Ele também tinha que pensar na educação de seus filhos mais velhos, e logo que o Kantorado de Leipzig, uma cidade universitária, se tornou vacante com a morte de Johann Kuhnau em 5 de junho de 1722, Bach fez um pleito para ser admitido, mas acabou sendo rejeitado e o cargo oferecido a Telemann, que declinou, e então a Graupner.

Como este não estava certo de que poderia aceitar, Bach de qualquer forma realizou sua audição de teste apresentando a cantata n º 22, Jesu nahm zu sich die Zwölfe em 7 de fevereiro de 1723. Graupner por fim desistiu do emprego, e Bach foi então aceito. Embora a princesa em Köthen tenha falecido em 4 de abril, Bach já estava tão comprometido com Leipzig que pediu demissão, obtendo-a em 13 de abril. Um mês depois foi empossado em Leipzig. 

Leipzig

A partir de 31 de maio de 1723 e até à sua morte, Bach foi o Kantor da igreja luterana de São Tomás em Leipzig, conjuntamente à função de diretor musical da cidade (Cantor zu St. Thomae et Director Musices Lipsiensis). A justificativa para a mudança para Leipzig gerou muita especulação, pois pareceu a alguns estudiosos ter sido um passo na direção errada. Não só Anna Magdalena teve de renunciar à sua carreira de cantora, perdendo o seu bom salário, como o salário de Bach caiu a um quarto do que ganhava em Köthen, embora ele não tivesse de pagar sua hospedagem e alimentação.

Bach, contudo, poderia ganhar rendimentos extra escrevendo e tocando música para ocasiões especiais como casamentos e funerais. A sua posição social também caiu, pois o status de um Kantor era considerado inferior ao de um compositor da corte, que ele ocupara há pouco. Mas neste caso específico, o cargo de Kantor de São Tomás, uma instituição veneranda e um baluarte do Protestantismo, em Leipzig, então a mais famosa cidade universitária alemã, era altamente cobiçado. 

Leipzig não estava disposta de início a considerar Bach como uma opção adequada, pois suas funções não envolviam a execução ao órgão, o motivo da fama de Bach na época, além de ele não ter uma educação universitária, e buscou outros músicos para a vaga. Finalmente, sem sucesso, teve de resignar-se e deu-lhe o cargo.

Sua primeira apresentação oficial foi em 30 de maio de 1723, com a cantata Die Elenden sollen essen BWV 75. Desde este dia se desenhou o ambiente que Bach teria de enfrentar na cidade, estando no centro de uma disputa entre as autoridades civis e eclesiásticas por ter sido saudado pelo pastor de São Tomás com um discurso de boas-vindas, o que era considerado prerrogativa da municipalidade.

Novos trabalhos produzidos durante este ano incluem muitas cantatas e a primeira versão do Magnificat. A primeira metade de 1724 viu a produção da Paixão segundo São João, posteriormente revista. O número total de cantatas produzido durante este ano eclesiástico foi de cerca de 62, das quais cerca de 39 foram obras inteiramente novas. Durante seus primeiros anos em Leipzig Bach se concentrou na música sacra e produziu um grande número de cantatas de igreja, na época uma parte integral do culto luterano, às vezes, como a pesquisa revelou, à razão de uma nova obra por semana.

Após 1726, porém, ele voltou sua atenção para outros projetos, mas ainda escreveu a Paixão segundo São Mateus (1729), uma obra que inaugurou um interesse por obras vocais em uma escala maior do que a cantata, a Paixão segundo São Marcos (1731, perdida), o Oratório de Natal (1734), e o Oratório da Ascensão. 

A responsabilidade de Bach em Leipzig foi principalmente a educação em canto dos alunos da Thomasschule (Escola de S. Tomás), e alguns dos mais capazes recebiam educação também em instrumentos. Mas porque esses meninos deviam cantar nas várias igrejas de Leipzig, Bach também se tornou responsável pela música de quatro igrejas: São Nicolau, São Tomás, São Mateus e São Pedro, e devia reger pessoalmente em São Tomás e São Nicolau.

Cada uma delas exigia música de um tipo diferente. Na prática isso implicava trabalho pesado todos os dias da semana. Estas récitas, em um cronograma de atividades tão extenso, eram geralmente mal ensaiadas e mal apresentadas, para o seu desespero. Os músicos com quem podia contar em Leipzig também foram uma decepção. A grande maioria tinha escasso preparo e pouco talento, e assim que os meninos se tornavam mais aptos seus cursos encerravam e deixavam o coro, sendo preciso treinar novamente os recém-chegados.

Sua estadia na cidade, se bem que tenha testemunhado o amadurecimento do compositor e o aparecimento de uma enxurrada de obras notáveis, foi eivada de privações e lutas contra a carência de recursos humanos e materiais para a boa prática da música, contra a estrutura disfuncional da escola, contra colegas professores e os administradores incompreensivos, que o cobriam de constantes reclamações, insultos e calúnias. Com seu temperamento explosivo, Bach devolvia as agressões, tornando tempestuoso o ambiente de trabalho. 

Ao contrário das facilidades administrativas que encontrara em Köthen, onde devia responder apenas ao príncipe, em Leipzig Bach tinha duas dúzias de superiores, incluindo o reitor (a autoridade docente), o conselho municipal (a autoridade civil) e o consistório (a autoridade eclesiástica), que raro estavam em harmonia, o que se complicava com a pouca inclinação de Bach aos modos diplomáticos. Outra fonte de atribulações era o fato de Bach ter de morar no edifício superlotado da escola, junto com alunos e outros professores.

Seu apartamento, ainda que tivesse uma entrada independente, ficava ao lado das salas de aula, o que lhe roubava privacidade, além de o barulho dos alunos se estender pela noite adentro. Também por força de seu contrato devia desempenhar funções extramusicais, tais como dar aulas de latim ou pagar um professor para substitui-lo, e de quatro em quatro semanas, durante uma semana inteira, atuava como inspetor disciplinar das 4h ou 5h da manhã até às 8h da noite, numa escola desorganizada cheia de alunos irresponsáveis e turbulentos. 

Tudo isso foi em parte atenuado quando em 1730 assumiu o novo reitor, Johann Matthias Gesner, que admirava Bach e lhe propiciou melhores condições para a prática musical.[25] Mas Gesner permaneceu na posição apenas até 1734, sendo sucedido por Johann August Ernesti, um jovem com ideias avançadas em educação, mas inimigo declarado da música. Em julho 1736 os atritos reiniciaram na forma de uma disputa sobre o direito de Bach de nomear monitores entre os alunos mais velhos, chegando às dimensões de um escândalo público.

Felizmente para Bach, ele foi indicado em novembro de 1736 compositor da corte de Friedrich August II, Eleitor da Saxônia convertido ao Catolicismo e recentemente elevado à posição de Rei da Polônia, circunstância que originou o nascimento de uma de suas mais importantes obras, a monumental Missa em si menor. Como o prestígio do novo cargo, foi capaz de induzir amigos na corte para que procedessem a um inquérito oficial, e sua disputa com Ernesti foi resolvida a seu favor em 1738. 

Entrementes, assumiu em 1729 a direção musical do Collegium Musicum fundado por Telemann, uma sociedade musical que oferecia concertos semanais, era uma das entidades mais ativas de Leipzig em seu gênero e um ponto de encontro e debates artísticos para muitos viajantes ilustres. Permaneceu à testa do Collegium até 1737, e depois reassumiu a função em 1739 até 1741. A sociedade lhe ofereceu completa liberdade de ação e condições de explorar o campo da música instrumental e vocal secular.

Para as apresentações do Collegium Bach produziu muitas obras-primas, como a Cantata do Café, a cantata festiva Schleicht, spielende Wellen, und murmelt gelinde, as suítes orquestrais, os concertos para violino, além de ressuscitar várias peças compostas para Köthen e executar inúmeras obras de outros mestres. 

Nesta época sua família, integrada por vários filhos músicos, já podia sozinha montar concertos domésticos, e Bach orgulhava-se disso. Contudo, seu filho Johann Gottfried Bernhard desencaminhou-se, dando sérios motivos de preocupação para o pai, e morreu precocemente em 1739. Outro problema foi uma crítica ao seu estilo publicada por Johann Adolf Scheibe em 1737, que parece ter sido sentida pelo compositor como um sério golpe. Isso desencadeou uma polêmica pública que se estendeu por dois anos. Mais uma vez Bach recebeu ajuda nestes tempos difíceis, passando a hospedar a partir de 1737 seu parente Johann Elias Bach, que ensinou a seus filhos menores música e religião e foi-lhe um devotado secretário particular. 

Anos finais

Depois de uma década de trabalho duro e intermináveis disputas, Bach parecia cansado e progressivamente se retirou da vida pública, negligenciando algumas de suas obrigações. Em 1740 a escola se viu na contingência de ter de contratar um outro professor de teoria musical. Bach passou a se dedicar então mais à música instrumental, revisando obras antigas ou produzindo novas, com destaque para a compilação de corais para órgão Clavier-Übung III (Exercícios de Teclado) e o segundo volume de O Cravo Bem Temperado, bem como à preparação de peças para publicação.

Enquanto seu estilo se firmava nas fórmulas consagradas do Barroco, a nova geração já transitava para a órbita do Rococó e desgostava da produção do Kantor de São Tomás, que lhe aparecia como antiquada e excessivamente complexa. Em maio de 1747 Bach visitou seu filho Emanuel, empregado na corte de Potsdam, e tocou diante de Frederico II da Prússia, que era compositor de algum mérito e imediatamente ficou impressionado com as habilidades de Bach, levando-o a testar todos os pianofortes do palácio.

Em julho improvisou sobre um tema proposto pelo rei, obra que tomou forma definitiva como a Oferenda Musical. Na mesma altura viu nascer seu primeiro neto, Johann August, e se filiou à distinguida Correspondirende Societät der Musicalischen Wissenschaften (Sociedade de Ciências Musicais), fundada por seu antigo aluno Lorenz Christoph Mizler, apresentando como peça de prova as variações canônicas sobre o coral Vom Himmel hoch da komm’ ich her. Ainda era assiduamente requisitado para dar pareceres sobre órgãos em outras cidades e passava muito tempo na corte de Dresden, onde era apreciado. 

Por outro lado, a casa de Bach ficava cada vez mais vazia. Sofreu o infortúnio de levar vários de seus filhos para o túmulo ainda pequenos, e os sobreviventes cresciam e deixavam o lar. Sua visão diminuía sensivelmente; em 1749 ele já quase não enxergava, e logo ficou cego. Tentou operar-se sem sucesso por duas vezes com o médico charlatão itinerante John Taylor, que ainda teve Händel entre seus fracassos. Da última doença de Bach pouco se sabe, exceto que durou vários meses e o impediu de terminar A Arte da Fuga. Seus empregadores não esperaram sua morte para procurarem um sucessor.

Faleceu em 28 de julho de 1750, em Leipzig e foi enterrado dois ou três dias depois no cemitério da Igreja de S. João. Seu filho Carl Philipp e seu antigo aluno Johann Friedrich Agricola escreveram em conjunto um obituário, importante como fonte de informações em primeira mão, ainda que incompleto e algo inexato. Anna Magdalena ficou em má situação. Por algum motivo, seus enteados não fizeram nada para ajudá-la, ao contrário, avançaram sobre sua herança, e seus próprios filhos eram muito jovens para tomarem qualquer atitude. Quando ela faleceu, dez anos depois, recebeu um funeral de indigente. 

Bach gerou com sua primeira esposa sete filhos, mas somente quatro sobreviveram, e, destes, dois fizeram carreira musical destacada: Wilhelm Friedemann (1710–1784) e Carl Philipp Emanuel (1714–1788). De segunda esposa nasceram mais treze crianças, sendo que Gottfried Heinrich (1724–1763), Johann Christoph Friedrich (1732–1795) e Johann Christian (1735–1782) foram também músicos de talento. Três filhas chegaram até a idade adulta: Elisabeth Juliane Friederica (1726–1781) que se casou com o aluno de Bach Johann Christoph Altnikol, Johanna Carolina (1737–1781) e Regina Susanna (1742–1809).

Personalidade e iconografia

O estudo da personalidade e do cotidiano de Bach é frustrante, pois há escassa documentação. Conhecem-se apenas poucas cartas autógrafas, e nenhuma delas pode ser considerada verdadeiramente autobiográfica. Isso não impediu que se publicasse um extenso e fantasioso folclore a seu respeito nas biografias que começaram a aparecer a partir do século XIX. Ao que parece ele nunca abandonou inteiramente traços psicológicos definidos em sua infância numa pequena e provinciana aldeia alemã, mas também não parece ter cultivado conscientemente uma personalidade original, embora ela fosse sem dúvida forte, como se percebe nos relatos de seus atritos explosivos com as autoridades de Leipzig.

Também é nítida sua sincera inclinação à religiosidade e sua tendência a opiniões inabaláveis, mas provavelmente era uma pessoa sociável e em geral bem-humorada. O que mais se destaca em sua personalidade, contudo, é a completa dedicação à música. No obituário escrito por seu filho isso fica devidamente assinalado, louvando o seu zelo invariável, bem como sua tendência a seguir um caminho independente. 

Durante muito tempo a localização exata de sua tumba permaneceu desconhecida, mas sobrevivia uma tradição oral localizando-a próxima da porta sul da Igreja de S. João. Em torno de 1880 pesquisas nos arquivos da igreja revelaram um documento que dizia o músico ter sido enterrado em um caixão de carvalho, o que limitou as buscas a apenas seis tumbas. Enfim, um corpo foi exumado em 1894, e a investigação anatômica conduzida pelo professor Wilhelm His confirmou a identidade de Bach.

Após a exumação, seus restos mortais foram reenterrados na Igreja de S. João, então reconstruída e ampliada. Quando a igreja foi destruída na II Guerra Mundial, foram transferidos para uma tumba na Igreja de S. Tomás, onde ainda estão. Entretanto, entre os pesquisadores recentes não há uma certeza absoluta de que a identificação dos restos mortais exumados tenha sido correta. 

A partir da pesquisa de His, Carl Seffner criou em 1895 um busto, que mostra grande semelhança com o único retrato indubitavelmente autêntico que chegou aos nossos dias, aquele pintado por Elias Gottlob Haussmann, que existe em duas versões, uma que data de 1746 (Museum für Geschichte der Stadt Leipzig; propriedade da Thomasschule) e outro de 1748 (William H. Scheide Library, Princeton). O primeiro, assinado E.G. Haussmann pinxit 1746, foi apresentado à Thomasschule em 1809 pelo então Kantor, August Eberhard Müller.

Não se sabe onde Müller conseguiu a pintura, mas é muito provável que ela tivesse permanecido na posse de um dos descendentes diretos de Bach. Supõe-se amiúde que este retrato seja aquele que os membros da sociedade de Mizler eram obrigados a doar para a sociedade em sua admissão, mas isso é apenas suposição. Com o passar do tempo a pintura foi severamente danificada e repintada várias vezes. Restaurada em 1912-1913, voltou mais ou menos à sua condição original, mas permanece inferior à excelente réplica de 1748, que ilustra a abertura deste artigo.

Esta, por sua vez, tem uma origem segura, pois pertencera a seu filho Carl Philipp e dele passou para a família Jenke, antes de ser exibido em público por Hans Raupach em 1950. O retrato Haussmann foi repetidamente copiado em várias técnicas ao longo dos anos. 

A autenticidade de um retrato anônimo a pastel, provavelmente pintado depois de 1750, de autoria atribuída a Gottlieb Friedrich ou Johann Philipp Bach, e conservado pelo ramo Meiningen da família, não é totalmente garantida, assim como a de um retrato de um grupo de músicos, executado em c. 1733 por Johann Balthasar Denner (Internationale Bachakademie, Stuttgart), que mostra o que se supõe sejam Johann Sebastian e três de seus filhos. Uma cópia em melhores condições deste quadro de grupo está em uma coleção particular no Reino Unido. 

Sobre todos os outros retratos que sobrevivem pairam dúvidas ainda mais sérias, incluindo um óleo de Johann Jacob Ihle (Bachhaus, Eisenach) datando de 1720 e pretendendo mostrar Bach como mestre de capela em Köthen, identificado como uma “imagem de Bach” apenas em 1897; o de Johann Ernst Rentsch (Städtisches Museum, Erfurt), alegadamente representando Bach aos 30 anos, que veio à luz somente em 1907 e não tem nenhuma documentação credível, e o chamado “retrato na velhice” descoberto por Fritz Volbach em Mogúncia em 1903 (coleção privada em Fort Worth), que é pouco semelhante aos outros retratos.

De acordo com Gerberl, retratos provavelmente autênticos mas que não sobreviveram foram os de propriedade da Condessa de Weissenfels e de Johann Nikolaus Forkel. Um outro pastel possuído por Carl Philipp também foi perdido. Outro retrato, que alegadamente pertenceu a seu antigo aluno Johann Christian Kittel, foi redescoberto em 2000 por Teri Noel Towe, que o apresentou ao púbico como autêntico. Em 2008 a antropóloga Caroline Wilkinson reconstruiu digitalmente o rosto do compositor, a pedido da Casa Museu de Bach em Eisenach, usando medidas de seu crânio e outras técnicas legistas. 

Obra

Visão geral

Bach foi um dos mais prolíficos compositores do ocidente. O número exato de suas obras é desconhecido, mas o catálogo BWV assinala mais de mil composições, entre elas inúmeras peças com vários movimentos e para extenso conjunto de executantes. A vastidão de sua Obra fica ainda mais óbvia quando se sabe que possivelmente metade dela se perdeu ao longo do tempo. Entretanto, é difícil imaginar que qualquer redescoberta que venha a acontecer altere significativamente o imenso prestígio de que desfruta na atualidade.

De fato, Bach era infatigável, tanto em seu estudo e cópia da produção europeia antiga e coeva – especialmente de italianos e franceses, construindo uma considerável biblioteca musical privada – como em seu trabalho autoral, em suas atribuições oficiais e em suas várias peregrinações a pé para ouvir músicos importantes. Com modéstia, certa feita declarou que qualquer um que se esforçasse como ele se esforçou atingiria os mesmos resultados. 

Os ingredientes do gênio são de análise problemática, mas as fontes do seu estilo são bem conhecidas. A primeira delas é, naturalmente, a tradição de música polifônica alemã do século XVII, que para muitos de seus contemporâneos – adeptos do novo “estilo galante”, como também é apelidado o Rococó – era já ultrapassada e por demais complexa e impopular. Entre os autores alemães que lhe foram forte referência se contam Buxtehude, Reincken, Bruhns, Lübeck, Böhm, Pachelbel, Krieger, Kuhnau, Zachow, Froberger e Kerll.

Embora o contraponto seja um elemento fundamental em seu estilo, Bach conseguiu, segundo Hindley, uma notável e inigualada síntese entre a polifonia e a homofonia. Outras fontes vitais para Bach foram a produção francesa e a italiana, em particular através das obras de Marais, Raison, Couperin, Grigny, Albinoni, Frescobaldi, Battiferri e Bonporti. Além de um grande dom para a melodia, suas harmonias são ricas, audaciosas e sutis, e ele tinha um poderoso senso de arquitetura e forma, possibilitando-lhe construir estruturas de largo fôlego, com impressionante capacidade de controlar a evolução do discurso musical para conduzi-lo a um clímax impactante e expressivo, muitas vezes conseguido por uma sucessão cumulativa de pequenos elementos repetidos e variados.

Seu interesse em novos resultados sonoros ficou patenteado em inúmeras ocasiões, quando transcreveu e arranjou obras suas ou de outros compositores de um meio para outro muito diferente. 

O teclado foi a base do aprendizado de Bach, e também o meio preferencial pelo qual instruiu seus alunos. Tornou-se um requisitado professor ainda em Weimar, e em Leipzig suas atividades docentes se aprofundaram. H. N. Gerber, que estudara com ele, disse que seu método de ensino introduzia gradualmente uma enorme variedade de técnicas de composição geral, ao mesmo tempo em que educava o gosto e aperfeiçoava as capacidades de interpretação do aluno. Costumava, segundo este relato, iniciar o ensino com suas Invenções e Suítes Francesas e Inglesas, e concluía o curso com os prelúdios e fugas do Cravo Bem Temperado. Estas coleções constituem o núcleo estilístico da música bachiana. 

Tem sido muito citado gosto de Bach pelo uso de simbologias numéricas de conotações esotéricas e religiosas em intervalos, proporções e na construção de melodias e estruturas, e embora isso tenha sido provado em alguns casos, a matéria é extremamente polêmica, dá margem a uma variedade infinita de conclusões, quase todas hipotéticas e muitas vezes contradizendo-se mutuamente, e de acordo com Geck demorar-se neste tópico, tentando-se decifrar as minúcias de cada frase musical ou de cada intervalo em termos de combinações matemáticas não acrescenta muito à compreensão de suas intenções musicais.

Numa abordagem mais ampla do assunto, porém, a pesquisa é válida, pois a concepção da música como uma ciência matemática ainda fazia parte do espírito do século XVIII e seguia uma tradição que remontava a Pitágoras. Na história da polifonia ocidental as formas rigorosas do contraponto sempre foram vistas como uma expressão no mundo da ordem divina da Criação. Em seu tempo essa ideia começava a se fragmentar rapidamente em prol de uma concepção mais subjetiva e humana.

A estruturação do discurso musical já dava grande importância à harmonização vertical dos sons sobre uma base fornecida pelo baixo contínuo, enfatizando a melodia da voz superior e abandonando a estruturação horizontal típica da antiga polifonia, onde todas as vozes tinham igual relevo. Neste sentido, Bach é uma figura de transição entre duas eras, sintetizando ambas as tendências, mas sua insistência nas formas polifônicas densas e complexas foi parte do motivo pelo qual sua música madura encontrou uma receptividade relativamente fraca e foi vista por alguns de seus contemporâneos como antiquada. 

Mas é fato que Bach era um luterano devoto e nenhuma análise de sua Obra será completa sem levarmos em conta a sua profunda religiosidade. Em muitas partituras encontram-se as inscrições Jesu juva (Ajuda, Jesus!) ou Soli Deo gloria (Para a glória de Deus somente); sua biblioteca privada continha mais de oitenta obras teológicas, que não apenas lia mas comentava em anotações marginais, e a despeito dos muitos elementos operísticos de suas cantatas, de origem profana, elas se erguem como monumentos à fé.

Ainda mais marcantes nesse sentido são a Paixão segundo São Mateus e a Missa em si menor. Lembre-se também que grande parte de sua produção para órgão nasceu com a função de ser executada durante o culto religioso. Por isso, mesmo sendo a fase mais difícil de sua vida, o período que passou em Leipzig, quando suas obras religiosas avultam e ele atinge a maturidade artística, pode ser visto como o seu momento de apogeu. 

Música instrumental solo

Cravo e similares

Um dos elementos essenciais da arte de Bach como compositor para teclado é a atenção que ele deu, desde o início, às qualidades idiomáticas dos vários instrumentos com que trabalhou, respeitando as diferenças entre os vários membros da família do cravo: o cravo propriamente dito, o clavicórdio, o Lautenwerk (cravo-alaúde) e o pianoforte, às vezes deixando instruções específicas para o uso de cada um, e manteve um interesse ativo nas experiências de Gottfried Silbermann no desenvolvimento do pianoforte durante a década de 1730-1740.

Entretanto, o significado da palavra Klavier (teclado), engloba todos os tipos de instrumento de tecla, os cravos, o pianoforte e também o órgão, o que permite muitas vezes interpretar uma mesma peça em instrumentos diferentes sem prejuízo. Existe uma associação óbvia entre a notoriedade de Bach como um virtuose e professor de teclado e o fato de que sua música para teclado está entre a mais acessível de toda a sua produção, sendo também a mais amplamente divulgada. 

Suas primeiras composições para cravo compartilham de algumas características estilísticas com sua produção organística inicial e, como aquelas, sua datação é difícil. Entre 1700 e 1713 sem dúvida compôs muitas tocatas, prelúdios e fugas, além de peças em outros formatos como a variação e o capricho, onde se conjugam influências germânicas, francesas e italianas, exemplificadas por obras como o capricho BWV 992 e as tocatas BWV 910-916, obras alentadas em vários movimentos e de contraponto livre, que estão entre as mais perfeitas obras num gênero antigo cujas raízes se perdem na história.

Depois de 1712 a influência italiana se torna mais forte. Nos últimos anos em Weimar e os primeiros em Köthen produziu obras como as Suítes Inglesas e a conhecida Fantasia Cromática e Fuga BWV903, e também o Clavier-Büchlein de Wilhelm Friedemann, que é uma coleção essencialmente didática e lançou os fundamentos para o ciclo do Cravo Bem Temperado e das Invenções e Sinfonias a duas e três vozes. 

As Invenções e Sinfonias também possuem um propósito didático, objetivando adestrar o estudante na interpretação correta de música a duas e três vozes. Mas de todas as coleções de longe a mais importante e influente são os dois volumes de O Cravo Bem Temperado. Cada volume apresenta uma série de 24 prelúdios e fugas em todas as tonalidades maiores e menores, superando em termos de lógica, forma e qualidade musical todas as tentativas de seus antecessores e abrindo novas perspectivas para o futuro.

Segundo Goodall, “A publicação (do primeiro volume) de O Cravo bem Temperado de Bach, em 1722, é um dos marcos da história da música europeia. Mesmo durante a vida de Bach, sua influência foi rápida e dramática; mais tarde, tanto Mozart como Beethoven pagaram tributo ao brilhantismo e à importância da coleção”.

O título da coleção faz referência às pesquisas que então se faziam sobre a afinação dos instrumentos de afinação fixa como os teclados, a fim de possibilitar que se tocasse música em todas as tonalidades. A afinação anteriormente usada era desigual, ou seja, cada tonalidade produzia um efeito distinto porque os intervalos entre os semitons não eram iguais. Naquele tempo um dó sustenido, por exemplo, não equivalia a um ré bemol. Instrumentos de cordas e sopro podiam produzir qualquer afinação desejada, mas os de tecla não, resultando que certas tonalidades não resultavam bem, e tampouco as modulações entre as várias tonalidades.

“Bem temperado”, nesse contexto, significava uma ligeira diminuição ou ampliação artificial dos intervalos naturais. Qual teria sido a exata afinação usada por Bach, contudo, ainda é motivo de muita discussão. A coleção é mais notável por sua variedade do que por sua unidade. Isso fica mais evidente nos prelúdios, cuja forma é livre. Alguns usam uma estrutura de tocata ou improviso, outros, a de arioso ou fantasia. As fugas também são variadas, podendo inclusive usar ritmos de dança, embora sigam regras compositivas mais rigorosas. A maioria é em duas ou três vozes, mas suas texturas podem chegar a cinco vozes. 

Outras obras de grande importância para o cravo, cada uma representando a culminância em seu gênero durante o período Barroco, são suas seis trio-sonatas para cravo com pedal BWV 525-530, que podem ser executadas também em um órgão; as partitas BWV 825-30, suítes de danças; o Concerto no estilo italiano BWV 971, que apesar do nome é uma peça para cravo solo e é como que um resumo de sua arte de transcrição de concertos instrumentais para o teclado; e as Variações Goldberg BWV 988, uma obra de estrutura cíclica que, em sua concepção monotemática e enfaticamente contrapontística, criou o cenário para as últimas grandes obras de Bach: a Oferenda Musical e A Arte da Fuga. 

Órgão

A maior parte da produção organística de Bach data da primeira parte de sua carreira, quando ocupou vários postos como organista. Depois de 1717 essa função não foi mais exercida oficialmente, ainda que seu interesse pelo instrumento jamais desaparecesse. Boa parte parece ter sido música de ocasião, dada a maneira precária e dispersa que chegou a nós, sem datação, sem indicações de registros e muitas vezes em cópias de baixa qualidade, gerando muitos problemas para seu estudo moderno.

Somente no final de sua vida se preocupou em revisar, organizar e publicar diversos trabalhos em coleções. Convencionou-se dividir em dois grupos principais essa parte de sua produção: um de peças baseadas em hinos luteranos, e outro de peças de livre inspiração, mas isso não implica a separação entre o seu uso litúrgico e não-litúrgico, havendo sobreposição neste aspecto. 

Das composições baseadas em hinos, cerca de noventa foram reunidas em quatro coleções: o Orgel-Büchlein, o Clavier-Übung III, os Corais Schübler e a Coleção de Leipzig. Sessenta outras permanecem em sua maioria avulsas ou em grupos menores. O Orgel-Büchlein (Pequeno Livro de Órgão) foi planejado para ser um grande ciclo didático de 164 arranjos corais seguindo o uso no calendário religioso, e instruindo o estudante como trabalhar sobre as antigas melodias luteranas, mas ele só completou 46.

Em sua maioria são peças curtas, mal chegando a vinte compasso. A melodia pode recebe um tratamento bastante ornamental na mão direita enquanto a esquerda e o pedal fornecem um acompanhamento. Outras peças são construídas à maneira de cânone, que conduz a uma conclusão em polifonia livre ou homofonia. A fórmula mais típica da coleção, porém, é uma textura a quatro vozes com a melodia original no soprano, em valores de nota mais longos e sem hiatos entre as frases, enquanto as outras constroem um tecido contrapontístico livre ou com motivos derivados da melodia, com valores menores.

Também é comum a “pintura de palavras” (vide Doutrina dos afetos), um recurso retórico padrão do período Barroco, pois embora se trate de música instrumental, os textos originais dos hinos eram conhecidos de todos na época, e o seu significado era ilustrado sonoramente. 

Exemplifica este tipo a peça mais conhecida da coleção, Durch Adams Fall ist ganz verderbt, com suas passagens de sétimas descendentes e sua tonalidade ambígua, ilustrando a queda de Adão no pecado. O Clavier-Übung III (III Volume dos Exercícios para Teclado), a primeira coleção a ser impressa (1739), é considerada de todas a mais importante e complexa, e é também conhecida como Missa alemã de órgão, pois consiste de uma série de prelúdios corais sobre melodias da missa e do catecismo luteranos. Inicia com um prelúdio sobre o hino Was mein Gott will das e conclui com um prelúdio e fuga tripla a cinco vozes, a chamada Fuga de Santa Ana.

O conjunto também usa uma grande variedade de recursos técnicos para a ilustração expressiva dos textos, mas, segundo Boyd, comparado ao grupo anterior, é muito mais austero e arcaizante, em parte por causa das melodias escolhidas, derivadas de antigos fragmentos de canto gregoriano, e suas 27 peças individuais são bem mais extensas. Justamente por essa origem, muitas vezes a melodia do hino é tratada à maneira de cantus firmus, porém quatro peças são do tipo moteto, três na forma de paráfrase, e outras usam os modelos do cânone, da fuga ou da trio-sonata. Duas peças introduzem uma segunda melodia principal. 

Os Corais Schübler são uma transcrição para órgão de cinco árias de cantatas, e mais uma peça cuja origem é incerta. A versão publicada deixou o baixo contínuo incompleto. Todas as peças fazem uso do recurso do cantus firmus, e sua organização, segundo Williams, sugere um propósito ilustrativo de um conceito de vida cristã, já que os títulos apresentados narram sequencialmente a preparação para o Advento, uma profissão de fé, uma declaração de esperança, a expressão de júbilo da alma por seu Salvador, uma expressão de confiança diante da morte e uma súplica pela salvação contra as ameaças do Inferno.

Estudiosos têm encontrado na partitura indícios de simbologias numéricas associadas, mas isso é objeto de disputa, embora uma progressão orgânica e sua estrutura simétrica sejam claramente discerníveis. O resultado é uma coleção de características únicas em sua produção, um tanto difícil de tocar mas de melodismo mais acessível ao grande público, pelo que foi louvada pelos críticos da época, e é possível que sua intenção com ela tivesse sido de fato oferecer um produto popular e rendoso. O retorno não foi tão bom quanto o esperado, mas a coleção teve um profundo impacto sobre a geração seguinte, sendo imitada por muitos outros organistas até o fim do século XVIII. 

A Coleção de Leipzig é composta de dezessete arranjos corais, mas a organização do conjunto, feita em torno de 1749, não é inteiramente de Bach, já parcialmente incapacitado. Sobrevivem versões bastante diferentes de várias peças, e tampouco sua datação é segura, provavelmente são peças compostas em seus primeiros anos e revistas mais tarde. Sem uma estrutura lógica e um propósito claro, o que distingue a coleção é seu idioma musical, empregando um estilo retrospectivo reminiscente de Buxtehude, Pachelbel e outros da geração anterior, uma grande quantidade de escrita ornamental e texturas e contraponto mais simples do que as outras coleções, sem que isso lhes prive de altas qualidades estéticas.

As duas últimas, porém, são obras mais pobres e é possível que não fizessem parte das intenções do autor, pois foram acrescentadas por seu discípulo Altnikol. 

As peças de livre inspiração ocupam um lugar igualmente importante no conjunto de sua produção, compreendendo os tipos tocata, canzona, passacalha, fantasia, prelúdio e fuga, mas como ocorre com grande parte de suas obras, a datação é difícil, e várias delas sobrevivem em versões diferentes. De modo geral apresentam um estilo rapsódico típico dos mestres alemães da geração anterior a ele, mas suas características individuais são extremamente variadas e é impossível analisá-las como um conjunto unificado em termos de estilo e abordagem.

As atribuídas à sua primeira fase criativa são, de acordo com Geiringer, fruto de um iniciante ávido por experimentações e em busca de um caminho seu, e se revelam como obras imaturas, com inconsistências na estrutura e estilo e às vezes alguns erros técnicos. Mesmo assim, são obras exuberantes e de grande efeito.

Destacam-se desta fase entre outras o Prelúdio e Fuga em sol menor BWV 535, com uma conclusão poderosamente dramática; o Prelúdio e Fuga em sol maior BWV 550, com uma extraordinária passagem para solo de pedal, e sobretudo a célebre Tocata e Fuga em ré menor BWV 565, iniciando e encerrando com trechos rapsódicos que emolduram uma fuga no centro; seu caráter é de improvisação brilhante e fogosa, cheia de passagens virtuosísticas e técnica impecável.

Da fase madura são notáveis, por exemplo, a Tocata em dó maior BWV 564, que mostra a influência italiana e contém entre as passagens de bravura uma longa e melodiosa cantilena; a Tocata e Fuga Dórica BWV 538, toda elaborada em torno de um único motivo simples, enunciado no início; a Tocata e Fuga em fá maior BWV 540, de grande extensão e efeito fulgurante, que levou Mendelssohn a dizer, ao ouvi-la, que parecia que a igreja iria desmoronar;

o Prelúdio e Fuga em sol maior BWV 541, que surpreende com uma pausa e um episódio homofônico no meio da fuga, seguido de uma passagem duramente dissonante, mas da sua maturidade talvez a peça mais conhecida seja a Passacalha em dó menor BWV 582, que consiste em vinte variações sobre um baixo ostinato, obra de arquitetura poderosa que parece esgotar as possibilidades do gênero da variação.

Também se incluem entre as obras de livre inspiração arranjos para órgão de obras orquestrais de outros compositores, onde amiúde transformou tanto a escrita original que passam a ser obras quase inteiramente suas. 

Cordas e flauta

As seis Sonatas e Partitas para violino solo BWV 1001-1006, compostas em 1720, mostram sinais de terem sido concebidas como um ciclo unificado, já que as peças seguem uma série lógica de tonalidades de acordo com o ciclo das quintas. A coleção compreende três sonatas com quatro movimentos, e três partitas que agrupam uma série de movimentos de dança estilizados. Nas sonatas, como exigia a tradição da sonata de câmara, há movimentos fugais, explorando as possibilidades polifônicas de um instrumento essencialmente melódico. Nos outros movimentos há passagens em acordes e arpejos a fim de prover ao ouvinte indicações da harmonia subjacente à voz solo.

As partitas obedecem à forma da suíte, com seus movimentos distribuídos entre allemandes, courants, sarabandes, gigues e outras formas. Esta coleção se tornou um favorito e um dos pilares do repertório violinístico moderno, apresentando uma enorme paleta de sonoridades e formas na escrita virtuosística para o instrumento, demonstrando a maestria do compositor, que era ele mesmo um violinista completo. Vários violinistas eminentes as gravaram ao longo do século XX e foram feitos muitos arranjos para outras formações instrumentais.

A segunda partita se tornou especialmente memorável por ter como seu movimento final uma majestosa chacona. As suas Seis Suítes para violoncelo solo BWV 1007-1012 gozam da mesma estima, representando o ápice da escrita para violoncelo do período Barroco, embora não formem uma unidade tão coesa quanto a coleção para violino. Foram compostas provavelmente para o gambista da corte de Köthen, Christian Abel. Cinco delas exigem um instrumento convencional de quatro cordas, e uma delas é para um instrumento de cinco cordas. Todas seguem um mesmo modelo, com uma sequência de danças após um prelúdio, que no caso da suíte 5 é uma abertura francesa, com uma seção fugal.

Também escreveu uma obra para flauta, a Partita para flauta solo BWV 1013, de grande dificuldade técnica. Bach parece ter levado em pouca conta a necessidade de respirar do executante e escreveu música que flui ininterruptamente, sugerindo que a peça foi composta originalmente para outro instrumento. 

Música de câmara

No domínio da música de câmara se encontram algumas das mais importantes obras de Bach. A maioria data dos períodos de Weimar e Köthen, quando ele teve a oportunidade de aperfeiçoar sua técnica e estilo para pequenos grupos instrumentais. Sobrevive um bom número de peças para várias formações. Embora tenha deixado várias na forma da sonata para instrumento solo e baixo contínuo, o principal modelo de câmara praticado em seu tempo, seu interesse recaiu antes sobre o tipo da trio-sonata, que lhe abria mais possibilidades de experimentação.

De qualquer maneira, as que escreveu para a primeira forma não são obras desprezíveis, mas possuem grandes belezas. São exemplos as sonatas para violino e contínuo BWV 1021 e 1023, e as para flauta e contínuo BWV 1034 e 1035. 

Sua veia experimental levou-o a tomar o modelo da trio-sonata e introduzir-lhe uma modificação simples, mas fundamental, atribuindo ao teclado uma das duas vozes solistas, confiada à mão direita, enquanto a esquerda realizava todo o baixo contínuo, prescindindo de um instrumento melódico adicional para reforço da linha do baixo, tais como os costumeiramente usados, o violoncelo, gamba ou fagote. Com isso adaptou uma forma originalmente concebida para pelo menos quatro instrumentos – dois solistas melódicos, um teclado para recheio harmônico e um baixo melódico – para uma formação enxuta de apenas dois executantes.

Não foi ele, na verdade, o inventor dessa nova fórmula, mas a levou a um grau de perfeição sem precedentes. Além disso, introduziu nesta trio-sonata modificada elementos do concerto e expandiu a sua textura adicionando outras vozes, sem requisitar instrumentos adicionais. Pertencem a este gênero, por exemplo, as sonatas para violino e teclado BWV 1014-1019, as sonatas para flauta e teclado BWV 1030 e 1032, e a Sonata para viola da gamba e cravo obbligato BWV 1027. 

Suas obras de câmara mais importantes são duas coleções de seus anos finais. A primeira é a Oferenda Musical BWV 1079. O conjunto nasceu em sua visita ao rei Frederico II da Prússia, em 1747, quando o rei deu ao compositor um sujeito de fuga para que improvisasse em torno. Bach tocou então, diante da augusta presença, em um pianoforte, o que veio a ser conhecido como o Ricercare a 3 da coleção, prometendo mandá-lo imprimir. De volta à sua casa em Leipzig, escreveu não somente a obra prometida mas uma série de peças: dez cânones, dois ricercares e uma trio-sonata nos moldes tradicionais, todas a partir do mesmo tema régio.

A partitura que foi finalmente publicada e oferecida ao rei, porém, mostra sinais evidentes de ter sido elaborada às pressas, e contém somente parte do conjunto atualmente conhecido. O restante foi impresso como suplemento mais tarde. O original manuscrito não sobreviveu, salvo uma versão antiga do Ricercare a 6. Disso, e dos erros da versão impressa, deriva a grande confusão que até hoje reina entre os estudiosos, principalmente a respeito da ordem das peças e da instrumentação que Bach pretendia para o conjunto.

O primeiro aspecto é o mais problemático e já deu origem a uma considerável bibliografia especulativa. Sobre o segundo há menos dúvidas, pois para a trio-sonata ele deixou indicação explícita – flauta, violino e baixo contínuo – e para um dos ricercares também – dois violinos – o que autoriza a suposição de que todo o conjunto pode ser executado por um grupo de flauta, dois violinos e contínuo integrado por cravo e gamba.

A Oferenda Musical é em síntese uma coletânea de variações sobre o tema régio, de incomum força expressiva, trabalhado de várias maneiras contrapontísticas eruditas, tais como movimento retrógrado, aumento, cantus firmus e outras, incluindo dois “cânones enigmáticos”, em que Bach não deu indicações de entrada das vozes sucessivas, ficando a decisão a cargo do intérprete. A peça central da coleção é a trio-sonata, que segue o modelo da sonata de igreja, com quatro movimentos e ricas texturas contrapontísticas. 

A outra é A Arte da Fuga BWV 1080, a última grande obra do mestre, escrita em 1749 e publicada após sua morte de modo negligente. Contém cerca de vinte fugas e cânones, chamados contrapuncti, todos derivados de um mesmo tema, onde as mais variadas formas de contraponto erudito são aplicadas. O número exato de peças varia conforme a edição, algumas vezes duas ou mais peças são agrupadas sob uma mesma entrada. Antigamente A Arte da Fuga era considerada principalmente um manual de contraponto avançado, mas hoje é vista como uma das mais importantes criações da música do ocidente, a suma da técnica contrapontística aliada a uma substância do mais alto valor.

A edição original é desorganizada e deu origem a uma continuada controvérsia sobre a ordem dos números e sua instrumentação, além de o conteúdo musical servir de pretexto a um sem-número de elaborações hipotéticas sobre seu significado, sem que se chegasse a uma conclusão definitiva. A última peça, uma gigantesca fuga tripla, foi deixada inconclusa; o tema que unifica o restante do conjunto não aparece, mas já foi demonstrado que os três temas presentes – um deles usando as notas B-A-C-H (na notação alemã, si bemol, lá, dó e si) – podem ser combinados com o tema ausente.

Um testemunho de Mizler confirma a ideia de que a peça deveria ser uma fuga quádrupla, e segundo ele Bach pretendia compor uma outra fuga quádrupla que poderia ser invertida. A instrumentação se apresenta como outro problema; possivelmente, de acordo com Geiringer, foi concebida como música para teclado solo, mas a execução com um grupo de câmara parece ser mais efetiva. Isso é suportado pelo fato de que as duas fugas-espelho têm uma tessitura além do alcance de um tecladista. 

Música orquestral

Para a orquestra Bach compôs diversas obras-primas, apesar de que só pôde dispor de conjuntos pequenos, que hoje seriam chamados de grupos de câmara, e a maior parte dos quais de baixa qualidade. Como consequência, relativamente poucas obras para esta formação são conhecidas, mas pode-se supor que algumas outras se perderam. De todas, somente suas quatro Aberturas BWV 1066-1069 não pertencem ao gênero do concerto.

Apesar do nome, são de fato suítes de danças, que contam com uma abertura francesa em seu início. Não parecem ter sido concebidas como um ciclo, e têm diferentes formações instrumentais. A mais notável é a quarta, cuja fuga é um verdadeiro monumento à escrita instrumental virtuosística, mas a mais célebre é a terceira, que contém a popular Ária na corda de sol. Entre seus dezessete concertos para solo de instrumentos e orquestra, poucos em sua forma definitiva são obras originais, tratando-se de arranjos de composições anteriores.

Bach iniciou a série provavelmente em Köthen com os concertos para violino BWV 1041-1042 e o para dois violinos BWV 1043, influenciado pela onda de música italiana que dominava a Europa de então. De acordo com Buelow eles são decalcados no modelo de concerto estabelecido por Vivaldi, com um primeiro movimento rápido e vigoroso dentro de uma estrutura de ritornello, um movimento central lento, lírico e expressivo, e um final também rápido, no espírito de uma dança estilizada. Mas a semelhança é apenas superficial, pois Bach sem dúvida adaptou para sua própria linguagem a influência estrangeira. 

Os concertos para cravo e orquestra foram uma novidade no tempo de Bach, jamais o teclado havia assumido o primeiro plano em uma composição orquestral, antes servia apenas como instrumento de recheio harmônico como reforço do baixo contínuo. Todas as suas várias obras no gênero são arranjos de concertos para outros instrumentos, incluindo seus próprios concertos para violino. Também escreveu concertos para dois, três e um para quatro cravos (adaptando uma obra de Vivaldi), combinações de todo inusitadas que parecem ter atendido ao seu gosto por experimentação de novas texturas e sonoridades.

De todos os seus concertos, porém, os mais afamados, e que atualmente estão entre suas obras mais populares, são o ciclo dos seis Concertos de Brandenburgo BVW 1046-1051, compostos antes de 1721 para o marquês de Brandemburgo. Têm sido considerados a suma do gênero do concerto grosso, uma espécie concertante em que um pequeno grupo de solistas dialoga com a orquestra. Todos são altamente individualizados, exploram uma vasta variedade de efeitos orquestrais e mostram alguma influência da música de Vivaldi. Nas palavras de Albert Schweitzer, “Os Concertos de Brandenburgo são os mais puros produtos do estilo polifônico de Bach.

Nem no órgão nem no cravo ele teria desenvolvido a arquitetura de um movimento com tanta vitalidade; somente a orquestra lhe permite completa liberdade na condução e agrupamento das vozes … Já não é uma questão meramente de alternância entre tutti e concertino; os vários grupos se interpenetram e reagem uns aos outros, separam-se uns dos outros, se unem novamente, e tudo com um senso de inevitabilidade artística que ultrapassa a compreensão”.

Música vocal

Cantatas

As cantatas constituem o grosso da pro dução de Bach, mas apenas nas últimas décadas sua importância vem sendo reconhecida. Esquecidas quase por completo no século XIX, até meados do século XX somente um pequeno número delas havia sido estudado em detalhe, situação que vem mudando diante do rápido crescimento dos estudos bachianos. A maior parte delas é sacra, compostas em Weimar e principalmente Leipzig, mas ele cultivou o gênero ao longo de quase toda a sua carreira.

Muitas foram perdidas por descuido de Wilhelm; de acordo com o obituário de Carl Philipp ele compôs cinco ciclos completos para o ano eclesiástico, fora as cantatas profanas, o que representaria mais de 350 obras, mas ainda sobrevivem 194 composições neste gênero, somando um total de mais de 1.200 movimentos individuais. As de sua fase inicial são compostas segundo o modelo alemão do século XVII, sem recitativos ou árias da capo, elementos de origem operística italiana que só aparecem em suas obras maduras.

Mais tarde se consolidou um formato italianizado, com uma abertura mais elaborada com coro, seguida de uma alternância de cinco ou seis árias da capo e recitativos para voz solo, encerrando com uma harmonização coral simples homofônica a quatro vozes, quando a congregação possivelmente se unia ao coro, mas mesmo aqui são encontradas muitas outras soluções técnicas e formais, incluindo fugas, cânones, variações sobre um ostinato, formas concertantes, influência da abertura francesa e do antigo moteto, além de se valerem de uma ampla gama de forças instrumentais.

Nas palavras de Buelow, “Nada é mais difícil de definir ou explicar que o estilo vocal de Bach. É claro, contudo, que o cerne de seu estilo reside no seu compromisso de ilustrar expressivamente os textos, as palavras individuais desses textos, e os afetos que veiculam. Suas linhas vocais raramente são apenas líricas, e não guardam a menor semelhança com o estilo cantabile dos italianos. Quase sempre são altamente dramáticas e amiúde cheias de complexos motivos rítmicos, com um desenho anguloso de saltos amplos. Passagens melismáticas, algumas de enorme extensão, ocorrem às vezes para emprestar mais ênfase retórica ou para simbolizar determinada palavra, mas noutras ocasiões são parte integral do desenvolvimento melódico”.

As cantatas sacras são peças de ocasião, e por regra eram ouvidas apenas uma única vez. Obras muito elaboradas artisticamente, o que o ouvinte não conseguia entender em termos estéticos, como disse Chafe, era compensado por seu conhecimento de uma rede de intenções que ligavam a experiência religiosa de cada um ao seu contexto cultural e religioso maior. A principal dentre essas intenções era apresentar o caráter dinâmico da experiência religiosa num programa didático sequencial de afetos e formas com que o ouvinte comum pudesse se identificar, criando uma ponte entre as Escrituras e a fé, à luz, naturalmente, da tradição hermenêutica fundada por Lutero.

Para conseguir esse objetivo, além do conteúdo explícito dos textos, Bach recorria a um rico repertório de elementos puramente musicais para ilustrar e enfatizar o texto, elementos que por sua vez estavam associados a uma série de convenções simbólicas e alegóricas então de domínio público, um procedimento típico do Barroco em geral, no caso aplicado aos propósitos do Protestantismo. 

Uma das cantatas mais conhecidas é também uma de suas primeiras, a intitulada Christ lag in Todesbanden BWV 4, que emprega o recurso da variação sobre um cantus firmus encontrado nas obras de Pachelbel e Buxtehude. Tem uma estrutura simétrica que, por outro lado, se tornou comum também em sua produção posterior, e que se presume carregar um significado próprio, indicando a cruz de Cristo, e cada movimento apresenta o hino a partir do qual foi composta em um contexto diferente. Também é famosa, e permanece como uma de suas mais importantes, a chamada Actus Tragicus (Gottes Zeit ist die allerbeste Zeit, BWV 106), composta possivelmente como uma peça fúnebre.

Outras que merecem nota são Wie schön leuchtet der Morgenstern BWV 1, combinando o arranjo coral com a forma concertante; O Ewigkeit, du Donnerwort BWV 20, um expressivo diálogo entre o medo e a esperança; Wachet! Betet! BWV 70, que associa melodias de hinos em seus recitativos e tem uma brilhante passagem para trompetes ilustrando o Juízo Final; Jesu, der du meine Seele BWV 78, com uma abertura onde se unem magistralmente o hino luterano e um ostinato;

Ein feste Burg ist unser Gott, BWV 80, de intrincada abertura polifônica; Herr Jesu Christ, wahr’ Mensch und Gott BWV 127, cuja abertura impressionou a geração seguinte; Wachet auf, ruft uns die Stimme, BWV 140, que contém um diálogo entre Jesus e a Alma, e Herz und Mund und Tat und Leben, BWV 147a, cujo coro final incorpora a célebre melodia Jesus, a alegria dos homens. O seu importante Oratório de Natal é de fato um ciclo de seis cantatas sacras a serem apresentadas entre o Natal e a Epifania (25 de dezembro a 6 de janeiro), que habilmente rearranjam composições anteriores, incluindo profanas. 

As suas paixões podem ser descritas como cantatas sacras expandidas ou oratório, que narram a Paixão de Cristo segundo os evangelistas. Nas obras de Bach o texto bíblico é frequentemente interpolado com versos modernos que fazem meditações sobre cada cena. Registram-se cinco obras neste gênero, mas só sobreviveram duas, a Paixão segundo São João e a Paixão segundo São Mateus. Ambas são obras-primas de grande envergadura e possuem vários aspectos em comum, mas a última delas, de grande impacto dramático, é a sua obra vocal mais complexa e tem sido louvada por muitos como a sua criação mais sublime, e de qualquer forma surge como a culminância da tradição de paixões luteranas.

É difícil destacar algum de seus movimentos, mas serve de exemplo a peça de abertura, uma vasta fantasia-coral para coro duplo, cada parte vocal dobrada por seu próprio naipe de instrumentos, que canta o verso Vinde, oh filhas, fazei coro ao meu lamento, formando um denso tecido contrapontístico sobre o qual paira, após o 30º compasso, uma linha para sopranos infantis cantando o hino Oh, Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo, com grande efeito. 

As cantatas profanas seguem em linhas gerais o modelo formal das sacras, sendo a maior diferença seu texto secular. A sua maioria é de obras festivas, para celebrar, por exemplo, o aniversário de um governante, como a cantata Tönet, ihr Pauken! Erschallet, Trompeten!

BWV 214, dedicada ao natalício de Maria Josepha, Eleitora da Saxônia e Rainha consorte da República das Duas Nações, mas se encontram também lamentos fúnebres, como a Trauerode BWV 198, em honra de Christiane, a defunta rainha da Polônia, peças de “defesa de uma tese”, como a cantata Geschwinde, ihr wirbelnden Winde BWV 201, que narra a competição musical entre Apolo e Pã como um pretexto para comparar a música de erudição com as desajeitadas tentativas dos músicos pouco hábeis, e até peças inteiramente humorísticas, como a Cantata do Café BWV 211, que satiriza a moda então recente de beber café. 

Missas e motetos

Apesar de ser protestante, Bach compôs um pequeno número de missas latinas, em sua maioria fragmentárias ou na forma da missa breve, apenas com as seções do Kyrie e do Gloria. Sua obra magna neste gênero, contudo, é a monumental Missa em si menor, musicando o texto completo do ordinário católico, uma mas mais importantes obras deste tipo jamais compostas. O motivo de ele ter enveredado nesta seara é obscuro, mas finalmente a grande missa foi oferecida ao rei da Polônia, que se convertera ao Catolicismo.

A obra tem estrutura simétrica e é cheia de simbolismos musicais, e seus movimentos formam um vasto compêndio de formas e estilos. A maior parte da missa foi elaborada retomando trechos de cantatas anteriores, mas o resultado é um todo coerente, graças à sua habilidade na adaptação de material antigo ao novo contexto. Algumas seções não tiveram sua origem identificada, mas podem ser excertos de cantatas perdidas. A missa, por suas enormes proporções, não se destina a ser interpretada dentro do culto católico, pelo menos não em sua inteireza. 

Bach também compôs alguns motetos para coro a cappella sobre textos bíblicos e/ou modernos. Tem sido objeto de muito debate se essas obras devem ser acompanhadas ou não por instrumentos. Na prática de seu tempo o termo a cappella significava pelo menos um acompanhamento ao órgão, e para alguns deles efetivamente sobrevivem partes instrumentais e um baixo contínuo. Desta forma, é bem possível que Bach pretendesse dobrar o coro com instrumentos ou órgão quando possível, e quando não, executá-los desacompanhados.

Cada peça tem uma estrutura diferente e seu estilo mais ou menos acompanha a concepção de moteto do século XVIII, quando era entendido como uma composição em essência contrapontística mas de arcabouço tonal. Mas eles mostram muitas referências mais antigas, como o uso de recursos mais estritamente fugais e de contraponto imitativo, ou passagens homofônicas de caráter altamente declamatório, comuns no século anterior. 

A posteridade de Bach

Mitos, primeiros estudos críticos e resgate da obra

Parte do folclore criado em torno de Bach afirma que ele foi um organista celebrado, mas como compositor foi incompreendido em seu tempo. Isso se deve principalmente aos conhecidos atritos que ele manteve continuamente com as autoridades de Leipzig, mas não há evidência documental de que seus superiores desaprovassem também sua música.

É fato que Bach jamais foi um compositor verdadeiramente popular, pelo menos num sentido superficial, mas os poucos relatos que se conhece atestam a alta estima de que ele desfrutava, e mais de uma vez afirmou-se que ele era um dos mais importantes compositores de sua geração, sendo colocado pelos conhecedores ao lado de Händel, Telemann, Hasse e Graun, cuja fama se espalhava por toda a Europa. O grande número de alunos que o buscaram como instrutor também corrobora seu prestígio.

Como exemplo dos elogios que recebeu, Birnbaum louvou sua “estranha perfeição”; Schubart o chamou de “gênio original”; mesmo Scheibe, que atacou duramente seu estilo em 1737, não pôde se furtar a admitir a grandeza de seu gênio, e em sua edição da Institutio Oratoria de Marco Fábio Quintiliano, Gesner, reitor da Thomasschule, fez uma longa e vívida louvação de suas habilidades como compositor, maestro, cantor e organista, que merece ser transcrita: 

"Todas essas notáveis realizações, meu Fábio, considerarias deveras triviais se pusesses erguer-te dos mortos e ver nosso Bach... como ele, com ambas as mãos e usando todos os dedos, toca um cravo que parece consistir em numerosas cítaras, ou corre sobre as teclas do instrumento dos instrumentos (o órgão)...; e como ele, usando por um lado as mãos, e por outro, com extrema rapidez, os pés, faz surgir por encanto, e sem a ajuda de ninguém, sucessivas revoadas de sons harmoniosos; eu digo, se pudesses vê-lo, como ele consegue o que muitos citaristas e seiscentos executantes de instrumentos de sopro jamais poderiam conseguir, não meramente entoando e tocando ao mesmo tempo suas próprias partes mas dirigindo trinta ou quarenta músicos, todos ao mesmo tempo, controlando este com um aceno de cabeça, aquele outro com um batida do pé, um terceiro com um dedo de advertência, mantendo o tempo e a afinação, dando uma nota aguda a um, uma grave a outro, e notas intermédias a alguns. Este homem, sozinho, de pé em meio ao harmônico turbilhão de sons, tendo a mais árdua de todas as tarefas, pode discernir a todo momento se um executante ameaça extraviar-se, e manter todos os músicos em ordem, recuperar qualquer vacilação, incutir-lhes segurança e impedi-los que cometam erros. O ritmo está em todos os seus membros, ele absorve todas as harmonias em seu ouvido sutil e profere todas as diferentes vozes por intermédio de sua própria boca. Grande admirador como sou da Antiguidade em outros aspectos, considero que este meu Bach engloba em si numerosos Orfeus e vinte Anfiãos".

Outro mito é de que a obra de Bach havia caído no olvido imediatamente após sua morte, e assim permanecera até ser ressuscitada no início do século XIX por alguns entusiastas alemães. A pesquisa recente, porém, afirma que essa visão não é inteiramente correta. Realmente a maior parte de sua produção desapareceu de vista junto com o compositor, mas de diversos modos sua memória permaneceu e pôde ser transmitida à posteridade imediata.

Vários de seus filhos se tornaram compositores reputados, e embora em sua maioria tivessem adotado outras estéticas, mantiveram o nome Bach em evidência; Carl Philipp regeu apresentações de algumas peças vocais do pai a partir de 1768, incluindo o Credo da Missa em si menor, e Wilhelm Friedemann fez o mesmo, com ainda maior assiduidade, ambos encontrando boa resposta do público.

Pouco depois Fasch começou uma tradição de interpretações de seus motetos, e em seguida se tornaram acessíveis edições de O Cravo Bem Temperado, de A Arte da Fuga e de algumas cantatas. Seus muitos alunos também contribuíram legando às gerações seguintes sua metodologia de ensino e com ela suas peças didáticas para teclado, como o Cravo, as Invenções e outras.

Críticos respeitados como Marpurg, Gerber e Forkel publicaram notas favoráveis, e colecionadores e amadores de “música antiga”, como Van Swieten, Poelchau e Neefe, buscaram seus manuscritos, dispersos entre seus filhos e alunos, e os divulgaram entre um seleto grupo de conhecedores, onde estavam incluídos Haydn, Mozart e Beethoven, que manifestaram sua admiração pelo velho mestre e foram por ele influenciados. Graças principalmente à intermediação de Poelchau, um grande número de partituras manuscritas pôde ser preservado da destruição, acabando por encontrar abrigo na biblioteca da Singakademie e na Biblioteca Real de Berlim (atualmente depositadas na Biblioteca Estatal de Berlim, que até hoje é o maior repositório de fontes originais da música bachiana).

Mesmo assim, o número daqueles que conheciam algo da obra bachiana no fim do século XVIII era reduzido, e não dispunha de meios para disseminá-la em larga escala. 

Com o progressivo acúmulo de apreciações críticas e invocações públicas à sua memória que apareceram até o fim do século a situação começou a mudar, embora sua música continuasse longe dos ouvidos do grande público e mesmo de grande parte dos conhecedores. Nos últimos anos do século XVIII Bach passou a ser considerado um grande músico e uma honra para a Alemanha, sendo chamado por Rochlitz em 1798 de “o patriarca da música germânica” e “a fonte de toda a verdadeira sabedoria musical”.

Em 1802 apareceu a primeira biografia aprofundada sobre o compositor, de autoria de Forkel, que usou muito material manuscrito e informações obtidas em primeira mão de seus filhos, constituindo o primeiro marco crítico importante na completa ressurreição de Bach, embora ele o apresentasse num viés claramente patriótico. Forkel também desenvolveu decisiva atuação em prol de Bach incentivando a publicação de obras para teclado e divulgando-as no exterior.

Ao mesmo tempo, outros escritores como Thibaut e Reichert teciam críticas ao estilo “antiquado” de Bach, ainda que reconhecessem sua grande inventividade, e à biografia excessivamente nacionalista de Forkel, alegando que ela não acrescentava nada de novo ao que já se conhecia sobre ele. Por outro lado, em torno de 1807 o organista Samuel Wesley iniciou na Inglaterra um movimento bachiano, enquanto que suas obras começavam a ser ouvidas nos Estados Unidos. Carl Friedrich Zelter, diretor da Singakademie de Berlim, foi o responsável pelos passos seguintes.

Grande conhecedor da obra vocal de Bach, tinha acesso à rica coleção de partituras que havia pertencido a Kirnberger e Agricola, alunos de Bach. Sendo professor de Mendelssohn, recomendou-lhe um estudo da coleção, suscitando seu entusiasmo. Em 1829 Mendelssohn regeu em Berlim a primeira audição completa da Paixão segundo São Mateus desde sua estreia um século antes. A recepção da obra foi extremamente favorável, coincidindo com a expectativa da comemoração do tricentenário da Confissão de Augsburgo, um marco do Luteranismo, a ser celebrada no ano seguinte.

Como resultado imediato, ambas as paixões e a grande missa foram reimpressas e o evento colocou Bach definitivamente de volta nas salas de concerto. Com o ativo apoio de Robert Schumann, em 1850 foi fundada a Bach Gesellschaft (Sociedade Bach), que se impôs a ambiciosa tarefa de providenciar a edição completa da obra bachiana com comentários críticos, terminada cerca de cinquenta anos depois e dando a público 46 volumes de música. 

Entrementes, surgiam outras alentadas biografias. Em 1865 Carl Heinrich Bitter publicou uma análise detalhada e compreensiva de sua vida e obra, colocando na sombra o trabalho de Forkel. Era, contudo, um ensaio de diletante, e foi por sua vez obscurecido pela contribuição fundamental de Philipp Spitta, publicada entre 1873 e 1880, o primeiro estudo de perfil acadêmico, que permanece até hoje como uma referência, apesar de em muitos pontos estar ultrapassado e idolatrar Bach como o modelo de tudo o que a música deveria ser.

Mas foi o primeiro a introduzir em seu estudo as abordagens filológica, histórica, estética, teológica e intelectual, tentando, até aonde a mentalidade romântica de seu tempo permitiu, colocar a obra bachiana no seu correto contexto histórico. Em contrapartida, alimentou o mito de Bach como o músico supremo, transcendente e quintessencial. 

Outras forças em ação durante o século XIX contribuíram para a difusão e o enraizamento desses mitos. O Romantismo, entre outras coisas, estimulou uma redescoberta da música de séculos passados no contexto da formação do nacionalismo germânico, atribuindo a Bach uma função política, tanto quanto cultural.

Além disso, uma ressurgência do Pietismo protestante também cobrou do músico, visto como um místico, uma participação, e os vários compositores que foram influenciados por sua obra fizeram leituras dela antes de tudo pessoais e subjetivas, bem de acordo com a tendência romântica do culto ao gênio e ao individualismo e independentemente do avanço dos estudos críticos, e deram nova circulação e interpretação a declarações muitas vezes não documentadas do próprio compositor sobre seu trabalho e suas intenções, com o resultado de proliferar o folclore em seu redor. Expressões extremadas se tornaram comuns quando falando a seu respeito.

Beethoven disse que seu nome não deveria ser Bach, que em alemão significa “riacho”, mas sim Meer, que significa “mar”; Wagner imaginava que Bach era a expressão do mais íntimo espírito germânico e associou sua música a uma esfinge, às esferas celestes e a um mundo anterior ao nascimento da humanidade; Brahms disse que se toda outra música do mundo se perdesse ele ficaria triste, mas se se perdesse a música de Bach ele ficaria inconsolável, e o crítico William Apthorp declarou que não podia abrir um volume de música bachiana sem sentir um arrepio de terror supersticioso, pois ela aniquilava a obra de todos os outros compositores.

As apreciações podiam ser extravagantes ao ponto de ler a obra de Bach como um exemplo de Classicismo. No final do século Bach se tornara um gigante aos olhos do mundo musical não apenas germânico, e suas peças para teclado, o fundamento de toda a arte pianística. Sua influência sobre outros compositores se tornou, com isso, tão onipresente que nenhum outro músico podia ombrear com ele, sendo comparado a outros nomes imortais da arte ocidental como Shakespeare e Dante. 

Com o encerramento da edição crítica da Bach Gesellschaft, em 1900 foi fundada a Neue Bach Gesellschaft (Nova Sociedade Bach), com o objetivo de iniciar a publicação de uma edição prática. A sociedade também inaugurou a tradição dos Festivais Bach e iniciou a publicação de um anuário bachiano, o Bach Jahrbuch, responsável pela divulgação de uma enorme quantidade de ensaios críticos particularizados. Durante mais de trinta anos o anuário foi editado por Arnold Schering, grande estudioso de Bach, que deu contribuições pessoais importantes ao tema.

Entre as biografias, em 1905 surgiu a de Albert Schweitzer, que introduziu uma nova abordagem, enfocando principalmente aspectos estéticos, simbólicos e a associação entre a música bachiana e imagens pictóricas e poéticas, bem como analisando o conteúdo expressivo dos textos de suas cantatas e sua tradução musical e a inter-relação entre as várias artes daquele tempo. Esta biografia, cujo título, J. S. Bach, Le Musicien-Poète (J. S. Bach, o músico-poeta), é indicativo de suas intenções, marcou época e assinalou uma reorientação nas pesquisas, que passaram a estudar os princípios da teoria barroca da retórica musical a fim de melhor compreender as suas obras, o que constituiu uma conquista importante.

O livro também tomou uma posição na polêmica que então corria entre os advogados da dita “música absoluta”, desvinculada de programas extra-musicais, e a música poética e expressiva, inclinando-se a favor da última proposição, mas alertando que tal dicotomia era prejudicial à apreciação da música barroca. Schweitzer também foi importante por ter sido o campeão do Orgelbewegung, um movimento que pretendeu resgatar a antiga tradição barroca de construção de órgãos, influenciando a moderna tendência de interpretações historicamente corretas.

A esta altura diversos grupos e sociedades já se dedicavam ao estudo e execução da música bachiana em vários pontos da Europa, e em 1928 Charles Terry reexaminou toda a documentação biográfica disponível e publicou um colorido relato sobre a vida de Bach. 

Estudos recentes

O bicentenário de sua morte em 1950 estimulou uma renovada onda de estudos críticos. Entre as publicações que apareceram neste ano deve ser destacado o primeiro catálogo temático da sua obra completa, o Bach-Werke-Verzeichnis, fruto do esforço de Wolfgang Schmieder, de onde deriva a abreviatura “BWV” mais um número, que se encontram identificando todas as composições de Bach.

Outra iniciativa da maior importância foi a decisão do Instituto Bach de Göttingen, juntamente com os Arquivos Bach de Leipzig, de se realizar outra edição crítica das suas obras completas, a Neue Ausgabe sämtlicher Werke, considerando que a edição antiga já não satisfazia os critérios acadêmicos mais recentes, e tendo como meta apresentar todas as suas composições em todas as versões e revisões autênticas disponíveis.

Uma década mais tarde Alfred Dürr e Georg von Dadelsen apresentaram uma nova cronologia das suas cantatas de Leipzig, exercendo um impacto revolucionário no entendimento de sua evolução estética, e nos anos subsequentes até os dias de hoje uma enorme quantidade de novo material analítico vem sendo produzida sobre o Kantor de São Tomás, muitas vezes revendo proposições consagradas e derrubando antigos mitos. Avolumando-se constantemente as novas descobertas e conclusões, a tarefa de escrever sobre Bach na contemporaneidade é, como disse Boyd, ainda mais formidável do que era em 1900 e mesmo em 1980.

É interessante assinalar, conforme pensa Geck, que as tentativas de desmontar os mitos que se agregaram ao redor de sua figura podem esclarecer algumas coisas em sua vida e carreira, mas por outro lado podem não fazer-lhe verdadeira justiça, já que é exatamente aos mitos que se deve boa parte da sua força histórica e da sua sobrevivência além de seu tempo. 

De qualquer forma, a posição de Bach como um dos mais brilhantes luminares da música ocidental parece definitivamente assegurada, sua produção é uma das bases do atual repertório de concertos e para muitos críticos ele é o maior compositor de todos os tempos. A lista de compositores notáveis ao longo dos séculos XIX e XX que demonstraram ter recebido sua influência é impressionante, incluindo mestres que, por sua vez, foram de imensa importância e eram alinhados a estéticas muito afastadas dos princípios barrocos.

Além dos já mencionados Beethoven, Haydn, Mozart, Mendelssohn, Schumann, Wagner e Brahms, cite-se mais alguns: Chopin, Liszt, Mahler, Reger, Saint-Saëns, Busoni, Debussy, Ravel, Fauré, Casella, Schoenberg, Berg, Hindemith, Malipiero, Respighi, Franck, Honegger, Elgar, Walton, Britten, Copland, Harris, Piston Villa-Lobos, Reich e Andriessen.

Veja mais:

Com tamanho prestígio entre os conhecedores, não admira que Bach tenha transbordado para a cultura popular e se tornado uma imagem icônica, chegando a ser incluído no rol dos santos da Igreja Luterana, comemorado no dia 28 de julho, e homenageado como compositor ilustre no calendário da Igreja Episcopal dos Estados Unidos.

O impacto de sua música não mais se restringe à música erudita, e tem sido detectado também na música pop, como no rock progressivo, e nos inúmeros arranjos que são feitos de sua música para atender ao gosto de outras plateias, como o Funk paulista e também do gênero chamado crossover, do qual é um exemplo notório a série de arranjos feitos por Wendy Carlos para a trilha sonora do filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick.

Diversos famosos músicos populares também declararam ser de alguma forma seus devedores, como Nina Simone, Dave Brubeck e Keith Jarrett. 

Ele também se tornou personagem de vários filmes e documentários, entre eles Johann Sebastian Bachs vergebliche Reise in den Ruhm (direção de Victor Vicas, 1979/1980); Johann Sebastian Bach (direção de Lothar Bellag, 1983/1984) e Mein Name ist Bach (direção de Dominique de Rivaz, 2002/2003). Um asteroide recebeu o seu nome (1814 Bach), sua efígie já foi impressa em selos, moedas e medalhas, e os monumentos em sua honra se multiplicam pelo mundo.

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Johannes Gutenberg https://canalfezhistoria.com/johannes-gutenberg/ https://canalfezhistoria.com/johannes-gutenberg/#respond Tue, 18 Mar 2025 00:32:36 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6277 Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg, ou simplesmente Johannes Gutenberg (Mainz, c. 1400 – Mainz, 3 de fevereiro de 1468) foi um inventor, gravador e gráfico do Sacro Império Romano-Germânico. Gutenberg desenvolveu um sistema mecânico de tipos móveis que deu início à Revolução da Imprensa, e que é amplamente considerado o invento mais importante do segundo milênio. Teve um papel fundamental no desenvolvimento da Renascença, Reforma e na Revolução Científica e lançou as bases materiais para a moderna economia baseada no conhecimento e a disseminação em massa da aprendizagem. 

Gutenberg foi o segundo no mundo a usar a impressão por tipos móveis, por volta de 1439, após o chinês Bi Sheng no ano de 1040, e o inventor global da prensa móvel. Entre suas muitas contribuições para a impressão estão: a invenção de um processo de produção em massa de tipo móvel, a utilização de tinta a base de óleo e ainda a utilização de uma prensa de madeira similar à prensa de parafuso agrícola do período.

Sua invenção verdadeiramente memorável foi a combinação desses elementos em um sistema prático que permitiu a produção em massa de livros impressos e que era economicamente rentável para gráficas e leitores. O método de Gutenberg para fazer tipos é tradicionalmente considerado ter incluído uma liga de tipo de metal e um molde manual para a confecção do tipo.

O uso de tipos móveis foi um marcante aperfeiçoamento nos manuscritos, que era o método então existente de produção de livros na Europa, e na impressão em blocos de madeira, revolucionando o modo de fazer livros na Europa. A tecnologia de impressão de Gutenberg espalhou-se rapidamente por toda a Europa e mais tarde pelo mundo. Sua obra maior, a Bíblia de Gutenberg (também conhecida como a Bíblia de 42 linhas), foi aclamada pela sua alta estética e qualidade técnica. 

Biografia

Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg nasceu na cidade alemã de Mogúncia, filho mais novo do rico comerciante Friele Gensfleisch zur Laden. De acordo com alguns relatos, Friele foi um ourives do bispo de Mogúncia, mas provavelmente sua atividade era o comércio de roupas O ano de nascimento de Gutenberg não é precisamente conhecido, mas provavelmente foi em torno de 1398. 

John Lienhard, historiador de tecnologia, diz que “a maior parte dos primeiros anos de Gutenberg é um mistério. Seu pai trabalhou com a casa da moeda eclesiástica. Gutenberg cresceu conhecendo o comércio da ourivesaria.” Isto condiz com o historiador Heinrich Wallau, que acrescenta: “Nos séculos XIV e XV seus descendentes reivindicaram uma posição hereditária como … mestre da Casa da Moeda do arcebispo.

Nesta qualidade, sem dúvida adquiriram grande conhecimento e habilidade técnica no trabalho de metais. Forneceram a fonte do metal a ser cunhado, mudaram várias espécies de moedas e tinham um assento no Tribunal de Assize em casos de falsificação.” Seu pai adotaria mais tarde o nome “zum Gutenberg”, homônimo da comunidade para onde a família se tinha transferido. 

Início de carreira

Desde jovem revelou uma forte inclinação pela leitura, lendo todos os livros que os pais possuíam em casa. Os livros, na época, eram escritos à mão, por monges, alunos e escribas e cada exemplar demorava meses a ser preparado, sendo o seu preço elevadíssimo e inacessível para a maioria das pessoas. Trabalhou como joalheiro, onde dominou a arte da construção de moldes e da fundição de ouro e prata; por essa experiência os seus tipos eram excelentes, inclusive artisticamente.

Em 1434, Gutenberg mudou-se para Estrasburgo onde permaneceu vários anos. Depois de regressar à Mogúncia, associou-se com um comerciante que o financiou para realizar a impressão da Bíblia. Não se conhece muito sobre os últimos anos da vida de Gutenberg. Sabe-se que morreu a 3 de fevereiro de 1468. 

Gutenberg é considerado o inventor dos tipos móveis de chumbo fundido, mais duradouros e resistentes do que os fabricados em madeira, e portanto reutilizáveis que conferiram uma enorme versatilidade ao processo de elaboração de livros e outros trabalhos impressos e permitiram a sua massificação. 

A imprensa

A imprensa é outra das contribuições de Gutenberg. Desde a época de Suméria, já se usavam discos ou cilindros sobre os quais era lavrado o negativo do texto a imprimir, em geral, apenas a rubrica do dono do cilindro para outorgar a certeza da autenticidade das tabletas que a levavam. As imprensas na Idade Média eram simples tabelas gordas e pesadas ou blocos de pedra que eram apoiados sobre a matriz de impressão já entintada para transferir sua imagem ao pergaminho ou papel.

A imprensa de Gutenberg foi baseada nas prensas usadas para espremer o suco das uvas na fabricação do vinho, com as quais Gutenberg estava familiarizado, pois a Brogúncia, onde nasceu e viveu, está no vale do Reno, uma região vinícola desde a época dos romanos. 

Depois da invenção dos tipos e a adaptação da prensa vinícola, Gutenberg seguiu experimentando com a imprensa até conseguir um aparelho funcional. Também pesquisou sobre o papel e as tintas. Uns e outras tinham que se comportar de tal modo que as tintas fossem absorvidas pelo papel sem escorrer, assegurando a precisão dos traços; precisava-se que a secagem fosse rápida e a impressão permanente. Por isso, Gutenberg experimentou com pigmentos a base de azeite, que não usou apenas para imprimir com as matrizes, mas também as capitulares e ilustrações que eram feitas manualmente com o papel de trapo de origem chinesa introduzido na Europa em sua época. 

A Bíblia de Gutenberg

O primeiro livro impresso por Gutenberg foi a Bíblia, processo que se iniciou cerca de 1450 e foi concluído em 1455. 

Veja mais:

Para comprovar a magnificência deste inventor alemão do século XV, realiza-se anualmente, nos Estados Unidos, o “Festival Gutenberg” – uma espécie de Feira de demonstrações e inovações nas áreas do desenho gráfico, da impressão digital, da publicação e da conversão de texto – que só comprova que a invenção do mestre Gutenberg consegue, ainda hoje, cultivar seguidores que, da sua experiência-base, tentam superar o invento e adaptar as tecnologias modernas às exigentes necessidades do mundo atual. Ele também escreveu os livros: “Ala, e a terra prometida”, “Buda e o elefante” e “O dragão de São Jorge, O Santo guerreiro!”

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John Dalton https://canalfezhistoria.com/john-dalton/ https://canalfezhistoria.com/john-dalton/#respond Tue, 18 Mar 2025 00:24:41 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6271 John Dalton (Eaglesfield, 6 de setembro de 1766 — Manchester, 27 de julho de 1844) foi um químico, meteorologista e físico inglês. Foi um dos primeiros cientistas a defender que a matéria é feita de pequenas partículas, os átomos. É também um dos pioneiros na meteorologia, iniciando suas observações em 1787 com instrumentos confeccionados por ele mesmo e publicando, seis anos mais tarde, o livro Meteorological Observations and Essays (Observações e Ensaios Meteorológicos), um dos primeiros concernentes à ciência meteorológica.

 Suas observações experimentais permitiram-lhe elaborar teorias sobre o vapor d’água e misturas de gases, apresentando em 1801 sua lei das pressões parciais: em uma mistura de gases, cada componente exerce a mesma pressão como se estivesse solitária no recipiente que a contém. Dalton concluiu que toda matéria, não apenas gases, deve se consistir de diminutas partículas. Reviveu, assim, a antiga teoria atômica e elaborou a primeira tabela de pesos atômicos, anunciando seus resultados em 1803. Ao fim de sua vida, sua teoria atômica estava amplamente difundida entre a comunidade química e reconhecida pelo rei da Inglaterra com a Medalha Real.

Biografia

Nasceu em Eaglesfield, Cúmbria, em 6 de setembro de 1766, filho de um tecelão, no seio de uma família quaker. Foi educado sobretudo pelo pai, e pelo quaker John Fletcher. Em 1781 transferiu-se para Kendal, onde lecionou em uma escola fundada por seu primo, George Bewley. Partiu para Manchester em 1783, onde se estabeleceu definitivamente. 

Em Londres, ensinou matemática, física e química no New College. Pesquisador infatigável, devotou-se à meteorologia, para a qual contribuiu com numerosos trabalhos originais à física, à química, à gramática e à linguística. Seu nome, contudo, passou à história da ciência pela criação da primeira teoria atômica moderna e pela descoberta da anomalia da visão das cores, conhecida por daltonismo. Em 1794, depois de haver procedido a numerosas observações sobre certas peculiaridades da visão, Dalton descreveu o fenômeno da cegueira congênita para as cores, que se verifica em alguns indivíduos. O próprio Dalton padecia desta anomalia.

Em 21 de outubro de 1803 Dalton apresentou à Literary and Philosophical Society (Sociedade Literária e Filosófica), de Manchester, uma memória intitulada “Absorção de gases pela água e outros líquidos”, na qual estabeleceu os princípios básicos de sua famosa teoria atômica. Suas observações sobre o aumento da pressão dos gases com a elevação da temperatura e a descoberta de que todos os gases apresentam o mesmo coeficiente de expansão foram também verificadas, independentemente dele, por Gay-Lussac.

Dalton estabeleceu então que “a pressão total de uma mistura de gases é igual à soma das pressões parciais dos gases que a constituem”. Considera-se pressão parcial a pressão que cada gás, isoladamente e à mesma temperatura, exerceria sobre as paredes do recipiente que continha a mistura. Esse princípio só se aplica aos gases ideais. 

Dalton desenvolveu sua teoria atômica numa série de conferências que proferiu na Royal Institution de Londres, nos anos de 1804 e 1805. Em 1807, com o seu consentimento, Thomas Thomson incluiu um sumário da teoria atômica na terceira edição de sua obra System of chemistry (Sistema de química). O próprio Dalton, no ano seguinte, no primeiro volume do seu New system of chemical philosophy (Novo sistema de filosofia química), apresentou as bases de sua nova teoria.

Segundo Dalton, essas partículas eram esferas de diferentes tipos (tipo 1, 2, 3, …) em relação a quantidades de átomos conhecidos. A palavra átomo, de origem grega, significa exatamente indivisível, pois segundo à Demócrito, sua divisão era impossível. Sua estrutura atômica representava o átomo como uma particula maciça, indestrutível e indivisível com o formato redondo. Seu modelo atômico, ficou então conhecido como “Bola de bilhar”. 

A lei de Dalton

A Lei de Dalton é uma famosa publicação, ela conta que as moléculas dos gases não se atraem nem se repelem, o ar que respiramos é uma mistura gasosa homogênea. 

Ela relata que consideremos uma mistura gasosa contida num recipiente rígido de volume V. Seja p a pressão exercida pela mistura. 

“ Em uma mistura gasosa, a pressão de cada componente é independente da pressão dos demais, a pressão total ( P) é igual à soma das pressões parciais dos componentes. ” 

A constituição da matéria

Para o estabelecimento desta lei, Dalton baseou-se na sua teoria atômica. Lembre-se, todavia, que sua teoria fundamentava-se no princípio de que os átomos de determinado elemento eram iguais e de peso invariável. Na época em que ele estabeleceu essa lei não eram ainda conhecidas as fórmulas moleculares dos compostos. Determinavam-se, porém, experimentalmente, com certa aproximação, as proporções ponderais dos elementos constituintes dos compostos. 

A teoria atômica de Dalton pode condensar-se nos seguintes princípios: 

  • Os átomos são partículas reais, descontínuas e indivisíveis de matéria, e permanecem inalterados nas reações químicas; 
  • Os átomos de um mesmo elemento são iguais entre si: 
  • Os átomos de elementos diferentes são diferentes entre si; 
  • Na formação dos compostos, os átomos entram em proporções numéricas fixas 3:2, 5:3, 6:4, 7:5, 8:6
  • O peso do composto é igual à soma dos pesos dos átomos dos elementos que o constituem.

Embora fundada em alguns princípios inexatos, a teoria atômica de Dalton, por sua extraordinária concepção, revolucionou a química moderna. Discute-se ainda hoje se ele teria emitido essa teoria em decorrência de experiências pessoais ou se o sistema foi estabelecido a priori, baseado nos conhecimentos divulgados no seu tempo. Seja como for, deve-se ao seu gênio a criação, em bases científicas, da primeira teoria atômica moderna. Dalton, Avogadro, Cannizzaro e Bohr, cada um na sua época, contribuíram decisivamente para o estabelecimento de uma das mais notáveis conceituações da física moderna: a teoria atômica. 

Em 1800 ele se tornou um secretário da Sociedade filosófica de Manchester, e no ano seguinte ele apresentou oralmente uma importante série de documentos, intitulado “Ensaios Experimentais”, sobre a constituição da mistura de gases; sobre a pressão de vapor e outros vapores em diferentes Temperaturas, tanto no vácuo e no ar, na evaporação e à expansão térmica dos gases. Estes quatro ensaios foram publicados no Memórias do Lit & Phil em 1802. 

O segundo destes ensaios abre com a notável observação, 

“Não há dúvida que dificilmente podem ser entretido respeitando o reducibility de todos os fluidos elásticos de qualquer espécie, em líquidos; e nós não deveria desespero de que a afectam em baixas temperaturas e por fortes pressões exercidas sobre os gases ainda não misturadas.”

Após descrever experimentos para verificar a pressão de vapor em vários pontos entre 0 ° e 100 °C (32 ° e 212 °F), ele concluiu a partir de observações sobre a pressão de vapor dos seis diferentes líquidos, que a variação da pressão de vapor todos os líquidos É equivalente, para a mesma variação de temperatura, vapor de cômputo de qualquer pressão. 

No quarto ensaio, as observações, 

“Não vejo razão pela qual não basta não pode concluir que todos os fluidos elásticos sob a mesma pressão expandir igualmente pelo calor e que, para um dado expansão de mercúrio, o correspondente expansão do ar é algo menos proporcionalmente, maior a temperatura. Parece, Portanto, que respeitem as leis gerais da natureza e quantidade absoluta de calor são mais susceptíveis de serem derivadas de elástico fluidos além de outras substâncias.”

Ele, assim enunciados Gay-Lussac da lei ou J.A.C. Charles da lei, publicada em 1802 por Joseph Louis Gay-Lussac. Nos dois ou três anos após a leitura destes ensaios, Dalton publicou vários artigos sobre temas semelhantes, em que a absorção de gases pela água e outros líquidos (1803), contendo o seu direito de pressões parciais agora conhecido como a lei de Dalton. 

Teorias na química e posteriormente

As mais importantes de todas as investigações de Dalton são aquelas envolvidas com a teoria atómica em química, com as quais seu nome está indissociavelmente associado. Foi proposto que esta teoria foi-lhe sugerida quer por pesquisas sobre etileno (olefiant gás) e metano (carburetted hidrogênio), ou por meio de análise de óxido nitroso (protoxide de azote) e dióxido de azoto (deutoxide de azote), ambos já viram descansando sobre A autoridade de Thomas Thomson.

No entanto, um estudo de Dalton do próprio laboratório notebooks, descobertos nos quartos dos Lit & Phil, concluiu que a medida de Dalton sendo liderado por sua busca de uma explicação da lei de várias proporções, com a ideia que consiste combinação química Na interação de átomos de concreto e característico peso, a ideia de átomos surgiu em sua mente como um conceito meramente físico, forçado lhe pelo estudo das propriedades físicas da atmosfera e outros gases. O primeiro publicado indicações dessa ideia encontram-se no final do seu estudo sobre a absorção de gases já mencionado, o qual foi lido em 21 de outubro de 1803, embora não tenha sido publicado até 1805. 

Ele prossegue para imprimir sua primeira publicação da tabela relativa pesos atômicos. Seis elementos aparecem nesta tabela, ou seja, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio, carbono, enxofre, fósforo e, com o átomo de hidrogênio convencionalmente assumiu a pesar 1. Dalton fornecida qualquer indicação nesse primeiro papel como ele tinha chegado a estes números. No entanto, no seu caderno de laboratório sob a data de 6 de Setembro 1803 aí aparece uma lista na qual ele expõe os pesos relativos dos átomos de um certo número de elementos, derivados de análises de água, amoníaco, dióxido de carbono, e etc, por químicos de seu tempo. 

Pensamentos químicos de Dalton

Parece, então, que confrontados com o problema de cálculo da relação diâmetro dos átomos dos quais, ele foi convencido, todos os gases foram feitas, ele usou os resultados das análises químicas. Assistido pelo pressuposto de que a combinação ocorre sempre da maneira mais simples possível, assim que ele chegou à ideia de que a combinação química ocorre entre partículas de diferentes pesos, e foi isto que diferencia a sua teoria da histórica especulações dos gregos. 

A extensão dessa ideia de substâncias em geral necessariamente o levou à lei de várias proporções e, a comparação com a experiência brilhantemente confirmou a sua dedução. É possível notar que, em um documento sobre a proporção dos gases ou fluidos elásticos constituindo A atmosfera, lido por ele em novembro de 1802, a lei de várias proporções parece ser antecipado nas palavras: “Os elementos de oxigênio podem combinar com uma certa porção de gás nitroso ou duas vezes com a parte, mas sem intermediários quantidade”, Mas não há razão para suspeitar que esta frase pode ter sido adicionado algum tempo após a leitura do documento, que não foi publicada até 1805.

Compostos foram listadas como binárias, ternárias, quaternarias, etc. (moléculas compostas por dois, três, quatro, etc. átomos) no Novo Sistema de Filosofia Química, dependendo do número de átomos um composto tinha na sua mais simples, forma empírica. Ele hipótese da estrutura de compostos podem ser representadas em número inteiro rácios. Assim, um átomo do elemento X combinando com um átomo do elemento Y é um binário composto. Além disso, um átomo do elemento X combinando com dois elementos de Y ou vice-versa, é um composto ternárias. Muitos dos primeiros compostos listada no Novo Sistema de Filosofia Química corresponder às modernas visões, embora muitos outros não. 

Dalton seus próprios símbolos utilizados para representar visualmente a estrutura atômica de compostos. Estes tornaram em New System of Chemical Filosofia Dalton onde enumera uma série de elementos, compostos e comum. 

Cinco pontos principais da teoria atômica Dalton

Dalton atribuiu os fundamentos do átomo principalmente pela característica de cinco pontos principais, eles dizem que: 

  • Elementos são feitos de partículas minúsculas chamados átomos. 
  • Todos os átomos de um dado elemento são idênticos. 
  • Os átomos de um dado elemento são diferentes das de qualquer outro elemento; os átomos de diferentes elementos podem ser distinguidos uns dos outros por seus respectivos pesos relativos. 
  • Átomos de um elemento pode combinar com átomos de outros elementos para formar compostos; um determinado composto tem sempre a mesma relação do número de tipos de átomos. 
  • Átomos não podem ser criados, divididos em pequenas partículas, nem destruídos no processo químico; uma reação química simplesmente muda a forma como átomos são agrupados. 

Dalton propôs mais uma “regra da maior simplicidade”, que criou controvérsia, uma vez que não pôde ser confirmado independentemente. 

Quando átomos combinam em um único ratio “que deve ser .. presume ser um binário um, a menos que alguns parecem causar ao contrário” Isso foi apenas uma suposição, derivados de fé na simplicidade da natureza. Nenhuma evidência foi, em seguida, à disposição dos cientistas para deduzir quantos átomos de cada elemento combinam para formar compostos moléculas. Mas este ou algum outro tal regra era absolutamente necessária para qualquer incipiente teoria, uma vez que um precisava de um assumiu a fórmula molecular, a fim de calcular relativa pesos atômicos. Em qualquer caso, Dalton da “regra da maior simplicidade” causou-lhe supor que a fórmula de água foi OH e amoníaco foi nH, muito diferente da nossa compreensão moderna.

Apesar da incerteza no coração de Dalton da teoria atómica, os princípios da teoria sobreviveu. Para ter a certeza, a convicção de que átomos não podem ser subdivididos, criados ou destruídos em pequenas partículas quando são combinados, separados, ou reorganizados em reacções químicas é incompatível com a existência de fusão e cisão nuclear, mas tais processos são reações nucleares e não reações químicas.

Além disso, a ideia de que todos os átomos de um dado elemento são idênticos em suas propriedades físicas e químicas não é exactamente verdade, como sabemos agora que os diferentes isótopos de um elemento tem pesos um pouco diferentes. No entanto, Dalton tinha criado uma teoria de imenso poder e importância. Na verdade, Dalton, na inovação, foi tão importante para o futuro da ciência como Antoine Laurent Lavoisier à base de oxigénio químico. 

Anos Posteriores

Dalton comunicou sua téoria atómica a Thomson, que, por consentimento, incluía um esboço da mesma na terceira edição de seu Sistema de Química (1807), e Dalton deu uma nova conta de que na primeira parte do primeiro volume do seu New System Philosophy of Chemics (1808). A segunda parte deste volume apareceu em 1810, mas a primeira parte do segundo volume não foi publicado até 1827. Esse atraso não é explicado por qualquer excesso de cuidado na preparação, durante grande parte da questão estava fora da data e do apêndice dando últimas posições do autor é a única porção de interesse especial. A segunda parte do volume nunca apareceu. 

Dalton foi presidente da Lit & Phil desde 1817 até à sua morte, contribuindo com 116 memórias. Destes os últimos são os mais importantes. Em um deles, deve ler-se em 1814, ele explica os princípios da análise volumétrica, no qual ele foi um dos primeiros trabalhadores. Em 1840 um documento sobre os fosfatos e arsenates, frequentemente considerado como um trabalho mais fraco, foi recusado pela Royal Society, e foi por isso que ele publicou, indignado, ele próprio.

Ele tirou o mesmo curso logo depois, com quatro outros trabalhos, dois dos quais (a quantidade de ácidos, bases e sais em diferentes variedades de sais e um novo método de análise fácil do açúcar) contêm sua descoberta, considerada por ele como a segunda em importância, perdendo apenas para a teoria atômica, em que certas anidritos, quando dissolvidos em água, sem causar aumento do seu volume, a sua conclusão é de que o sal entra nos poros da água. 

Métodos experimentais de Dalton

Dalton muitas vezes se satisfazia com instrumentos precários e imprecisos, mesmo que instrumentos melhores pudessem ser adquiridos. Sir Humphry Davy o descreveu como “um experimentador muito rústico”, que quase sempre encontrava os resultados que queria, confiando mais na sua cabeça que nas suas mãos. Por outro lado, historiadores que refizeram alguns de seus principais experimentos, confirmaram a habilidade e precisão de Dalton. 

No prefácio da segunda parte do Volume I de seu Novo Sistema, ele diz que foi tantas vezes enganado ao tomar como certos os resultados de outros, que ele decidiu escrever “usarei os resultados de outros, apenas o mínimo, o que eu mesmo não pude comprovar experimentalmente “, mas essa independência foi levada a tal ponto que algumas vezes parecia falta de receptividade. Assim, ele não confiou, e provavelmente nunca aceitou inteiramente, as conclusões de Gay-Lussac sobre volumes combinados de gases. Ele tinha opiniões não-convencionais sobre o cloro.

Mesmo depois que seu caráter elementar foi definido por Davy, ele continuou a usar as massas atômicas que ele próprio adotara, mesmo quando foram superadas por determinações mais precisas de outros químicos. Ele sempre foi contra à notação química criada por Jöns Jakob Berzelius, mesmo que a maioria julgasse que era um sistema muito mais simples e conveniente que o seu próprio sistema incômodo de símbolos circulares. 

Morte

Dalton sofreu um pequeno acidente vascular cerebral em 1837, e um segundo em 1838 que deixou-o com dificuldades para falar, embora permanecesse capaz de fazer experiências. Em Maio de 1844 teve outro acidente vascular cerebral; em 26 de julho ele registrou com a mão trêmula sua última observação meteorológica. Em 27 de Julho, em Manchester, Dalton caiu de sua cama e foi encontrado sem vida pela sua atendente. Dalton foi sepultado no cemitério Ardwick em Manchester. O cemitério é agora um parque. 

Veja mais:

Legado

Um busto de Dalton, por Chantrey, foi publicamente subscrito por e colocados no hall de entrada do Manchester Royal Institution. Chantrey também esculpiu uma grande estátua de Dalton, agora no Manchester Town Hall. Em honra ao trabalho de Dalton, muitos químicos e bioquímicos utilizam (ainda não oficial) a unidade dalton (abreviada Da) para designar uma unidade de massa atômica, ou 1 / 12 do peso de um átomo neutro de carbono-12.

A Universidade de Manchester estabeleceu as bolsas Dalton Chemical Scholarships, Dalton Mathematical Scholarships, e o Dalton Prize for Natural History. Existe também uma medalha Dalton entregue ocasionalmente pela Manchester Literary and Philosophical Society (apenas 12 foram entregues até hoje). Em seu livro The 100, Michael H. Hart colocou Dalton como a 32° pessoa mais influente da história. A cratera lunar Dalton foi nomeada em sua homenagem.

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John F. Kennedy https://canalfezhistoria.com/john-f-kennedy/ https://canalfezhistoria.com/john-f-kennedy/#respond Tue, 18 Mar 2025 00:20:31 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6256 John Fitzgerald Kennedy (Brookline, 29 de maio de 1917 — Dallas, 22 de novembro de 1963) foi um político americano que serviu como 35° presidente dos Estados Unidos (1961–1963) e é considerado uma das grandes personalidades do século XX. Ele era conhecido como John F. Kennedy ou Jack Kennedy por seus amigos e popularmente como JFK. 

Eleito em 1960, Kennedy tornou-se o segundo mais jovem presidente do seu país, depois de Theodore Roosevelt. Ele foi presidente de 1961 até o seu assassinato em 1963. Durante o seu governo houve a Invasão da Baía dos Porcos, a Crise dos mísseis de Cuba, a construção do Muro de Berlim, o início da Corrida espacial, a consolidação do Movimento dos Direitos Civis nos Estados Unidos e os primeiros eventos da Guerra do Vietnã.

Durante a Segunda Guerra Mundial, ficou conhecido pela sua liderança como o comandante do barco PT-109 na área do Pacífico Sul. Ao realizar um reconhecimento, o seu barco foi atingido por um destróier japonês, que partiu o barco em dois e causou uma explosão. A tripulação responsável conseguiu nadar até uma ilha e sobreviver até serem resgatados. Essa façanha proporcionou-lhe popularidade e começou assim a sua carreira política. Kennedy representou o Estado de Massachusetts como um membro da Câmara dos Deputados a partir de 1947 até 1953 e depois como Senador de 1953 até que se tornou presidente em 1961.

Com 43 anos de idade, foi o candidato presidencial do Partido Democrata nas eleições de 1960, derrotando o Republicano Richard Nixon em uma das eleições mais apertadas da história presidencial do país. Kennedy foi a última pessoa a ser eleita Presidente enquanto ainda exercia um mandato como Senador, até a eleição de Barack Obama em 2008. Também foi o único católico a ser eleito presidente dos Estados Unidos. Até a data, era o único nascido durante a Primeira Guerra Mundial e também o primeiro nascido no século XX. 

O presidente Kennedy morreu assassinado em 22 de novembro de 1963 em Dallas, Texas. O ex-fuzileiro naval Lee Harvey Oswald foi preso e acusado do assassinato, mas foi morto dois dias depois, por Jack Ruby e por isso não foi julgado. A Comissão Warren concluiu que Oswald agiu sozinho no assassinato. No entanto, o Comitê da Câmara sobre Assassinatos descobriu em 1979 que talvez tenha havido uma conspiração em torno do acontecido. Este tópico foi debatido e há muitas teorias sobre o assassinato, visto que o crime foi um momento importante na história dos Estados Unidos devido ao seu impacto traumático na psique da nação.

O governo Kennedy é muito bem avaliado por historiadores e acadêmicos, registrando também uma média de 70% de aprovação dentre o povo durante sua presidência. Muitos viram em Kennedy um ícone das esperanças e aspirações americanas, e em algumas pesquisas no país ele ainda é valorizado como um dos melhores presidentes da história da nação. 

Infância e juventude

John F. Kennedy era filho de Joseph P. Kennedy e Rose Fitzgerald. Joseph era um empresário e também foi embaixador americano no Reino Unido. Rose foi a filha mais velha de John Fitzgerald, uma figura política proeminente em Boston, que foi deputado e prefeito de sua cidade. O casal teve nove filhos, sendo John o segundo deles. Nascido no número 83 da Beals Street, em Brookline, Massachusetts na terça-feira 29 de maio de 1917, às 15:00 h. 

Durante seus primeiros 10 anos de vida, viveu em Brookline. Ele estudou na escola Devotion Edward do jardim de infância até o início da terceira série. Na quarta série, ingressou numa escola particular para meninos chamada de Noble e Greenough, mais tarde chamado de Dexter School. 

Em setembro de 1927, ele mudou-se com a sua família para uma mansão alugada de 20 cômodos em Riverdale, no bairro do Bronx em Nova York. Dois anos depois, eles se mudaram cinco milhas a nordeste, para uma mansão com 21 quartos em um campo de seis hectares, em Bronxville, Nova York, adquirida em maio de 1929. Kennedy à época era escoteiro e um membro da “Tropa Escoteiro 2” de Bronxville entre 1929 e 1931, e também foi primeiro escoteiro a ser eleito presidente.

Ele passou seus verões com sua família em uma casa em Hyannis Port, Massachusetts, também comprada em 1929 e as festas de Natal e de Páscoa reuniam-se em sua casa em Palm Beach, Flórida, adquirida em 1933. A partir da quinta para a sétima série, John estudou na escola particular Country Riverdale, uma escola exclusivamente para os meninos de Riverdale. 

Em setembro de 1930, Kennedy foi enviado para um internato de meninos de Canterbury School para participar da oitava série. Esta escola era 50 milhas de sua casa em New Milford, Connecticut. No final de abril de 1931 teve um ataque de apendicite e passou por uma apendicectomia, após o qual ele se ausentou da Canterbury para se recuperar em casa.

Em setembro de 1931, John foi enviado com seu irmão mais velho, Joe, à escola privada Choate, que ficava a cerca de 60 milhas de sua casa em Wallingford, Connecticut, que era uma escola preparatória para a faculdade. Em janeiro de 1934, ele começou a perder muito peso e ficou doente, sendo internado no Hospital Yale-New Haven até a Páscoa e passou a maior parte do mês de junho de 1934 hospitalizado na Clínica Mayo, em Rochester, Minnesota, objeto de análise pelo colite que sofreu.

Ele se formou em Choate, em junho de 1935. Em setembro, ele viajou para Londres no navio SS Normandie, o que era sua primeira viagem ao exterior. Ele estava acompanhado por seus pais e sua irmã Kathleen. A ideia da viagem era que o jovem Kennedy estudasse por um ano com o professor Harold Laski na London School of Economics (LSE), como tinha feito seu irmão mais velho, Joe. Mas na segunda semana no LSE foi hospitalizado por causa de icterícia.

Devido a isso, ele viajou de volta para a América depois de passar apenas três semanas no Reino Unido. Em outubro de 1935, Kennedy ingressou tardiamente na Universidade de Princeton onde apenas seis semanas depois, entre janeiro e fevereiro de 1936, foi hospitalizado por mais duas semanas no Hospital Peter Bent Brigham, em Boston, onde houve comentários sobre uma possível leucemia. Entre março e abril deste ano permaneceu em Palm Beach, na casa de inverno da família, recuperando-se, e durante maio e junho, trabalhou na fazenda de 40 mil hectares nos arredores de Benson, Arizona. 

Em setembro de 1936 ele se matriculou para estudar seu primeiro ano na Universidade Harvard, vivendo em House Winthrop do primeiro ao último ano. Mais uma vez ele seguiu seu irmão Joe, que já havia feito dois anos na faculdade. Em julho de 1937, viajou para a França no SS Washington. Ele passou 10 semanas de viagem com um amigo, não só neste país mas também na Itália, Alemanha, Holanda e no Reino Unido.

No final de junho de 1938, ele viajou com seu pai e seu irmão Joe no SS Normandie para trabalhar o mês de julho na Embaixada americana em Londres, porque seu pai foi nomeado Embaixador dos Estados Unidos na Corte de Saint James pelo presidente Franklin D. Roosevelt. De fevereiro a setembro de 1939, Kennedy visitou a União Soviética, os Bálcãs e o Oriente Médio para reunir informações para sua tese em Harvard. Ele passou os últimos dez dias de agosto na Checoslováquia e na Alemanha antes de retornar a Londres em 1 de setembro de 1939, mesmo dia em que aconteceu a invasão alemã da Polônia.

Em 3 de setembro, foi com seus pais, seu irmão Joe e a irmã Kathleen na Galeria Strangers da Câmara dos Comuns britânica, onde ele ouviu discursos de apoio à declaração de guerra do Reino Unido para a Alemanha. Kennedy foi enviado por seu pai como seu representante para ajudar nos esforços aos sobreviventes americanos do navio SS Athenia. No final de setembro ele voltou para os Estados Unidos em um voo transatlântico do Clipper Dixie da Pan Am, que voou de Foynes a Port Washington, New York. 

Em 1940, ele completou sua tese de doutorado, intitulada de “Apaziguamento em Munique”, sobre o Acordo de Munique. Inicialmente, ele queria que sua tese fosse privada, mas seu pai o convenceu a publicá-la em um livro. Doutorou-se pela Universidade Harvard com uma licenciatura em relações internacionais em junho de 1940 e em julho do mesmo ano a sua tese foi publicada sob o título “Why England Slept?” (“Por que a Inglaterra Dormiu?”) que se tornou um bestseller.

Entre setembro e dezembro de 1940, assistiu a palestras na Stanford Graduate School of Business. No início de 1941, ele ajudou seu pai a completar a escrita de suas memórias de três anos como embaixador. Em maio e junho de 1941 viajou para à América do Sul. 

Serviço militar

Na primavera de 1941, Kennedy se voluntariou para o Exército dos Estados Unidos, mas foi rejeitado principalmente por seus problemas na coluna. No entanto, em setembro do mesmo ano, a Marinha aceitou-o, pela influência do diretor do Escritório de Inteligência Naval (ONI), um antigo assessor naval de seu pai nos tempos de embaixador na Grã-Bretanha. Com a patente de tenente, ele trabalhou em um escritório fazendo boletins e relatórios que eram apresentados ao secretário da Marinha.

Foi durante este período que ocorreu o ataque japonês a base de Pearl Harbor. Ele estudava na Escola Naval Preparatória para Oficiais da Reserva e no Torpedo Motor Boat Squadron Training Center, antes de ser designado para o Panamá e, finalmente, para as operações no Pacífico. Ele participou em diversas missões e foi promovido a Comandante de um barco torpedeiro de patrulha (que eram embarcações pequenas e rápidas, projetadas para atacar navios de grande porte de surpresa). 

Em 2 de agosto de 1943, o barco de Kennedy, o PT-109, foi abordado pelo destróier japonês Amagiri durante uma missão noturna no estreito de Blackett, perto da Nova Geórgia nas Ilhas Salomão. John caiu para fora do barco e machucou sua coluna. Apesar de sua lesão, ele ajudou seus 10 colegas sobreviventes, especialmente um que foi gravemente ferido, até chegarem em uma ilha (hoje designada Ilha Kennedy) onde foram resgatados. Por esta ação, ele recebeu a Medalha da Marinha e dos Fuzileiros Navais (“Navy e Marine Corps Medal”) e a seguinte declaração:

“Por conduta extremamente heroica como comandante do barco Torpedeiro 109 após a colisão e naufrágio do navio no Teatro de Operações do Pacífico em agosto de 1943. Independentemente de danos pessoais, o tenente Kennedy, sem hesitação, lutou contra todas as probabilidades, na escuridão para as operações de resgate direto, muitas horas de natação para resgatar e prestar assistência e comida para os seus companheiros, uma vez que estavam a salvo em terra. Sua coragem excepcional, força e liderança ajudaram a salvar a vida de muitas pessoas e manter as melhores tradições da Marinha dos Estados Unidos”.

Em agosto de 1963, três meses antes de seu assassinato, Kennedy escreveu: “Qualquer homem que pediu neste século algo que ele fez para fazer sua vida valer a pena, eu acho que poderá responder com muito orgulho e satisfação: servi na Marinha dos Estados Unidos”.

Início de sua carreira política

Após a Segunda Guerra Mundial, Kennedy considerou a ideia de se tornar um jornalista. Nos anos antes da guerra não tinha pensado muito sobre política porque sua família tinha depositado as suas esperanças políticas em seu irmão mais velho, Joseph P. Kennedy Jr, no entanto, ele morreu em combate durante o conflito. Em 1946, o representante da Câmara dos Representantes, o democrata James Michael Curley abandonou o cargo para aspirar ser candidato a prefeito de Boston, dando a Kennedy uma chance de tentar concorrer a vaga deixada.

Ele eventualmente venceria aquela eleição contra o seu adversário republicano por uma larga maioria. JFK foi membro do Congresso por seis anos. Seus votos sobre diversas iniciativas não são ajustados para uma tendência fixa partidária e, muitas vezes, difere da posição do Presidente Harry S. Truman e do resto do seu partido. Em 1952, ele derrotou o candidato republicano Henry Cabot Lodge Jr. na eleição para o cargo de Senador. 

Kennedy então casou-se com Jacqueline Lee Bouvier em 12 de setembro de 1953. Durante os próximos dois anos ele foi submetido a várias cirurgias para tentar corrigir seus problemas de coluna. Ele ficou, portanto, ausente em várias sessões do Senado. Durante sua convalescença, ele escreveu “Profiles in Courage” (Profissões de Coragem), um livro que descreve situações em que oito senadores americanos arriscaram suas carreiras para permanecer firme em suas convicções e crenças. O livro foi premiado em 1957 com o Prêmio Pulitzer de melhor biografia. 

Em 1956, o candidato a presidência de esquerda, Adlai Stevenson, foi para a Convenção do Partido Democrata e precisava da nomeação de um candidato à vice-presidência dos Estados Unidos. Kennedy terminou em segundo lugar na votação, atrás do Senador Estes Kefauver do Tennessee. Graças a este episódio e apesar de sua derrota, JFK ganhou notoriedade nacional, o que o ajudaria nos anos seguintes. Seu pai, Joseph Kennedy, notou que no fundo foi bom para John não conseguir a nomeação, porque então, muitos culpavam os católicos na derrota eleitoral, mas em particular reconheceu que para qualquer democrata seria difícil competir contra o candidato Republicano Dwight Eisenhower.

Anos mais tarde revelaram que em setembro de 1947, quando ele tinha 30 anos e durante seu primeiro mandato como congressista, Kennedy foi diagnosticado com a doença de Addison (uma deficiência hormonal rara) por Sir Daniel Davis em uma clínica de Londres. Este e outros problemas médicos foram mantidos em segredo do público e da imprensa durante a vida de Kennedy. 

Em Wisconsin o senador republicano Joseph McCarthy , principal responsável pela caça às bruxas nos primeiros anos da década de 1950 foi um grande amigo da família Kennedy. Joe Kennedy sempre apoiou McCarthy, Robert F. Kennedy trabalhou para a subcomissão de McCarthy e foi romanticamente ligado à Patricia Kennedy. Em 1954, quando se estudava no Senado que se julgasse o senador de Wisconsin, John Kennedy redigiu um discurso para censurar McCarthy, mas nunca foi entregue.

Em 2 de dezembro de 1954, o senador Kennedy estava no hospital quando o Senado anunciou sua decisão de censurar McCarthy. Embora ausente, Kennedy poderia ter influenciado a decisão, mas preferiu não e nunca indicou como teria votado. Este episódio seriamente danificou o apoio a Kennedy dos mais progressistas, especialmente Eleanor Roosevelt, mesmo nas eleições de 1960. 

Eleição Presidencial de 1960

Em 2 de janeiro de 1960, Kennedy manifestou sua intenção de concorrer nas eleições presidenciais daquele ano. Nas primárias do Partido Democrata, concorreu com o senador Hubert Humphrey de Minnesota e o senador Wayne Morse de Oregon. JFK derrotou Humphrey em Wisconsin e na Virgínia Ocidental e Morse em Maryland e em Oregon. Ele também superou a oposição (muitos candidatos usavam seus nomes informais que eram escritos pelo eleitor para preencher a cédula), em New Hampshire, Indiana e em Nebraska.

Nas minas de carvão na Virginia Ocidental, ele visitou e conversou com os mineiros pelo seu apoio, a maioria do eleitorado do estado era conservador, protestante, muito suspeito do catolicismo de Kennedy, apesar de ter sido vitorioso apenas lá, que confirmou a sua posição como um candidato de recurso popular. 

No dia 13 de julho, Kennedy foi eleito candidato democrata à presidência, o segundo católico a receber a nomeação para tentar se eleger ao cargo de Presidente (Al Smith foi o primeiro em 1928, apoiado pelo próprio pai de Kennedy). Ele perguntou a Lyndon B. Johnson se ele queria ser o seu candidato à Vice-Presidência, apesar da oposição de muitos delegados liberais, e do grupo perto de Kennedy, incluindo seu irmão Robert.

Mas ele precisava da popularidade de Johnson nos estados do sul para ganhar o que proporcionou uma das mais disputada eleições presidenciais desde 1916. As principais questões incluíam a religião católica de Kennedy, a preocupação se a União Soviética estava vencendo ou não a corrida espacial e a crise com Cuba.

Entre setembro e outubro houve três debates presidenciais entre Kennedy e Richard Nixon, o candidato republicano. Em 26 de setembro, 70 milhões de telespectadores viram o primeiro debate presidencial televisionado da história americana. Antes do primeiro debate, Nixon tinha passado duas semanas no hospital devido a uma lesão na perna, usava uma barba e não queria maquiagem. Ele parecia tenso e desconfortável, enquanto Kennedy apareceu relaxado.

No final do debate a maior parte do público deu Kennedy como o vencedor. Mas aqueles que escutaram no rádio deram Nixon como o vencedor ou disseram que o resultado foi um empate. Em 7 de outubro o segundo debate foi realizado e o terceiro e último debate foi realizado no dia 13 de outubro. Atualmente, os debates televisivos são considerados fundamentais na política americana, mas foi o debate Kennedy-Nixon de 1960, no tempo em que a televisão teria um papel dominante na política. Após o debate, a campanha de Kennedy ganhou impulso, conseguiu superar Nixon em alguns pontos na maioria das pesquisas.

Na terça-feira, 8 de novembro de 1960, Kennedy derrotou Richard Nixon, em uma das eleições presidenciais mais apertadas do século XX. No voto popular nacional, Kennedy venceu com 49,7% dos votos contra 49,5% do concorrente, enquanto no Colégio Eleitoral ganhou com 303 votos contra 219 (269 eram necessários para vencer). 

Presidência (1961-1963)

John F. Kennedy tomou posse como o 35º presidente dos Estados Unidos em 20 de janeiro de 1961. Em seu discurso inaugural, falou da necessidade dos cidadãos americanos em serem mais ativos, proporcionando uma de suas frases mais famosas: “Não pergunte o que seu país pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer por seu país!” Ele também pediu a outras nações que lutassem juntas contra o que ele chamou de “inimigos comuns do homem”: a tirania, doenças, pobreza e a guerra em si.

No final, expandiu o seu desejo de mais internacionalismo: “Finalmente, se vocês são cidadãos dos Estados Unidos como se eles estão no mundo, exijam de nós a mesma generosidade de força e sacrifício que pedimos a vocês.” 

Política interna

Kennedy chamou o seu programa de política interna de “The New Frontier” (“A Nova Fronteira”). Ambiciosamente prometeu maior financiamento federal para a educação, cuidados com a saúde dos idosos e intervenção governamental para travar a recessão economica. Ele também prometeu acabar com a discriminação racial. Em 1963, ele propôs uma reforma tributária que incluía a redução de impostos, que foi aprovada pelo Congresso em 1964, após o seu assassinato. Alguns dos mais importantes programas de Kennedy conseguiram ser votados no Congresso durante a sua vida mas sob Johnson, seu sucessor, o Congresso votou os demais projetos durante o período de 1964 a 1965. 

Como presidente, Kennedy autorizou a execução de duas penas de morte, uma para a convicção dos tribunais comuns e uma nos tribunais militares, em ambos os casos, recusou-se a exercer o seu poder de comutar as sentenças. O governador do estado de Iowa, à época Harold Hughes, disse que Kennedy pessoalmente pediu clemência para Victor Feguer e os condenados por tribunais civis, incapaz de impedir que ele fosse enforcado em 15 de março de 1963.

De Feguer, porque era a última do estado de Iowa (que aboliu a pena capital em 1965) e também o último de um prisioneiro federal, antes da moratória de 1972-1976, 20 após o caso Furman vs. Georgia. Esta última a execução militar foi realizada até à data. 

Economia

Kennedy encerrou um período de políticas fiscais rigorosas. A política monetária diminuiu para manter as taxas de juros baixa e estimular o crescimento da economia. JFK foi o primeiro presidente a quebrar o recorde de US$ 100 bilhões de dólares no orçamento em 1962 e seu primeiro orçamento em 1961 levou ao primeiro déficit orçamentário sem guerra ou recessão na história do país. A economia, que passou por duas recessões em três anos, estava mal antes de Kennedy tomar posse. Apesar de baixa inflação e das baixas taxas de juros, o PIB havia crescido a uma média de apenas 2,2% no governo do presidente Eisenhower (um pouco maior que o crescimento da população na época). 

A economia voltou a prosperar durante o governo Kennedy. O PIB cresceu a uma média de 5,5% no início de 1961 até o final de 1963, enquanto a inflação permaneceu estável em torno de 1% e o desemprego começou a diminuir. A produção industrial cresceu em 15% e as vendas de automóveis deram um salto de 40%. Esta taxa de crescimento da economia e da indústria continuou até cerca de 1966. 

Direitos Civis

Uma das questões domésticas mais evidentes da era Kennedy foi o final turbulento da prática de discriminação racial tolerado ou autorizado pelas autoridades estaduais. Em 1954, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que a segregação racial nas escolas públicas era inconstitucional. No entanto, muitas escolas, especialmente aquelas dos estados do sul, não obedeceram a decisão da Corte. A segregação nos ônibus, restaurantes, teatros, cinemas, banheiros e outros espaços públicos também continuou.

Kennedy apoiando a integração racial e dos direitos civis durante sua campanha presidencial de 1960 e chegou a telefonar para Coretta Scott King, esposa do reverendo preso Martin Luther King, Jr., o que talvez tenha atraído o apoio de eleitores negros para a sua candidatura. A intervenção de John e Robert Kennedy ajudou na liberação do reverendo. 

Em 1962, um estudante negro chamado James Meredith tentou se matricular na Universidade do Mississippi, mas violentos protestos de estudantes brancos fizeram com que ele fosse impedido, com a tolerância do governador do Estado. Kennedy respondeu enviando 400 soldados da Guarda Nacional e 3 000 agentes federais para garantir que Meredith pudesse se inscrever. 

Em 11 de junho do mesmo ano, o presidente Kennedy interveio quando o governador do Alabama, George Wallace, bloqueou a porta da Universidade do Alabama para impedir que dois alunos afro-americanos se inscrevessem, sendo eles Vivian Malone e James Hood. Wallace simplesmente desistiu e afastou-se quando foi intimado por policiais federais. Naquela noite, Kennedy deu o seu famoso discurso dos direitos civis no rádio e na televisão. Em seu discurso exortou o Congresso a legislar sobre o assunto a sério e, assim, atingir os objetivos propostos por Abraham Lincoln, 100 anos antes. Esta proposta se tornou a Lei dos Direitos Civis de 1964. 

Programa espacial

Kennedy queria ansiosamente que os Estados Unidos liderassem a corrida espacial. Sergei Khrushchev, filho do primeiro-ministro soviético, disse que Kennedy aproximou-se de seu pai, Nikita Khrushchev, duas vezes para unir esforços e explorar o espaço. Na primeira ocasião, a União Soviética estava muito à frente em termos de tecnologia comparado aos americanos no espaço. A primeira vez que Kennedy disse que o objetivo de levar um homem à Lua foi em uma Sessão Conjunta do Congresso e do Senado, em 25 de maio de 1961. Na ocasião, ele disse: 

“Em primeiro lugar, eu acredito que esta nação deve se comprometer consigo mesma em atingir o objetivo de: antes que essa década termine, fazer pousar um homem na Lua e trazê-lo de volta a Terra a salvo. Nenhum outro projeto espacial nesse período vai ser mais impactante para a humanidade, ou mais importante para a exploração do espaço profundo; e nenhum outro vai ser tão difícil ou tão despendioso para ser atingido.”

Na segunda abordagem à Khrushchev, o líder russo foi convencido dos benefícios que resultariam em compartilhar os custos e os Estados Unidos haviam avançado muito na tecnologia espacial. Os americanos lançaram um satélite em órbita geoestacionária e Kennedy pediu ao Congresso para aprovar um orçamento de mais de 25 bilhões de dólares para o Programa Apollo. O premier russo considerou trabalhar junto com os norte-americanos no outono de 1963, mas Kennedy foi assassinado antes de qualquer acordo desse tipo pudesse ser formalizado. Em 20 de julho de 1969, quase seis anos após a morte de JFK, o Programa da Apollo 11 conquistou seus objetivos e finalmente um homem pousou na lua. 

Política externa

Cuba e a invasão da Baía dos Porcos

Antes que Kennedy fosse eleito presidente, a administração Eisenhower criou um plano para derrubar o regime de Fidel Castro em Cuba. Com o plano estruturado e detalhado pela CIA com apoio mínimo do Departamento de Estado, incluía montar uma insurgência contra-revolucionária composta de cubanos antiCastro. Os insurgentes cubanos foram treinados pelos americanos e deveriam invadir Cuba e instigar uma revolta do povo cubano para alcançar o objetivo de derrubar Fidel do poder.

Em 17 de abril de 1961, Kennedy ordenou que o plano fosse implementado. Com o apoio da Inteligência americana, 1 500 exilados cubanos treinados nos Estados Unidos, a chamada “Brigada 2506”, voltou para a ilha na esperança de derrubar o regime comunista de Castro, no episódio que ficou conhecido como a invasão da Baía dos Porcos. No entanto, JFK ordenou que a invasão acontecesse sem o apoio da Força Aérea americana. Em 19 de abril, o governo cubano havia capturado ou matado muitos dos exilados durante a fracassada operação e Kennedy foi forçado a negociar a saída dos 1 189 sobreviventes.

Entre as causas do fracasso do plano, notou a falta de diálogo entre os líderes militares e da total falta de apoio naval para destruir a artilharia da ilha, que facilmente acabava com os exilados cubanos quando eles desembarcaram. Depois de 20 meses de negociações, Cuba libertou todos os exilados capturados em troca de 53 milhões de dólares em alimentos e medicamentos. O incidente foi constrangedor para Kennedy. Devido a esta invasão, Castro começou a preocupar-se com os americanos, acreditando que uma segunda invasão era iminente. 

Crise dos Mísseis em Cuba

A crise dos mísseis em Cuba começou dia 14 de outubro de 1962, quando o avião espião americano U-2 tirou fotografias das construções de silos para mísseis de longo alcance soviéticos em Cuba. As fotografias foram mostradas a Kennedy em 16 de outubro de 1962. Os Estados Unidos enfrentavam agora uma ameaça nuclear direta e iminente. 

Muitos militares e membros da ExComm pressionaram Kennedy para aprovar um ataque aéreo contra as instalações dos mísseis em Cuba, mas o presidente limitou-se a ordenar um bloqueio naval em que a Marinha deveria inspecionar todos os navios que chegassem à Cuba. Ele então iniciou conversações com os soviéticos para que retirassem todo o material de “defesa” que estava sendo instalado em Cuba. JFK então ordenou que a quarentena durasse indefinidamente.

Uma semana depois, ele e o Premiê Soviético Nikita Khrushchev chegaram a um acordo. Khrushchev concordou em retirar os mísseis sujeitos a inspecções da ONU se os Estados Unidos emitissem uma declaração pública dizendo que nunca iriam invadir Cuba. Após esta crise, o que foi o mais próximo na história de uma guerra nuclear, Kennedy começou a ser mais cuidadoso em seus confrontos com a União Soviética. 

O Corpo da Paz

Como um de seus primeiros atos presidenciais, Kennedy criou o “Peace Corps”. Através desse programa, os americanos poderiam se voluntariar para ajudar as nações em desenvolvimento em áreas como educação, agricultura, saúde e construção. 

Iraque

Em 1963, a administração Kennedy apoiou um golpe contra o governo do Iraque encabeçada pelo general Abdul Karim Qasim , que cinco anos antes tinha deposto os aliados ocidentais com a monarquia iraquiana. A CIA ajudou o novo governo do Partido Baath liderada por Abdul Salam Arif em livrar o país de supostos esquerdistas e comunistas. No golpe de Estado baathista, o governo usou listas de comunistas suspeitos e de membros da esquerda fornecida pela CIA. De forma sistemática, os assassinatos aconteceram, tendo contado com a ajuda do jovem Saddam Hussein.

As vítimas incluíam centenas de médicos, professores, técnicos, advogados e outros profissionais, bem como figuras políticas e militares. De acordo com um artigo de opinião do The New York Times, os Estados Unidos enviaram armas para o novo regime, armas usadas contra insurgentes curdos que os americanos apoiaram contra Kassem e depois os abandonaram. O petróleo bruto e outros interesses, atraiu empresas como Mobil, Bechtel e British Petroleum, que foram ao Iraque na intenção da realização de negócios. 

Vietnã

No Sudeste Asiático, Kennedy continuou o que Eisenhower tinha começado a fazer, utilizando de força militar limitada para lutar contra os comunistas comandados principalmente por Ho Chi Minh no Vietnã. Proclamada uma guerra contra a propagação do comunismo pelo mundo, Kennedy estabeleceu programas para ajudar os sul-vietnamitas, de forma econômica e militar, que incluiu o envio de 16 mil conselheiros militares e Forças Especiais americanas para a região. JFK também concordou em usar “zonas livres para disparar” napalm e agente laranja lançado por seus aviões. Os Estados Unidos estavam cada vez mais envolvidos na área, mesmo que não estivessem envolvidos diretamente no combate terrestre na guerra que arrastava, porém o conflito iria se intensificar consideravelmente na administração seguinte.

Kennedy inicialmente aumentou o apoio militar mas as forças armadas do Vietnã do Sul foram incapazes de superar as tropas do Việt Minh e dos vietcongues. JFK enfrentou uma crise no Vietnã do Sul em julho de 1963 quando os generais sul-vietnamitas deram um golpe de Estado contra o seu presidente, Ngo Dinh Diem. Em 2 de novembro, Diem foi deposto, preso e executado (embora as circunstâncias exatas da morte nunca foram divulgadas). O presidente americano começou então a desenvolver um plano de retirada das tropas do Vietnã, que se completaria em 1965 mas ele foi morto antes disso. Seu sucessor, o vice-presidente Johnson, optou então por manter os militares por lá e intensificar o conflito. 

No entanto, uma faceta menos conhecida do personagem, defendida por alguns autores e jornalistas, retrata o ex-presidente democrata como um importante arquiteto na escalada da Guerra do Vietnã, tendo diretamente provocado um golpe militar contra o presidente o sul-vietnamita Ngô Đình Diệm, até mesmo o patrocinador direto do assassinato deste, porque Diem se opôs a um aumento no envolvimento militar dos EUA no Vietnã e estaria considerando quebrar a aliança de seu país com os Estados Unidos. Porém, a maioria dos historiadores acreditam que, caso Kennedy tivesse sido reeleito em 1964, ele teria retirado as forças americanas do Vietnã e evitado a guerra.

Seu secretário de defesa, Robert McNamara, afirmou, no documentário “The Fog of War”, que JFK definitivamente pretendia encerrar a missão militar americana em território vietnamita após 1964. Theodore Sorensen concorda e acredita que possivelmente Kennedy não teria mandado mais soldados americanos para lutar no Vietnã como Lyndon Johnson fez, mas ele também afirma que, no período de sua morte, o presidente ainda não havia tomado uma decisão.

Discurso em Berlim Ocidental

Após a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha foi dividida em zonas militares controladas pelos Aliados ocidentais e pelos soviéticos. Com a construção do Muro de Berlim em 13 de agosto de 1961, a cidade de Berlim divididos em duas partes, uma controlada pelos Aliados chamada de Berlim Ocidental e outro, sob o controle dos soviéticos, chamada Berlim Oriental. Kennedy visitou Berlim Ocidental no dia 26 de junho de 1963 e realizou um discurso público criticando o comunismo para marcar o décimo quinto aniversário do bloqueio de Berlim impostas pela União Soviética. No discurso, feito a partir da varanda do edifício Rathaus Schöneberg, disse que a construção do Muro de Berlim era um exemplo do fracasso comunista. 

“ Há dois mil anos, não havia frase que se dissesse com mais orgulho do que civis Romanus sum (“sou um cidadão romano”). Hoje, no mundo da liberdade, não há frase que se diga com mais orgulho que “Ich bin ein Berliner”… Todos os homens livres, onde quer que vivam, são cidadãos de Berlim e, portanto, como um homem livre, eu me orgulho pelas palavras ‘Ich bin ein Berliner’! ” 

A frase “Ich bin ein Berliner” (“Eu sou um berlinense”), foi o auge desse discurso histórico, veio a Kennedy quando ele foi até a varanda da Rathaus Schöneberg. A ideia foi baseada na velha frase Civis Romanus sum (“eu sou um cidadão de Roma”) usado pelos romanos. Ele foi para seu intérprete, Robert H. Lochner para traduzir a frase de que “eu sou um berlinense” e para ajudá-lo com a sua pronúncia, escrita rapidamente numa folha as palavras e pronúncia. Quase 83% da população de Berlim estava na rua quando Kennedy disse esta frase. Então, impressionado, confessou a seus assessores: “Nunca teremos outro dia como este”. 

Tratado de Proibição de testes nucleares

Perturbada pelos perigos constante de poluição radioativa e proliferação de armas nucleares, a administração Kennedy começou a trabalhar na adoção do Tratado da proibição de testes nucleares parcial que proibia testes atômicos em terra, ar ou debaixo de água, mas não testes subterrâneos. Os Estados Unidos, o Reino Unido e a União Soviética foram os primeiros signatários do tratado. Kennedy assinou o tratado em agosto de 1963. 

Visita à Irlanda

Quando Kennedy visitou a Irlanda em 1963, reuniu-se com o presidente deste país, Éamon de Valera, para formar o “American Foundation Ireland”. A missão desta organização foi de promover a comunicação entre os americanos de ascendência irlandesa e com o país de seus antepassados. Kennedy teve um relacionamento mais profundo de solidariedade cultural, aceitando uma crista do Herald Chefe da Irlanda Ele também visitou a casa de campo onde viviam os seus ancestrais antes de emigrar para a América e disse: “Este é o lugar onde tudo começou”.

Em 22 de dezembro de 2006, o Departamento de Justiça irlandes revelou documentos policiais que indicaram que Kennedy recebeu três ameaças de morte durante sua visita. Na época, foram consideradas falsas apesar de que a polícia irlandesa tomou medidas extraordinárias de segurança. 

A vida social e familiar

No casamento entre John e Jackie Kennedy, eles tiveram quatro filhos, incluindo a sua primeira filha, Arabella Kennedy, que morreu antes do nascimento em 1956. Sua segunda filha Caroline Kennedy, nascida em 1957, e depois teve seu primeiro filho, John F. Kennedy, Jr., nascido em 1960, que morreu em um acidente com seu avião em 1999. Seu último filho nasceu no mesmo ano do assassinato de Kennedy, Patrick Bouvier Kennedy, mas morreu dois dias após o nascimento devido a problemas respiratórios.

O Presidente é geralmente associado à cultura popular. Coisas como “Torcendo na Casa Branca” e o musical “Camelot” (um trabalho popular da Broadway) fazem parte da cultura de JFK. O álbum de comédia Vaughn Meader “Primeira Família” (“Family First”) – uma paródia do Presidente, a Primeira Dama, seus filhos e da administração Kennedy – vendeu cerca de 4 milhões de cópias. Em 19 de maio de 1962, Marilyn Monroe cantou para o presidente em sua festa de aniversário no Madison Square Garden. 

Por trás da fachada glamourosa, os Kennedys sofreram uma grande tragédia pessoal. Jacqueline sofreu um aborto natural em 1955 e em 1956 deu à luz sua filha já falecida, Arabella Kennedy. A morte de seu filho recém-nascido, Patrick Bouvier Kennedy, em agosto de 1963 foi outra grande perda. Desde a morte de Kennedy tem sido especulado em numerosas relações extraconjugais que ele teria mantido durante a sua presidência com mulheres como a atriz Marilyn Monroe e Mary Pinchot Meyer, membro do chamado “Jet-Set”.

Apesar da imagem idílica que o casamento dos Kennedy representou para grande parte do público, John Fitzgerald permaneceu por alguns anos com as relações extraconjugais. Barbara Gamarekian escreveu em JF Kennedy: An Unfinished Life, que “para JFK e seus assistentes não era incomum ter sexo com as meninas que trabalhavam na Casa Branca”. Felizmente para ele, o relacionamento bom com a mídia impediu que tais casos viessem a público. 

No levantamento intitulado “lista de pessoas mais admiradas do século XX” por Gallup, Kennedy ficou em terceiro lugar, perdendo apenas para Martin Luther King Jr e Madre Teresa de Calcutá. 

Morte

Assassinato

Durante uma visita política a cidade de Dallas, no estado americano do Texas, para iniciar sua campanha a reeleição, o Presidente Kennedy, enquanto desfilava pelas ruas da cidade em carro aberto, foi atingido por dois disparos às 12:30 do dia 22 de novembro de 1963. Ele foi declarado morto meia hora depois. 

Lee Harvey Oswald, o suposto assassino, foi preso em um teatro cerca de 80 minutos após o tiroteio. Oswald foi inicialmente acusado do assassinato de um policial de Dallas, JD Tippit, antes de ser acusado do assassinato do presidente. Oswald disse que não tinha matado ninguém, alegando que ele era um chamariz. Ele também seria assassinado, em 24 de novembro, por Jack Ruby. 

Em 29 de novembro, o novo Presidente, Lyndon B. Johnson, criou a Comissão Warren que foi presidida pelo Chefe de Justiça Earl Warren para investigar o assassinato. A comissão concluiu que Oswald agiu sozinho, mas as suas conclusões ainda estão em debate, tanto a nível acadêmico quanto à nível popular, com boa parte do povo americano acreditando que a morte do Presidente envolveu uma grande conspiração. O espião E. Howard Hunt foi acusado de participação no assassinato.

Em 1999, o ex-arquivista da KGB, Vasili Mitrokhin, indicou em que Hunt foi vítima de uma “medida ativa” soviética que criou uma teoria conspiratória disseminada para desacreditar a CIA e os Estados Unidos. De acordo com Mitrokhin, a KGB falsificou uma carta de Oswald para Hunt, implicando ambos como conspiradores e enviou cópias desta para “três dos mais entusiastas fãs de conspirações” em 1975. Mitrokhin indicou que tais cópias eram acompanhadas por uma falsa carta de uma fonte anônima, alegando que a original fora dada ao diretor do FBI, Clarence M. Kelley, a qual, aparentemente, estava sendo censurada. 

Funeral e enterro

Após o assassinato de Kennedy, seu corpo foi transferido para Washington, D.C., especificamente a Ala Leste da Casa Branca, onde permaneceu até o domingo seguinte. Neste dia, 24 de novembro, o caixão foi levado em uma carruagem puxada por cavalos da Casa Branca ao Capitólio e foi velado em público. Na segunda-feira, 25 de novembro, foi realizado o funeral de Estado, com a participação de mais de 90 representantes de vários países. Um dia após o assassinato, o novo Presidente Johnson declarou segunda-feira como um dia nacional de luto. Na parte da manhã houve uma missa na Catedral de St. Matthew, em Washington, e depois o corpo foi enterrado no Cemitério Nacional de Arlington com todas as honras. 

Legado

A televisão foi a principal fonte através da qual as pessoas foram informadas dos acontecimentos que rodearam o assassinato de John F. Kennedy. Jornais foram mantidos como souvenirs, em vez de fontes de notícias atualizadas. As três principais redes de televisão suspenderam seus programas habituais e noticiário continuamente a partir de 22 de novembro até 25 de novembro a cobrir o assunto. O funeral de Kennedy e o assassinato de Lee Harvey Oswald foram transmitido ao vivo por todo o país e para outras nações do mundo. O funeral de Estado foi o primeiro de três que ocorreram dentro de 18 meses, os outros dois foram o do General Douglas MacArthur e o do ex-presidente Herbert Hoover. 

O assassinato do presidente Kennedy e os mistérios não resolvidos que envolveram o acontecido, acabaram afetando a confiança das pessoas na política americana. Esta morte com o posterior assassinato de seu irmão, o senador e ex-Procurador Geral Robert F. Kennedy e o reverendo Martin Luther King Jr., formaram um trio que desilusionaram a população em termos de mudanças políticas e sociais. 

Muitos dos discursos de Kennedy (especialmente seu discurso de posse) são considerados como ícones. Apesar de seu período relativamente curto no gabinete e embora sem grandes mudanças introduzidas na legislação, os americanos tendem a votar em Kennedy como um dos melhores presidentes do país, colocando-o no mesmo nível como Abraham Lincoln, George Washington e Franklin D. Roosevelt. Alguns trechos do discurso de posse de Kennedy foram gravados em uma placa especial e colocado perto de seu túmulo no cemitério de Arlington. 

Ele recebeu postumamente o Prêmio “Pacem in Terris”. Este prêmio foi criado em honra da encíclica de 1963 o Papa João XXIII, que apela a todas as pessoas de boa vontade para assegurar a paz entre todas as nações. A frase em latim, Pacem in Terris, pode ser traduzido como “Paz na Terra”. 

Veja mais:

Memoriais

  • O Aeroporto Internacional de Nova York (anteriormente conhecido como Idlewild Airport) foi renomeado Aeroporto Internacional John F. Kennedy em 24 de dezembro de 1963 . Agora é popularmente conhecido como “JFK”.
  • O “John F. Kennedy Expressway” é a estrada principal de Chicago , foi rebatizado em homenagem a Kennedy por voto unânime do Conselho da Cidade de Chicago alguns dias após o assassinato do presidente .
  • O Boulevard John F. Kennedy em Tampa, Florida foi rebatizado em homenagem a Kennedy, em 1964, com o voto unânime do Conselho da Cidade de Tampa. Kennedy visitou Tampa em 18 de novembro de 1963, apenas quatro dias antes de seu assassinato. Sua carreata que 8 milhas abaixo a Grand Central Avenue para o coração da área empresarial, em Tampa.
  • O Centro de Lançamento de Operações da NASA em Cabo Canaveral foi renomeada John F. Space Center Kennedy . O mesmo Cabo Canaveral foi renomeado para Cabo Kennedy, mas isso foi revertido em 1973. • Um memorial em honra de Kennedy foi criada em Runnymede, Inglaterra , onde assinou a Carta Magna .
  • Um trecho da rodovia n º 95 de corrida em Maryland foi dedicado ao presidente Kennedy em 4 de novembro de 1963, oito meses antes de seu assassinato. Logo ele foi rebatizado de John F. Kennedy Memorial Highway.
  • O porta-aviões USS John F. Kennedy da Marinha foi nomeado em 30 de abril de 1964 , e estava em serviço até 23 de março de 2007 .
  • A Biblioteca e o Museu Presidencial John F. Kennedy abriu as suas portas em 1979 como a biblioteca presidencial de Kennedy oficial. • A Universidade John F. Kennedy abriu em Pleasant Hill, Califórnia, em 1964 como uma escola para educação de adultos.
  • O John F. Kennedy National Historic Site preserva a casa de Kennedy, em Brookline.

Na Universidade Harvard:

  • O Instituto de Política Harvard serve como um memorial ativo que promove os serviços públicos em seu nome.
  • Escola de Governo é conhecido como John F. Kennedy School of Government .
  • O Centro John F. Kennedy for the Performing Arts abriu em 1971 em Washington, DC como um memorial ao seu nome.
  • A ponte sobre o rio Ohio une Louisville, Kentucky e Jeffersonville, Indiana, que foi concluída quatro dias antes do assassinato de Kennedy Memorial Bridge foi renomeada John F. Kennedy.
  • O Philadelphia Municipal Stadium foi renomeado John F. Kennedy em 1964.
  • Kennedy foi postumamente condecorado com a Medalha Presidencial da Liberdade em 1963.
  • Desde 1964 , um retrato de Kennedy aparece na moeda de 50 centavos substituindo o anterior retrato de Benjamin Franklin.
  • O Yad Kennedy é um memorial que foi definido na crista da Floresta Jerusalém, a sudoeste de Jerusalém, perto Aminadabe.
  • Uma das Ilhas Salomão foi chamada de Ilha Kennedy.
  • Uma das torres residenciais da Universidade Amherst de Massachusetts chamava-se Kennedy Tower.
  • Em fevereiro de 2007, o nome de Kennedy e sua esposa foram adicionados pelos japoneses de sonda Kaguya com destino a lua, como parte das mensagens da Terra a partir da Sociedade Planetária.
  • O John F. Kennedy Special Warfare Center and School e Escola do Exército dos Estados Unidos foram nomeadas em sua honra por causa do apoio do presidente ao “Army Rangers” e Boinas Verdes .
  • Milhares de universidades dos EUA foram nomeadas em sua honra. A primeira escola foi o Kennedy Middle School, em Cupertino, Califórnia , enquanto vivia Kennedy (1960). Na semana após seu assassinato, as primeiras escolas renomeadas em sua honra foram o “Kennedy Elementary School”, em Butte, Montana e “John F. Kennedy Middle School”, em Long Island em Bethpage, Nova York. 
  • O parque Eyre Square Park na cidade de Galway City, Irlanda, foi renomeado de John F. Parque Kennedy, depois de sua visita em 1963.
  • Uma ideia que foi rejeitada foi o de mudar o nome do estado de West Virginia em homenagem a Kennedy. Emile J. Hodel, editor do Post-Herald de Beckley, escreveu no editorial perguntando: “Por que não mudar o nome de West Virginia para Kennedy? Ou talvez a Kennediana? Que maior sinal de respeito pode receber um homem que renomeou o estado mais apreciado após seu estado natal de Massachusetts, em sua honra?” 

Livros escritos por Kennedy

  • 1940 – Why England Sleept (Porque a Inglaterra adormeceu?) publicado como um relatório do livro de faculdade.
  • 1956 – Profiles in Courage (Perfis de Coragem) livro, quando eu estava no Senado sobre os senadores que enfrentou várias dificuldades. Para este livro, Kennedy ganhou o Prêmio Pulitzer de melhor biografia
  • 1964 – A Nation of Immigrants (Uma Nação de Imigrantes) em livro póstumo de imigração dos EUA. Interpretações de Kennedy no Cinema
  • PT 109 (1963): interpretado por Cliff Robertson
  • Acão Executiva (1973): sobre o assassinato; mediante uso de arquivos históricos
  • JFK (1991): sobre o assassinato; interpretado por Steve Reed
  • Malcolm X (1992): interpretado novamente por Steve Reed
  • Ruby (1992): interpretado por Gérard David e Kevin Wiggins
  • Forrest Gump (1994): interpretado por Jed Gillin
  • Thirteen Days (2000): interpretado por Bruce Greenwood
  • Timequest (2002): interpretado por Victor Slezak
  • Bubba Ho-Tep (2002): interpretado por Ossie Davis
  • The Kennedys (2011): interpretado por Greg Kinnear
  • The Butler (2013): interpretado por James Marsden
  • Jackie (2017): interpretado por Caspar Phillipson
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John Locke https://canalfezhistoria.com/john-locke/ https://canalfezhistoria.com/john-locke/#respond Mon, 17 Mar 2025 23:49:46 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6247 John Locke (Wrington, 29 de agosto de 1632 — Harlow, 28 de outubro de 1704) foi um filósofo inglês conhecido como o “pai do liberalismo”, sendo considerado o principal representante do empirismo britânico e um dos principais teóricos do contrato social. 

Locke ficou conhecido como o fundador do empirismo, além de defender a liberdade e a tolerância religiosa. Como filósofo, pregou a teoria da tábua rasa, segundo a qual a mente humana era como uma folha em branco, que se preenchia apenas com a experiência. Essa teoria é uma crítica à doutrina das ideias inatas de Platão, segundo a qual princípios e noções são inerentes ao conhecimento humano e existem independentemente da experiência.

Locke escreveu o Ensaio acerca do Entendimento Humano, onde desenvolve sua teoria sobre a origem e a natureza do conhecimento. Um dos objetivos de Locke é a reafirmação da necessidade do Estado e do contrato social e outras bases. Opondo-se à Hobbes, Locke acreditava que se tratando de Estado-natureza, os homens não vivem de forma bárbara ou primitiva. Para ele, há uma vida pacífica explicada pelo reconhecimento dos homens por serem livres e iguais. 

Biografia

Locke estudou medicina, ciências naturais e filosofia em Oxford, principalmente as obras de Bacon e Descartes. Em 1683, refugiou-se nos Países Baixos ao ser acusado de traição junto ao seu mentor politico o lorde Shaftesbury que era líder da oposição ao rei Carlos II no parlamento. Voltou à Inglaterra quando Guilherme de Orange subiu ao trono, em 1688. Em 1689-1690 publicou as suas primeiras obras: cartas sobre a tolerancia, ensaio sobre o entendimento humano, e os dois tratados sobre o governo civil. Faleceu em 28 de outubro de 1704, com 72 anos. Locke nunca se casou ou teve filhos. Encontra-se sepultado em All Saints Churchyard, High Laver, Essex na Inglaterra. 

Filosofia política

A filosofia política de Locke fundamenta-se na noção de governo consentido, pelos governados, da autoridade constituída e o respeito ao direito natural do ser humano – à vida, à liberdade e à propriedade. Influencia, portanto, as modernas revoluções liberais: Revolução Inglesa, Revolução Americana e a fase inicial da Revolução Francesa, oferecendo-lhes uma justificação da revolução e da forma do novo governo. Locke costuma ser incluído entre os empiristas britânicos, ao lado de David Hume e George Berkeley, principalmente por sua obra relativa a questões epistemológicas. Em ciência política, costuma ser classificado na escola do direito natural ou jusnaturalismo. 

Suas ideias ajudaram a derrubar o absolutismo na Inglaterra. Locke dizia que todos os homens, ao nascer, tinham direitos naturais – direito à vida, à liberdade e à propriedade. Para garantir esses direitos naturais, os homens haviam criado governos. Se esses governos, contudo, não respeitassem a vida, a liberdade e a propriedade, o povo tinha o direito de se revoltar contra eles.

A falha do Estado de Natureza levam à tal invasão da propriedade e, devido a tal, cria-se um contrato social para que haja transição do Estado de Natureza à Sociedade Política. As pessoas podiam contestar um governo injusto e não eram obrigadas a aceitar suas decisões. Locke ainda diz que se o governo viola ou deixa de garantir o direito dos indivíduos à propriedade o povo tem o direito a resistência ao governo tirano. O que define a tirania é o exercício do poder para além do direito, visando o interesse e não o bem público ou comum.

Outra constante na obra de Locke é do papel dos poderes na organização do Estado, sendo o legislativo o poder supremo, sobrepondo-se ao executivo e federativo. Assim, há no Estado um poder limitado, pois quando esses órgãos criados pelo consentimento do povo falha no atendimento dos fins a que foram concebidos perdem a razão de ser, dando aos cidadãos o direito de revolução. Locke apresenta ainda o trabalho como o fundamento originário da propriedade, tendo o seu valor corrompido com a introdução do ouro e do comércio, gerando a distribuição desproporcional das riquezas entre os homens. 

“o homem vive livre e em paz no seu estado de natureza”;

O contrato social, embora não se trate de um contrato físico histórico, como acontece com qualquer contrato, consistiria na transferência de poder dos indivíduos carecidos de proteção para um conjunto de instituições artificiais e avantajada de meios para punir os que violam a obediência a essas mesmas instituições. De forma generalizada, o contrato social é a relação entre o povo e seu governante. Há alguns pontos de contato entre o pensamento lockiano e hobbesiano.

Primeiro na condição natural em que o homem vivia inicialmente e na sua passagem para organização social através do contrato social. Porém, distingue-se por caracterizar esse estado natural do homem como pacífico, sendo o homem nele plenamente livre. Enquanto Hobbes coloca o medo da morte violenta como fonte da organização dos homens, Locke impõe a defesa da propriedade como principal fonte de formação do Estado. Esta propriedade já existia anteriormente à formação do Estado. 

Dedicou-se também à filosofia política. No Primeiro Tratado sobre o Governo Civil, critica a tradição que afirmava o direito divino dos reis, declarando que a vida política é uma invenção humana, completamente independente das questões divinas. No Segundo Tratado sobre o Governo Civil, expõe sua teoria do Estado liberal e a propriedade privada, onde ele caracteriza a propriedade privada como tudo a que você atribui um valor e tenha conquistado por direito. É algo legítimo e todo indivíduo tem direito a tais conquistas, e assim como Locke sugeriu, o Estado teria uma função primordial de proteger esses direitos. 

Para Bernard Cottret, biógrafo de João Calvino, contrastando com a história trágica da brutal repressão aos protestantes na França no século XVI e a própria intolerância e zelo religioso radical de Calvino em Genebra, o nome de John Locke está intimamente associado à tolerância. Uma tolerância que os franceses aprenderam a valorizar apenas na década de 1680, quase às portas do Iluminismo.

Como Voltaire afirmou, a tolerância é, para os franceses, um artigo de importação. Bernard Cottret afirma: A tolerância é o produto de um espaço geográfico específico, nomeadamente o noroeste da Europa. Ou seja: a Inglaterra e os Países Baixos. E ela é, no final, em especial, a obra de um homem – John Locke – a quem o século XVII dedica um culto permanente.

Dentre os escritos políticos, a obra mais influente de Locke foi Dois Tratados sobre o Governo (1689). O Primeiro Tratado é um ataque ao patriarcalismo, e o segundo introduz uma teoria da sociedade política ou sociedade civil baseada nos direitos naturais e no contrato social. Segundo Locke, todos são iguais, e a cada um deverá ser permitido agir livremente desde que não prejudique nenhum outro. Com este fundamento, deu continuidade à justificação clássica da propriedade privada, ao declarar que o mundo natural é a propriedade comum de todos, mas que qualquer indivíduo pode apropriar-se de uma parte dele, ao acrescentar seu trabalho aos recursos naturais.

Este tratado também introduziu a chamada “cláusula lockeana “, que resume a teoria da propriedade-trabalho de John Locke: os indivíduos têm direito de se apropriar da terra em que trabalham desde isso não cause prejuízo aos demais. O direito de se apropriar privadamente de parte da terra comum a todos seria pois limitado pela consideração de que ainda houvesse bastante [terra] igualmente boa e mais do que aqueles ainda não providos pudessem usar. Em outras palavras, que o indivíduo não pode simplesmente apropriar-se dos recursos naturais mas também tem que considerar o bem comum. 

No âmbito das Relações Internacionais, Locke aponta que estas fazem parte do estado de natureza, mas isso não quer dizer que há uma falta de legalidade (deveres e direitos) entre as comunidades políticas no cenário internacional. Sendo assim, o poder de fazer guerra não é sem restrições, obedecendo às diretrizes da política interna, que trata dos interesses locais dos cidadãos, quanto à Lei Natural, caracterizada pela garantia da preservação da comunidade civil e da humanidade. 

Epistemologia

Locke é considerado o protagonista do empirismo, o qual afirma que todo conhecimento e aprendizagem decorre da experiência. Ele apresenta uma crítica às ideias inatas através da teoria da tábula rasa… Com essa teoria Locke afirma que o ser humano nasce uma “folha em branco”, e é moldado pelas experiências, tentativas e erros. 

Então de acordo com Locke o Empirismo busca compreender as coisas de uma forma metodológica, sistemática e crítica. Esse pensamento apresentado por Locke se assemelha ao do pensador Nicolau Maquiavel quando o mesmo se refere a Verità effetuale (Verdade Efetiva das Coisas), que se trata de analisar as coisas como elas realmente são.

No Ensaio acerca do Entendimento Humano (An Essay concerning Human Understanding), de 1690, Locke defende que a experiência é a fonte do conhecimento, que depois se desenvolve por esforço da razão. Outra obra filosófica notável é Pensamentos sobre a Educação, publicado em 1693. As fontes principais do pensamento de Locke são: o nominalismo escolástico, cujo centro era Oxford; o empirismo inglês da época; o racionalismo defendido por René Descartes e a filosofia de Malebranche. 

A tolerância

Como filósofo político, Locke pode ser considerado um precursor da democracia liberal, dada a importância que atribui à liberdade e à tolerância. O que estava em jogo era, obviamente, a tolerância religiosa, contra os abusos do absolutismo. De todo modo, suas ideias fundamentaram as concepções de democracia moderna e de direitos humanos tal como hoje é expressa nas cartas de direitos. 

Locke, escrevendo a Carta sobre a Tolerância (1689–1692), devido a repercussão das guerras religiosas na Europa, formulou um raciocínio clássico para a tolerância religiosa. Os três principais argumentos eram: (1) Os juízes da terra, o estado em particular e os seres humanos em geral, não podem avaliar de forma confiável as afirmações de verdade de pontos de vista religiosos divergentes; (2) Mesmo que pudessem, aplicar uma única “verdadeira religião” não teria o efeito desejado, porque a crença não pode ser compelida pela violência; (3) A coerção da uniformidade religiosa levaria a mais distúrbios sociais do que permitir a diversidade. 

No que diz respeito à sua posição sobre a tolerância religiosa, Locke foi influenciado por teólogos batistas como John Smyth e Thomas Helwys, que havia publicado obras exigindo a liberdade de consciência no início do século XVII. O teólogo batista Roger Williams fundou sua colônia em Rhode Island em 1636, a qual combinou uma constituição democrática com liberdade religiosa ilimitada.

Sua obra The Bloody Tenent of Persecution for Cause of Conscience (1644), que foi amplamente lido em seu país natal, foi um apelo apaixonado pela liberdade religiosa absoluta e a separação total da igreja e do estado. A liberdade de consciência teve alta prioridade na agenda teológica, filosófica e política., desde que Martin Luther recusou-se a renegar suas crenças antes do Dieta do Sacro Império Romano em Worms em 1521, a menos que ele seja provado falso pela Bíblia. 

Entretanto, para John Locke, essa liberdade não seria aplicável ao “homem primitivo”, pois que os povos ditos primitivos não estariam associados ao restante da humanidade no uso do dinheiro e poderiam ser equiparados a bestas de caça ou bestas selvagens, (o que forneceu a base ideológica para a tomada das terras e o extermínio de populações indígenas) nem aos papistas (católicos, na expressão dos protestantes), que seriam como “serpentes, dos quais nunca se conseguiria que abrissem mão de seu veneno com um tratamento gentil”. 

Reassalte-se que tal atitude em relação aos indígenas não era verificada em pensadores anteriores, como Bartolomé de las Casas e Montaigne, que, ao se referir às populações extra-européias, dizia “Acho que não há nessa nação nada de bárbaro e de selvagem, pelo que me contaram. A não ser porque cada qual chama de barbárie aquilo que não é de seu costume”. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 307. A tolerância não se aplicava tampouco as camadas que detinham menos recursos econômicos, para às quais Locke defendia algumas medidas severas, tais como: 

  • Direcionar para o trabalho as crianças a partir de três anos, das famílias que não têm condições para alimentá-las. 
  • Supressão das vendas de bebidas não estritamente indispensáveis e das tabernas não necessárias. 
  • Obrigar os mendigos a carregar um distintivo obrigatório, para vigiá-los, por meio de um corpo de espantadores de mendigos, e impedir que possam exercer sua atividade fora das áreas e horários permitidos. 
  • Os que forem surpreendidos a pedir esmolas fora de sua própria paróquia e perto de um porto de mar devem ser embarcados coercitivamente na marinha militar, outros pedintes abusivos devem ser internados em uma casa de trabalhos forçados, na qual o diretor não terá outra remuneração além da renda decorrente do trabalho dos internados. 
  • Os que falsificarem um salvo-conduto para fugir de uma casa de trabalho, devem ser punidos com um corte de orelhas e, na hipótese de reincidência, com a deportação para as plantações, na condição de criminosos. 

A questão da escravidão

Locke é considerado pelos seus críticos como sendo “o último grande filósofo que procura justificar a escravidão absoluta e perpétua”. 

Locke sustentava a escravidão pelo contrato de servidão em proveito do vencedor na guerra, no chamado “estado de guerra”, no qual alguém que poderia ser morto, assume o ônus de servir em troca de viver. No, Segundo Tratado sobre Governo Civil, Locke diz: 

“Ele [o homem] não pode separar-se dela [da liberdade], exceto por aquilo que o faça perder, ao mesmo tempo, sua preservação e sua vida, pois um homem, não tendo poder sobre sua própria vida, não pode, por um tratado ou por seu próprio consentimento, escravizar-se a quem quer que seja, nem sujeitar-se ao domínio arbitrário e absoluto exercido por outra pessoa, ou mesmo dar cabo de sua vida quando tiver vontade. Ninguém pode outorgar mais poder do que a própria pessoa possui; e aquele que não pode dar fim à própria vida, não pode outorgar tal poder a qualquer outra pessoa.

Em verdade, se o homem da fim à própria vida, por algum ato que clame por morte, aquele por quem ele perde a vida (no caso da pessoa tê-lo em seu poder) pode demorar a tirá-la e usá-la em serviço próprio, não o prejudicando por isso; pois, no momento em que considerar que a provação de ser escravo excede o valor de sua vida, ao resistir à vontade de seu amo, irá sentir-se atraído a ocasionar a si mesmo a morte que deseja.”

Nessa citação, Locke argumenta que: somente os escravos tomados de uma certa maneira, por certas pessoas podem ser considerados justamente escravos. Locke contribuiu para a configuração da Constituição da Província da Carolina, em que uma de suas normas constitucionais dizia: “(…) todo homem livre da Carolina deve ter absoluto poder e autoridade sobre os escravos negros seja qual for a opinião e religião.” Seus críticos ainda afirmam que ele investiu no tráfico de escravos negros, enquanto acionista da Royal African Company. 

Identidade pessoal

Locke acrescentou no capítulo XXVII do Livro II, “Da identidade e diversidade”, a sua visão de identidade e identidade pessoal para a segunda edição do Ensaio. A sua consideração de identidade pessoal acabou sendo revolucionária. Seu relato sobre a identidade pessoal está integrada a uma explicação geral de identidade. 

Nesta explicação geral de identidade Locke faz uma distinção entre a identidade do átomo, de conjunto de átomos e das coisas vivas. Cada átomo individual é o mesmo no tempo, e permanece mesmo enquanto o tempo passa. Assim, não há nenhum problema sobre a identidade dos átomos. Massas de átomos são individuadas por seus átomos constituintes independentemente da forma como eles são organizados. As coisas vivas, em contraste, são individuadas por sua organização funcional.

Esta organização é instanciada a qualquer momento por um conjunto de átomos. Mas a organização pode persistir através de mudanças nas partículas que a compõem – pelo menos uma mudança gradual, que continua com as funções que a organização desempenha. Claramente a mais importante dessas funções é a continuação da mesma vida. É a continuação da mesma organização funcional e, portanto, a mesma vida que é o critério de igualdade para a identidade de ser vivo, seja ele um carvalho ou um cavalo.

Locke afirma que o homem é um animal e, portanto, individualizado como outros seres vivos. Então, homem se refere a um corpo vivo de uma forma particular. Ele defende a sua própria definição, que envolve a distinção entre “homem” e “pessoa”, usando uma variedade de experiências de pensamento e deduzir consequências inaceitáveis a partir de definições concorrentes.

Ele aponta, por exemplo, que enquanto aqueles que individualizam o homem exclusivamente em termos de “posse de uma alma” podem explicar a igualdade do homem, da infância à velhice, se aceitarem uma doutrina da reencarnação, a sua definição requer que a mesma alma em diferentes organismos seja o mesmo homem, tanto quando o homem-criança e homem-velho. Se a doutrina da reencarnação permite que a alma de um homem para renascer no corpo de um animal, como um porco, se soubéssemos que a alma de um homem estava em um dos nossos porcos, seria necessário que chamemos o porco um homem. 

Locke nos da exemplos de um papagaio racional falando com uma criatura que tem a forma de um homem, mas não pode se envolver em um discurso racional como um experimento mental que demonstra que o discurso racional não é nem uma condição “necessária ou suficiente” para ser um homem. Se o homem é um corpo vivo, um animal com um determinada forma, então, pergunta Locke, o que é uma pessoa? Ele responde sua própria pergunta: Uma pessoa é um ser pensante inteligente que pode conhecer a si mesmo como a mesma coisa pensante em diferentes tempos e lugares. 

Locke faz a distinção entre o homem e pessoa. Essa distinção aparentemente resolve o problema da ressurreição dos mortos. O problema, para Locke, começa com textos bíblicos afirmando que teremos o mesmo corpo na ressurreição como nós temos nesta vida. É claro que há problemas com a suposição de que na ressurreição uma pessoa será a mesma pessoa; e vários estudiosos vem debatendo tal questão, por exemplo, Robert Boyle, em seu ensaio, “Algumas Considerações físico-teológica sobre a possibilidade da ressurreição” se aprofunda em alguns desses enigmas.

Locke diz que o caso do príncipe e do sapateiro mostra a resolução do problema da ressurreição. Ele imagina o que aconteceria se um príncipe passasse a viver como um humilde sapateiro. Dessa forma interroga-se o que aconteceria se introduzisse as características mentais do príncipe no corpo de um sapateiro. Supostamente, o corpo do sapateiro ficaria com a memória, o conhecimento e os atributos pessoais do príncipe, mas apesar de aparentemente ser um sapateiro, seria responsável pelas ações do príncipe. 

Nesse exemplo, Locke levanta um questionamento a ser explorado sobre a identidade pessoal de uma pessoa. …poderia caso a alma de um príncipe, levando consigo a consciência da vida passada do príncipe, entrar e informar o organismo de um sapateiro, tão logo abandonado por sua própria alma, qualquer um vê que ele seria a mesma pessoa com o príncipe, responsáveis apenas pelas ações do príncipe: mas quem diria que era o mesmo homem? 

Locke demonstra que o resultado desta troca, é que o príncipe ainda considerar-se o príncipe, mesmo que ele se encontra em um corpo totalmente novo. O experimento distingue entre o conceito de ser humano e de ser pessoa, indicando que o conceito de um homem em alturas diferentes está ligado ao seu corpo, enquanto que o conceito de pessoa está ligado à sua consciência passada e presente. A distinção de Locke entre o “homem” e a “pessoa” torna possível para a mesma pessoa resida em um corpo diferente na ressurreição e ainda assim ser a mesma pessoa. 

Locke enfoca no príncipe com todos os seus pensamentos principescos, porque, na sua opinião, é a consciência que é crucial para uma recompensa e/ou uma punição que deve ser dispensada no dia do Juízo Final. Neste capítulo sobre identidade (Parte IV, Secção II e VI), Locke também está fazendo uma distinção entre a consciência e a alma. 

Embora a distinção entre o homem e a pessoa seja controversa, a distinção de Locke entre a alma (a substância que pensa em nós) e consciência é ainda mais radical. Locke afirma que a consciência pode ser transferida de uma alma para outra, e que a identidade pessoal vai junto com consciência. Na seção XII do Capítulo: De Identidade e Diversidade, ele levanta a questão: “… Se a mesma substância que pensa for mudada, ela pode ser a mesma pessoa, ou ela permanecendo a mesma, pode ser uma pessoa diferente.”

Resposta de Locke para ambos as questões é afirmativa. Ele afirma que a Consciência pode ser transferida de uma substância que pensa para outra e, assim, enquanto a alma é alterada, mas a consciência permanece a mesma e, assim, a identidade pessoal também é preservada através da mudança de uma alma para outra alma. E, por outro lado, a consciência pode ser perdida como no esquecimento total, enquanto a substância alma ou pensamento continua o mesmo. Nestas condições, há a mesma alma, mas uma pessoa diferente. 

As afirmações de Locke resumem-se na alegação de que a mesma alma (ou substância pensante) não é “necessária” nem é “suficiente” para a identidade pessoal ao longo do tempo. Os argumentos de Locke são desenvolvidos por analogia com a organização funcional dos animais, que é preservada através de mudanças graduais nos átomos que instanciar essa organização a qualquer momento. Assim, em um determinado momento no tempo deve haver uma alma ou substância pensante, mas com o tempo não há necessidade que uma pessoa tenha a mesma alma para preservar a identidade pessoal.

As distinções (“homem e pessoa” e “alma e consciência”) criadas por Locke tem implicações em julgamentos criminais no modo como pessoas com insanidade mental são julgadas, uma vez que um ser humano pode ter várias falhas na sua consciência, sem o estabelecimento de memórias. Deste modo, ações executadas estando a consciência separada do corpo ou alma, a identidade da pessoa que efetuou tal ação é posta em causa pelo conceito defendido por Locke. 

Religião

Alguns acadêmicos têm observado que as convicções políticas de Locke são derivadas de sua visão religiosa. A trajetória religiosa de Locke inicia-se no calvinismo trinitaniano, mas com a vez das Reflexões (1695) defendeu não apenas visões socinianistas mas também a Cristiologia Sociniana, com a crença na pré-existência de Cristo. Contudo Arthur W. Wainwright (Oxford, 1987) notou a interpretação de um versículo bíblico de Efésios 1 em uma edição póstuma de Paráfrase é diferente do que socinianos como John Bilde, que pode-se levar a crer que Locke possuia uma visão ariana. 

Imaterialidade da alma

Com sua estimativa dos limites do entendimento humano, Locke fez algumas reivindicações que surpreenderam seus contemporâneos. No livro IV 3, 6 sugere que, dada a nossa ignorância das substâncias, era possível que Deus pudesse fazer a matéria se adequar eliminando o pensar. Ele sugeriu que não era mais além de nossa compreensão que os movimentos do corpo pudessem dar origem ao prazer e à dor do que uma alma imaterial poder sentir dor após a ocorrência de algum movimentos no corpo. Ele sugeriu que a imaterialidade da alma não era particularmente importante. Em uma passagem do Livro IV, capítulo 2, seção 6, Locke escreve: 

“Todos os grandes fins da moralidade e da religião ficam suficientemente assegurados [mesmo] sem provas filosóficas da materialidade da alma; uma vez que é evidente que aquele que, num primeiro momento nos fez seres subsistia aqui, Seres sensatos e inteligentes, e por vários anos continua conosco em tal estado, pode e vai nos restaurar a um estado como o de estado de Sensibilidade em outro Mundo, e fazer-nos lá capazes de receber a retribuição que tem destinada aos homens, de acordo com os feitos nesta vida.

E, portanto, esta não é uma poderosa necessidade para determinar de uma forma ou de outra, como alguns superzelosos favoráveis ou contra a imaterialidade da alma, seguem em frente para fazer o mundo acreditar”. 

Estas sugestões foram muitas vezes tomadas mais intensamente que o previsto. Muitos dos críticos de Locke tinham suspeitas de que Locke tinha tendências materialistas. Ao invés das conclusões céticas sobre substância imaterial contra a substância material que Locke está claramente defendendo, seus comentários eram, por vezes, tratado como propondo que a matéria pode e faz o pensar. 

Veja mais:

Samuel Clarke, por exemplo, um estudante de Newton e um teólogo anglicano ortodoxo, engajarem em um debate por panfleto público de 1706 a 1708 com Anthony Collins sobre este assunto. Clarke procurou mostrar que a partir das ideias somente seria possível mostrar que a matéria pensamento implicaria uma contradição. Se está certo Clarke, a interpretação de Locke seria errado. Houve uma explosão de refutações da alegação de que a matéria pode pensar e a discussão desta questão durou pelo menos até perto do fim do século XVIII.

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Josef Stalin https://canalfezhistoria.com/josef-stalin/ https://canalfezhistoria.com/josef-stalin/#respond Mon, 17 Mar 2025 23:44:24 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6243 Josef Stalin (Gori, 18 de dezembro de 1878 – Moscou, 5 de março de 1953) foi um revolucionário comunista e político soviético de origem georgiana. Governou a União Soviética de meados da década de 1920 até sua morte em 1953, servindo como Secretário Geral do Partido Comunista da URSS de 1922 a 1952, e como primeiro-ministro de seu país de 1941 a 1953. Inicialmente presidindo um estado unipartidário oligárquico que governava pelo sistema de pluralidade, tornando-se de facto o ditador da União Soviética na década de 1930. Ideologicamente ligado à interpretação leninista do marxismo, Stalin ajudou a formalizar essas ideias como marxismo-leninismo, enquanto suas próprias políticas ficaram conhecidas como stalinismo. 

Nascido em uma família pobre em Gori, Império Russo, iniciou sua carreira revolucionária após juntar-se ao Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR) quando jovem. Lá, editou o jornal do partido, o Pravda, e levantou fundos para a facção bolchevique de Vladimir Lenin por meio de roubos, sequestros e redes de proteção. Repetidamente preso, sofreu vários exílios internos. Depois que os bolcheviques tomaram o poder na Rússia durante a Revolução de Outubro de 1917, juntou-se ao comitê Politburo do partido.

Serviu na Guerra Civil Russa antes de supervisionar o criação da União Soviética em 1922. Quando Lenin adoeceu e morreu em 1924, Stalin gradualmente assumiu a liderança do país. Durante seu governo, o “Socialismo em um Único País” tornou-se um princípio central dos dogmas do partido, e a Nova Política Econômica de seu antecessor foi substituída por uma economia centralizada. Sob o sistema do plano quinquenal, o país passou por uma coletivização e rápida industrialização, mas sofreu interrupções significativas na produção de alimentos que contribuíram para a fome de 1932-1933.

Para erradicar aqueles considerados “inimigos da classe trabalhadora”, instituiu o “Grande Expurgo”, no qual mais de um milhão de pessoas foram presas e pelo menos 700 000 executados entre 1934 e 1939.

Seu governo promoveu o marxismo-leninismo no exterior através da Internacional Comunista e apoiou movimentos antifascistas por toda a Europa durante a década de 1930, particularmente na Guerra Civil Espanhola. Em 1939, assinou um pacto de não agressão com a Alemanha Nazista, resultando em uma invasão conjunta da Polônia. Apesar dos contratempos iniciais, o Exército Vermelho repeliu a incursão alemã e capturou Berlim em 1945, pondo fim à Segunda Guerra Mundial na Europa. Os soviéticos anexaram os estados bálticos e ajudaram a estabelecer governos alinhados em toda a Europa Central e Oriental, China e Coréia do Norte.

A União Soviética e os Estados Unidos emergiram da guerra como as duas superpotências mundiais. Tensões surgiram entre o Bloco Oriental apoiado pelos soviéticos e o Bloco Ocidental apoiado pelos americanos, dando origem à Guerra Fria. Stalin conduziu seu país através da reconstrução no período pós-guerra, durante a qual desenvolveu uma arma nuclear em 1949. Nestes anos, o país experimentou outra grande fome e uma campanha antissemita que atingiu o auge no complô dos médicos. Stalin morreu em 1953 e acabou sendo sucedido por Nikita Khrushchov, que denunciou seu antecessor e iniciou um processo de desestalinização em toda a sociedade soviética. 

Amplamente considerado uma das figuras mais significativas do século XX, sua imagem foi tema de um culto à personalidade generalizado dentro do movimento marxista-leninista internacional, onde foi considerado um defensor do socialismo e da classe trabalhadora. Desde a dissolução da União Soviética em 1991, manteve popularidade na Rússia e na Geórgia como um líder vitorioso em tempos de guerra que estabeleceu a União Soviética como uma grande potência mundial. Por outro lado, seu governo totalitário tem sido amplamente condenado por supervisionar repressões em massa, limpeza étnica, deportações, centenas de milhares de execuções e fomes que causaram a morte de milhões de pessoas. 

Primeiros anos

Infância e educação: 1878–1899

Stalin nasceu na cidade georgiana de Gori em 18 de dezembro de 1878. Era filho de Besarion Jughashvili e Ekaterine “Keke” Geladze, que casaram-se em maio de 1872 e perderam dois filhos na infância antes dele nascer. Eles eram da etnia georgiana e Stalin cresceu falando a língua local. Gori era então parte do Império Russo, e era o lar de uma população de 20 000 habitantes, a maioria dos quais era georgiana, mas com minorias armênias, russas e judias. Stalin foi batizado em 29 de dezembro. Foi apelidado de “Soso”, um diminutivo de “Ioseb”. 

Besarion era sapateiro e possuía sua própria oficina; inicialmente teve sucesso financeiro, mas depois entrou em declínio. A família se viu vivendo na pobreza, passando por nove diferentes quartos alugados em dez anos. Tornou-se um alcoólatra e bebendo batia em sua esposa e filho. Para escapar do relacionamento abusivo, Keke pegou Stalin e mudou-se para a casa de um amigo da família, o padre Christopher Charkviani. Ela trabalhava como faxineira e lavadora de roupas para famílias locais que simpatizavam com sua situação. Keke estava determinada a mandar o filho para a escola, algo que ninguém da família havia conseguido antes.

No final de 1888, com 10 anos, Stalin foi matriculado na Escola da Igreja de Gori. Isso normalmente era reservado aos filhos do clero, embora Charkviani garantiu que o menino recebesse uma vaga. Stalin se destacou academicamente, exibindo talentos em aulas de pintura e teatro, escrevendo sua própria poesia e cantando como um menino de coro. Entrou em muitas lutas, e um amigo de infância notou que ele “era o melhor, mas também o mais nojento aluno” da turma.

Enfrentou vários problemas graves de saúde; em 1884 contraiu varíola e ficou com cicatrizes na face. Aos 12 anos foi gravemente ferido após ser atingido por uma fáeton, o que foi a provável causa de uma incapacidade no braço esquerdo ao longo da vida.

Por recomendação de seus professores, Stalin seguiu para o Seminário Espiritual em Tíflis. Matriculou-se na escola em agosto de 1894, habilitado por uma bolsa de estudos que lhe permitiu estudar com uma taxa reduzida. Aqui juntou-se a 600 padres estagiários que ingressaram no seminário. Foi novamente bem sucedido academicamente e ganhou notas altas. Continuou escrevendo poesia; cinco de seus poemas foram publicados sob o pseudônimo de “Soselo” no jornal de Ilia Chavchavadze, Iveria (‘Geórgia’).

Tematicamente, eles tratavam de temas como natureza, terra e patriotismo. De acordo com o historiador Simon Sebag Montefiore, tornaram-se “clássicos georgianos menores”, e foram incluídos em várias antologias da poesia do país nos anos vindouros. Quando ficou mais velho, perdeu o interesse em seus estudos; suas notas caíram e ele foi repetidamente confinado a uma cela por comportamento rebelde. Os professores reclamavam que ele se declarava ateu, conversava na sala de aula e se recusava a tirar o chapéu para os monges. 

Juntou-se a um clube de livros proibidos ativo na escola; foi particularmente influenciado pelo romance pró-revolucionário Que Fazer? (1863), de Nikolai Tchernichevski. Outra obra que o influenciou foi O Patricida, de Alexander Kazbegi, do qual adotou o apelido “Koba” do protagonista bandido. Também leu O Capital (1867), do teórico alemão Karl Marx. Dedicou-se à teoria social e política do marxismo, que estava em ascensão na Geórgia, uma das várias formas de socialismo que se opunham às autoridades czaristas do império.

À noite assistia reuniões secretas de trabalhadores e foi apresentado a Silibistro “Silva” Jibladze, o fundador marxista do Mesame Dasi (‘Terceiro Grupo’), um grupo socialista georgiano. Em abril de 1899, Stalin deixou o seminário e nunca mais voltou, embora a escola o encorajasse. 

Partido Operário Social-Democrata Russo: 1899–1904

Em outubro de 1899, Stalin começou a trabalhar como meteorologista em um observatório de Tíflis. Atraiu um grupo de apoiadores através de suas aulas de teoria socialista, e co-organizou uma reunião secreta de trabalhadores para o Dia do Trabalhador de 1900, na qual encorajou com sucesso muitos dos homens a entrar em greve. A essa altura, a polícia secreta do império — a Okhrana — estava ciente de suas atividades no meio revolucionário da cidade.

Tentaram prendê-lo em março de 1901, mas ele escapou e se escondeu, vivendo das doações de amigos e simpatizantes. Permanecendo oculto, ajudou a planejar uma manifestação para o primeiro de maio de 1901, na qual 3 000 manifestantes entraram em confronto com as autoridades. Continuou evitando a prisão usando pseudônimos e dormindo em diferentes apartamentos. Em novembro daquele ano, foi eleito para o Comitê de Tíflis do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), um partido marxista fundado em 1898. 

Naquele mês viajou para a cidade portuária de Batumi. Sua retórica militante provou ser divisora entre os marxistas da cidade, alguns dos quais suspeitavam que ele poderia ser um “agente provocador” trabalhando para o governo. Encontrou emprego no armazém da refinaria Rothschild, onde co-organizou duas greves de trabalhadores. Depois que vários líderes de greve serem presos, ajudou a organizar uma manifestação pública em massa que levou à tomada da prisão; tropas atiraram contra os manifestantes, 13 dos quais foram mortos. Organizou uma segunda manifestação em massa no dia do funeral, antes de ser preso em abril de 1902.

Inicialmente foi detido na prisão de Batumi, e mais tarde foi transferido para a de Kutaisi, mais segura. Em meados de 1903 foi condenado a três anos de exílio no leste da Sibéria. Stalin deixou Batumi em outubro, chegando à pequena cidade siberiana de Novaya Uda no final de novembro. Lá, ele morava em uma casa de camponês de dois cômodos, dormindo na despensa do prédio. Stalin fez duas tentativas de fuga; no primeiro chegou a Balagansk antes de retornar devido à úlcera de frio. Sua segunda tentativa foi bem sucedida e ele chegou em Tíflis. Lá, co-editou um jornal marxista local, o Proletariatis Brdzola (‘Luta Proletária’), com Filipp Makharadze.

Ele pediu que o movimento marxista do país se separasse de seu colega russo, resultando em vários membros do POSDR acusando-o de manter opiniões contrárias ao etos do internacionalismo marxista e pedindo sua expulsão do partido; logo ele retratou suas opiniões. Durante seu exílio, o POSDR se dividiu entre os bolcheviques de Vladimir Lenin e os mencheviques de Julius Martov. Stalin detestou muitos dos mencheviques da Geórgia e alinhou-se aos bolcheviques. Embora tenha estabelecido uma fortaleza bolchevique na cidade mineira de Chiatura, o movimento continuou a ser uma força minoritária na cena revolucionária georgiana dominada pelos mencheviques. 

Revolução de 1905 e suas consequências: 1905–1912

Em janeiro de 1905, tropas do governo massacraram manifestantes em São Petersburgo. A agitação logo se espalhou pelo Império Russo no que veio a ser conhecido como a Revolução de 1905. A Geórgia foi uma das regiões particularmente afetadas. Stalin esteve em Baku em fevereiro, quando eclodiu a violência étnica entre armênios e azeris; pelo menos 2 000 foram mortos. Criticou publicamente os “pogroms contra judeus e armênios” como parte das tentativas do czar Nicolau II de “fortalecer seu desprezível trono”.

Formou um pelotão de batalha bolchevique que usou para tentar manter separadas as facções étnicas de Baku em guerra; também usou o desassossego como uma disfarce para roubar equipamentos de impressão. Em meio à crescente violência em toda a Geórgia, formou outros Esquadrões de Batalha, com os mencheviques fazendo o mesmo. Os Esquadrões de Stalin desarmaram a polícia e as tropas locais, invadiram arsenais do governo e captaram recursos por meio de esquemas de proteção em grandes empresas e minas locais. Eles lançaram ataques contra as tropas cossacas do governo e os pró-czarismo Centenas Negras, coordenando algumas de suas operações com a milícia menchevique. 

Em novembro, os bolcheviques georgianos elegeram Stalin como um de seus delegados em uma conferência do grupo em São Petersburgo. Na chegada conheceu a esposa de Lenin, Nadejda Krupskaia, que o informou que o local havia sido transferido para Tampere, no Grão-Ducado da Finlândia. Na conferência, Stalin conheceu Vladimir Lenin. Embora considerasse Lenin com profundo respeito, manifestou seu desacordo com a visão de que os bolcheviques deveriam apresentar candidatos para a próxima eleição para a Duma de Estado; Stalin via o processo parlamentar como uma perda de tempo.

Em abril de 1906, participou do IV Congresso do POSDR em Estocolmo; esta foi sua primeira viagem fora do Império Russo. Na conferência, o POSDR — então liderado por sua maioria menchevique — concordou que não levantaria fundos usando assalto à mão armada. Lenin e Stalin discordaram dessa decisão e depois discutiram em particular como poderiam continuar os roubos à causa bolchevique.

Stalin casou-se com Ekaterina Svanidze em uma cerimônia na igreja em Senaki em julho de 1906. Em março de 1907 ela deu à luz um filho, Yakov. Naquele ano — segundo o historiador Robert Service — Stalin se estabeleceu como “o principal bolchevique da Geórgia”. Participou do V Congresso do POSDR, realizado em Londres entre maio e junho de 1907. Depois de voltar a Tíflis, organizou o roubo de uma grande entrega de dinheiro ao Banco Imperial em junho de 1907.

Sua gangue emboscou o comboio armado na Praça de Erevã com armas de fogo e bombas caseiras. Cerca de 40 pessoas foram mortas, mas toda a sua gangue escapou viva. Após o assalto, estabeleceu-se em Baku com sua esposa e filho. Lá, mencheviques confrontaram Stalin sobre o roubo e votaram em expulsá-lo do partido, mas ele não tomou conhecimento deles. 

Em Baku, assegurou a dominação bolchevique do ramo local do POSDR e editou dois jornais do partido, Bakinsky Proletary e Gudok (“Apito”). Em agosto de 1907, ele participou do VII Congresso da Segunda Internacional — uma organização socialista internacional — em Stuttgart, na Alemanha. Em novembro sua esposa morreu de tifo e ele deixou seu filho com a família em Tíflis.

Em Baku, ele havia reagrupado sua gangue, a Roupa, que continuava a atacar os Centenas Negras e aumentava as finanças, executando esquemas de proteção, falsificando moeda e realizando roubos. Eles também sequestraram os filhos de várias figuras ricas para extrair dinheiro do resgate. No início de 1908, viajou para a cidade suíça de Genebra para se reunir com Lenin e o proeminente marxista russo Gueorgui Plekhanov, embora o último o exasperasse. 

Em março de 1908 foi preso e internado na prisão de Bailov. Lá, ele liderou os bolcheviques presos, organizou grupos de discussão e ordenou o assassinato de informantes suspeitos. Foi condenado a dois anos de exílio na aldeia de Solvychegodsk, Oblast de Vologda, chegando lá em fevereiro do ano seguinte. Em junho, ele escapou da aldeia e chegou a Kotlas disfarçado de mulher e de lá para São Petersburgo. Em março de 1910, ele foi preso novamente e enviado de volta a Solvychegodsk.

Lá ele teve casos com pelo menos duas mulheres; sua proprietária, Maria Kuzakova, mais tarde deu à luz seu segundo filho, Konstantin. Em junho de 1911, Stalin recebeu permissão para se mudar para Vologda, onde permaneceu por dois meses, tendo um relacionamento com Pelageya Onufrieva. Fugiu para São Petersburgo, onde foi preso em setembro de 1911 e condenado a mais três anos de exílio em Vologda. 

No Comitê Central e na redação do Pravda: 1912–1917

Enquanto Stalin estava no exílio, o primeiro Comitê Central Bolchevique fora eleito na Conferência de Praga, após a qual Lenin e Grigori Zinoviev o convidaram para participar. Ainda em Vologda, ele concordou, permanecendo membro do Comitê Central pelo resto de sua vida. Lenin acreditava que Stalin, como georgiano, ajudaria a garantir apoio aos bolcheviques das minorias étnicas do Império. Em fevereiro de 1912, voltou a fugir para São Petersburgo, encarregado de converter o semanário bolchevique Zvezda (“Estrela”) em um diário, o Pravda (“A Verdade”). O novo jornal foi lançado em abril de 1912, embora o papel de Stalin como editor fosse mantido em segredo. 

Em maio de 1912, ele foi preso novamente e encarcerado na Prisão Shpalerhy, antes de ser sentenciado a três anos de exílio na Sibéria. Em julho chegou à aldeia siberiana de Narym, onde dividiu um quarto com o bolchevique Iákov Sverdlov. Depois de dois meses, ambos escaparam de volta para São Petersburgo. Durante um breve período em Tiflis, Stalin e a Roupa planejaram a emboscada de um carteiro, durante a qual a maioria do grupo — embora não Stalin — foi detida pelas autoridades. Stalin retornou a São Petersburgo, onde continuou editando e escrevendo artigos para o Pravda.

Depois das eleições da Duma em outubro de 1912, seis bolcheviques e seis mencheviques foram eleitos, Stalin escreveu artigos pedindo a reconciliação entre as duas facções marxistas, pelas quais ele foi criticado por Lenin. No final do ano, ele cruzou duas vezes o Império Austro-Húngaro para visitar Lenin em Cracóvia, eventualmente cedendo à oposição do líder bolchevique à reunificação com os mencheviques. Em janeiro de 1913 viajou para Viena, concentrando-se na “questão nacional” de como os bolcheviques deveriam lidar com as minorias nacionais e étnicas do Império Russo.

Lenin queria atrair esses grupos para a causa bolchevique, oferecendo-lhes o direito de secessão do Estado russo, mas, ao mesmo tempo, esperava que continuassem a fazer parte de uma futura Rússia governada por bolcheviques. Seu artigo final foi intitulado O Marxismo e Problema Nacional e Colonial; Lenin ficou muito feliz com a obra. De acordo com Montefiore, esse foi o “trabalho mais famoso de Stalin”. O artigo foi publicado sob o pseudônimo de “K. Stalin”, um nome que ele vinha usando desde 1912.

Derivado da palavra russa para aço (stal), isso foi traduzido como “Homem de Aço”; Stalin pode ter pretendido imitar o pseudônimo de Lenin. Stalin reteve esse nome pelo resto de sua vida, possivelmente porque foi usado no artigo que estabeleceu sua reputação entre os bolcheviques. 

Em fevereiro de 1913 foi preso em São Petersburgo. Foi condenado a quatro anos de exílio em Turukhansk, uma parte remota da Sibéria da qual a fuga era particularmente difícil. Em agosto chegou à aldeia de Monastyrskoe, embora depois de quatro semanas tenha sido transferido para a aldeia de Kostino. Em março de 1914, preocupados com uma possível tentativa de fuga, as autoridades o transferiram para o povoado de Kureika, na periferia do Círculo Polar Ártico.

Na aldeia, Stalin teve um relacionamento com Lidia Pereprygia, que tinha treze anos na época e, portanto, um ano a menos que a idade legal de consentimento na Rússia czarista. Por volta de dezembro de 1914, Pereprygia deu à luz o filho de Stálin, embora a criança tenha morrido em breve. Ela deu à luz a outro de seus filhos, Alexander, por volta de abril de 1917. Em Kureika, viveu em estreita colaboração com os indígenas tungues e ostíacos e passou a maior parte do tempo pescando. 

Revolução Russa: 1917

Enquanto estava no exílio, a Rússia entrou na Primeira Guerra Mundial e, em outubro de 1916, Stalin e outros bolcheviques exilados foram recrutados para o exército russo, partindo para Monastyrskoe. Chegaram a Krasnoiarsk em fevereiro de 1917, onde um legista o julgou inadequado para o serviço militar devido a seu braço aleijado. Foi obrigado a servir mais quatro meses em seu exílio, e solicitou com sucesso que servisse na cidade vizinha de Achinsk.

Estava na cidade quando a Revolução de Fevereiro aconteceu; revoltas eclodiram em Petrogrado — já que São Petersburgo tinha sido renomeada — e o czar Nicolau II abdicou para escapar de ser violentamente derrubado. O Império Russo tornou-se uma república de facto, liderada por um Governo Provisório dominado por liberais. Em clima de comemoração, viajou de trem para Petrogrado em março. Lá, ele e o bolchevique Lev Kamenev assumiram o controle do Pravda, e Stalin foi nomeado representante bolchevique no Comitê Executivo do Soviete de Petrogrado, um influente conselho dos trabalhadores da cidade.

Em abril, Stalin ficou em terceiro lugar nas eleições bolcheviques para o Comitê Central do partido; Lenin ficou em primeiro e Zinoviev em segundo. Isso refletia sua elevada posição dentro do partido na época. 

O governo existente de latifundiários e capitalistas deve ser substituído por um novo governo, um de trabalhadores e camponeses. O pseudo-governo existente que não foi eleito pelo povo e que não é responsável perante o povo deve ser substituído por um governo reconhecido pelo povo, eleito pelos representantes dos trabalhadores, soldados e camponeses e responsabilizado perante os seus representantes. 

—Editorial de Stalin no Pravda, outubro de 1917 

Stalin ajudou a organizar a insurreição das Jornadas de Julho, uma demonstração armada de força pelos partidários bolcheviques. Depois que a manifestação foi suprimida, o Governo Provisório iniciou uma repressão aos membros do partido, atacando o Pravda. Durante esse ataque, Stalin tirou Lenin do escritório do jornal e assumiu a segurança do líder bolchevique, movendo-o entre as casas seguras de Petrogrado antes de contrabandeá-lo para Razliv.

Na ausência de Lenin, Stalin continuou editando o Pravda e serviu como líder interino dos bolcheviques, supervisionando o VI Congresso do partido, que era secretamente realizado. Lenin começou a pedir aos bolcheviques que tomassem o poder derrubando o governo provisório num golpe de Estado. Stalin e seu colega bolchevique Leon Trótski endossaram o plano de ação de Lenin, mas foi inicialmente contestado por Kamenev e outros membros do partido. Lenin retornou a Petrogrado e obteve maioria em favor de um golpe numa reunião do Comitê Central em 10 de outubro. 

Em 24 de outubro, a polícia invadiu os escritórios do jornal bolchevique, destruindo máquinas e prensas; Stalin recuperou parte desse equipamento para continuar suas atividades. Na madrugada de 25 de outubro, juntou-se a Lenin em uma reunião do Comitê Central no Instituto Smolny, de onde foi dirigido o golpe bolchevique — a Revolução de Outubro. A milícia bolchevique apoderou-se da central elétrica de Petrogrado, dos principais correios, do banco estatal, da central telefônica e de várias pontes.

Um navio controlado pelos bolcheviques, o Aurora, abriu fogo ao Palácio de Inverno; os delegados reunidos do Governo Provisório renderam-se e foram presos pelos bolcheviques. Embora tivesse sido encarregado de informar os delegados bolcheviques do II Congresso dos Sovietes sobre a situação em desenvolvimento, o papel de Stalin no golpe não foi publicamente visível. Trótski e outros bolcheviques opositores de Stalin usaram isso como evidência de que seu papel no golpe fora insignificante, embora mais tarde os historiadores rejeitassem isso.

Segundo o historiador Oleg Khlevniuk, Stalin “desempenhou um papel importante [na Revolução de Outubro]… como um importante bolchevique, membro do Comitê Central do partido e editor de seu principal jornal”; o historiador Stephen Kotkin notou, de maneira semelhante, que ele estivera “no meio dos acontecimentos” na construção do golpe. 

Governo de Lenin

Consolidação do poder: 1917–1918

Em 26 de outubro, Lenin declarou-se presidente de um novo governo, o Conselho do Comissariado do Povo (“Sovnarkom”). Stalin apoiou a decisão do presidente de não formar uma coalizão com os mencheviques e o Partido Socialista Revolucionário, apesar de formarem um governo de coalizão com os Socialistas Revolucionários de Esquerda. Stalin tornou-se parte de um quarteto informal que liderava o governo, ao lado de Lenin, Trótski e Sverdlov; destes, Sverdlov esteve regularmente ausente e morreu em março de 1919.

O escritório de Stalin ficava próximo ao de Lenin, no Instituto Smolny, e ele e Trótski eram os únicos indivíduos autorizados a acessar o escritório dele sem autorização. Embora não tão bem conhecido como Lenin ou Trótski, a importância de Stalin entre os bolcheviques cresceu. Co-assinou os decretos do presidente encerrando jornais hostis e, com Sverdlov, presidiu as sessões do comitê que redigia uma constituição para a nova República Socialista Federativa Soviética da Rússia.

Apoiou fortemente a formação de Lenin do serviço de segurança da Cheka e o subsequente Terror Vermelho que ele iniciou; notando que a violência estatal havia se mostrado uma ferramenta eficaz para as potências capitalistas, acreditava que isso seria o mesmo para o governo soviético. Ao contrário dos bolcheviques mais antigos como Kamenev e Nikolai Bukharin, Stalin nunca expressou preocupação com o rápido crescimento e expansão da Cheka e do Terror. 

Conselho do Comissariado do Povo no Instituto Smolny em Petrogrado, 10 de março de 1918; o Governo da Rússia liderado por Lenin. Da esquerda para direita: I. Steinberg, I.V. Stepanov, B. Kamkov, V.B. Bruyevich, V.E. Trutovsky, A. Shliapnikov, P.P. Proshyan, V.I. Lenin, J. Stalin, A. Kollontai, P. Dybenko, E.K. Koкsharova, N. Podvoisky, N. Gorbunov, V. I. Nevsky, A. Shotman, G. Chicherin. Tendo abandonado o cargo de editor do Pravda, foi nomeado Comissário do Povo para as Nacionalidades. Escolheu Nadejda Alliluyeva como sua secretária, e em algum momento se casou com ela, embora a data do casamento seja desconhecida.

Em novembro de 1917, assinou o Decreto sobre Nacionalidade, que proclamou o direito de secessão e autodeterminação às minorias étnicas e nacionais que viviam na Rússia. O propósito do decreto era principalmente estratégico; os bolcheviques queriam ganhar o favor entre as minorias étnicas, mas não esperavam que elas realmente desejassem a independência. Naquele mês, ele viajou para Helsinque para conversar com os social-democratas finlandeses, concedendo o pedido de independência da Finlândia em dezembro. Seu departamento alocou fundos para o estabelecimento de prensas e escolas nas línguas de várias minorias étnicas. Os revolucionários socialistas acusaram o discurso de Stalin de federalismo e autodeterminação nacional como uma fachada para as políticas centralizadoras e imperialistas do Sovnarkom. 

Devido à contínua Primeira Guerra Mundial, na qual a Rússia estava lutando contra as Potências Centrais da Alemanha e da Áustria-Hungria, o governo de Lenin mudou-se de Petrogrado para Moscou em março de 1918. Lá, eles se basearam no Kremlin; foi aqui que Stalin, Trótski, Sverdlov e Lenin viveram. Apoiou o desejo de Lenin de assinar um armistício com os Poderes Centrais, independentemente do custo em território. Stalin julgou necessário porque — ao contrário do presidente — não estava convencido de que a Europa estivesse à beira da revolução proletária.

Lenin acabou convencendo os outros altos bolcheviques de seu ponto de vista, resultando na assinatura do Tratado de Brest-Litovski em março de 1918. O tratado deu vastas áreas de terra e recursos para as Potências Centrais e enfureceu muitos na Rússia; os revolucionários socialistas de esquerda se retiraram do governo de coalizão sobre o assunto. O partido governante do RSFSR logo foi renomeado, tornando-se o Partido Comunista Russo. 

Comando Militar: 1918–1921

Depois que os bolcheviques tomaram o poder, exércitos da direita e da esquerda política se uniram contra eles, gerando a Guerra Civil Russa. Para garantir o acesso ao suprimento cada vez menor de alimentos, em maio de 1918, o Sovnarkom enviou Stalin a Tsarítsin para se encarregar da aquisição de alimentos no sul da Rússia. Ansioso para se mostrar como comandante, uma vez lá assumiu o controle das operações militares regionais. Fez amizade com duas figuras militares, Kliment Vorochilov e Semion Budionny, que formariam o núcleo de sua base de apoio militar e político.

Acreditando que a vitória era assegurada pela superioridade numérica, enviou um grande número de tropas do Exército Vermelho para a batalha contra os exércitos Brancos anti-bolcheviques na região, resultando em grandes perdas; Lenin estava preocupado com essa tática cara. Em Tsarítsin, comandou a filial local da Cheka para executar supostos contrarrevolucionários, às vezes sem julgamento, e — em contravenção às ordens do governo — expurgou agências militares e de coleta de alimentos de especialistas de classe média, alguns dos quais também executou.

Seu uso da violência e do terror de Estado foi em maior escala do que a maioria dos líderes bolcheviques aprovou; por exemplo, ordenou que várias aldeias fossem incendiadas para garantir o cumprimento de seu programa de aquisição de alimentos. 

Em dezembro de 1918, Stalin foi enviado a Perm para liderar uma investigação sobre como as forças brancas de Aleksandr Kolchak haviam conseguido dizimar as tropas vermelhas que ali se encontravam. Retornou a Moscou entre janeiro e março de 1919, antes de ser designado para a Frente Ocidental em Petrogrado. Quando o Terceiro Regimento Vermelho desertou, ele ordenou a execução pública dos que foram capturados. Em setembro foi devolvido à Frente Sul.

Durante a guerra, provou seu valor para o Comitê Central, demonstrando decisão, determinação e disposição para assumir responsabilidades em situações de conflito. Ao mesmo tempo, desconsiderou ordens e repetidamente ameaçou renunciar quando afrontado. Em novembro de 1919, o governo concedeu-lhe a Ordem do Estandarte Vermelho por seu serviço de guerra. 

Os bolcheviques venceram a guerra civil no final de 1919. O Sovnarkom voltou sua atenção para a disseminação da revolução proletária no exterior, para esse fim formando a Internacional Comunista em março de 1919; Stalin assistiu à sua cerimônia inaugural. Embora Stalin não compartilhasse da crença de Lenin de que o proletariado europeu estava à beira da revolução, ele reconheceu que, enquanto permanecesse sozinha, a Rússia Soviética continuaria vulnerável.

Embora Stalin não compartilhasse da crença de Lenin de que o proletariado europeu estava à beira da revolução, reconheceu que, enquanto permanecesse sozinha, a Rússia Soviética continuaria vulnerável. Em dezembro de 1918, redigiu decretos que reconheciam as repúblicas soviéticas de governo marxista na Estônia, Lituânia e Letônia; durante a guerra civil, esses governos marxistas foram derrubados e os países bálticos tornaram-se totalmente independentes da Rússia, um ato que Stalin considerou ilegítimo. Em fevereiro de 1920, foi nomeado chefe da Inspetoria dos Operários e Camponeses; nesse mesmo mês, ele também foi transferido para a Frente Caucasiana. 

Após os confrontos anteriores entre as tropas polonesas e russas, a Guerra Polonesa-Soviética eclodiu no início de 1920, com os poloneses invadindo a Ucrânia e tomando Kiev. Stalin foi transferido para a Ucrânia, na Frente Sudoeste. O Exército Vermelho forçou as tropas polonesas de volta à Polônia. Lenin acreditava que o proletariado polonês se levantaria para apoiar os russos contra o governo polonês de Józef Piłsudski.

Stalin havia advertido contra isso; ele acreditava que o nacionalismo levaria as classes trabalhadoras polonesas a apoiar o esforço de guerra de seu governo. Também acreditava que o Exército Vermelho estava mal preparado para conduzir uma guerra ofensiva e que isso daria aos Exércitos Brancos uma chance de ressurgir na Crimeia, potencialmente reacendendo a guerra civil. Stalin perdeu o argumento, depois do qual aceitou a decisão de Lenin e a apoiou. Ao longo da Frente Sudoeste, tornou-se determinado a conquistar Lwów; ao se concentrar nesse objetivo, desobedeceu as ordens de transferir suas tropas para ajudar as forças de Mikhail Tukhachevsky.

Em agosto, os poloneses repeliram o avanço russo e Stalin retornou a Moscou. Um tratado de paz polonês-soviético foi assinado; Stalin viu isso como um fracasso pelo qual culpou Trótski. Trótski, por sua vez, acusou Stalin de “erros estratégicos” ao lidar com a guerra na Nona Conferência Bolchevique. Stalin sentiu-se ressentido e subestimado; em setembro exigiu a demissão dos militares, o que foi concedido. 

Últimos anos de Lenin: 1921–1923

O governo soviético procurou trazer os estados vizinhos para seu domínio; em fevereiro de 1921, invadiram a Geórgia governada por mencheviques, enquanto em abril, Stalin ordenou que o Exército Vermelho no Turquestão reafirmasse o controle estatal russo. Como Comissário do Povo para as Nacionalidades, acreditava que cada grupo nacional e étnico deveria ter o direito de se expressar, facilitado por meio de “repúblicas autônomas” dentro do Estado russo, nas quais poderiam supervisionar vários assuntos regionais. Ao adotar essa visão, alguns marxistas o acusaram de se dobrar demais ao nacionalismo burguês, enquanto outros o acusavam de permanecer muito russocêntrico ao tentar manter essas nações dentro do Estado russo. 

O Cáucaso nativo de Stalin representava um problema particular devido à sua mistura altamente multiétnica. Opôs-se à ideia de repúblicas autônomas georgianas, armênias e azerbaijanis separadas, argumentando que estas provavelmente oprimiriam as minorias étnicas dentro de seus respectivos territórios; em vez disso, convocou uma República Socialista Federativa Transcaucasiana. O Partido Comunista da Geórgia opôs-se à ideia, resultando no caso georgiano. Em meados de 1921, Stalin retornou ao sul do Cáucaso, pedindo aos comunistas georgianos que evitassem o nacionalismo georgiano chauvinista que marginalizava as minorias da Abecásia, Ossétia e Adjara na Geórgia. Nessa viagem, encontrou-se com seu filho Yakov e o levou de volta a Moscou; Nadya dera à luz outro dos filhos de Stalin, Vasily, em março daquele ano. 

Após a guerra civil, as greves de trabalhadores e revoltas camponesas irromperam em toda a Rússia, em grande parte em oposição ao projeto de requisição de alimentos do Sovnarkom; como antídoto, Lenin introduziu reformas orientadas para o mercado: a Nova Política Econômica (NEP). Também houve turbulência interna no Partido Comunista, quando Trótski liderou uma facção pedindo a abolição dos sindicatos; Lenin se opunha a isso e Stalin ajudou a unir a oposição à ação de Trótski. Também concordou em supervisionar o Departamento de Agitação e Propaganda na Secretaria do Comitê Central.

No XI Congresso do Partido em 1922, Lenin nomeou Stalin como novo Secretário Geral do Partido Comunista. Embora tenham sido expressas preocupações de que a adoção desse novo posto além dos demais sobrecarregasse sua carga de trabalho e lhe desse muito poder, Stalin foi indicado. Para Lenin, era vantajoso ter um aliado-chave nesse posto crucial. 

Stalin é brusco demais, e este defeito, plenamente tolerável em nosso meio e entre nós, os comunistas, se coloca intolerável no cargo de Secretário Geral. Por isso proponho aos camaradas que pensem a forma de passar Stalin a outro posto e nomear a este cargo outro homem que se diferencie do camarada Stalin em todos os demais aspectos apenas por uma vantagem a saber: que seja mais tolerante, mais leal, mais correto e mais atento com os camaradas, menos caprichoso etc. 
—Testamento de Lenin, 4 de janeiro de 1923; isso foi possivelmente escrito por Krupskaya em vez do próprio 

Em maio de 1922, um derrame deixou Lenin parcialmente paralisado. Residindo em sua dacha de Gorki, sua principal conexão com o Sovnarkom foi através de Stalin, que era um visitante regular. Lenin pediu duas vezes para obter veneno, para que pudesse cometer suicídio, mas Stalin nunca o entregou. Apesar dessa camaradagem, o líder dos bolcheviques não gostava do que chamava de astúcia “asiática” de Stalin e disse a sua irmã Maria que ele “não era inteligente”.

Ambos discutiram sobre a questão do comércio exterior; Lenin acreditava que o Estado soviético deveria ter o monopólio do comércio exterior, mas Stalin apoiou a opinião de Grigori Sokolnikov de que fazer isso era impraticável nesse estágio. Outro desentendimento veio sobre o caso georgiano, com o líder dos bolcheviques apoiando o desejo do Comitê Central da Geórgia de uma República Soviética da Geórgia sobre a ideia do Secretário Geral de uma República Transcaucasiana. 

Também discordaram sobre a natureza do estado soviético. Lenin pediu que o país fosse renomeado para “União das Repúblicas Soviéticas da Europa e da Ásia”, refletindo seu desejo de expansão nos dois continentes. Stalin acreditava que isso encorajaria o sentimento de independência entre os não russos, em vez de argumentar que as minorias étnicas estariam contentes como repúblicas autônomas dentro da República Socialista Federativa Soviética da Rússia.

Lenin acusou Stalin de “Grande Chauvinismo Russo”; Stalin o acusou de “liberalismo nacional”. Um compromisso foi alcançado, em que o país seria renomeado a “União das Repúblicas Socialistas Soviéticas” (URSS). A formação da URSS foi ratificada em dezembro de 1922; embora oficialmente um sistema federal, todas as decisões importantes foram tomadas pelo Politburo governante do Partido Comunista da União Soviética em Moscou. 

Suas diferenças também se tornaram pessoais; Lenin ficou particularmente irritado quando Stalin foi rude com sua esposa Krupskaya durante uma conversa telefônica. Nos últimos anos de sua vida, Krupskaya forneceu figuras do governo com o Testamento de Lenin, uma série de notas cada vez mais depreciativas sobre Stalin. Estes criticaram suas maneiras rudes e o poder excessivo, sugerindo que deveria ser removido da posição de Secretário Geral. Alguns historiadores questionaram se Lenin os produziu, sugerindo que talvez tenham sido escritos por Krupskaya, que tinha diferenças pessoais dele; Stalin, no entanto, nunca manifestou publicamente preocupações sobre sua autenticidade. 

Ascensão ao poder 

Sucedendo Lenin: 1924–1927

Lenin morreu em janeiro de 1924. Stalin assistiu o funeral e foi um dos que carregaram o caixão; contra os desejos da viúva do falecido, o Politburo embalsamou seu cadáver e o colocou dentro de um mausoléu na Praça Vermelha de Moscou. Este foi incorporado a um crescente culto à personalidade dedicado ao líder soviético, com Petrogrado sendo renomeado “Leningrado” naquele ano. Para reforçar sua imagem como um devotado leninista, Stalin deu nove palestras na Universidade Sverdlov sobre os “Fundamentos do Leninismo”, mais tarde publicado em forma de livro.

No seguinte XIII Congresso do Comunista da Rússia, o “Testamento de Lenin” foi lido por altos funcionários. Envergonhado por seu conteúdo, Stalin ofereceu sua renúncia ao cargo de secretário-geral; esse ato de humildade o salvou e ele foi mantido na posição. 

Como secretário-geral, tivera a liberdade de marcar reuniões com sua própria equipe, implantando seus correligionários em todo o partido e na administração. Favorecendo os novos membros do Partido Comunista, muitos de origem trabalhadora e camponesa, aos “velhos bolchevistas” que tendiam a ter educação universitária, ele garantiu que teria partidários dispersos em todas as regiões do país. Tinha muito contato com os funcionários jovens do partido, e o desejo de promoção levou muitas figuras provinciais a procurar impressionar Stalin e ganhar seu favor.

Também desenvolveu estreitas relações com o trio no coração da polícia secreta (primeiro a Cheka e depois a sua substituta, o Diretório Político Estatal): Félix Dzerjinsky, Guenrikh Yagoda e Viacheslav Menjinsky. Em sua vida privada, dividiu o tempo entre o apartamento do Kremlin e uma datcha em Zubalova; sua esposa deu à luz uma filha, Svetlana, em fevereiro de 1926. 

Na esteira da morte de Lenin, vários protagonistas surgiram na luta para se tornar seu sucessor: ao lado de Stalin estavam Trótski, Zinoviev, Kamenev, Bukharin, Aleksei Rykov e Mikhail Tomsky. Stalin via Trótski – a quem ele desprezava pessoalmente – como o principal obstáculo ao seu domínio dentro do partido. Enquanto Lenin estava doente, ele forjou uma aliança com Kamenev e Zinoviev contra seu inimigo. Embora Zinoviev estivesse preocupado com a crescente autoridade de Stalin, uniu-se a ele no XIII Congresso como um contrapeso a Trótski, que agora liderava uma facção do partido conhecida como Oposição de Esquerda.

Este grupo acreditava que a NEP concedesse demais ao capitalismo; Stalin foi chamado de “direitista” por seu apoio à política. Stalin construiu uma comitiva de seus partidários no Comitê Central, enquanto a Oposição de Esquerda foi gradualmente removida de suas posições de influência. Foi apoiado por Bukharin, que, como Stalin, acreditava que as propostas da Oposição de Esquerda iriam mergulhar a União Soviética na instabilidade. 

No final de 1924 moveu-se contra Kamenev e Zinoviev, removendo seus partidários de posições-chave. No ano seguinte, Kamenev e Zinoviev entraram em oposição aberta a Stalin e Bukharin. Atacaram um ao outro no XIV Congresso do Partido, em que Stalin acusou ambos de reintroduzirem o facciosismo – e, portanto, a instabilidade – no partido. Em meados de 1926, Kamenev e Zinoviev juntaram-se aos partidários de Trótski para formar a Oposição Unificada contra o secretário geral; em outubro, eles concordaram em interromper a atividade de facção sob ameaça de expulsão, e depois publicamente retrataram suas opiniões sob o comando de Stalin.

Os argumentos faccionalistas continuaram, com Stalin ameaçando renunciar em outubro e depois em dezembro de 1926 e novamente em dezembro de 1927. Em outubro de 1927, Zinoviev e Trótski foram removidos do Comitê Central; este último foi exilado para o Cazaquistão e depois deportado do país em 1929. Alguns dos membros da Oposição Unificada que se arrependeram foram mais tarde reabilitados e devolvidos ao governo. 

Stalin era agora o líder supremo do partido, embora não fosse o chefe de governo, tarefa que confiou ao seu principal aliado, Viatcheslav Molotov. Outros partidários importantes no Politburo eram Vorochilov, Lazar Kaganovitch e Sergo Ordjonikidze, com Stalin garantindo que seus aliados governassem as várias instituições do Estado. De acordo com Montefiore, neste momento “Stalin era o líder dos oligarcas, mas estava longe de ser um ditador”. Sua crescente influência refletia-se na nomeação de vários locais em homenagem; em junho de 1924, a cidade mineradora ucraniana de Yuzovka tornou-se Stalino e, em abril de 1925, Tsarítsin foi renomeada para Stalingrado por ordem de Mikhail Kalinin e Avel Yenukidze. 

Em 1926 publicou Sobre Questões do Leninismo. Aqui, ele introduziu o conceito de “Socialismo em um Único País”, que apresentou como uma perspectiva leninista ortodoxa. Entrou em choque com as concepções bolcheviques estabelecidas de que o socialismo não poderia ser estabelecido num país, mas só poderia ser alcançado globalmente através do processo de revolução mundial. No ano seguinte houve algum argumento no partido sobre a política soviética em relação à China.

Stalin pedira que o Partido Comunista da China, liderado por Mao Tsé-Tung, se aliasse aos nacionalistas do Kuomintang (KMT) de Chiang Kai-shek, considerando a aliança comunista-Kuomintang como o melhor baluarte contra o expansionismo imperial japonês. Em vez disso, o KMT reprimiu os comunistas e uma guerra civil eclodiu entre os dois lados. 

Des-cúlaquização, coletivização e industrialização: 1927–1931 

Política econômica

Estamos de 50 a 100 anos atrás dos países adiantados. Temos que cobrir essa lacuna em 10 anos. Ou fazemos isto ou seremos aniquilados. É isto o que nossas obrigações perante os trabalhadores e camponeses da URSS nos ditam. 
— Stalin, fevereiro de 1931 

A União Soviética ficou para trás do desenvolvimento industrial dos países ocidentais, e havia um déficit de grãos; 1927 produziu apenas 70% dos grãos produzidos no ano anterior. Seu governo temia o ataque do Japão, França, Reino Unido, Polônia e Romênia. Muitos comunistas, inclusive do Komsomol, OGPU e do Exército Vermelho, estavam ansiosos para se livrar da NEP e de sua abordagem orientada para o mercado; tinham preocupações sobre aqueles que lucravam com a política: camponeses afluentes conhecidos como “cúlaques” e donos de pequenos negócios ou “NEPman”. Neste ponto, Stalin voltou-se contra a NEP, colocando-o em um rumo à “esquerda” até de Trótski ou Zinoviev. 

No início de 1928 viajou para Novosibirsk, onde alegou que os cúlaques estavam acumulando grãos e ordenou que eles fossem presos e seus grãos confiscados, com Stalin trazendo consigo grande parte dos grãos da área para Moscou em fevereiro. Ao seu comando, os esquadrões de aquisição de grãos surgiram na Sibéria Ocidental e nos Urais, com a violência entre esses esquadrões e o campesinato. Anunciou que tanto os cúlaques quanto os “camponeses médios” deveriam ser coagidos a liberar sua colheita.

Bukharin e vários outros membros do Comitê Central estavam furiosos por não terem sido consultados sobre essa medida, que consideraram imprudente. Em janeiro de 1930, o Politburo aprovou a liquidação da classe cúlaque; os acusados foram reunidos e exilados para outras partes do país ou para campos de concentração. Grandes números morreram durante a viagem. Em julho, mais de 320 000 famílias haviam sido afetadas pela política anti-cúlaque. Segundo o historiador Dmitri Volkogonov, a des-cúlaquização foi “o primeiro terror em massa aplicado por Stalin em seu próprio país”. 

Em 1929, o Politburo anunciou a coletivização em massa da agricultura, estabelecendo as fazendas coletivas (kolkhoz) e as fazendas estatais (sovkhoz). Stalin impediu que os cúlaques se juntassem a esses coletivos. Embora oficialmente voluntários, muitos camponeses se juntaram aos coletivos com medo de enfrentarem o destino dos cúlaques; outros se juntaram em meio à intimidação e violência dos membros do partido. Em 1932, cerca de 62% das famílias envolvidas na agricultura faziam parte de coletivos e, em 1936, aumentaram para 90%. Muitos dos camponeses se ressentiam da perda de sua terra privada e a produtividade caía. A fome estourou em muitas áreas, com o Politburo frequentemente ordenando a distribuição de alimentos emergenciais para essas regiões. 

Revoltas camponesas armadas contra a des-cúlaquização e a coletivização irromperam na Ucrânia, no norte do Cáucaso, no sul da Rússia e na Ásia Central, alcançando seu ápice em março de 1930; estas foram suprimidos pelo Exército Vermelho. Stalin respondeu às insurreições com um artigo insistindo que a coletivização era voluntária e culpando qualquer violência e outros excessos às autoridades locais.

Embora ele e Stalin estivessem próximos há muitos anos, Bukharin expressou preocupação com essas políticas; ele os considerou como um retorno à antiga política de “comunismo de guerra” de Lenin e acreditava que isso falharia. Em meados de 1928, não conseguiu reunir apoio suficiente no partido para se opor às reformas. Em novembro do ano seguinte, Stalin o retirou do Politburo. 

Oficialmente, a União Soviética havia substituído a “irracionalidade” e o “desperdício” de uma economia de mercado por uma economia planificada organizada em um quadro científico de longo prazo, preciso e científico; na realidade, a economia soviética baseava-se em mandamentos ad hoc emitidos pelo centro, muitas vezes para estabelecer metas de curto prazo.

Em 1928, o primeiro plano quinquenal foi lançado, seu principal foco era o estímulo à indústria pesada; terminou um ano antes do previsto, em 1932. A URSS passou por uma enorme transformação econômica. Novas minas foram abertas, novas cidades como a Magnitogorsk foram construídas e o trabalho no Canal Mar Branco–Báltico começou. Milhões de camponeses se mudaram para as cidades, embora a construção de casas urbanas não acompanhasse a demanda. Grandes dívidas foram acumuladas comprando máquinas estrangeiras. 

Muitos dos principais projetos de construção, incluindo o Canal Mar Branco–Báltico e o Metrô de Moscou, foram construídos em grande parte por meio de trabalho forçado. Os últimos elementos do controle dos trabalhadores sobre a indústria foram removidos, com os gerentes de fábrica aumentando sua autoridade e recebendo privilégios e benefícios; defendeu a disparidade salarial apontando para o argumento de Marx de que isso era necessário durante os estágios inferiores do socialismo.

Para promover a intensificação do trabalho, uma série de medalhas e prêmios, bem como o movimento stakhanovista foram introduzidos. A mensagem de Stalin era de que o socialismo estava sendo estabelecido na URSS, enquanto o capitalismo estava desmoronando em meio ao crash de Wall Street. Seus discursos e artigos refletiam sua visão utópica da União Soviética elevando-se a alturas inigualáveis do desenvolvimento humano, criando um “novo homem soviético”. 

Política cultural

Em 1928, Stalin declarou que a guerra de classes entre o proletariado e seus inimigos se intensificaria à medida que o socialismo se desenvolvesse. Ele alertou para um “perigo da direita”, inclusive no próprio Partido Comunista. O primeiro grande julgamento de demonstração na URSS foi o Julgamento de Shakhty de 1928, no qual vários “especialistas industriais” de classe média foram condenados por sabotagem. De 1929 a 1930, mais ensaios foram realizados para intimidar a oposição: estes incluíram o Julgamento do Partido Industrial, o Julgamento Menchevique e o Julgamento da Metropolitan-Vickers.

Consciente de que a maioria étnica russa pode ter preocupações sobre ser governada por um georgiano, ele promoveu os russos étnicos em toda a hierarquia do Estado e tornou a língua russa obrigatória em todas as escolas e ofícios, embora para ser usado em conjunto com as línguas locais em áreas com maiorias não-russas. O sentimento nacionalista entre as minorias étnicas foi suprimido. Políticas sociais conservadoras foram promovidas para melhorar a disciplina social e impulsionar o crescimento populacional; isso incluiu um foco em unidades familiares fortes e maternidade, a re-criminalização da homossexualidade, restrições impostas ao aborto e ao divórcio, e a abolição do departamento de mulheres Genotdel. 

Desejava uma “revolução cultural”, implicando tanto a criação de uma cultura para as “massas” quanto a disseminação mais ampla da cultura anterior da elite. Supervisionou a proliferação de escolas, jornais e bibliotecas, bem como o avanço da alfabetização e numeramento. O “realismo socialista” foi promovido através das artes, enquanto Stalin pessoalmente atraiu escritores proeminentes, como Máximo Gorki, Mikhail Sholokhov e Aleksej Nikolaevič Tolstoj.

Também demonstrou patrocínio para cientistas cuja pesquisa se enquadrava em sua interpretação preconcebida do marxismo; ele, por exemplo, endossou a pesquisa do biólogo e agrônomo Trofim Lysenko apesar do fato de ter sido rejeitada pela maioria de seus pares científicos como pseudociência. A campanha antirreligiosa do governo foi intensificada, com o aumento do financiamento dado à Liga dos Ateus Militantes. O clero cristão, muçulmano e budista enfrentou perseguição. Muitos edifícios religiosos foram demolidos, mais notavelmente a Catedral de Cristo Salvador, em Moscou, destruída em 1931 para dar lugar ao (nunca completado) Palácio dos Sovietes. A religião manteve uma influência sobre grande parte da população; no censo de 1937, 57% dos entrevistados identificaram-se como religiosos. 

Ao longo dos anos 1920 e além, Stalin atribuiu uma alta prioridade à política externa. Pessoalmente se encontrou com uma variedade de visitantes ocidentais, incluindo George Bernard Shaw e H. G. Wells, os quais ficaram impressionados com ele. Através da Internacional Comunista, seu governo exerceu forte influência sobre os partidos marxistas em outras partes do mundo; inicialmente, Stalin deixou o comando da organização em grande parte para Bukharin.

Durante o VI Congresso, em julho de 1928, informou aos delegados que a principal ameaça ao socialismo não vinha da direita, mas de socialistas não-marxistas e social-democratas, a quem ele chamava de “social-fascistas”; Stalin reconheceu que, em muitos países, os social-democratas eram os principais rivais marxistas-leninistas no apoio da classe trabalhadora. Essa preocupação com esquerdistas rivais opostos preocupava Bukharin, que considerava o crescimento do fascismo e da extrema-direita em toda a Europa uma ameaça muito maior. Após a partida de Bukharin, Stalin colocou a Internacional Comunista sob a administração de Dmitri Manuilski e Ósip Piátnitski. 

Stalin enfrentou problemas em sua vida familiar. Em 1929, seu filho Yakov tentou sem sucesso o suicídio; seu fracasso ganhou o desprezo do próprio pai. Sua relação com Nadya também era tensa em meio a seus argumentos e seus problemas de saúde mental. Em novembro de 1932, depois de um jantar de grupo no Kremlin em que Stalin flertou com outras mulheres, Nadya se matou. Publicamente, a causa da morte foi dada como apendicite; também ocultou a verdadeira causa da morte de seus filhos. Os amigos de Stalin notaram que ele sofreu uma mudança significativa após seu suicídio, tornando-se emocionalmente mais difícil. 

Expurgos e deportações

Depurações

Tinha como objetivo a eliminação de supostos inimigos do governo. Milhares de cidadãos entre eles políticos e militares foram presos, torturados e condenados a morte. 

A condenação dos contra-revolucionários nos julgamentos de 1937-38 depois das depurações no Partido, exército e no aparelho estatal, tem raízes na história inicial do movimento revolucionário da Rússia. Milhões de pessoas participaram no quê acreditavam ser uma batalha contra o czar e a burguesia. Ao ver que a vitória seria inevitável, muitas pessoas entraram para o partido. Entretanto nem todos haviam se tornado bolcheviques porque concordavam com o socialismo.

A luta de classes era tal que muitas vezes não havia tempo nem possibilidades para pôr à prova os novos militantes. Até mesmo militantes de outros partidos inimigos dos bolcheviques foram aceitos depois triunfo da revolução. Para uma parcela desses novos militantes foram dados cargos importantes no Partido, Estado e Forças Armadas, tudo dependendo da sua capacidade individual para conduzir a luta de classes. 

Eram tempos muito difíceis para o jovem Estado soviético e a grande falta de comunistas, ou simplesmente de pessoas que soubessem ler, o Partido era obrigado a não fazer grandes exigências no que diz respeito à qualidade dos novos militantes. De todos estes problemas formou-se com o tempo uma contradição que dividiu o Partido em dois campos – de um lado os que queriam reduzir o socialismo para atuação de fortalecimento da URSS, ou seja, socialismo em um só país, por outro lado, aqueles que defendiam a ideia de que o socialismo deveria ser espalhado por todo o mundo e que a URSS não deveria se limitar a si própria.

A origem destas últimas ideias vinha de Trótski, que foi caçado por Stalin após assumir o poder da URSS. 

Trótski foi com o tempo obtendo apoio de alguns dos bolcheviques mais conhecidos. Esta oposição unida contra os ideais defendidas pelos marxistas – Stalinistas, eram uma das alternativas na votação partidária sobre a política a seguir pelo Partido, realizada em 27 de dezembro de 1927. Antes desta votação foi realizada uma grande discussão durante vários anos e não houve dúvida quanto ao resultado. Dos 725.000 votos, a oposição só obteve 6.000 – ou seja, menos de 1% dos militantes do Partido apoiaram a Oposição trotskista. 

Deportações

Antes, durante e depois da Segunda Guerra, Stalin conduziu uma série de deportações em grande escala que acabaram por alterar o mapa étnico da União Soviética. Estima-se que entre 1941 e 1949 cerca de 3,3 milhões de pessoas foram deportadas para a Sibéria ou para repúblicas asiáticas. Separatismo, resistência/oposição ao governo soviético e colaboração com a invasão alemã eram alguns dos motivos oficiais para as deportações. 

Durante o governo de Stalin os seguintes grupos étnicos foram completamente ou parcialmente deportados: ucranianos, polacos, coreanos, alemães, tchecos, lituanos, arménios, búlgaros, gregos, finlandeses, judeus entre outros. Os deportados eram transportados em condições espantosas, frequentemente em caminhões de gado, milhares de deportados morriam no caminho. Aqueles que sobreviviam eram mandados a Campos de Trabalho Forçado. 

Em fevereiro de 1956, no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Khrushchov condenou as deportações promovidas por Stalin, em seu relatório secreto. Nesse momento começa a chamada desestalinização, que, de chofre, engloba todos os partidos comunistas do mundo. Na verdade, esta desestalinização foi a afirmação de que Stalin cometeu excessos graças ao culto à personalidade que fora promovido ao longo de sua carreira política.

Para vários autores anticomunistas, teria sido somente neste sentido que teria havido desestalinização, porquanto o movimento comunista na URSS deu prosseguimento à prática stalinista sem a figura de Stalin. De fato, a desestalinização não alterou em nada o caráter unipartidário do estado soviético e o poder inconteste exercido pelo Partido e pelos seus órgãos de repressão, mas significou também o fim da repressão policial em massa (a internação maciça de presos políticos em campos de concentração sendo abandonada, muito embora os campos continuassem como parte do sistema penal, principalmente para presos comuns), a cassação de grande parte das sentenças stalinistas e o retorno e reintegração à vida quotidiana de grande massa de presos políticos e deportados.

A repressão política, muito embora tenha continuado, não atingiu jamais, durante o restante da história soviética, os níveis de violência do stalinismo, principalmente porque foi abandonada a prática das purgas internas em massa no Partido. 

As deportações acabaram por influenciar o surgimento de movimentos separatistas nos estados bálticos, no Tartaristão e na Chechênia, até os dias de hoje. 

Estimativas do número de vítimas

Antes do colapso da União Soviética em 1991, os investigadores que tentavam contabilizar o número de vítimas do regime estalinista produziram estimativas que oscilavam entre os 3 e 60 milhões. Após a dissolução da União Soviética, os arquivos históricos passaram a estar disponíveis para consulta. O número oficial de vítimas de execuções entre 1921 e 1953 foi de 799 455 pessoas ao qual se juntam 1,7 milhões de pessoas no gulag e 390 000 de deslocações forçadas. Isto corresponde a um número total de 2,9 milhões de vítimas em todas as categorias segundo os registos oficiais. 

Os registos oficiais soviéticos não apresentam números detalhados para algumas categorias de vítimas, como as deportações étnicas ou a dos alemães no período pós-II guerra mundial. Eric D. Weitz afirmou que, “Por volta de 1948, de acordo com o Livro Negro do Comunismo, a taxa de mortalidade entre as 600 000 pessoas deportadas do Cáucaso entre 1943 e 1944 atingia os 25%. Entre as exclusões dos dados do NKVD estão o massacre de Katyn, massacres de prisioneiros nas áreas e os fuzilamentos em massa de desertores do Exército Vermelho em 1941.

O NKVD executou 158 000 soldados por deserção durante a guerra, e os destacamentos de bloqueio vários milhares. Além disso, as estatísticas oficiais da mortalidade nos gulag excluem as mortes de prisioneiros que tivessem ocorrido após a sua libertação, mas que fossem resultado das condições severas dos campos. Alguns historiadores acreditam que os números oficiais das categorias registadas pelas autoridades soviéticas são pouco fidedignos e incompletos. 

Os historiadores que trabalharam com dados divulgados após o colapso da União Soviética estimaram que o total de vítimas esteja entre os 4 e os 10 milhões de pessoas, não incluindo aqueles que morreram nas grandes fomes. O historiador russo Vadim Erlikman, por exemplo, estima os seguintes valores de vítimas: 1,5 milhões por execução; 5 milhões nos gulag; 1,7 milhões nas deportações (de um total de 7,5 milhões deportados); e 1 milhão de prisioneiros de guerra e civis alemães.

Alguns historiadores também incluem entre as vítimas da repressão de Estaline a morte de 6 a 8 milhões de pessoas na grande fome de 1932-1933. No entanto, esta categorização é controversa, uma vez que os historiadores divergem na questão desta fome ter sido deliberada, enquanto parte da campanha de repressão contra os kulaks, ou se se tratou apenas de um efeito colateral na luta pela coletivização forçada. No caso das vítimas da fome de 1932-33 serem incluídas, estima-se então que possam ser atribuídas ao regime de Estaline, no mínimo, 10 milhões de mortes – 6 milhões da fome e 4 milhões de outras causas. 

Alguns historiadores recentes sugerem um total provável de 20 milhões de vítimas, citando totais de vítimas muito mais elevados a partir de execuções, gulags, deportações e outras causas. Se forem acrescentadas às estimativas de Erlikman os seis milhões de vítimas da fome de 1932-33, por exemplo, o total estimado de vítimas será de 15 a 17 milhões. Ao mesmo tempo, o investigador Robert Conquest, reviu a sua estimativa original de 30 para 20 milhões de vítimas. Conquest afirma também que, embora os números precisos possam nunca vir a ser conhecidos, pelo menos 15 milhões de pessoas foram executadas ou forçadas a trabalhar até à morte nos campos. 

Entretanto, esses números devem ser maiores, pois os arquivos soviéticos são omissos em vários aspectos: por exemplo, eles não abrangem as várias Transferências populacionais na União Soviética. Esta é uma omissão relevante, pois, de acordo com Eric D. Weitz, a taxa mortalidade das mais de 600.000 pessoas deportadas do Cáucaso entre 1943 e 1944 chegava a 25%, o que acrescentaria mais 150.000 vítimas mortas. 

Outros dados que não constam dos arquivos da NKVD incluem o controverso e famoso Massacre de Katyn, bem como diversos outros de menor repercussão em áreas ocupadas. Também não constam as execuções de desertores pela NKVD durante a guerra, que se estima em 158.000 execuções. Além disso, as estatísticas oficiais de mortalidade nos Gulags excluem as mortes ocorridas logo após a libertação dos prisioneiros, mas cuja morte estava ligada ao tratamento recebido naqueles campos de trabalho forçado. 

A ideia de que os arquivos guardados pelas autoridades soviéticas são incompletos e não refletem a totalidades das vítimas é apoiada por diversos historiadores, a exemplo de Robert Gellately e Simon Sebag Montefiore. Segundo eles, além dos registros não serem abrangentes, é altamente provável, por exemplo, que suspeitos presos e torturados até a morte durante investigações não sejam contabilizados como execução (não são contados como vítimas de pena de morte). 

Após a extinção do regime comunista na União Soviética, historiadores passaram a estimar que, excluindo os que morreram por fome, entre 4-10 milhões de pessoas morreram sob o regime de Stalin. O escritor russo Vadim Erlikman, por exemplo, faz as seguintes estimativas: 

Quantidade de pessoas Razão da morte

1,5 milhão – Execução 
5 milhões – Gulags 
1,7 milhão – Deportados¹ 
1 milhão – Países ocupados² 
¹ Erlikman estima um total de 7,5 milhões de deportados. 
² Diz respeito aos mortos civis durante a ocupação russa. 

Este total estimado de 9 milhões, para alguns pesquisadores, deve ainda ser somado a 6-8 milhões dos mortos na fome soviética de 1932-1933, episódios também conhecidos como Holodomor. Existe controvérsia entre historiadores a respeito desta fome ter sido ou não provocada deliberadamente por Stalin para suprimir opositores de seu regime. Muitos argumentam que a fome ocorreu por questões circunstanciais não desejadas por Stalin ou que foi uma consequência acidental de uma tentativa de forçar a coletivização naquelas áreas afetadas pela fome.

Todavia, também existem argumentos no sentido contrário, de que a fome foi sim provocada por Stalin. Para a última corrente, uma prova de que a fome foi provocada seria o fato de que a exportação de grãos da União Soviética para a Alemanha Nazista aumentou consideravelmente no ano de 1933, o que provaria que havia alimento disponível. Esta versão da história é retratada pelo documentário The Soviet Story. 

Sendo assim, se o número de vítimas da fome for incluído, chega-se a um número mínimo de 10 milhões de mortes (mínimo de 4 milhões de mortos por fome e mínimo de 6 milhões de mortos pelas demais causas expostas). No entanto, Steven Rosefielde tem como mais provável o número de 20 milhões de mortos, Simon Sebag Montefiores sugere número um pouco acima de 20 milhões, no que é acompanhado por Dmitri Volkogonov (autor de Stalin: Triunfo e Tragédia), Alexander Nikolaevich Yakovlev, Stéphane Courtois e Norman Naimark.

O pesquisador Robert Conquest recentemente reviu sua estimativa original de 30 milhões de vítimas para cerca de 20 milhões, afirmando ainda ser muitíssimo pouco provável qualquer número abaixo de 15 milhões de vidas ceifadas pelo regime de Stalin. 

Fome na Ucrânia

As políticas de fome lançadas sobre a Ucrânia, o chamado Holodomor, foi um genocídio implementado e arquitetado pelo governo soviético durante o regime de Stalin, mirando o povo ucraniano com fins políticos e sociais. As estimativas atuais do número de mortos pela fome na Ucrânia variam de 2,2 milhões de pessoas até 4 ou 5 milhões. 

Em janeiro de 2010, uma corte ucraniana considerou Josef Stalin e outros líderes soviéticos culpados de genocídio por “organizar deliberadamente fomes na Ucrânia entre 1932 e 1933”. Porém a corte não buscou outras atitudes devido ao fato “dos suspeitos já estarem mortos”. Gareth Jones, um jornalista galês, que foi um dos primeiros a divulgar o Holodomor, revelou a verdadeira extensão da fome e o fracasso do regime de Stalin para entregar alimentos a população, enquanto exportava grãos para outros países. Ele escreveu um relatório, que foi mal recebido por parte da imprensa, já que alguns intelectuais e jornalistas da época eram supostamente simpatizantes do Regime Soviético. 

Em 31 de março de 1933, o New York Times publicou o depoimento de Jones reescrito por Walter Duranty confirmando que as mortes por doenças, devido à insuficiente nutrição, eram altas e que na Ucrânia, no norte do Cáucaso e na região do rio Volga havia escassez de alimentos, o titulo sensacionalista e ironico foi “Russos estão com fome, mas não estão famintos”. Dois anos após o artigo ser publicado, Jones foi morto por bandidos chineses no interior da Mongólia – assassinado, que de acordo com sua família foi uma trama de Moscou para puni-lo. 

Em 1987, Douglas Tottle, ativista sindical publicou um livro sobre o genocídio da fome soviética de 1932-1933 na Ucrânia, alegando que várias fotos publicadas originalmente nos anos de 1930 pela imprensa nazista eram fraudulentas, e que tais fotos foram depois divulgados em artigos de jornais como Daily Express de 1934 e também em 1935 pelo Chicago American, sendo fotos da época da fome russa de 1921 e segundo o ativista sindical é propaganda de anticomunistas, ex-nazistas e de nacionalistas ucranianos, O livro foi editado em 1987, antes da extinção do regime comunista e da posterior abertura dos arquivos guardados pelas autoridades soviéticas que confirmaram o Holodomor.

Atualmente há consenso dos historiadores, relativamente à natureza genocidária do Holodomor. Atualmente, quase 40 países, incluindo Brasil, Estados Unidos, Espanha e Argentina, reconhecem o Holodomor como um genocídio. Já o atual governo russo é sensível ao assunto e dificilmente emite notas oficiais a respeito. 

Segunda Guerra Mundial

Stalin foi caracterizado como sendo um antifascista, de acordo com o trabalho de diversos historiadores, tais como a historiadora polaco-americana e autora especialista na história polonesa e russa moderna Anna M. Cienciala, do historiador italiano Domenico Losurdo e do belga Ludo Martens. No início 1939, a União Soviética tentou formar uma aliança contra a Alemanha nazista com o Reino Unido, França, Polónia e Roménia, mas diversas dificuldades, incluindo a recusa da Polónia e da Roménia de permitir direitos de trânsito pelos seus territórios das tropas soviéticas, como parte de segurança colectiva, levaram ao fracasso das negociações. 

Vice-Ministro das Relações Exteriores do Reino Unido Cadogan registrou em seu diário: “O primeiro-ministro (Chamberlain) afirmou que preferia renunciar a assinar uma aliança com os soviéticos.” O slogan dos conservadores era naquela época: “Para viver, a Grã-Bretanha, o bolchevismo deve morrer.” 

Os soviéticos, com o fracasso das negociações, mudaram a sua posição anti-alemã. Portanto, em 23 de agosto de 1939, Stalin e Viatcheslav Molotov encontram-se com Joachim von Ribbentrop, Ministro das Relações exteriores da Alemanha Nazista, e é celebrado em Moscou um pacto entre a União Soviética e a Alemanha Nazista, pelo qual os dois países comprometeram-se a não se atacarem militarmente e não intervirem em caso de invasão a um terceiro.

Este pacto de não agressão ficou conhecido como Pacto Ribbentrop-Molotov, nome dos Ministros do Exterior alemão e soviético (ver: negociações sobre a adesão da União Soviética ao Eixo). O pacto incluía um “protocolo adicional secreto”, hoje público, que traçava um esboço da divisão territorial posteriormente concretizada na Polônia (considerando os rios Vístula, San e Narew). Tendo a garantia de que a União Soviética não retaliaria, uma semana após a celebração do pacto, Adolf Hitler invadiu a Polônia e 16 dias depois ocorreu a Invasão Soviética da Polónia.

Stalin esperava ganhar tempo e reorganizar a força industrial-militar da qual a União Soviética não poderia prescindir com vistas a um confronto com a Alemanha Nazista que para alguns sempre fora inevitável. E Hitler estava ansioso por evitar um confronto imediato com os soviéticos, pois naquele momento ocupar-se-ia de Reino Unido e França. O Pacto Molotov-Ribbentrop assegurou em setembro de 1939 a divisão do território polonês entre os nazistas e os soviéticos. 

Mas a invasão da União Soviética pelas forças alemãs, em 1941, levou-o a aliar-se ao Reino Unido e depois aos Estados Unidos (após ataque a Pearl Harbor) durante a Segunda Guerra Mundial. Sob a sua ferrenha direção, o exército soviético conseguiu fazer recuar os invasores — não sem perdas humanas terríveis (ver: Crimes de guerra soviéticos) — e ocupar terras na Europa Oriental, contribuindo decisivamente para a derrota da Alemanha Nazista.

Seus críticos, como Leon Trótski, este que não tinha relações próximas com a Alemanha Nazista, como escudo contra o socialismo soviético, denunciaram o pacto com o governo nazista como uma traição imperdoável e mais um dos crimes do stalinismo contra o movimento operário internacional. Com a sua esfera de influência alargada à metade oriental da Europa, nos chamados Estados Operários, Stalin foi uma personagem-chave do pós-guerra. Subjugando países como a República Democrática Alemã, Polônia, Tchecoslováquia, Bulgária, Hungria e a Roménia, estabeleceu a hegemonia soviética no Bloco de Leste e rivalizou com os Estados Unidos na liderança do mundo. 

Benefícios

Ainda que considerado por muitos historiadores como uma figura prejudicial na história da União Soviética, outros consideram-o como um líder que trouxe diversos benefícios para a nação. A sua campanha de industrialização e coletivização, ainda que tenha causado diversas crises, promoveu o avanço da economia soviética e o progresso do país a uma superpotência, nas honras pela vitória na guerra contra o nazismo também está o nome de Stalin, o grandes progressos nas áreas da educação, principalmente no combate contra o analfabetismo, e da saúde, com as campanhas de formação médica, também foram conquistas do governo de Stalin. 

Roy Medvedev, crítico ferrenho de Stalin, afirmou que antes de seu governo, o país convivia com a força do arado primitivo, e décadas depois, o país passou a conviver com os ruídos de reatores nucleares, de forma a estampar o rápido desenvolvimento da União Soviética. 

Opinião sobre Stalin na União Soviética

Apesar do colapso da União Soviética, na Rússia moderna, há um anseio muito forte por Stalin e sua política. Testemunha-se em enquetes de opinião pública, a ideia da qual, Stalin é considerado pelos russos como uma das figuras mais populares e importantes da história, mas também contínua a popularidade no Partido Comunista, de que o governo de Stalin, foi considerado o principal período na história da Rússia. Uma das estruturas locais do Partido Comunista organizou uma campanha de outdoors promovendo os métodos de Stalin, como a melhor receita para a crise econômica (Voronezh, Junho de 2009). 

Autoridades russas também realizam movimentos, planejados, em demonstração do uso de nostalgia para o período que se alega ser o auge da União Soviética. No segundo semestre de 2008 foi emitido um livro de história aprovado pelos professores, segundo a qual Stalin agiu “totalmente racional” através da realização de execuções e expurgos de milhões de cidadãos soviéticos na década de 30 a fim de permitir a modernização do país. O sentimento por Stalin também é forte na Geórgia, em Gori há um museu dedicado a ele sendo muito bem sucedido. Há também uma rua com o nome de Stalin e uma estação ferroviária. 

Stalin e religião

A relação de Stalin com a religião é complexa. Por um lado ele adotou a mesma posição que Lenin e Marx, segundo a qual a religião é um ópio que precisa ser removido a fim de que a sociedade comunista ideal possa ser construída. Neste sentido, Stalin promoveu o ateísmo nas escolas, a propaganda antirreligiosa massiva e editou leis contrárias a religião. 

Segundo Pospielovsky, no final da década de 1930 era perigoso envolver-se publicamente com qualquer religião na União Soviética, pois havia uma “campanha de perseguição” movida contra estas. A perseguição contínua aos religiosos durante a década de 30 resultou na quase extinção da Igreja Ortodoxa Russa: vários templos foram demolidos e cerca de 10.000 padres, monges e freiras foram perseguidos e executados. Estima-se ainda que mais de 100.000 religiosos foram mortos durante as purgas de 1937-1938. 

Apesar de tudo isto, alguns historiadores, como Vladislav Zubok e Constantine Pleshakov, sugerem que “o ateísmo de Stalin manteve-se enraizado em alguma vaga ideia de Deus da natureza”. Apontam como evidência disto vários fatos, por exemplo: Stalin reabriu as igrejas russas durante a Segunda Guerra Mundial seguindo um sinal que ele acreditava ter recebido dos céus. Ainda, Stalin nunca foi contra a religião fora da União Soviética e por várias vezes chegou a apoiar facções religiosas no exterior, como foi o caso dos separatistas muçulmanos de Uyghur Ili, que fundaram uma teocracia islâmica no Turquestão. 

Morte, funeral e eventos posteriores

Na noite do dia 28 de fevereiro de 1953, Stalin viu um filme no Kremlin, juntamente com Kruschev, Bulganin, Malenkov e Beria. Depois disso, todos o acompanharam até a dacha de Stalin em Kutsevo, nos arredores de Moscou, onde jantaram juntos. Stalin costumava acordar tarde e havia uma ordem de nunca acordá-lo, portanto seus seguranças hesitaram em entrar em seu quarto, o que somente ocorreu à 18 h e 30 min do dia 1º de março, quando o encontraram desacordado no chão. 

Em 1 de março de 1953, a equipe pessoal de Stalin encontrou-o semi-consciente no chão do quarto de sua datcha de Volynskoe. Ele havia sofrido uma hemorragia cerebral. Ele foi movido para um sofá e permaneceu lá por três dias. Ele foi alimentado à mão com uma colher, recebeu vários remédios e injeções, e sanguessugas foram aplicadas a ele. Svetlana e Vasily foram chamados à dacha em 2 de março; o último estava bêbado e gritou com raiva para os médicos, resultando em ele ser mandado para casa. Stalin morreu em 5 de março de 1953.

Segundo Svetlana, foi “uma morte difícil e terrível”. Uma autópsia revelou que ele havia morrido de uma hemorragia cerebral e que ele também sofria de graves danos a suas artérias cerebrais devido à aterosclerose. É possível que Stalin tenha sido assassinado. Beria foi suspeito de assassinato, embora nenhuma evidência firme tenha aparecido. 

A morte de Stalin foi anunciada em 6 de março. O corpo foi embalsamado e depois exposto na Casa dos Sindicatos de Moscou por três dias. Multidões eram tais que um pisoteamento matou cerca de 100 pessoas. O funeral envolveu o enterro do corpo no Mausoléu de Lenin, na Praça Vermelha, em 9 de março; centenas de milhares compareceram. Naquele mês, houve uma onda de detenções por “agitação anti-soviética”, quando os que celebravam a morte de Stalin chamaram a atenção da polícia. O governo chinês instituiu um período oficial de luto pela morte de Stalin. 

Teorias sobre o assassinato de Stálin

Segundo o historiador russo Edvard Radzinski, Stalin foi envenenado pelo chefe da guarda a mando de seus principais auxiliares: Kruschev, Malenkov, Bulganin e Beria, pois estaria preparando um novo expurgo, pouco antes mandara executar os médicos judeus que tratavam dele por achar que estavam conspirando para matá-lo. 

Nikita Khrushchov escreveu em suas memórias que, imediatamente após a morte de Stalin, Lavrenty Beria teria começado a “vomitar seu ódio (contra Stalin) e a zombá-lo”, e que quando Stalin demonstrou sinais de consciência, Beria teria se colocado de joelhos e beijado as mãos de Stalin. No entanto, assim que Stalin ficou novamente inconsciente, Beria imediatamente teria se levantado e cuspido com nojo. 

Nikolai Dobryukha sustenta que Beria teria envenenado Stálin usando venenos raros de serpente ou aranha. 

Por outro lado, Aleksandr Duguin sustenta que o próprio Khruschov teria liderado a conspiração para matar Stálin e posteriormente Lavrentiy Beria, o poderoso chefe da polícia secreta soviética, isso porque acreditava que Stálin pretendia demitir Semion Ignatiev, o ministro da Segurança de Estado que era seu aliado e que portanto, poderia ser vítima de um novo expurgo. Em 2003, um grupo de historiadores russos e americanos anunciaram sua conclusão de que Stalin ingeriu varfarina, um poderoso veneno de rato que inibe a coagulação sanguínea e predispõe a vítima à hemorragia cerebral (derrame). Como a varfarina é insípida ela provavelmente teria sido o veneno utilizado. No entanto, os fatos exatos envolvendo a morte de Stalin provavelmente nunca serão conhecidos. 

O período imediatamente anterior ao seu falecimento, nos meses de fevereiro-março de 1953, foi marcado por uma atividade febril de Stalin nos preparativos de uma nova onda de perseguições e campanhas repressivas, exceção até para os padrões da era stalinista. Tratava-se do conhecido complô dos médicos: em 3 de janeiro de 1953, foi anunciado que nove catedráticos de medicina, quase todos judeus e que tratavam dos membros da liderança soviética, tinham sido “desmascarados” como agentes da espionagem americana e britânica, membros de uma organização judaica internacional, e assassinos de importantes líderes soviéticos. 

Tratava-se da preparação de um novo julgamento-espetáculo, desta vez com claros traços de anti-semitismo, que certamente levaria a um pogrom nacional, e que implicaria, segundo Isaac Deutscher, na auto-destruição das próprias raízes ideológicas do regime, razão pela qual a morte de Stalin pareceu a muitos ter sido provocada pelos seus seguidores imediatos, claramente alarmados diante da iminente fascistização promovida por Stalin.

O fato de que Beria estivesse alheio à preparação deste novo expurgo fêz com que ele fosse apresentado como possível autor intelectual do suposto assassinato de Stalin; o fato é, no entanto, que Stalin era idoso e que sua saúde, desde o final da Segunda Guerra Mundial, era precária; aqueles que tiveram contato pessoal com ele nos seus últimos anos lembram-se do contraste entre sua imagem pública de ente semi-divino e sua aparência real, devastada pela idade. Simon Sebag Montefiore considera que, apesar de Stalin haver recebido assistência atrasada para o derrame que o vitimaria, a tecnologia médica da época nada poderia fazer por ele em termos terapêuticos. 

Sucessão de Stalin

Stalin não apontou nenhum possível sucessor, nenhuma estrutura dentro da qual uma transferência de poder pudesse ocorrer. O Comitê Central se reuniu no dia de sua morte, com Malenkov, Beria e Khrushchev emergindo como figuras-chave do partido. O sistema de liderança coletiva foi restaurado e medidas foram introduzidas para impedir que qualquer membro atingisse a dominação autocrática novamente.

A liderança coletiva incluía os seguintes oito membros seniores do Presidium do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, listados de acordo com a ordem de precedência formalmente apresentada em 5 de março de 1953: Georgy Malenkov, Lavrentiy Beria, Vyacheslav Molotov, Kliment Voroshilov, Nikita Khrushchev, Nikolai Bulganin, Lazar Kaganovitch e Anastas Mikoyan. As reformas do sistema soviético foram imediatamente implementadas.

A reforma econômica reduziu os projetos de construção em massa, colocou uma nova ênfase na construção de casas e facilitou os níveis de tributação sobre o campesinato para estimular a produção. Os novos líderes buscaram a aproximação com a Iugoslávia e um relacionamento menos hostil com os EUA, buscando o fim negociado da Guerra da Coréia em julho de 1953. Os médicos que foram presos foram libertados e os expurgos antissemitas cessaram. Anistia em massa para os presos por crimes não-políticos foi emitida, reduzindo para metade a população carcerária do país, enquanto os sistemas de segurança do estado e do Gulag foram reformados, com a tortura sendo banida em abril de 1953. 

Reabilitação

Uma década após a morte de Stalin, sua política seria defendida e até seguida em parte por parte do novo secretário-geral, Leonid Brejnev, que após a saída de Khrushchov, tentaria “reabilitar” o nome de Stalin. 

“Não devemos encobrir os erros, mas também não devemos encobrir os méritos, portanto, respeitemos Stalin.”

Em 1965, em uma comemoração dos vinte anos da Grande Guerra Patriótica, sob aplausos, citou pela primeira vez positivamente o nome de Stalin após sua morte, e disse que iria usar o mesmo título que usava o antigo líder, Secretário-Geral, o que na época era algo intolerável; realmente, Brejnev fora impedido por forças maiores de realizar a reabilitação de Stalin, mas seguiu uma política que se estruturava bastante nas raízes do Stalinismo, chamada Brejnevismo, que defendia a burocracia no estado, o culto da personalidade, a hegemonia soviética e o expansionismo do país, uma das poucas diferenças, era a invocação da paz pela parte desta doutrina; ficaria conhecida como “neostalinismo” e “doutrina Brejnev”.

Em 1979, centenário de seu nascimento, a mando de Leonid Brejnev, seu túmulo foi reformado e um busto do antigo líder erguido sobre ele, tornando-se um túmulo de herói nacional. 

Veja mais:

Família

A primeira esposa de Stalin, Ekaterina Svanidze, morreu em 1907, apenas quatro anos após seu casamento. Eles tiveram um filho, Yakov Dzhugashvili, que atirou em si mesmo por causa do tratamento duro de Stalin sobre ele, mas sobreviveu. Depois disso, Stalin disse: “Não consegue sequer atirar direito.” Yakov serviu no Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial e foi capturado pelos alemães. Eles ofereceram trocá-lo pelo Marechal de Campo Friedrich Paulus, que havia se rendido depois da Batalha de Stalingrado, mas Stalin recusou a oferta.

Depois, alega-se que Yakov morreu, em uma cerca elétrica no campo de concentração de Sachsenhausen, pelos guardas que vigiavam o campo, quando tentava escapar. Alguns dizem que cometeu suicídio, mas isso não foi provado. Yakov teve um filho, Yevgeny, que foi recentemente notável por defender o legado de seu avô em tribunais russos. Yevgeny é casado com uma mulher georgiana, tem dois filhos, e netos. 

Sua segunda esposa foi Nadezhda Alliluyeva que morreu em 1932, oficialmente de doença. Ela pode ter cometido suicídio, atirando-se depois de uma briga com Stalin, deixando uma nota de suicídio que, segundo a sua filha era “em parte pessoal, em parte política.” De acordo com Biografia A&E, há também uma crença entre alguns russos que Stalin assassinou sua esposa após a briga, o que aparentemente aconteceu em um jantar em que Stalin sarcasticamente acendeu cigarros pela mesa para ela.

Os historiadores também afirmam que a morte da esposa, finalmente, “cortou sua ligação da realidade”. Com ela, Stalin teve um filho, Vasily Dzhugashvili, e uma filha, Svetlana Alliluyeva. Vasili seguiu carreira militar na Força Aérea Soviética, morrendo em consequência do abuso de álcool em 1962, no entanto, isto ainda está em discussão. Distinguiu-se na Segunda Guerra Mundial como um hábil aviador. 

Segundo Svetlana, a morte da mãe “afastara da alma de Stalin os últimos vestígios de calor humano.” Deixou a URSS em 1967 para visitar a Índia, onde solicitou asilo político na embaixada americana em Nova Deli. A KGB elaborou um plano para assassiná-la que não foi levado adiante. Adotou o nome Lana Peters e morreu em 2011 nos Estados Unidos. 

A mãe de Stalin, cujo funeral ele não compareceu, morreu em 1937. Alega-se que Stalin guardava rancor de sua mãe por obrigá-lo a entrar no seminário.

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Joseph Lister https://canalfezhistoria.com/joseph-lister/ https://canalfezhistoria.com/joseph-lister/#respond Mon, 17 Mar 2025 18:23:42 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6234 Joseph Lister, 1º Barão de Lister, OM, PRS (West Ham, 5 de abril de 1827 — Walmer, 10 de fevereiro de 1912), foi um médico, cirurgião e pesquisador britânico, pioneiro nas técnicas de antissepsia nas cirurgias, considerado o “pai” da cirurgia moderna. 

Iniciou uma nova era no campo da cirurgia quando demonstrou, em 1865, que o ácido carbólico era um efetivo agente antisséptico, o que reduziu o número de mortes por infecções pós-operatórias. Lister promoveu a prática, enquanto trabalhava na Glasgow Royal Infirmary, de que técnicas estéreis na cirurgia impediam a infecção pós-operatória, que levavam à sepsis, necrose de tecidos e morte por infecção generalizada.

Apoiado nos avanços em microbiologia promovidos por Louis Pasteur, Lister indicou o sucesso de sua técnica com o uso do ácido carbólico como antisséptico depois de observar que o uso da substância como desinfetante fez diminuir sensivelmente o odor de esgoto que assolava as cidades britânicas na época. Lister então empregou o uso do ácido carbólico na redução de infecções pós-operatórias, o que tornou as cirurgias seguras para os pacientes e para os médicos, tornando-o assim o “pai” da moderna cirurgia.

Primeiros anos

Lister nasceu em West Ham, Condado de Essex, em 5 de abril de 1827, em uma próspera família quacre. Era filho do enólogo e cientista amador Joseph Jackson Lister, pioneiro na produção de lentes acromáticas para microscópios e sua esposa, Isabella. Era o quarto filho do casal e o segundo filho homem entre sete irmãos. 

Joseph Jackson cuidava do negócio de vinhos da família, ainda que muitos quacres se abstivessem do consumo de álcool. Interessado por ciência e óptica desde criança, Joseph se debruçava sobre o microscópio, vendo-o como uma ferramenta científica e não um mero brinquedo caro como muitos contemporâneos da época. A paixão de Lister pela ciência começou no pequeno laboratório do pai, onde usava o microscópio para investigar a natureza.

Entre os anos de 1824 e 1843, Joseph trabalhou para corrigir diversos defeitos do microscópio, incluindo uma distorção nas lentes que produzia uma auréola roxa em torno dos objetos, o que levava a muitos a desconfiar da precisão e revelações que um microscópio pudesse fornecer. Seu trabalho lhe rendeu uma membresia na Royal Society em 1832. Joseph insistia que seus filhos lessem todos os dias pela manhã, tendo uma biblioteca com diversos volumes tanto religiosos quanto científicos. Joseph também era um quacre devoto, que não submetera a família a tratamentos médicos perigosos, pois acreditava na intervenção divina sobre a doença, acreditando que muitas substâncias usadas em terapias eram mais prejudiciais do que benéfica.

Lister foi o primeiro da turma em francês e alemão na escola, tendo também sido bem-sucedido em história natural, ciências e matemáticas.

Lister cresceu em uma propriedade onde tinha contato com a natureza e podia investigar o mundo natural. Fazia esboços com grande precisão de estruturas que via pelo microscópio do pai e fazia dissecações em casa e sempre anotava os feitos e os comentava com o pai. Mas Lister surpreendeu a família ao anunciar a decisão de que gostaria de se tornar cirurgião. O trabalho dos cirurgiões na época carregava um estigma social, visto como um trabalhador braçal, que usava as mãos para ganhar a vida. Não era considerada uma profissão de respeito e prestígio. Cirurgiões dificilmente eram empregados em hospitais e muitos ganhavam a vida com clínicas particulares. 

University College

Aos 17 anos, Lister ingressou na University College London, uma das poucas instituições na época que aceitava estudantes quacres. Saindo de um pequeno vilarejo de pouco mais de 12 mil habitantes foi um choque chegar à cosmopolita Londres. Inicialmente estudou botânica, obtendo um bacharelado em artes em 1847, atendendo aos desejos do pai. 

Registrou-se como estudante de medicina e se formou com honras, ingressando em seguida na Faculdade Real de Cirurgiões da Inglaterra, aos 26 anos. Contraiu varíola por volta dessa época, junto do irmão, mas se recuperou. Seu irmão John sobreviveu à doença, mas depois desenvolveu um tumor cerebral, que lhe tirou a visão, os movimentos das pernas, enfim vindo a falecer em 1846, com apenas 23 anos de idade, morte que marcou profundamente seu pai, Joseph Jackson.

Uma crise de consciência abateu Lister depois da morte do irmão, questionando-se se sua vocação deveria ser na congregação quacre ao invés da cirurgia. Seu pai o convenceu a permanecer na medicina, mas ainda assim Lister abandou a faculdade no começo de 1848, em depressão. 

Lister passou um ano viajando pela Grã-Bretanha e depois pela Europa, até retornar a Londres. Em 1849, matriculou-se novamente na University College London, dedicando-se novamente à cirurgia. Praticava suas habilidades no anfiteatro cirúrgico da instituição e nas horas vagas comprava peças anatômicas para estudar em casa. Um ano depois de iniciados os estudos, Lister iniciou sua residência cirúrgica no University College Hospital, em outubro de 1850. Alguns meses depois, foi oferecido a ele um cargo de auxiliar cirúrgico de John Eric Erichsen, cirurgião sênior da instituição. Lister dava plantões noturnos no hospital, onde aproveitava as horas vagas para estudar. Chegou a depor em um caso de tentativa de feminicídio na corte depois de atender uma mulher esfaqueada pelo marido. 

Em 1852, Lister fez grandes contribuições à ciência ao usar seu microscópio para examinar a estrutura do olho humano, corroborando a hipótese de que a íris se compunha de fibras de musculatura lisa e que suas ações eram involuntárias, indo contra o que se achava na época. Porém ainda demoraria muito tempo para que os experimentos com uso de microscópio fossem vistos como úteis para a medicina. Por volta dessa época, a enfermaria sob administração de John Eric Erichsen apresentou vários casos de gangrena.

Na época se atribuía ao ar ruim as epidemias em hospitais de piemia, gangrena e infecção hospitalar generalizada. Mas Lister observou corretamente que quando se lavava e retirava tecido morto de uma úlcera gangrenosa, a tendência do tecido era a da recuperação. Lister não estava convencido de que os miasmas eram totalmente responsáveis pelas infecções.

Lister terminou sua residência com Erichsen em fevereiro de 1852 e aceitou a nomeação de assistente clínico no University College, período em que foi bastante condecorado e homenageado pelos membros do hospital por seu trabalho. Seus experimentos científicos eram vistos com ironia por grande parte dos colegas, que não viam utilidade no microscópio. Foi assim que um professor sugeriu que Lister passasse um tempo viajando pelos hospitais da Europa, para ver de perto avanços da medicina. Seu professor indicou que começasse pela Escócia, onde o renomado cirurgião James Syme era professor de cirurgia na Universidade de Edimburgo. Lister embarcou em setembro de 1853. 

Edimburgo

James Syme era conhecido por uma inovadora técnica de amputação na articulação do tornozelo, ainda usada nos dias de hoje, que permitia ao paciente a suportar o peso sobre o coto do tornozelo, dando-lhe uma maior mobilidade e independência do que técnicas anteriores. Em uma carta redigida ao pai, Lister explicou suas razões para a viagem a Edimburgo: 

“Não terei, como em Londres, que lutar contra rivais invejosos e combater ou me aliar ingloriamente a charlatães (…) Por temperamento sou muito avesso a brigar e disputar com os outros; na verdade, duvido que conseguisse enfrentá-las.”

Pouco depois de chegar a Edimburgo, ele se apresentou a Syme com uma carta de recomendação, sendo bem recebido pelo colega, que era responsável por três enfermarias na Royal Infirmary. Logo Lister se tornou braço direito de Syme no hospital, tornando-se seu cirurgião residente em 1854. Syme era uma inspiração e um modelo para Lister, que discorria sobre sua admiração ao velho cirurgião em cartas para a família. Rapidamente, Lister ganhou a admiração e o respeito dos colegas, em especial pela forma respeitosa com que tratava os pacientes. 

Muito amigo de Syme, Lister frequentava sua casa e era convidado para jantares e foi em um desses que conheceu uma das filhas de Syme, Agnes, por quem se apaixonou e tinha intenção de casar o quanto antes. Porém, a família Syme não era quacre, eram da Igreja Episcopal da Escócia e assim Lister precisou se desligar de sua congregação para que o casamento acontecesse. Lister se preocupava em perder o apoio financeiro do pai, já que seu trabalho como cirurgia não lhe rendia um salário fixo, mas seu pai não desamparou o filho nem a futura nora.

Eles se casaram em 23 de abril de 1856, no salão de festas da casa de Syme, em consideração aos parentes quacres de Lister que não quisessem entrar em uma igreja. O casal passou os três meses da lua de mel visitando hospitais na França e na Alemanha e Agnes se tornou uma importante assistente para os estudos de Lister. 

Antissepsia

Antes que Lister se debruçasse sobre as causas das infecções hospitalares, acreditava-se que a exposição aos compostos venenosos no ar eram os responsáveis. O mau cheiro nas alas hospitalares causadas pelos pacientes em condições de total falta de higiene pareciam corroborar o senso comum. Apesar de muitas enfermarias terem grandes janelas que permitissem a ventilação dos locais, não havia a noção de que era necessário lavar as mãos quando se examinasse os pacientes nem que se lavassem incisões e machucados abertos. Os cirurgiões acreditavam que a presença de pus era salutar para as feridas. 

As cirurgias eram praticadas sem qualquer condição de higiene. Não havia troca de roupas entre um procedimento ou outro e era comum que os aventais estivessem imundos, com crostas secas de sangue e pus por cima. Acreditava-se ainda que as manchas de sangue e a “fedentina hospitalar” eram marcas de um bom exercício da profissão. Antes de Lister, médicos como Ignaz Semmelweis e Oliver Wendell Holmes Sr. já tinham pontuado a necessidade de se lavar feridas, mãos e de se trocar com frequências bandagens e roupa de cama dos pacientes.

Enquanto era professor de cirurgia da Universidade de Glasgow, Lister entrou em contato com um artigo publicado pelo químico francês Louis Pasteur, mostrando que a deterioração de alimentos poderia ocorrer sob condições anaeróbicas se micro-organismos estivessem presentes. Pasteur sugeria três métodos para eliminar os micro-organismos: filtração, exposição ao calor ou exposição a antissépticos. Assim, Lister se concentrou em encontrar um antisséptico eficaz para matar os micro-organismos sem causar danos ao paciente. No começo de 1865, Lister começou a testar vários antissépticos, testando as substâncias mais comuns da época, como o líquido de Condy. 

“Quando li o artigo de Pasteur, eu disse a mim mesmo: assim como podemos destruir piolhos na cabeça cheia de lêndeas de uma criança, mediante a aplicação de um veneno que não causa nenhuma lesão no couro cabeludo, creio que possamos aplicar nos ferimentos de um paciente produtos tóxicos que destruam as bactérias sem danificar as partes sensíveis do tecido.”

Em 1834, Friedlieb Ferdinand Runge descobriu o fenol, também conhecido como ácido carbólico, derivado de uma forma impura de alcatrão de hulha. Quando Lister soube que o ácido carbólico vinha sendo usado para tratar esgoto, ele decidiu testar a eficácia da substância, aplicando-a diretamente nas feridas dos pacientes. 

Lister começou a borrifar instrumentos, incisões cirúrgicas e aventais com uma solução de ácido carbólico, descobrindo que uma lesão borrifada com a substância dificilmente evoluía para uma gangrena. Em agosto de 1865, Lister aplicou uma camada de ácido carbólico em solução na ferida de uma criança de 7 anos de idade, em fratura exposta, depois que a roda de uma carroça passou por cima de sua perna. Lister limpava o ferimento e renovava os curativos e descobriu que nenhuma infecção tinha se espalhado. Depois de seis semanas, o garoto teve alta do hospital. Lister publicou suas descobertas na revista The Lancet, em uma série de seis artigos, de março a julho de 1867. 

Na categoria de professor, ele começou a instruir seus alunos e colegas a lavar as mãos antes das cirurgias com uma solução de 5% de ácido carbólico. Instrumentos deveriam ser lavados com a mesma substância e o anfiteatro cirúrgico deferia ser desinfetado com a aspersão no ar de ácido carbólico. Roupas deveriam ser trocadas e lavadas com frequência e feridas deveriam ser meticulosamente tratadas com a solução para evitar infecções. 

Lister deixou a Universidade de Glasgow em 1869 para assumir o cargo deixado pelo professor George Husband Baird MacLeod. Retornaria a Edimburgo como sucessor de Syme como professor de cirurgia na universidade e continuaria a desenvolver e melhorar métodos de antissepsia. Sua fama começou a se espalhar pela Grã-Bretanha. Uma aula sua era concorrida, com até 400 ouvintes se apertando no anfiteatro cirúrgico. 

Críticas

Ainda que Lister tivesse razão sobre a falta de higiene dos cirurgiões que levassem à morte de seus pacientes e que os antissépticos deveriam ser empregados em todas as etapas da cirurgia, Lister foi grandemente criticado por outros médicos que o acusavam inclusive de ser um charlatão. Muitos diziam que tentaram replicar os passos descritos por Lister e não obtiveram resultados satisfatórios, outros o acusavam de não ter feito nenhuma contribuição efetiva para a medicina, apenas copiando ideias e escritos de médicos anteriores. 

Nos Estados Unidos, que contribuiu para a cirurgia com a anestesia, a resistência era ainda maior, ainda que poucos cirurgiões compreendessem e aplicassem a técnica. O Massachusetts General Hospital, que uma vez ameaçou de demissão qualquer cirurgião que aderisse à técnica listeriana, começou a adotar a técnica depois que seu cirurgião-chefe reconheceu a eficácia da técnica. Foi o primeiro hospital dos Estados Unidos a fazer uso institucional das técnicas de Lister. Lister tinha apoiadores, como Marcus Beck, cirurgião do University College Hospital, que não apenas usava as técnicas do professor como também a incluiu na edição seguinte do manual cirúrgico em uso na época. 

O ácido carbólico, porém, apresentava problemas na aplicação. O spray no anfiteatro cirúrgico causava desconforto tanto respiratório quanto oftalmológico e o excesso dele nas bandagens causava lesão nos tecidos. Essas lesões eram o principal entrave para muitos cirurgiões adotarem a técnica, acreditando que isso interferia com o processo inflamatório, causando mais mal do que bem. A técnica também se baseava na teoria sobre os micro-organismos de Pasteur, que não era bem vista ou aceita por boa parte da comunidade médica. Muitos diziam que a técnica era difícil de compreender e aplicar pela incompetência de Lister, tanto como cirurgião como escritor. 

Últimos anos

Em 1871, Lister foi chamado às pressas para o leito da rainha Vitória, que finalmente tinha concordado em se deixar ser examinada por um cirurgião devido a um abcesso infectado na axila. A rainha aprovou os métodos de Lister, o que fez sua popularidade se espalhar, mas ainda havia resistência da classe médica de Londres. 

Lister se mudou de volta para Londres, para lecionar no King’s College Hospital e em 1881 foi eleito presidente da Clinical Society of London. Foi pioneiro no uso de categute em suturas e no uso de drenos em feridas, além de desenvolver um torniquete para a aorta. 

A esposa de Lister, Agnes, o auxiliou em sua pesquisa durante toda a vida, mas ela morreu na Itália, em 1893, em um dos poucos feriados que o casal se permitia aproveitar e depois disso, Lister se aposentou da prática médica. Sem vontade de estudar ou pesquisar, ele logo caiu em uma depressão. Apesar de ter sofrido um AVC, Lister ainda fazia visitas públicas e algumas palestras.

Em 24 de agosto, o rei Eduardo VII teve uma apendicite dois dais antes de sua coroação. Como todas as intervenções cirúrgicas da época, uma apendicectomia era bastante arriscada e vários cirurgiões consultados se negaram a realizar a operação. Lister então orientou os cirurgiões reais a utilizar seus métodos de assepsia e o rei foi operado, se recuperando bem em seguida. 

Morte

Joseph Lister morreu em 10 de fevereiro de 1912 em sua casa de campo em Walmer, Kent, aos 84 anos. Ele foi sepultado no Cemitério de Hampstead, em Fortune Green, Londres, depois de um funeral na Abadia de Westminster. Lister e a esposa Agnes não tiveram filhos e seus sobrinhos ficaram responsáveis por seu espólio e escritos. 

Legado e homenagens

Lister foi presidente da Royal Society entre 1895 e 1900. Depois de sua morte, um fundo foi criado, levando à criação da Medalha Lister, prestigiado prêmio oferecido a cirurgiões. O Instituto de Medicina Preventiva do Reino Unido, antes conhecido por Edward Jenner teve seu nome trocado em 1899 em homenagem a Lister. Desde então é chamado de The Lister Institute of Preventive Medicine. Lister é um dos dois cirurgiões do Reino Unido que têm um monumento público em Londres (o outro cirurgião é John Hunter), localizado em Portland Place, Marylebone. Há também uma estátua de Lister em Kelvingrove Park, Glasgow, celebrando sua ligação com a cidade. 

Suas descobertas e contribuições para a medicina e para a ciência levaram a rainha Vitória a criar um baronato para Lister em 1883, no Condado de Middlesex. Em 1897, foi nomeado Barão Lister, de Lyme Regis, no Condado de Dorset. Lorde Lister foi apontado para a Ordem do Mérito, na lista publicada em 16 de junho de 1902 em honra à coroação de Eduardo VII. Foi ordenado cavaleiro da coroa em 8 de agosto de 1902 e membro do conselho do Palácio de Buckingham, em 11 de agosto de 1902. 

Entre as honrarias internacionais, Lister recebeu a Pour le Mérite, do Reino da Prússia, uma das maiores honrarias na Europa na época. Em 1889 foi eleito como membro estrangeiro da Academia Real das Ciências da Suécia. Dois selos comemorativos foram confeccionados em 1965 em honra ao pioneirismo de Joseph Lister na cirurgia. 

Um edifício junto à Royal Infirmary, em Glasgow, que abriga os departamentos de citopatologia, microbiologia e patologia foi nomeado em homenagem a Lister e por seu trabalho no hospital. O Hospital Lister, em Stevenage, Hertfordshire, também é em sua homenagem.

Veja mais:

Em 1879, o antisséptico Listerine foi desenvolvido, primeiro como antisséptico cirúrgico e depois como enxaguante bucal, nomeado em homenagem a Lister. Vários micro-organismos foram nomeados em homenagem ao médico. A bactéria Listeria monocytogenes foi nomeada por J. H. H. Pirie.

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Júlio César https://canalfezhistoria.com/julio-cesar/ https://canalfezhistoria.com/julio-cesar/#respond Mon, 17 Mar 2025 18:19:51 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6225 Caio Júlio César (em latim: Caius ou Gaius Iulius Caesar ou IMP•C•IVLIVS•CÆSAR•DIVVS; 13 de julho de 100 a.C. – 15 de março de 44 a.C.) foi um patrício, líder militar e político romano. Desempenhou um papel crítico na transformação da República Romana no Império Romano. Muito da historiografia das campanhas militares de César foi escrita por ele próprio ou por fontes contemporâneas dele, a maioria, cartas e discursos de Cícero e manuscritos de Salústio. Sua biografia foi posteriormente melhor escrita pelos historiadores Suetônio e Plutarco. César é considerado por muitos acadêmicos como um dos maiores comandantes militares da história. 

Nascido em uma família patrícia de pequena influência, César foi galgando seu lugar na vida pública romana. Em 60 a.C., ele e os políticos Crasso e Pompeu formaram uma aliança (o Primeiro Triunvirato) que acabou dominando a política romana por anos. Suas tentativas de manter-se no poder através de táticas populistas enfrentavam resistência das classes aristocráticas conservadoras do senado romano, liderados por homens como Catão e Cícero.

César conquistou boa reputação militar e dinheiro durante as Guerras Gálicas (58–50 a.C.), expandindo os domínios romanos para o norte até o Canal da Mancha, anexando a Gália (atual França), e no leste até o Reno (dentro da atual Alemanha). Ele também se tornou o primeiro general romano a lançar uma incursão militar na Britânia.

Suas conquistas lhe deram enorme poderio militar e respeito, que acabou ameaçando a posição do seu companheiro político, e agora rival, Pompeu Magno. Este último havia mudado de lado, após a morte de Crasso em 53 a.C., e agora apoiava a ala conservadora do senado. Com a guerra na Gália encerrada, os senadores em Roma exigiram que César dispensasse seu exército e retornasse à capital. Recusou-se a obedecer e em 49 a.C. cruzou o rio Rubicão com suas legiões, entrando armado na Itália (em violação da lei romana que impedia um general de marchar em Roma). Isso precipitou uma violenta guerra civil, que terminou com uma vitória de César, com ele assumindo poder total na República. 

Em 49 a.C., César assumiu o comando em Roma como um ditador absoluto. Ele iniciou então uma série de reformas sociais e políticas, incluindo a criação do calendário juliano. Continuou a centralizar o poder e a burocracia da República pelos anos seguintes, dando a si mesmo grande autoridade. Porém a ferida da guerra civil ainda estava aberta e a oposição política em Roma começou a conspirar para derrubá-lo do poder.

As conspirações culminaram nos Idos de Março em 44 a.C. com o assassinato de César por um grupo de senadores aristocratas liderados por Marco Júnio Bruto. Sua morte precipitaria uma nova guerra civil pelos espólios do poder e assim o governo constitucional republicano nunca foi totalmente restaurado. O seu sobrinho-neto, Caio Otaviano, foi feito seu herdeiro em testamento. Em 27 a.C., o jovem passaria para a história como Augusto, o primeiro imperador romano, adotando o título de César e reivindicando para si o seu legado político. 

Infância e carreira inicial

Júlio César nasceu em uma família patrícia, a gente Júlia, que afirmava ser descendente de Ascânio, filho do legendário troiano Eneias, que por sua vez era, segundo a mitologia romana, filho da deusa Vênus. O seu cognome “César” se originou, de acordo com Plínio, o Velho, com um ancestral seu nascido de cesariana (palavra do latim que quer dizer “cortar”, caedere, caes).

A História Augusta sugere três razões para o seu nome: a primeira é que César nasceu com muito cabelo (em latim caesaries); que tinha olhos cinza bem claro (em latim: oculis caesiis); ou que matou um elefante (caesai) em batalha. O próprio César mandou fabricar moedas com retrato de elefantes, sugerindo que favorecia esta interpretação do seu nome. 

Apesar de pertencer a uma família tradicional da aristocracia romana, os Júlios Césares (Julii Caesares) não eram muito influentes politicamente em Roma, apesar de que, no século anterior, membros desta família conseguiram altos cargos na República. O pai de César, também chamado Caio Júlio César, governou a província da Ásia, e sua tia Júlia era casada com o general Caio Mário, uma das figuras políticas mais importantes em Roma naquela época. Sua mãe, Aurélia Cota, era membro influente na família. Pouco é sabido sobre a infância de César.

Em 85 a.C., o pai de César morreu subitamente. Assim, aos 16 anos, tornou-se o chefe da família. Ao mesmo tempo, eclodiu uma guerra civil entre o seu tio, Caio Mário, e o seu rival, o general Sula. Ambos os lados realizaram expurgos, quando puderam, dos partidários do seu adversário, incluindo nas famílias deles. Enquanto Mário e seu aliado, Lúcio Cornélio Cina, estavam no controle da cidade, César foi nomeado como o novo alto-sacerdote de Júpiter, e então casou-se com a filha de Cina, Cornélia.

Após a vitória final de Sula, as conexões de César com o regime de Mário fizeram dele um alvo do novo governo: foi despojado de sua herança, do dote de sua esposa e do seu sacerdócio, mas se recusou a se divorciar de Cornélia e foi forçado a fugir e se esconder. A ameaça contra ele minguou depois que uma investigação na família de sua mãe mostrou que alguns deles apoiaram Sula e eram vestais. Sula desistiu de perseguir César, mas afirmou que viu muito de Mário nele. 

Apesar do perdão, César não se sentia seguro com Sula ainda no poder. Preferiu ficar afastado de Roma e se juntou ao exército, servindo sob comando de Marco Minúcio Termo na Ásia e Servílio Isáurico na Cilícia. César serviu com distinção, ganhando a coroa cívica por sua participação no cerco de Mitilene. Numa missão na Bitínia, para assegurar o apoio da frota de Nicomedes IV, teve que ficar tanto tempo na sua corte que rumores surgiram de que estava tendo um caso amoroso com o rei, algo que sempre negou.

Ao ouvir da morte de Sula em 78 a.C., retornou para Roma. Devido à falta de dinheiro como resultado do confisco de sua herança, alugou uma casa modesta em Subura, um bairro de classe baixa de Roma. Tornou-se então advogado e ficou conhecido por sua boa oratória, sempre fazendo firmes gestos com os braços e por ter uma voz alta. Também ficou notório por processar ex-governadores acusados de extorsão ou corrupção, logo ficando conhecido pelo povo por causa disso. 

Durante uma viagem, no meio do mar Egeu, César foi sequestrado por piratas e feito prisioneiro. Manteve uma atitude de superioridade durante o seu cativeiro: quando os piratas exigiram 20 talentos de prata como resgate, insistiu que exigissem 50. Com o valor pago, foi libertado; em retaliação pelo episódio, César recrutou uma frota, perseguiu, capturou os piratas e os crucificou, como havia prometido durante o cativeiro – uma promessa que seus sequestradores haviam considerado uma piada. Como um sinal de “clemência”, aliviou-lhes a dor da crucificação facilitando a sua morte, ao cortar-lhes as gargantas. Pouco tempo depois, foi reconvocado pelo exército, servindo no leste. Naquele momento a reputação de César como um competente comandante militar começou a se formar. 

Quando retornou para Roma, foi eleito um tribuno militar, sinalizando o início de uma carreira política. Foi então eleito questor por 69 a.C., e durante este mesmo ano fez um discurso durante o funeral de sua tia Júlia e incluiu palavras de apoio ao marido dela, o general Mário (como Sula estava morto, agora era seguro). Ainda naquele ano, sua esposa, Cornélia, morreu. Após seu enterro, na primavera ou começo do verão de 69 a.C., César foi servir como questor na Hispânia.

Por lá teria encontrado uma estátua do rei macedônio Alexandre, o Grande, e percebeu, com desgosto, que havia chegado na mesma idade de Alexandre (que fora um grande conquistador) sem ter conseguido muita coisa na vida. Ao retornar para casa, em 67 a.C., casou-se com Pompeia, que era neta de Sula (os dois se divorciaram mais tarde). 

Em 65 a.C., aliou-se a Crasso, um dos homens mais ricos de Roma, e conseguiu apoio financeiro deste para se eleger edil no mesmo ano. Em 63 a.C., concorreu ao posto de pontífice máximo, o alto sacerdote da religião romana, concorrendo contra dois senadores. Todos os lados se acusaram de subornos e outros crimes. Ainda assim, César venceu, derrotando oponentes mais experientes. Quando Cícero, servindo na época como cônsul, expôs um esquema por parte de Lúcio Sérgio Catilina para tomar o controle da República, vários senadores acusaram César de participar do complô, algo que ele negou. 

Depois de servir também no cargo de pretor em 62 a.C., César foi nomeado para governador da Hispânia Ulterior (sudeste da Espanha) como promagistrado, embora alguns acreditem que também detinha poderes proconsulares (de governador). Ainda estava profundamente endividado e precisava satisfazer os seus credores antes de partir, o que levou-o a procurar Crasso. Em troca do seu apoio político em oposição a algumas políticas do general Pompeu, Crasso pagou uma parte da dívida de César e agiu como fiador do resto.

Ainda assim, para evitar que se tornasse um cidadão privado normal e assim ficasse aberto a um processo legal devido a suas dívidas, César partiu para governar suas províncias antes que seu pretorado terminasse. Enquanto na Hispânia, subjugou duas tribos locais e foi saudado como imperator (comandante) por suas tropas, terminando seu mandato como governador local com uma boa reputação. César teve o título de imperator em 60 a.C. e 45 a.C.. Na República Romana, este título honorífico só era conferido a certos líderes militares.

Tropas do exército costumavam proclamar seu general como imperator depois que conquistavam grandes vitórias e homens com esse título poderiam solicitar uma marcha triunfal ao senado. Contudo, também queria a posição de cônsul, a mais alta magistratura da República. Se fosse celebrar um triunfo, deveria permanecer como um soldado e ficar fora da cidade até a cerimônia, mas para concorrer às eleições teria que abrir mão do seu comando e entrar na Itália desarmado como um cidadão privado comum; pediu então ao senado para que pudesse concorrer in absentia, mas o senador Catão, o Jovem, que não gostava de César, bloqueou a proposta.

Como não podia mesmo pedir um triunfo como comandante militar e ser cônsul ao mesmo tempo, César preferiu perseguir o consulado. 

Cônsul e campanhas militares

Em 60 a.C., César tentou se candidatar para as eleições para cônsul no ano seguinte, junto com outros dois candidatos. A eleição foi sórdida – até Catão, com sua reputação de incorruptibilidade, teria partido para subornos para tentar favorecer os oponentes de César. Ainda assim venceu, junto com o conservador Marco Calpúrnio Bíbulo. César já estava em dívida política com Crasso, mas também se aproximou de Pompeu. Pompeu e Crasso já não se entendiam bem como antes, então César tentou reconciliá-los.

Os três tinham dinheiro e influência política suficiente para controlar a vida pública da nação. Esta aliança informal, que ficou conhecida como Primeiro Triunvirato (“governo de três”), foi consolidada pelo casamento entre Pompeu e a filha de César, Júlia. César também se casou novamente, com Calpúrnia Pisão, filha do poderoso senador Lúcio Calpúrnio Pisão Cesonino. 

César então propôs uma redistribuição de terras públicas, pela força se necessário, para beneficiar os mais pobres. Pompeu e Crasso apoiaram a proposta, tornando público o triunvirato. Pompeu encheu as ruas de tropas, com o objetivo de intimidar os inimigos dos triúnviros. Bíbulo declarou que os presságios eram desfavoráveis e tentou anular a nova lei, mas foi afastado do senado por homens armados a mando de César e forçado a aposentar-se. Bíbulo não foi o único que sofreu com a repressão.

Qualquer um que mostrasse oposição às ideias do Triunvirato (especialmente as de César) era preso. Quando César foi eleito para cônsul, a aristocracia tentou limitar seu poder futuro, especialmente para evitar que tivesse comando militar. Porém, com a ajuda de aliados, César foi nomeado governador da Gália Cisalpina (norte da Itália) e Ilírico (sudeste da Europa), com a Gália Transalpina (sul da França) sendo adicionada mais tarde, dando-lhe comando de quatro legiões completas. Seu mandato de governador seria de cinco anos e, com o cargo, teria imunidade processual. Quando seu consulado terminou, César fugiu para suas províncias para evitar ser processado por irregularidades cometidas em seu mandato. 

Conquista da Gália

César estava atolado em dívidas, mas como governador podia ganhar muito dinheiro, especialmente através de extorsão e aventuras militares. Seu objetivo não era só ganhar dinheiro, mas conseguir glória nos campos de batalha; anexar novos territórios a Roma também lhe traria ganhos políticos e o respeito do povo. Possuía quatro legiões sob seu comando e duas províncias que tinham fronteira com territórios não conquistados. A região mais vulnerável era a Gália, profundamente dividida e instável e habitada por tribos com vocação guerreira, que no passado já haviam derrotado Roma em combate.

O pretexto para a invasão romana veio quando tribos gálicas aliadas a Roma foram derrotadas por rivais, estes apoiado por guerreiros germânicos, na batalha de Magetóbriga. César usou o receio de que estas tribos tentassem migrar para regiões próximas à península Itálica e que tivessem intenções belicosas para justificar uma incursão militar na Gália. César então recrutou mais legiões e derrotou estas tribos em batalha na fronteira do império. 

Em resposta às atividades de César, as tribos do norte da Gália começaram a se armar. Júlio César viu isso como um movimento agressivo e, depois de uma batalha inconclusiva, partiu para derrotar cada uma das tribos gaulesas de forma separada. Enquanto isso, uma das suas legiões conseguiu avançar até o extremo norte da Gália, chegando à margem oposta à Britânia. Na primavera de 56 a.C., os triúnviros fizeram uma reunião de emergência.

A situação em Roma era tensa e a aliança política de que César dependia estava se desfazendo. A Conferência de Luca renovou o Primeiro Triunvirato e deu mais cinco anos de mandato para César como governador de suas províncias. Enquanto isso, a conquista do norte da Gália havia sido completada, embora alguns bolsões de resistência permanecessem.

Em 55 a.C., César repeliu uma invasão de tribos germânicas na Gália. Então construiu pontes sobre o rio Reno e avançou no território germânico para demonstrar força, mas depois recuou. Mais tarde naquele verão, teve que sufocar uma rebelião na Bélgica. Acusando os britões de interferir em sua guerra, lançou uma invasão da Britânia.

Suas informações da região eram ruins, e apesar de ele ter conquistado uma consistente base costeira, não conseguiu avançar dentro do território britânico e decidiu retornar para a Gália para o inverno. Regressou à Britânia no ano seguinte, melhor preparado e com mais tropas, e conseguiu avançar mais: conquistou territórios e fez alianças, porém retornou quando uma revolta, decorrente da má colheita, eclodiu no coração da Gália. 

Enquanto César estava na Britânia, sua filha Júlia, esposa de Pompeu, morreu no parto do seu primeiro filho. César tentou revitalizar sua aliança com Pompeu ao oferecer sua sobrinha-neta em casamento, mas a proposta foi recusada. Pompeu preferiu se casar com Cornélia Metela, filha de Metelo Cipião, um dos maiores adversários de César no senado.

Em 53 a.C., Crasso foi morto na Batalha de Carras durante a mal sucedida invasão romana do Império Parta. Sua morte marcou o fim do triunvirato e o falecimento de Júlia foi o ponto final de ruptura entre César e Pompeu. A República agora estava em pé de uma nova guerra civil. Pompeu, agora com apoio completo da aristocracia conservadora, foi nomeado pelo senado como o único cônsul em Roma. 

Em 53 a.C. quase toda a Gália, Bélgica e partes da fronteira com a Germânia estavam sob controle militar romano depois de apenas cinco anos de guerra. Embora, na verdade, os gauleses fossem tão bons guerreiros quanto os romanos, suas divisões internas garantiram a vitória de Júlio César, que soube explorar bem a desunião gaulesa e as habilidades de suas próprias tropas. Ainda assim, os gauleses tentariam uma última vez se livrar do jugo romano. Vercingetórix, chefe da tribo dos Arvernos, liderou os gauleses em revolta.

A 52 a.C. boa parte das tribos da Gália já estavam unidas em apoio à revolta contra Roma. Vercingetórix provou ser um comandante astuto, derrotando os romanos em alguns confrontos. Porém César trouxe reforços e forçou o recuo do principal exército gaulês. Os romanos empurraram Vercingetórix à cidade de Alésia, onde habilmente o cercaram e derrotaram e também repeliram reforços que tentaram furar o cerco. Apesar de o conflito ter prosseguido, na forma de guerrilha, pelos dois anos seguintes, a conquista da Gália foi assegurada com a rendição de Vercingetórix e suas forças em Alésia.

O historiador Plutarco estima que o número de gauleses mortos passou de um milhão, além de outro milhão de pessoas terem sido feitas escravas. Os romanos subjugaram mais de 300 tribos e destruíram pelo menos 800 cidades. 

Apesar de César provavelmente ter exagerado os números para fazer sua vitória parecer maior do que realmente foi, a Gália realmente sofreu com a guerra e milhares de pessoas foram mortas. Em 50 a.C., após oito anos de guerras, a resistência gaulesa contra a ocupação romana estava completamente morta. A região permaneceria como parte do Império Romano pelos próximos quinhentos anos.

César faria fortuna vendendo milhares de pessoas à escravidão, além de também vender bens e produtos saqueados das cidades da Gália. Mais importante que o dinheiro, sua conquista deu-lhe boa reputação militar, além de respeito e amor por parte da população em geral. O exército que comandou também passou a idolatrá-lo e ter orgulho de servi-lo (algo que contribuiu para isso, além dos sucessos no campo de batalha, era sua campanha para dar terras e outros benefícios para os seus veteranos). 

Guerra Civil

Em 50 a.C., o mandato de Júlio César como governador acabou, terminando assim sua imunidade processual. O senado, liderado por Pompeu, ordenou que César dispensasse suas legiões e retornasse para Roma. Sem essa imunidade que desfrutava como magistrado, temia que fosse processado pelos senadores. Pompeu e a aristocracia romana acusavam-no de insubordinação e traição. Júlio César então afirmou que não tinha opção a não ser lutar pelos seus direitos. A lei romana proibia que qualquer general entrasse na Itália com seu exército.

Ainda assim, em janeiro de 49 a.C., César cruzou o rio Rubicão (a fronteira oficial da Itália) com apenas uma legião (a XIII), dando início à guerra civil. Ao atravessar o Rubicão, segundo Plutarco e Suetônio, César teria citado a famosa frase do dramaturgo ateniense Menandro, “Alea jacta est” (“o dado está lançado”). Erasmo de Roterdã, contudo, afirma que a tradução do grego mais precisa no modo imperativo seria “alea iacta esto” (“deixe o dado ser lançado”). 

Pompeu não tinha como montar uma defesa coesa e decidiu, acompanhado pela maioria dos senadores, fugir para o sul para tentar recrutar mais tropas. Apesar de ter mais soldados que César, que tinha apenas uma legião sob seu comando, Pompeu não queria lutar. César o perseguiu, pretendendo capturá-lo. Pompeu conseguiu fugir, tomando refúgio na Grécia junto com o senado. César não tinha uma frota e, enquanto seus navios eram construídos, partiu até a província da Hispânia, deixando a Itália sob controle do general Marco Antônio, seu segundo em comando.

Após marchar de Roma até a Hispânia com seu exército em apenas 27 dias, derrotou os partidários de Pompeu por lá. Depois partiu, de navio, até a Ilíria, onde enfrentou Pompeu e quase foi derrotado na Batalha de Dirráquio, mas conseguiu evitar ser capturado e saiu com boa parte das tropas intactas. César, contudo, não podia ficar rodeando a Grécia por muito tempo, pois ficaria sem suprimentos. Finalmente, a 9 de agosto de 49 a.C., Pompeu e César travaram a importante Batalha de Farsalos. Mesmo em desvantagem numérica de quase três para um, César derrotou o rival e colocou seu exército em fuga. Esta batalha se provaria decisiva na guerra civil.

Em Roma, César foi nomeado ditador, com Marco Antônio como seu mestre da cavalaria (vice-comandante); César presidiu sobre sua própria eleição que lhe deu seu segundo consulado. Derrotados, Pompeu e o senado decidiram se separar. Pompeu fugiu para o Egito, com César em seu encalço. Chegando lá, foi presenteado pelas autoridades locais com a cabeça de Pompeu. César ficou furioso e ordenou a prisão (e depois execução) dos responsáveis.

Decidiu permanecer no Egito por um tempo, presenciou a guerra civil entre o jovem Ptolemeu XIII e sua irmã e co-regente Cleópatra VII. César decidiu apoiar esta última e resistiu ao cerco de Alexandria antes de derrotar Ptolemeu XIII na Batalha do Nilo de 47 a.C., instalando Cleópatra como a única governante. César e Cleópatra saíram para comemorar sua vitória com uma procissão triunfal pelo rio Nilo, acompanhados de 400 navios. Na festa, ele foi introduzido às extravagâncias dos faraós egípcios. 

César e Cleópatra se tornaram amantes, ficando juntos em Alexandria por mais um ano. Os dois não podiam se casar, pois a lei romana não reconhecia o casamento de um cidadão com uma não romana. Porém, relacionamento com um bárbaro não era considerado adultério. Os dois teriam gerado um filho juntos, Cesarião, e Cleópatra visitou Roma pelo menos uma vez, residindo na vila de César nas margens do rio Tibre. Ao fim de 48 a.C., César foi novamente nomeado ditador, com o mandato de um ano.

Após resolver os problemas no Egito, partiu para o Oriente Médio, onde conquistou uma vitória fácil contra o rei Fárnaces II de Ponto; sua vitória foi tão rápida e tão fácil que teria zombado da vitória difícil anterior de Pompeu sobre estes. Ao vencer mais um inimigo, César teria dito sua famosa frase “Veni, vidi, vici” (“Vim, vi, venci”). 

Depois partiu para o norte da África para derrotar as forças do senado por lá. Conquistou uma vitória decisiva, em 46 a.C., sobre as tropas de Catão, o Jovem, que acabou cometendo suicídio logo depois. No mesmo ano derrotou outra tropa senatorial, na batalha de Tapso, em que foi morto Metelo Cipião, um dos líderes da facção anticesarina no senado. César foi então nomeado ditador pelos dez anos seguintes.

Os filhos de Pompeu fugiram para a Hispânia e lá prepararam a última resistência contra César. Finalmente, na batalha de Munda (março de 45 a.C.), derrotou o último bastião da resistência armada contra ele. Nesse meio tempo, com um senado reduzido, formado basicamente por seus partidários, César foi eleito para um terceiro e quarto mandatos como cônsul (em 46 e 45 a.C. respectivamente). 

Governo

Enquanto ainda estava em uma campanha na Hispânia, o senado concedera diversas honras a César. Ele preferiu não se vingar dos inimigos, preferindo perdoar a maioria deles. Por parte da população comum não havia uma forte oposição. Grandes jogos e celebrações aconteceram em abril para celebrar sua vitória em Munda. Plutarco escreveu que muitos romanos acreditavam que aquela celebração foi de mal gosto, pois foi uma vitória contra outros romanos, no meio de uma guerra civil.

Quando César retornou à Itália, em 45 a.C., protocolou oficialmente seu testamento, nomeando seu sobrinho-neto Caio Otávio (ou Otaviano, mas que viria a ser conhecido como Augusto César) como seu principal herdeiro, deixando-lhe diversas propriedades e vastas quantidades de dinheiro. César escreveu também que caso Otávio morresse antes dele, Décimo Júnio Bruto Albino seria o seu próximo herdeiro. No testamento também deixou presentes e dinheiro para os cidadãos de Roma. 

Durante o começo da sua carreira, César testemunhou o quão disfuncional e caótica a República Romana se tornara. A máquina republicana havia quebrado sob o peso do imperialismo, perda de poder das autoridades centrais na capital, com as províncias se tornando praticamente principados independentes sob controle total dos governadores e ainda com o exército profundamente polarizado e sendo usado para fins políticos. Com o governo central enfraquecido, a corrupção política havia saído do controle e o status quo era mantido por uma aristocracia corrupta que não via necessidade de mudar um sistema que perpetuava suas riquezas. 

Entre a travessia do rio Rubicão em 49 a.C. e o seu assassinato em 44 a.C., César estabeleceu uma nova constituição, que deveria alcançar três objetivos. Primeiro, queria suprimir toda a resistência armada fora nas províncias e assim trazer a ordem de volta ao país. Segundo, queria construir um governo forte em Roma. Terceiro e finalmente, queria unir o império em uma única unidade coesa.

Este primeiro objetivo foi conquistado quando César derrotou Pompeu e seus partidários no senado. As outra duas metas, para consegui-las, assumiu que precisaria de poder absoluto e que este fosse incontestável, então aumentou sua própria autoridade em detrimento de outras instituições políticas. Por fim, anunciou dezenas de medidas reformistas para reerguer o país, que foram desde a alteração do calendário até a redistribuição de terras. 

Ditadura

Após derrotar seus inimigos e retornar para Roma, o senado concedeu a César o triunfo (uma homenagem pública para prestigiar um comandante militar) por suas vitórias sobre a Gália, Egito, Fárnaces II e Juba I, rei númida que apoiara seus opositores em Tapso. Ele decidiu não realizar festividades para celebrar vitórias sobre outros romanos durante a guerra civil. Nem tudo foi como César planejou. Quando Arsínoe IV, ex rainha do Egito, foi exibida em correntes nas ruas de Roma, o público admirou sua coragem e teve pena dela.

Os jogos triunfais aconteceram, com caçadas envolvendo 400 leões e lutas de gladiadores. Uma batalha naval também foi recriada no Campo de Marte, que fora inundado para a ocasião. No Circo Máximo, dois exércitos de cativos, incluindo duas mil pessoas, duzentos cavalos e vinte elefantes, lutaram até a morte. Muitos criticaram César afirmando que suas festividades eram extravagantes. Uma pequena revolta começou. Dois membros desta revolta foram mortos por sacerdotes no Campo de Marte, a mando de César. 

Após as festividades do triunfo, César começou a tentar aprovar sua ambiciosa agenda política. Ordenou que um censo fosse feito, que resultou em uma redução da distribuição de cereais e do desperdício. Aprovou uma lei suntuária para restringir a compra de certos bens de luxo. Depois, uma nova lei foi aprovada para premiar famílias que tinham muitos filhos, para acelerar o repovoamento da Itália. Baniu as corporações de ofício profissionais, exceto as mais antigas, e também aprovou uma lei que dava limites de mandatos para governadores de províncias e outra de reestruturação de dívidas, que acabou por eliminar ¼ de todas as dívidas do povo da cidade.

O Fórum de César, com o Templo de Vénus Genetrix, foi construído, junto com várias outras obras públicas, que empregaram milhares de cidadãos. César também aumentou a regulação de compra de cereais subsidiada pelo Estado e reduziu o número de beneficiários, que entraram em um registro especial. De 47 a 44 a.C., fez planos para distribuir terras para aproximadamente 15 000 dos seus veteranos. 

Uma das mudanças mais importantes do seu governo, contudo, foi sua reforma no calendário romano. O calendário era regulado pelas fases da lua, o que era confuso. César adaptou o calendário da maneira como os egípcios faziam, sendo regulado pelo sol. A extensão do ano passou a ser de 365,25 dias, com a adição de um dia extra em fevereiro a cada quatro anos. Para sincronizar o calendário novo com as estações do ano, criou três meses extras, implementando isso em 46 a.C.. Assim, o calendário juliano começou oficialmente em 1 de janeiro de 45 a.C.. O calendário sofreria poucas mudanças ao decorrer do tempo, tornando-se o padrão no mundo ocidental. 

Pouco antes de seu assassinato, aprovou uma série de novas reformas. Estabeleceu uma força policial permanente, nomeou funcionários públicos para supervisionar a implementação da reforma agrária e ordenou a reconstrução das cidades de Cartago e Corinto. Também estendeu o direito dos povos latinos por todo o mundo romano, e então aboliu o sistema de taxação e o reverteu para o sistema antigo onde eram as cidades que coletavam os impostos para si próprias, evitando a necessidade de intermediários (reduzindo a corrupção).

Seu assassinato impediu a implementação de mais reformas, incluindo a construção de um grande templo de Marte, um pomposo novo teatro e uma biblioteca maior que a de Alexandria. Também queria converter a cidade de Óstia num grande porto e criar um canal cortando Istmo de Corinto. Militarmente, pretendia conquistar a Dácia e também a Pártia, para vingar a derrota romana em Carras. Assim iniciou uma mobilização de tropas no leste. O senado o nomeou censor em caráter vitalício e ainda o nomeou “Pai da Nação”, e o mês quintil foi renomeado julho em sua honra. 

Ele recebeu outras honras e nomeações oficiais em caráter vitalício. Essa acumulação de cargos foi mais tarde usada como um dos pretextos para o seu assassinato. Seus opositores afirmavam que César estava acumulando poderes de um rei. De fato, coisas comuns na era dos reis em Roma voltaram, como moedas sendo feitas com seu rosto e grandes e ostentosas estátuas. Ele mandou colocar no senado uma grande cadeira banhada em ouro, enquanto usava um pomposo vestido e iniciou uma forma não oficial de culto a sua pessoa. 

Reformas políticas

A reforma política que implementou em Roma é complicada. César tinha poderes ditatoriais e de tribuno, mas alternava nas funções de cônsul e procônsul. Seus poderes no Estado vinham destes magistérios. Foi nomeado ditador oficialmente pela primeira vez em 49 a.C., possivelmente para presidir as eleições, mas renunciou a este cargo onze dias depois.

Em 48 a.C., foi renomeado ditador, só que desta vez por tempo indeterminado e, em 46 a.C., foi acertado um mandato de 10 anos. Em 48 a.C., ganhou poderes de tribuno em caráter vitalício, o que o tornou uma pessoa sacrossanta e lhe deu poder de veto sobre o senado. César sofreu com a oposição do Colégio de Tribunos, mas após algumas prisões ninguém se opôs mais. 

Quando César retornou em definitivo para Roma em 47 a.C., as cadeiras do senado estavam muito vazias, então usou seus poderes de censor para nomear novos senadores. Continuou a expandir o senado, que chegou a ter 900 membros. Todos os novos membros eram na verdade partidários de César, o que roubava o prestígio da aristocracia senatorial e tornou o senado subserviente. Para minimizar a chance de que algum outro general pudesse desafiá-lo, César instituiu limites de tempo de mandatos para os governadores das províncias e territórios. 

Em 46 a.C., César deu a si mesmo o título de “Prefeito da Moral”, um cargo que existia apenas no nome, já que seus poderes eram os mesmos dos censores. Assim, poderia exercer seus poderes censoriais sem ter que se submeter às mesmas leis que os outros censores e usou esta autoridade para encher o senado com simpatizantes seus. Também abriu um precedente, que seria seguido por seus sucessores imperiais, de ter o senado lhe dando vários títulos, honras e cargos. Tinha, por exemplo, o título de “Pai da Nação” e “imperator” (comandante-em-chefe das forças armadas).

Moedas foram cunhadas com a sua imagem e possuía o direito de ser o primeiro a falar nas sessões do senado, um privilégio reservado à autoridade maior. César também aumentou o número de magistérios eleitos por ano, aumentando o setor público com magistrados experientes e criando mais cargos para dar aos seus partidários. 

César também deu os primeiros passos para tornar a Itália em província e também tomou medidas para tornar as províncias unidades mais coesas. Isso resolvia alguns dos problemas causados pelas Guerras Sociais de décadas antes, onde indivíduos fora de Roma e longe de Itália não eram considerados “romanos”, portanto não tinham os direitos que ter essa cidadania dava. Assim, unificar o império e prezar pela sua unidade, em vez de dividi-lo em grupos com participações desiguais na vida pública, foi um sucesso, mas só seria completado de fato no reinado do seu sucessor, Augusto. 

Em fevereiro de 44 a.C., um mês antes do seu assassinato, César foi nomeado, em definitivo, como ditador vitalício. Concentrando vasta autoridade, deu poderes aos seus tenentes e partidários, principalmente devido ao fato de ele se afastar regularmente da Itália a negócios. Em outubro de 45 a.C., renunciou ao posto de único cônsul e trabalhou para que os dois eleitos que o sucederiam fossem seus partidários. Perto do fim da sua vida, César se preparou para uma guerra contra o Império Parta.

Devido a isso, tinha que se ausentar de Roma com frequência. Para garantir que os eleitos nos cargos, especialmente os cônsules, fossem seus simpáticos, determinou que ele mesmo nomearia diretamente todos os magistrados para o ano de 43 a.C.. No ano seguinte, estendeu isso para as eleições consulares e de tribunos. Assim, os magistrados não mais davam a ideia de que eram representantes do povo, mas sim do ditador. 

Assassinato

O crescente acúmulo de poder por parte de César, em detrimento da aristocracia, irritou muitos senadores conservadores. Eles temiam que Júlio César estivesse tentando reerguer a monarquia, com ele mesmo na figura de rei. Um grupo de senadores (os Liberatores) começou então a conspirar contra César e planejar seu assassinato, afirmando que ele havia se tornado um tirano e que somente sua morte restauraria a velha República Romana.

Nos idos de março (15 de março no Calendário romano) de 44 a.C., César compareceu a uma sessão do senado na Cúria de Pompeu. Marco Antônio, tendo ouvido falar sobre o complô de um libertador assustado chamado Servílio Casca, e temendo o pior, foi avisar César. Os conspiradores, contudo, anteciparam isso e enviaram Trebônio para interceptá-lo enquanto ele se aproximava do Teatro de Pompeu, onde a sessão aconteceria, para pará-lo. Ao ver a agitação no senado (no momento do assassinato), Antônio fugiu. 

Segundo Plutarco, quando César chegou, o senador Tílio Cimbro lhe apresentou uma petição para revogar o exílio imposto ao seu irmão. Os outros conspiradores se aproximaram sob o pretexto de oferecer apoio e cercaram César. Segundo Plutarco e Suetônio, César dispensou o pedido mas Cimbro o agarrou pelo ombro e o puxou pela túnica. César então berrou para Cimbro: “Como assim, isso é violência!” (“Ista quidem vis est!”). Ao mesmo tempo, Casca pegou sua adaga e partiu para o pescoço de César.

Este, contudo, se virou rapidamente e pegou Casca pelo braço. De acordo com Plutarco, César teria dito, em latim, “Casca, seu vilão, o que você está fazendo?” (em grego clássico: ὁ μεν πληγείς, Ῥωμαιστί· ‘Μιαρώτατε Κάσκα, τί ποιεῖς) Casca, assustado, gritou em grego “Ajuda, irmão!” (“ἀδελφέ, βοήθει”, “adelphe, boethei”). Poucos momentos depois, todos do grupo, incluindo Bruto, atacaram o ditador. César tentou se afastar mas, cego pelo sangue que escorria da cabeça, tropeçou e caiu. Mesmo no chão, no pórtico, ele continuou a ser esfaqueado. De acordo com Eutrópio, cerca de 60 homens participaram do assassinato. César teria sido esfaqueado 23 vezes. 

O historiador Suetônio afirmou que um médico que examinou o corpo teria dito que apenas um ferimento, o infligido no peito, teria sido letal. Não se sabe quais foram as últimas palavras de César e isso ainda é assunto de debate entre historiadores e acadêmicos até os dias atuais. Suetônio disse que pessoas da época afirmaram que as últimas palavras de César, proferidas em grego, foram “Até você, criança?” (“καὶ σύ, τέκνον”). Contudo, até Suetônio tem dúvidas e crê que César não disse nada. Plutarco também afirma que César não pronunciou nada antes de morrer, mas puxou sua toga sobre a cabeça quando viu Bruto entre os conspiradores.

A versão mais famosa sobre o que Júlio César teria dito antes da morte é a célebre frase em latim “Et tu, Brute?” (“E você, Bruto?”, comumente referida como “Até tu, Bruto?”); esta fala na verdade vem da peça Júlio César, do dramaturgo inglês William Shakespeare. Ela não tem qualquer base histórica e o uso do latim por Shakespeare aqui vai de encontro à maioria das versões, que afirmam que César teria pronunciado palavras em grego. Mas, de fato, a frase Et tu, Brute? já era popular antes mesmo da peça. 

De acordo com Plutarco, após o assassinato, Bruto deu um passo adiante como se fosse falar algo para os colegas senadores. Eles, contudo, fugiram às pressas do prédio. Bruto e seus companheiros próximos foram então pelas ruas gritando pela cidade: “Povo de Roma, nós somos novamente livres!” Contudo, com a história do que havia ocorrido se espalhando rapidamente, a maioria da população resolveu se trancar dentro de casa.

O corpo de César permaneceu no chão do senado por mais três horas antes que fosse removido. O cadáver de César foi posteriormente cremado. No local onde a pira funerária estava ergueu-se o Templo de César alguns anos mais tarde, a leste da praça principal do Fórum Romano. Apenas o altar do templo está preservado até os dias atuais. Uma estátua de cera foi mais tarde erguida no Fórum, exibindo as 23 feridas. 

Eventos após sua morte

A série de eventos que aconteceram após sua morte pegou os seus assassinos de surpresa. Ao contrário do que os conspiradores acreditavam, a morte de César não ressuscitou a República Romana e o estado tomou a forma imperial menos de duas décadas depois. As classes média e baixa da sociedade romana, com as quais César era muito popular, ficaram enfurecidas pelo fato de um pequeno grupo de aristocratas ter assassinado o seu amado líder.

Marco Antônio, que na verdade vinha se afastando de César, capitalizou a dor da plebe e ameaçou soltá-la sobre os Optimates, talvez com o intuito de tentar tomar o poder total em Roma para si. Porém, para seu espanto, César havia nomeado um sucessor em testamento, seu sobrinho-neto Otaviano, dando-lhe o posto de chefe da família (herdeiro do nome de César), e além disso lhe deu acesso a sua gigantesca fortuna. 

Durante o funeral de César, as coisas esquentaram. Na enorme pira funerária feita, o povo compareceu em massa, jogando madeira no fogo, móveis e até roupas para alimentar as chamas. O fogo acabou ficando muito alto, danificando o Fórum e causando outros danos. A multidão então atacou as casas de Bruto e Cássio, que foram obrigados a fugir para a Macedônia. Os aristocratas acusaram Antônio de jogar o povo contra eles, levando a uma nova ruptura na liderança política romana, o que precipitaria em nova guerra civil. Contudo, os rumos deste conflito não terminariam bem para nenhum desses dois, com a figura do sobrinho-neto e herdeiro vindo à proeminência.

Otaviano, que tinha apenas 18 anos quando César morreu, mostrou-se um político habilidoso, e enquanto Antônio se preparava para enfrentar Décimo Bruto na primeira fase da guerra civil, ele igualmente se preparava para sua ascensão na vida pública. Bruto e Cássio, líderes da facção aristocrática contra César, estavam reunindo um exército na Grécia para recuperar o poder em Roma. Para combatê-los, Antônio precisava de sua própria tropa, além de dinheiro e de legitimidade, algo que pretendia conquistar no legado de César.

Com inimigos em comum, Antônio e Otaviano, junto com o comandante Lépido, se aliaram, confrontaram os assassinos de César e seus simpatizantes no senado e se saíram vitoriosos em batalha. Em 27 de novembro de 43 a.C., foi formalizada a lex Titia que criou o Segundo Triunvirato. Então, oficialmente deificaram César como “Divino Júlio” (Divus Iulius), em 42 a.C.. 

Já que a clemência de César para perdoar ex-inimigos acabou custando sua vida, o Segundo Triunvirato trouxe de volta a proscrição, abandonada no governo de Sula. Isso levou a uma série de assassinatos políticos para assim poderem pagar por suas legiões e vencer a guerra contra Bruto e Cássio. Em seguida, Otaviano, Antônio e Lépido se tornaram os governantes de Roma, sem qualquer rival. Contudo, o Segundo Triunvirato não ficaria em paz muito tempo.

Marco Antônio formou uma aliança com a ex-amante de César, a rainha Cleópatra, pretendendo usar as fortunas do Egito para dominar Roma. Uma nova guerra civil eclodiu entre Otaviano e Marco Antônio. Durante este conflito, Otaviano se apoiou no fato de César tê-lo nomeado como seu sucessor e adotado como filho e usou isso como uma fonte de legitimidade. Otaviano então conquistou o Egito, forçando Antônio e sua rainha a cometerem suicídio. Então retornou para Roma e, em 27 a.C., se tornou César Augusto, o primeiro imperador romano, dando a si mesmo estatuto de divindade. 

Antes de sua morte, Júlio César havia planejado lançar uma invasão militar contra a Pártia, o Cáucaso e a Cítia. Também pretendia marchar novamente contra a Germânia e a Europa Oriental. Vários generais lançariam campanhas contra a Germânia em nome de Augusto, porém com a derrota romana na Batalha da Floresta de Teutoburgo em 9 d.C., não mais se tentaria dominar aquela região. Na Pártia, por sua vez, Augusto preferiu resolver o conflito romano-persa via diplomacia e conseguiu com isso o retorno dos estandartes de guerra perdidos por Crasso na batalha de Carras, uma vitória simbólica de grande impulso à moral romana. 

Deificação

Júlio César se tornou o primeiro político romano importante a ser deificado. Foi posteriormente agraciado com o título de “Divino Júlio” ou “Deificado Júlio” (Divus Iulius ou Divus Julius) por decreto do senado romano em 1 de janeiro de 42 a.C. e a aparição de um cometa durante os jogos em sua honra foi usada para confirmar sua divindade.

Apesar do seu templo lhe ter sido dedicado apenas após sua morte, pode ter recebido estatuto divino já durante sua vida e logo depois de seu assassinado, Marco Antônio foi nomeado como o seu flâmine (sacerdote). Tanto Otaviano quando Antônio promoveram o culto ao Divino Júlio. Após a morte de Antônio, Otaviano, como filho adotivo de César, assumiu o título de “Filho do Divino” (Divi Filius). 

Vida pessoal

Aparência e saúde

O historiador Suetônio descreve Júlio César como “alto em estatura com uma pele clara, membros bem torneados, um rosto cheio e olhos negros penetrantes.” (em latim: excelsa statura, colore candido, teretibus membris, ore paulo pleniore, nigris vegetisque oculis.) Uma fala de uma peça de William Shakespeare teria dito que César era surdo de um ouvido. Nenhuma fonte antiga relata isso. Shakespeare pode ter se baseado na passagem metafórica de Plutarco que não se refere a surdez, tendo mais a ver com um hábito de Alexandre da Macedônia. Ao cobrir sua orelha, Alexandre indicava que havia desviado sua atenção da acusação para poder ouvir a defesa. 

Com base em Plutarco, acredita-se que César sofria de epilepsia. Historiadores modernos se dividem neste assunto, com alguns afirmando que sofria de malária. Muitos especialistas em medicina acreditam que em vez de epilepsia provavelmente teria apenas enxaquecas muito fortes. Outros afirmavam que os surtos de epilepsia eram causados por uma infecção parasitária no cérebro por cestoda. 

César teve quatro episódios documentados de ataques epiléticos. Pode ter tido uma ‘crise de ausência’ na sua juventude. Os primeiros casos de epilepsia foram relatados pelo historiador Suetônio, que nasceu depois da morte de César. Alguns historiadores afirmam que César poderia ter na verdade hipoglicemia, que também pode causar ataques epiléticos. Em 2003, o psiquiatra Harbour F. Hodder publicou o que denominou como a teoria do “Complexo de César”, argumentando que o general romano sofria de epilepsia do lobo temporal e os sintomas debilitantes da condição eram um dos fatores de César ignorar sua segurança pessoal nos dias que antecederam sua morte. 

Nome e família

Usando o alfabeto latino do período, que não tinha as letras J e U, o nome de César teria sido escrito como GAIVS IVLIVS CAESAR; a forma CAIVS também é atestada, usando a antiga forma de representação romana G por C. A abreviação padrão é C. IVLIVS CÆSAR, refletindo a abreviação antiga (a forma da letra Æ é uma ligadura das letras A e E, e é normalmente usada em epigrafias em latim para salvar espaço).

O cognome César se tornou um título; foi promulgado pela Bíblia, que contém a famosa passagem “A César o que é de César…”. O título em alemão é chamado Cáiser e nas línguas eslavas é Czar. A última pessoa a ter o título de Czar oficialmente foi Simeão II da Bulgária, cujo reinado terminou em 1946. 

Em latim vulgar, a consoante oclusiva /k/ antes da vogal anterior começou, devido a palatalização, a ser pronunciada como uma consoante africada, donde as renderizações [ˈtʃeːsar] em italiano e [ˈtseːsar] na pronúncia regional do latim em alemão. Com a evolução das línguas românicas, a africada [ts] se tornou fricativa [s] (portanto, [ˈseːsar]) em muitas pronúncias regionais, incluindo na francesa, de onde a pronúncia em inglês é derivada. O /k/ original é preservado na mitologia nórdica, onde é manifestado como o rei legendário Kjárr. Em português o nome é pronunciado Sé-zár. 

Árvore genealógica – Parentes

Pais
• Caio Júlio César
• Aurélia Cota

Irmãs
• Júlia César, a Velha (a mais velha) 
• Júlia César, a Jovem (a mais jovem) 

Esposas
• Primeiro casamento: Cornélia Cinila, de 84 a.C. até sua morte em 69 a.C.; 
• Segundo casamento: Pompeia Sula, de 67 a.C. até o divórcio em 61 a.C.; 
• Terceiro casamento: Calpúrnia Pisão, de 59 a.C. até a morte de César. 

Filhos
• Júlia, nascida de Cornélia Cinila, entre 83 e 76 a.C. 
• Cesarião, filho de Cleópatra VII, nascido em 47 e morto em 30 a.C. 
• Caio Otaviano César, seu sobrinho neto de sangue, adotado por César
• Marco Júnio Bruto: Plutarco afirmou que Bruto poderia ser filho ilegítimo de César, já que ele era amante de sua mãe, Servília Cepião. 

Netos
• Filho (sem nome) de Júlia e Pompeu, morto dias após seu nascimento (único neto de César). 

Amantes
• Cleópatra VII, mãe de Cesarião; 
• Servília, mãe de Bruto; 
• Eunoé, esposa do rei Bogudes da Mauritânia. 

Parentes notórios
• Caio Mário (casado com a sua tia, Júlia);
• Marco Antônio, general do seu exército;
• Lúcio Júlio César, tio de César; 
• Júlio Sabino, gaulês dos língones ativo durante a Revolta dos Batavos em 69 d.C., que dizem ser bisneto de César, pois sua mãe era amante dele durante as Guerras Gálicas.

Rumores de práticas homossexuais

A sociedade romana via o papel de passivo na relação sexual como um sinal de submissão e inferioridade. De fato, Suetônio disse que, supostamente, após o seu triunfo na Gália, seus soldados cantavam: “César conquistou os gauleses, mas Nicomedes conquistou César”. De acordo com Cícero, Bíbulo, Caio Mêmio e outros inimigos de César afirmavam que ele mantinha relações sexuais com Nicomedes IV da Bitínia no começo da sua carreira. Essas histórias se repetiam, referindo-se a César como a ‘rainha de Bitínia’, com o fim de humilhá-lo. César sempre negou essas acusações e, de acordo com Dião Cássio, uma vez as negou sob juramento. 

Esse tipo de campanha de difamação era comum entre políticos romanos na era republicana e quase sempre os difamados negavam as acusações. Uma tática de oposição a estas ações era acusar os rivais políticos de viverem um estilo de vida helênico baseado na cultura grega e oriental, onde a homossexualidade e um estilo de vida exagerado eram mais aceitos do que na tradição romana. Cátulo escreveu dois poemas que diziam que César e seu engenheiro Mamurra eram amantes, mas depois se desculpou por insinuar isso. Marco Antônio, por sua vez, afirmou que Otaviano ganhou a adoção por César através de favores sexuais. Suetônio descreveu as acusações de Antônio como pura difamação política. 

Trabalhos literários

Durante a sua vida, César foi considerado um dos melhores oradores e autores de prosa em latim — até mesmo Cícero falava bem sobre a retórica e estilo dele. Apenas os comentários de César sobre as guerras foram conservados. Algumas frases de outros trabalhos são citadas por outros atores. Entre um dos seus trabalhos que se perderam com o tempo, sua oração fúnebre (Laudatio Iuliae amitae) para a sua tia paterna, Júlia, e seu Anticato, um documento escrito para difamar Catão, o Jovem em resposta aos elogios de Cícero a ele. Os “Poemas de Júlio César” também são usados como fontes por trabalhos de historiadores antigos. 

Memórias

• O Commentarii De Bello Gallico, conhecido em português como “Comentários da Guerra Gálica”, são sete livros cada um cobrindo um ano da campanha na Gália e no sul da Grã-Bretanha em 50 a.C., com o oitavo sendo escrito por Aulo Hírcio nos últimos dois anos.
• O De Bello Civili, conhecido em português como “Sobre a Guerra Civil”, relata os eventos da guerra civil, na perspectiva de César, até a morte de Pompeu no Egito.

Outros trabalhos históricos são atribuídos a César, mas a autoria não é certa: 

• De Bello Alexandrino (Sobre a Guerra Alexandrina), sobre a campanha em Alexandria;
• De Bello Africo (Sobre a Guerra Africana), sobre as campanhas no Norte da África;
• De Bello Hispaniensi (Sobre a Guerra Hispânica), sobre as campanhas na Península Ibérica.

Essas narrativas foram escritas e publicadas anualmente durante ou depois de tais campanhas acontecerem, como uma espécie de “despachos do fronte”. Elas foram importantes para moldar a imagem pública de César e aumentar sua reputação enquanto estava afastado de Roma por longos períodos. Elas foram apresentadas ao povo em leituras públicas. Como um modelo de latim direto e claro, As Guerras Gálicas tem sido estudada pelo primeiro ou segundo ano de estudantes de latim. 

Legado

Historiografia

Os textos escritos de César, uma autobiografia dos eventos mais importantes de sua vida, são as mais completas fontes primárias para a reconstrução da sua biografia. Contudo, César escreveu sua história pensando em sua carreira política, então os historiadores tiveram muito trabalho para filtrar os exageros e parcialidades contidas nela. O imperador Augusto começou o culto à personalidade a César, descrevendo-se como seu herdeiro. A historiografia moderna é influenciada pelas tradições de Augusto, como por exemplo a ascensão de César sendo considerada o ponto determinante para o nascimento do Império Romano.

Ainda assim, os historiadores também têm que filtrar muitos dos contos de Augusto. Muitos governantes ao longo da história se tornaram interessados na historiografia de César. Napoleão III escreveu um inacabado trabalho acadêmico chamado “História de Júlio César” (em francês: Histoire de Jules César). Carlos VIII ordenou que um monge preparasse uma tradução dos Comentários da Guerra Gálica em 1480. Carlos I de Espanha ordenou um estudo topográfico na França, para dar contexto ao livro escrito por César sobre a conquista do país. O sultão otomano Solimão, o Magnífico catalogou as edições sobreviventes dos Comentários, e então os traduziu para o turco. Henrique IV e Luís XIII traduziram os primeiros Comentários, enquanto Luís XIV os retraduziu mais tarde. 

Veja mais:

Política

Júlio César é visto como o principal exemplo do Cesarismo, uma forma política de governo com um líder carismático e forte que governa baseado no culto à personalidade, cuja racionalidade é governar pela força, estabelecendo uma violenta ordem social, sendo envolvido no regime de proeminência militar no governo. Outra pessoas na história, como o imperador francês Napoleão Bonaparte e o ditador italiano Benito Mussolini, foram definidos como ‘cesaristas’. Bonaparte não se focou apenas na carreira militar de César, mas também na sua relação com as massas, que se tornou um precedente do populismo. A palavra “cesarismo” é usada também em um sentido pejorativo contra líderes autocráticos.

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Justiniano https://canalfezhistoria.com/justiniano/ https://canalfezhistoria.com/justiniano/#respond Mon, 17 Mar 2025 18:06:26 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6221 Flávio Pedro Sabácio Justiniano Augusto; Taurésio, c. 482 — Constantinopla, 14 de novembro de 565, também conhecido como Justiniano, o Grande e São Justiniano, o Grande na Igreja Ortodoxa, foi imperador bizantino de 527 a 565. Em seu reinado, procurou reviver a grandeza do Estado (renovatio imperii) e reconquistar o Império Romano Ocidental perdido aos bárbaros. Seu governo constitui uma época distintiva na história do Império Romano Tardio. 

Apesar de pertencer a uma família de origem humilde, que se crê ser de origem Ilírica ou Trácia. Foi nomeado cônsul ligado ao trono por seu tio Justino I, a quem sucedeu, após a morte deste (527) sendo o cognome Justinianus, que este adoptou mais tarde, um indicativo da sua adopção pelo seu Tio Justino. Culto, ambicioso, dotado de grande inteligência, o jovem Justiniano parecia talhado para o cargo. O Império Bizantino brilhou durante o seu governo.

Na Páscoa de 527, ele e a sua esposa, Teodora, foram solenemente coroados. Sobre Teodora, sabe-se que era filha de um tratador de ursos do hipódromo e que tivera uma juventude desregrada, escandalizando a cidade com as suas aventuras de atriz e dançarina. Não se sabe exatamente como Justiniano a conheceu. Seu matrimônio com a antiga bailarina de circo e prostituta teria grande importância, uma vez que ela iria influenciar decisivamente em algumas questões políticas e religiosas.

Justiniano cercou-se de um estreito grupo de colaboradores, entre eles Triboniano, Belisário, João da Capadócia e Narses. Segundo Procópio, um escritor daquele tempo, Justiniano aspirava a restabelecer o antigo esplendor de Roma, motivo pelo qual concretizou toda a ampla série de campanhas posteriores. 

Resistência à ação do imperador

A intransigência com que Justiniano se aplicou na perseguição de seus objetivos provocou uma série de rebeliões no império. A mais violenta delas, a revolta (ou sedição) de Nika, ocorreu em 532, em Constantinopla. 

A Revolta de Nika

Logo no início de seu reinado (532), Justiniano teve de enfrentar uma grave revolta, a Revolta de Nika. Teodora, mulher pequena, mas bem proporcionada, de rosto pálido, iluminado por dois grandes olhos negros, dominou Justiniano e o ajudou a sufocar a revolta. O que causou esta revolta foi o descontentamento com os altos impostos e a miséria. 

Em Bizâncio, existiam organizações esportivas rivais, que defendiam suas cores no hipódromo. Eram os Verdes, os Azuis, os Brancos e os Vermelhos. Esses grupos haviam se transformado em partidos políticos. Os Azuis reuniam representantes dos grandes proprietários rurais e da ortodoxia religiosa. Já os Verdes tinham, em suas fileiras, altos funcionários nativos das províncias orientais, comerciantes, artesãos e adeptos da doutrina monofisista.

Até então, os imperadores tinham tentado enfraquecer um grupo, apoiando o outro. Justiniano recusou essa solução, o que provocou a união dos Verdes e Azuis, que se rebelaram. Aos gritos de Nika (vitória), os rebeldes massacraram a guarda real e dominaram quase toda a cidade, proclamando um novo imperador. Justiniano pensou em fugir, mas foi demovido por Teodora. 

Justiniano ficou e encarregou o general Belisário de cercar o hipódromo e aniquilar os revoltosos. Foi uma verdadeira carnificina, pois 35 mil pessoas foram massacradas. Esmagada a oposição, Justiniano pôde, a partir de então, reinar como um autocrata. 

Administração de Justiniano

Para garantir a centralização administrativa, Justiniano combateu o poder local dos grandes proprietários de terra e estabeleceu leis sólidas e eficazes, cujo cumprimento era rigorosamente fiscalizado pela burocracia, que contava com os militares. 

Em seu governo, foi redigido o Corpus Juris Civilis, um sistema de leis básico que afirmava o poder ilimitado do imperador e, ao mesmo tempo, garantia a submissão dos escravos e colonos a seus senhores. Em seu governo, o regime político do império pode ser caracterizado como autocrático e burocrático. Autocrático, porque o imperador controlava todo o sistema político e religioso. Burocrático, porque uma vasta camada de funcionários públicos, dependentes e obedientes ao imperador, vigiava e controlava todos os aspectos da vida dos habitantes do império.

Esse poder não chegava a ser totalitário, porque o império era vasto e composto por povos de naturalidades e línguas diferentes, que conseguiam escapar do controle das autoridades imperiais e manter certas tradições culturais particulares.

Pode-se resumir a política de Justiniano em dois objetivos, duas ideias. Como imperador romano, trazer prosperidade ao reino e como imperador cristão, impor sua organização à igreja. Durante seu reinado ele foi responsável por abrir todo o império com fortificações, para exigir menos de seus soldados. Além de restaurar ou construir grande quantidade de obras pelas províncias, formando naturalmente uma enorme linha de defesa que protegia todos os pontos estratégicos. A chamada “ciência do governo dos bárbaros”, hábil diplomacia feita por Justiniano, completava seu estratégico fortalecimento defensivo.

Apesar de sua politica externa de reconquista do ocidente, os territórios reconquistados estavam em um estado econômico miserável o que gerou fragilidade ao império. Justiniano logo se vê enfraquecido devido aos persas que avançavam em direção ao mediterrâneo. Foi necessário um pesado tributo para renovar o acordo de paz e conte-los temporariamente. Além das periódicas invasões dos hunos e eslavos, que mesmo sendo rechaçados enfraqueciam o reino aos poucos. 

Justiniano também se destacou como construtor: fortificações em torno de todas as fronteiras, estradas, pontes, templos e edifícios públicos foram algumas de suas obras. 

A revolta de 532, Nika (em grego “vitória”), mostrou a Justiniano a necessidade de uma reforma. A reforma administrativa está contida principalmente nos dois decretos de 535, que se resume ao conjunto de medidas para melhorar o império, através da eliminação de postos inúteis, supressão da venalidade dos cargos, aumento do vencimento, criação de alguns agente especiais ou “justinianos”, que reuniam poderes militares e civis. Tais medidas visavam aumentar a dependência dos funcionários para com o imperador.

Em outra medida, ele buscou impedir os abusos dos grandes proprietários de bens de raiz, que acreditava serem seus piores inimigos. Como resultado, ele teve de infringir suas próprias leis. Devido à necessidade constante de dinheiro com as enormes despesas com a guerra, Justiniano aumentou taxas, criou impostos, vendeu cargos, alterou a moeda, dando exemplo de mau administrador. 

Internamente, os maiores problemas enfrentados pelo império foram os senhores locais e as heresias. Estas quebravam a unidade da Igreja de Constantinopla e, em geral, surgiam em províncias do império, adquirindo, assim, um caráter de luta autonomista diante do poder central. 

Os assuntos religiosos

Justiniano tinha grande interesse pelas questões teológicas. “Faltava apenas unificar a crença, transformar a Igreja em um instrumento homogêneo de domínio”. Seu objetivo maior era unir o Oriente com o Ocidente por meio da religião. Seu programa político pode ser sintetizado numa breve fórmula: “Um Estado, uma Lei, uma Igreja”. Justiniano procurou solidificar o monofisismo (doutrina elaborada por Eutiques, segundo a qual só havia uma natureza, a divina, em Cristo). Essa doutrina tornou-se forte na Síria (patriarca de Antioquia) e no Egito (patriarca de Alexandria), que tinham aspirações emancipacionistas.

Os seguidores dessa heresia tinham na imperatriz Teodora uma partidária. Esta tentou conciliar ortodoxos e heréticos, com relativo êxito. Autoritário, Justiniano combateu e perseguiu judeus, pagãos e heréticos, ao mesmo tempo que interveio em todos os negócios da Igreja, a fim de mantê-la como sustentáculo do Império e sob seu controle. A Academia de Platão, último baluarte do paganismo, foi fechada. As catedrais dos Santos Apóstolos e de Santa Sofia foram construídas durante seu governo, para evidenciar o poder imperial. 

Em 529, Justiniano fechou a Academia de Platão, Em 540 d.C. também considerou extinto o Talmude nas sinagogas. Em 550, eliminou o reduto dos mistérios egípcios na Ilha de Filac. 

Reconstituição territorial do império

No plano externo, a política de Justiniano teve como objetivo fundamental a tentativa de reconstrução do fragmentado Império Romano do Ocidente, que, desde 450, era vítima dos ataques dos bárbaros germânicos, e que havia sucumbido em 476. Ao sentido político e social dessa empreitada juntava-se o fator religioso, pois, para Justiniano, Roma continuava sendo o centro do mundo católico. Cessado o perigo interno e uma vez estabilizado o perigo persa na zona oriental graças a um tratado de não-agressão pactuado com Cosroes I, no qual se comprometia a pagar um tributo anual ao sassânida, Justiniano empreendeu a recuperação do Ocidente.

Seu primeiro objetivo foi acabar com os vândalos, no norte da África (533-534), onde acabara de surgir o clarão fulgurante de Santo Agostinho. O general Belisário dirigiu as campanhas com eficiência, conquistando Cartago, a Sicília, as ilhas Baleares e parte da costa levantina peninsular. 

Justiniano ordenou ao general Belisário que se lançasse à conquista da península Itálica, onde Teodorico, o Grande havia estabelecido o Reino Ostrogodo. Belisário dirigiu-se à Itália com o mesmo ânimo e rapidez das campanhas anteriores. Conquistou Roma (539) com relativa dificuldade devido à resistência ostrogoda e Ravena um ano mais tarde. Por um momento pareceu que as glórias do Império Romano poderiam reviver. Entretanto, os acontecimentos das décadas seguintes demonstraram que não seria assim.

No ano 542, uma grande peste deu um devastador golpe nas ainda populosas cidades do Mediterrâneo Oriental. O restante do território italiano ofereceu importantes resistências dirigidas por Totila. Belisário caiu em desgraça perante Justiniano, sendo substituído por Narses, que eliminou as forças ostrogodas contando com o apoio moral de São Bento, que no Monte Subiaco acabara de fundar a Ordem Beneditina, que tantos serviços prestou à civilização na Idade Média. As guerras duraram 20 anos.

Com a ocupação de um amplo setor do sul da Espanha pelas tropas imperiais, em 554, o Mediterrâneo voltou a ficar sob o controle dos romanos – desta vez, porém, do Império do Oriente. O império alcançou sua máxima extensão. A necessidade de fortalecer as fronteiras orientais contra os persas, no entanto, levou Justiniano a abandonar a empreitada iniciada na Europa. Alguns historiadores acusam Teodora de ter instigado o marido a fazer conquistas para o lado oriental, o que irritou os persas e levou Justiniano a abandonar a frente ocidental. 

O corpus juris civilis

Ao lado da religião, o direito romano ajudou a manter a unidade e a ordem imperial. Justiniano percebeu a importância de salvaguardar a herança do direito romano e, aproveitando a prosperidade econômica e comercial que lhe proporcionavam as novas conquistas, empreendeu um importante trabalho legislativo e de recompilação jurídica. A recompilação e reorganização das leis romanas tornou-se um dos marcos mais notáveis de sua administração, confiado a um colégio de dez juristas dirigido por Triboniano, cujos trabalhos duraram dez anos. Essa obra ficou conhecida como corpus juris civilis, composta de quatro partes: 

• Código de Justiniano (Codex): Reunião de todas as constituições imperiais editadas desde o governo do imperador Adriano (117 a 138);
• Digesto ou Pandectas: Continha os comentários dos grandes juristas romanos.
• Institutas: Manual para ser estudado pelos que se dedicavam ao Direito;
• Novelas ou Autênticas: Constituições elaboradas depois de 534. 

A definição de Direito dada por Justiniano no código era baseada, principalmente, nos costumes do povo romano, que não se chamava de “bizantino” – sendo esta uma denominação dada por historiadores da modernidade; eles consideravam-se romanos, os últimos romanos dentro da anterior imensidão do Império. Dessa forma, o Estado de Direito romano-bizantino era feito em prol da “vida honesta, não lesividade e ‘dar a cada um o que é seu'”.

Antes de Justiniano, outros imperadores, ocidentais, tentaram codificar as leis que existiam no Império, com apenas ele conseguindo alcançar tal feito. Essa obra foi considerada completa e complexa, com leis envolvendo desde a criação dos filhos, a chefiação da família, o casamento a propriedade, crimes e organização político-estatal. 

O instituto jurídico romano é de grande importância até os dias de hoje, por causa da influência que ele tem no Direito ocidental e oriental, refletindo em códigos brasileiros até hoje, como o civil, nas relações de sucessão e usucapião, principalmente. Por este motivo, é importante ter em mente o quanto Justiniano fez pelo direito mundial, ao implicar esse código a todo o território Imperial, que seguia seus decretos e pagava os impostos que estavam prescritos no código. 

Obstáculos à política de Justiniano

As origens dos obstáculos, tanto internos, quanto externos, da política justiniana podem ser remetidas a um único aspecto: sua ambição em reunificar entraves, dentro e fora de Bizâncio. 

O sucesso, parcial, no ocidente, resultou em consideráveis conquistas: a África Ocidental, três quartos da Espanha e a parte superior da Itália. Entretanto todas essas regiões estavam em decadência econômica e as forças militares do império não davam conta de manter a proteção de toda a área. Com isso, permaneciam constantes as ameaças bárbaras. 

Devido a não consolidação das empreitadas ocidentais, os recursos investidos neste projeto resultaram em um enfraquecimento sentido nos redutos orientais das terras justinianas. Por volta de 540, os Persas abriram passagem pelo mediterrâneo e devastaram a Síria. O custo inicial dessa trégua se deu por meio de mil libras anuais, chegando a um tratado de paz (por cinquenta anos) em 562. Por este acordo: Justiniano se comprometeu em, além de pagar um pesado tributo, não fazer qualquer propaganda cristã em território persa. Outros dois povos também cooperavam para o enfraquecimento do império; os Unos e os Eslavos. Apesar de sempre rechaçados pelos generais bizantinos, estes germânicos tomavam a aparecer e gerar mais prejuízos ao império. 

O descomunal esforço de reforma econômica e institucional despendido por Justiniano esbarrou numa infinidade de obstáculos. A desigualdade entre os mais ricos e os mais pobres se aprofundou, tornando-se um problema constante para o soberano. No campo das agressões externas, uma das ameaças permanentes para o império foi representada por um ataque dos persas, que, reunificados sob a dinastia Sassânida, não escondiam a ambição de ocupar a Armênia, a Mesopotâmia e a Síria. Em duas ocasiões Justiniano se viu obrigado a comprar a paz de seus vizinhos, o que lhe obrigou a dispor de imensas quantidades de ouro. 

Somados a estes percalços, no oriente e no ocidente, um outro fator tomava problemática a coesão da força militar de Bizâncio: seu exército era formado por aproximadamente 150.000 homens, integrados por mercenários (ávidos e indisciplinados) e bárbaros confederados. Ou seja, uma imensa variedade de interesses distintos em uma mesma unidade – o que levou o imperador a investir pesado em fortificações. 

Veja mais:

Morte

O autoritarismo e os altos impostos fizeram com que a população respirasse aliviada com a notícia da morte de Justiniano (Constantinopla, 565). Foi sepultado ao lado de sua amada imperatriz Teodora na Igreja dos Santos Apóstolos (igreja onde repousavam as relíquias dos apóstolos, imperatrizes e imperadores bizantinos, patriarcas da Igreja Ortodoxa Grega) em Constantinopla.

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Karl Marx https://canalfezhistoria.com/karl-marx/ https://canalfezhistoria.com/karl-marx/#respond Mon, 17 Mar 2025 18:03:04 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6212 Karl Marx (Tréveris, 5 de maio de 1818 — Londres, 14 de março de 1883) foi um filósofo, sociólogo, historiador, economista, jornalista e revolucionário socialista. Nascido na Prússia, mais tarde se tornou apátrida e passou grande parte de sua vida em Londres, no Reino Unido. A obra de Marx em economia estabeleceu a base para muito do entendimento atual sobre o trabalho e sua relação com o capital, além do pensamento econômico posterior. Publicou vários livros durante sua vida, sendo O Manifesto Comunista (1848) e O Capital (1867-1894) os mais proeminentes. 

Marx nasceu numa família de classe média em Tréveris, na Renânia prussiana, e estudou nas universidades de Bonn e Berlim, onde se interessou pelas ideias filosóficas dos jovens hegelianos. Depois dos estudos, escreveu para o Rheinische Zeitung, um jornal radical publicado em Colônia, e começou a trabalhar na teoria da concepção materialista da história. Em 1843, mudou-se para Paris, onde começou a escrever para outros jornais radicais e conheceu Friedrich Engels, que se tornaria seu amigo de longa data e colaborador.

Em 1849, foi exilado e se mudou para Londres juntamente a sua esposa e filhos, onde continuou a escrever e formular suas teorias sobre a atividade econômica e social. Também fez campanha para o socialismo e tornou-se uma figura significativa na Associação Internacional dos Trabalhadores.

As teorias de Marx sobre a sociedade, a economia e a política — a compreensão coletiva do que é conhecido como o marxismo — sustentam que as sociedades humanas progridem através da luta de classes (um conflito entre uma classe social que controla os meios de produção e a classe trabalhadora, que fornece a mão de obra para a produção) e que o Estado foi criado para proteger os interesses da classe dominante, embora seja apresentado como um instrumento que representa o interesse comum de todos. Além disso, ele previu que, assim como os sistemas socioeconômicos anteriores, o capitalismo produziria tensões internas que conduziriam à sua autodestruição e substituição por um novo sistema: o socialismo.

Ele argumentava que os antagonismos no sistema capitalista, entre a burguesia e o proletariado, seriam consequência de uma guerra perpétua entre a primeira e as demais classes ao longo da história. Isto, associado à sociedade industrial e ao acúmulo de capital, geraria a sua classe antagônica, que resultaria na “conquista do poder político pela classe operária e, eventualmente, no estabelecimento de uma sociedade sem classes e apátrida — o comunismo — regida por uma livre associação de produtores.

Marx ativamente argumentava que a classe trabalhadora deveria realizar uma ação revolucionária organizada para derrubar o capitalismo e provocar mudanças socioeconômicas. Elogiado e criticado, Marx tem sido descrito como uma das figuras mais influentes na história da humanidade. Muitos intelectuais, sindicatos e partidos políticos em nível mundial foram influenciados por suas ideias, com muitas variações sobre o seu trabalho base. Marx é normalmente citado, ao lado de Émile Durkheim e Max Weber, como um dos três principais arquitetos da ciência social moderna.

Juventude

Marx foi o terceiro de nove filhos, de uma família de origem judaica de classe média da cidade de Tréveris, na época no Reino da Prússia. Sua mãe, Henriette Pressburg (1788–1863), era judia holandesa e seu pai, Herschel Marx (1777–1838), um advogado e conselheiro de Justiça. Herschel descende de uma família de rabinos, mas se converteu ao cristianismo luterano em função das restrições impostas à presença de membros de etnia judaica no serviço público, quando Marx ainda tinha 6 anos de idade. Seus irmãos eram Sophie (1816–1886), Hermann (1819–1842), Henriette (1820–1845), Louise (1821–1893), Emilie (1824–1888 — adotada por seus pais), Caroline (1824–1847) e Eduard (1826–1837). 

Em 1830, Marx iniciou seus estudos no Liceu Friedrich Wilhelm, em Tréveris, ano em que eclodiram revoluções em diversos países europeus. Ingressou mais tarde na Universidade de Bonn para estudar Direito, transferindo-se no ano seguinte para a Universidade de Berlim, onde o filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel, cuja obra exerceu grande influência sobre Marx, foi professor e reitor. Em Berlim, Marx ingressou no Clube dos Doutores, que era liderado pelo hegeliano de esquerda Bruno Bauer. Ali perdeu interesse pelo Direito e se voltou para a Filosofia, tendo participado ativamente do movimento dos hegelianos de esquerda ou Jovens Hegelianos.

Seu pai faleceu naquele mesmo ano. Em 1841, obteve o título de doutor em Filosofia com uma tese sobre as Diferenças da filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro. Impedido de seguir uma carreira acadêmica, tornou-se, em 1842, redator-chefe da Gazeta Renana (Rheinische Zeitung), um jornal da província de Colônia. Conheceu Friedrich Engels naquele mesmo ano, durante visitação deste à redação do jornal. 

Casamento e vida política

Em 1843, a Gazeta Renana foi fechada após publicar uma série de ataques ao governo prussiano. Tendo perdido o seu emprego de redator-chefe, Marx mudou-se para Paris. Lá assumiu a direção da publicação Deutsch-Französische Jahrbücher (‘Anais Franco-Alemães’) e foi apresentado a diversas sociedades secretas de socialistas. Antes ainda da sua mudança para Paris, Marx casou-se, no dia 19 de junho de 1843, com Jenny von Westphalen, a filha de um barão da Prússia com a qual mantinha noivado desde o início dos seus estudos universitários. (Noivado que foi mantido em sigilo durante anos, pois as famílias Marx e Westphalen não concordavam com a união.) 

Do casamento de Marx com Jenny von Westphalen, nasceram sete filhos, mas devido às más condições de vida que foram forçados a viver em Londres, apenas três sobreviveram à idade adulta. As crianças eram: Jenny Caroline (1844-1883), Jenny Laura (1845-1911), Edgar (1847-1855), Henry Edward Guy (“Guido”; 1849-1850), Jenny Eveline Frances (“Franziska”; 1851-52), Jenny Julia Eleanor (1855-1898) e mais um que morreu antes de ser nomeado (Julho, 1857).

Ao que consta, Franziska, Edgar e Guido morreram na infância, provavelmente pelas péssimas condições materiais a que a família estava submetida, duas das filhas de Marx cometeram suicídio: Eleanor, 15 anos após a morte de Marx, aos 43 anos, após descobrir que seu companheiro havia se casado secretamente com uma atriz bem mais jovem, mas há quem suspeite que ele, na verdade, assassinou-a; e Laura, 28 anos após a morte de Marx, aos 66 anos, junto com o seu marido, Paul Lafargue, por não querer viver na velhice.

Marx também teve um filho, Frederick Demuth (1851-1929), nascido de sua relação amorosa com a militante socialista e empregada da família Marx, Helena Demuth. Solicitado por Marx, Engels assumiu a paternidade da criança, e pagando uma pensão, entregou-o a uma família de um bairro proletário de Londres.

No tratamento pessoal — Leandro Konder ressalta — Marx foi produto de seu tempo: “Antes de poder contestar a sociedade capitalista Marx pertencia a ela, estava espiritualmente mais enraizado no solo da sua cultura do que admitiria, e que diante dos padrões da Inglaterra vitoriana mostrou: traços típicos das limitações de seu tempo”. Como moças aristocráticas, suas filhas tinham aulas de piano, canto e desenho, mesmo que não tivessem desenvoltura para tais atividades artísticas. 

Também em 1843, Marx conheceu a Liga dos Justos (que mais tarde tornar-se-ia Liga dos Comunistas). Em 1844, Friedrich Engels visitou Marx em Paris por alguns dias. A amizade e o trabalho conjunto entre ambos, que se iniciou nesse período, só seria interrompido com a morte de Marx. Na mesma época, Marx também se encontrou com Proudhon, com quem teve discussões polêmicas e muitas divergências. E conheceu rapidamente Bakunin, então refugiado do czarismo russo e militante socialista.

No seu período em Paris, Marx intensificou os seus estudos sobre economia política, os socialistas utópicos franceses e a história da França, produzindo reflexões que resultaram nos Manuscritos de Paris, mais conhecidos como Manuscritos Econômico-Filosóficos. De acordo com Engels, foi nesse período que Marx aderiu às ideias socialistas. 

De Paris, Marx ajudou a editar uma publicação de pequena circulação chamada Vorwärts!, que contestava o regime político alemão da época. Por conta disto, Marx foi expulso da França em 1845 a pedido do governo prussiano. Migrou então para Bruxelas, para onde Engels também viajou. Entre outros escritos, a dupla redigiu na Bélgica o Manifesto comunista. Em 1848, Marx foi expulso de Bruxelas pelo governo belga. Junto com Engels, mudou-se para Colônia, onde fundam o jornal Nova Gazeta Renana.

Após ataques às autoridades locais publicados no jornal, Marx foi expulso de Colônia em 1849. Até 1848, Marx viveu confortavelmente com a renda oriunda de seus trabalhos, seu salário e presentes de amigos e aliados, além da herança legada por seu pai. Entretanto, em 1849 Marx e sua família enfrentaram grave crise financeira; após superarem dificuldades conseguiram chegar a Paris, mas o governo francês proibiu-os de fixar residência em seu território.

Graças, então, a uma campanha de arrecadação de donativos promovida por Ferdinand Lassalle na Alemanha, Marx e família conseguem migrar para Londres, onde fixaram residência definitiva. Trabalhou como correspondente em Londres para o New York Tribune onde declarou seu apoio público o governo de Abraham Lincoln durante a Guerra da Secessão. 

Morte

Deprimido pela morte de sua esposa em dezembro de 1881, Marx desenvolveu, em consequência dos problemas de saúde que suportou ao longo de toda a vida, bronquite e pleurisia, que causaram seu falecimento em 1883. Foi enterrado na condição de apátrida, no Cemitério de Highgate, em Londres. Muitos dos amigos mais próximos de Marx prestaram-lhe homenagem no seu funeral, incluindo Wilhelm Liebknecht e Friedrich Engels. Este pronunciou as seguintes palavras: 

“ Marx era, antes de tudo, um revolucionário. Sua verdadeira missão na vida era contribuir, de um modo ou de outro, para a derrubada da sociedade capitalista e das instituições estatais por esta suscitadas, contribuir para a libertação do proletariado moderno, que ele foi o primeiro a tornar consciente de sua posição e de suas necessidades, consciente das condições de sua emancipação. A luta era seu elemento. E ele lutou com uma tenacidade e um sucesso com quem poucos puderam rivalizar. (…) Como consequência, Marx foi o homem mais odiado e mais caluniado de seu tempo.

Governos, tanto absolutistas como republicanos, deportaram-no de seus territórios. Burgueses, quer conservadores ou ultrademocráticos, porfiavam entre si ao lançar difamações contra ele. Tudo isso ele punha de lado, como se fossem teias de aranha, não tomando conhecimento, só respondendo quando necessidade extrema o compelia a tal. E morreu amado, reverenciado e pranteado por milhões de colegas trabalhadores revolucionários – das minas da Sibéria até a Califórnia, de todas as partes da Europa e da América – e atrevo-me a dizer que, embora, muito embora, possa ter tido muitos adversários, não teve nenhum inimigo pessoal. ”

Em 1954, o Partido Comunista Britânico construiu uma lápide com o busto de Marx sobre sua tumba, até então de decoração muito simples. Na lápide, estão inscritos o parágrafo final do Manifesto Comunista (“Proletários de todos os países, uni-vos!”) e um trecho extraído das Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de várias maneiras, enquanto que o objetivo é mudá-lo.” 

Influências

Algumas das principais leituras e estudos feitos por Marx são: 

• A filosofia alemã de Kant, Hegel e dos neo-hegelianos (como Ludwig Feuerbach e Moses Hess);
• O socialismo utópico (representado por Saint-Simon, Robert Owen, Louis Blanc e Proudhon); e
• A economia política clássica britânica (representada por Adam Smith, David Ricardo e outros). 

Ele estudou profundamente todas essas concepções ao mesmo tempo em que as questionou e desenvolveu novos temas, de modo a produzir uma profunda reorientação no debate intelectual europeu. 

Influência da filosofia idealista

Hegel foi professor da Universidade de Jena, a mesma instituição onde Marx cursou o doutorado. E, em Berlim, Marx teve contato prolongado com as ideias dos Jovens Hegelianos (também chamados de “hegelianos de esquerda”). Os dois principais aspectos do sistema de Hegel que influenciaram Marx foram sua filosofia da história e sua concepção dialética. 

Para Hegel, nada no mundo é estático, tudo está em constante processo (vir-a-ser); tudo é histórico, portanto. O sujeito desse mundo em movimento é o Espírito do Mundo (também chamado de Superalma ou Consciência Absoluta), que representa a consciência humana geral, comum a todos indivíduos e manifesta na ideia de Deus. A historicidade é concebida enquanto história do progresso da consciência da liberdade.

As formas concretas de organização social correspondem a imperativos ditados pela consciência humana, ou seja, a realidade é determinada pelas ideias dos homens, que concebem novas ideias de como deve ser a vida social em função do conflito entre as ideias de liberdade e as ideias de coerção ligadas a condição natural (“selvagem”) do homem. O homem se liberta progressivamente de sua condição de existência natural através de um processo de “espiritualização” – reflexão filosófica (ao nível do pensamento, portanto) que conduz o homem a perceber quem é o real sujeito da história.

Marx considerou-se um “hegeliano de esquerda” durante certo tempo, mas rompeu com o grupo e efetuou uma revisão bastante crítica dos conceitos de Hegel após tomar contato com as concepções de Ludwig Feuerbach. Manteve o entendimento da história enquanto progressão dialética (ou seja, o mundo está em processo graças ao choque permanente entre os opostos; não é estático), mas eliminou o Espírito do Mundo enquanto sujeito ou essência, porque passou a compreender que a origem da realidade social não reside nas ideias, na consciência que os homens têm dela, mas sim na ação concreta (material, portanto) dos homens, portanto no trabalho humano.

A existência material precede qualquer pensamento; inexiste possibilidade de pensamento sem existência concreta. Marx inverte, então, a dialética hegeliana, porque coloca a materialidade – e não as ideias – na gênese do movimento histórico que constitui o mundo. Elabora assim a dialética materialista, construída como uma crítica ao materialismo de Feuerbach e um conceito não desenvolvido por Marx que também costuma ser chamado de materialismo dialético).

A mistificação por que passa a dialética nas mãos de Hegel não o impede de ser o primeiro a apresentar suas formas gerais de movimento, de maneira ampla e consciente. Em Hegel, a dialética está de cabeça para baixo. É necessária pô-la de cabeça para cima, a fim de descobrir a substância racional dentro do invólucro místico. 
— Karl Marx, em O Capital

A respeito da influência de Hegel sobre Marx, escreveu Lenin que “é completamente impossível entender O Capital de Marx, e, em especial, seu primeiro capítulo, sem haver estudado e compreendido a fundo toda a lógica de Hegel.” 

Influência do socialismo utópico

À época de Marx, “socialismo utópico” designava um conjunto de doutrinas diversas (e até antagônicas entre si) que tinham em comum, entretanto, duas características básicas: (1) a base determinante do comportamento humano residia na esfera moral/ideologia e (2) o desenvolvimento das civilizações ocidentais estava a permitir uma nova era onde iria imperar a harmonia social. 

Marx criticou sagazmente as ideias dos socialistas utópicos (principalmente dos franceses, com os quais mais polemizou), acusando-os de muito romantismo ingênuo e pouca ou nenhuma dedicação ao estudo rigoroso da conjuntura social, pois os socialistas utópicos muito diziam sobre como deveria ser a sociedade harmônica ideal, mas nada indicavam sobre como seria possível alcançá-la plenamente. Além de criticar o socialismo utópico, ele também criticou o socialismo pequeno burguês, o “socialismo feudal” reacionário e o “socialismo conservador”.

Por outro lado, pode-se dizer que, de certa forma, Marx adotou – explícita ou implicitamente – algumas noções contidas nas ideias de alguns dos socialistas utópicos, como a noção de que o aumento da capacidade de produção decorrente da revolução industrial permite condições materiais mais confortáveis à vida humana ou ainda a noção de que as crenças ideológicas do sujeito lhe determinam o comportamento. É importante destacar uma diferença primordial: para os socialistas utópicos em geral, todo o comportamento humano é absolutamente determinado pela moral/ideologia, já para Marx, essa afirmação é parcialmente verdadeira, pois a moral/ideologia encontra-se submetida a uma outra condição anterior que lhe determina – a dimensão material da reprodução da existência. 

Influência da economia política clássica

Marx empreendeu um minucioso estudo de grande parte da teoria econômica ocidental, desde escritos da Grécia antiga até obras que lhe eram contemporâneas. As contribuições que julgou mais fecundas foram as elaboradas por dois economistas políticos britânicos: Adam Smith e David Ricardo (tendo predileção especial por Ricardo, a quem chamava de “o maior dos economistas clássicos”). Na obra deste último, Marx encontrou conceitos – então bastante utilizados no debate britânico – que, após fecunda revisão e re-elaboração, adotou em definitivo, como os de valor, divisão social do trabalho, acumulação primitiva e mais-valia.

A avaliação do grau de influência da obra de Ricardo sobre Marx é bastante desigual. Estudiosos pertencentes à tradição neo-ricardiana tendem a considerar que existem poucas diferenças cruciais entre o pensamento econômico de um e outro; já estudiosos ligados à tradição marxista tendem a delimitar diferenças fundamentais entre eles. Apesar de Marx ter sido influenciado pelo utilitarismo radical de Jeremy Bentham na área econômica, ele admite que a sociedade possa dedicar parte de seu tempo a atividades não produtivas depois de que ela tenha atingido seus objetivos econômicos. 

Colaboração de Engels

Friedrich Engels exerceu significativa influência sobre as reflexões intelectuais de Marx, principalmente no início da associação entre ambos, período em que dirigiu a atenção de Marx para a economia Política e a história econômica da Europa. Após a morte deste, Engels tornou-se não só o organizador dos muitos manuscritos incompletos e/ou inéditos legados, mas também o primeiro intérprete e sistematizador das ideias de Marx. Engels igualmente se ocupou, desde bem antes do falecimento de seu amigo, de redigir exposições em termos populares das ideias de Marx, visando facilitar sua difusão. 

Teoria e obras

A teoria marxista é, substancialmente, uma crítica radical das sociedades capitalistas, mas é uma crítica que não se limita a teoria em si: Marx se posiciona contra qualquer separação drástica entre teoria e prática, entre pensamento e realidade, porque essas dimensões são abstrações mentais (categorias analíticas) que, no plano concreto, real, integram uma mesma totalidade complexa.

O marxismo constitui-se como a concepção materialista da História, longe de qualquer tipo de determinismo, mas compreendendo a predominância da materialidade sobre a ideia, sendo esta possível somente com o desenvolvimento daquela, e a compreensão das coisas em seu movimento, em sua inter-determinação, que é a dialética. Portanto, não é possível entender os conceitos marxianos — como forças produtivas ou capital — sem levar em conta o processo histórico, pois não são conceitos abstratos e sim uma abstração do real, tendo como pressuposto que o real é movimento. 

Karl Marx compreende o trabalho como atividade fundante da humanidade.[56][57] E o trabalho, sendo a centralidade da atividade humana, se desenvolve socialmente, sendo o homem um ser social. Sendo os homens seres sociais, a História, isto é, suas relações de produção e suas relações sociais fundam todo processo de formação da humanidade. Esta compreensão e concepção do homem é radicalmente revolucionária em todos os sentidos, pois é a partir dela que Marx irá identificar a alienação do trabalho como a alienação fundante das demais. E com esta base filosófica é que Marx compreende todas as demais ciências, tendo sua compreensão do real influenciado cada dia mais a ciência por sua consistência. 

Metodologia

Segundo Marx, Hegel e seus seguidores criaram uma dialética mistificada, que buscava explicar a história mundial a partir da economia e como auto-desenvolvimento da Ideia absoluta. Já os economistas clássicos naturalizavam e desistoricizaram o modo de produção capitalista, concebendo a dominação de classe burguesa como uma ordem natural das relações econômicas, a partir de um conceito abstrato de indivíduo, homo economicus. Por isso, os economistas clássicos recorriam a “robsonadas”, isto é, narrativas de trocas de produtos entre caçadores e pescadores primitivos, para ilustrar as suas teorias econômicas. Marx atribuía essa mistificação ao fetichismo da mercadoria, e não a uma intenção consciente. 

Em oposição aos filósofos idealistas e aos economistas clássicos, Marx propunha a investigação do desenvolvimento histórico das formas de produção e reprodução social, partindo do concreto para o abstrato e do abstrato para o concreto. 

Classes sociais

Em razão da divisão social do trabalho e dos meios, a sociedade se extrema entre possuidores e os não detentores dos meios de produção. Surgem, então, a classe dominante e a classe dominada, sendo a classe dominante aquela que mantém poder sobre os meios de produção e a classe dominada a que se sujeita a dominante para obter os bens produzidos. O Estado aparece para representar os interesses da classe dominante e cria, para isso, inúmeros aparatos para manter a estrutura da produção. Esses aparatos são nomeados por Marx de infraestrutura e condicionam o desenvolvimento de ideologias e normas reguladoras, sejam elas políticas, religiosas, culturais ou econômicas, para assegurar os interesses dos proprietários dos meios de produção. 

Crítica da religião

Para Marx a crítica da religião é o pressuposto de toda crítica social, pois crê que as concepções religiosas tendem a desresponsabilizar os homens pelas consequências de seus atos. Marx tornou-se reconhecido como crítico sagaz da religião devido a sentença que profere em um escrito intitulado Crítica da filosofia do direito de Hegel: “A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como é o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo.”

Em verdade, Marx se ocupou muito pouco em criticar sistematicamente a atividade religiosa. Nesse quesito ele basicamente seguiu as opiniões de Ludwig Feuerbach, para quem a religião não expressa a vontade de nenhum Deus ou outro ser metafísico: é criada pela fabulação dos homens. 

Revolução

Apesar de alguns leitores de Marx adjetivarem-no de “teórico da revolução”, inexiste em suas obras qualquer definição conceitual explícita e específica do termo “revolução”. O que Marx oferece são descrições e projeções históricas inspiradas nos estudos que fez acerca das revoluções francesa, inglesa e norte-americana. Um exemplo de prognóstico histórico desse tipo encontra-se em Contribuição para a crítica da Economia Política: 

“Numa certa etapa do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é apenas uma expressão jurídica delas, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham até aí movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se em grilhões das mesmas. Ocorre então uma época de revolução social.”

Em geral, Marx considerava que toda revolução é necessariamente violenta, ainda que isso dependa, em maior ou menor grau, da constrição ou abertura do Estado. A necessidade de violência se justifica porque o Estado tenderia sempre a empregar a coerção para salvaguardar a manutenção da ordem sobre a qual repousa seu poder político, logo, a insurreição não tem outra possibilidade de se realizar senão atuando também violentamente.

Diferente do apregoado pelos pensadores contratualistas, para Marx o poder político do Estado não emana de algum consenso geral, é antes o poder particular de uma classe particular que se afirma em detrimento das demais. A revolução se daria no âmbito da necessidade de sobrevivência, pois segundo ele as forças produtivas em seu ápice passariam a se tornar destrutivas. Importante notar que Marx não entende revolução enquanto algo como reconstruir a sociedade a partir de um zero absoluto.

Na Crítica ao Programa de Gotha, por exemplo, indica claramente que a instauração de um novo regime só é possível mediada pelas instituições do regime anterior. O novo é sempre gestado tendo o velho por ponto de partida. A revolução proletária, que instauraria um novo regime sem classes, só obteria sucesso pleno após a conclusão de um período de transição que Marx denominou socialismo. 

Crítica ao anarquismo

Criticou o anarquismo por sua visão tida como ingênua do fim do Estado onde se objetiva acabar com o Estado “por decreto”, ao invés de acabar com as condições sociais que fazem do Estado uma necessidade e realidade. Na obra Miséria da Filosofia, elabora suas críticas ao pensamento do anarquista Proudhon. Também criticou o blanquismo com sua visão elitista de partido, por ter uma tendência autoritária e superada.

Posicionou-se a favor do liberalismo, não como solução para o proletariado, mas como premissa para maturação das forças produtivas (produtividade do trabalho) das condições positivas e negativas da emancipação proletária, como a da homogeneização da condição proletária internacional gerado pela “globalização” do capital. Sua visão política era profundamente marcada pelas condições que o desenvolvimento econômico ofereceria para a emancipação proletária, tanto em sentido negativo (desemprego), como em sentido positivo (em que o próprio capital centralizaria a economia, exemplo: multinacionais). 

Práxis

Na lógica da concepção materialista da História, não é a realidade que move a si mesma, mas comove os atores, trata-se sempre de um “drama histórico” (termo que Marx usa em O 18 Brumário de Luís Bonaparte) e não de um “determinismo histórico” que cairia num materialismo mecânico (positivismo), oposto ao materialismo dialético de Marx, que poderia ser definido como uma “dialética realidade-idealidade evolutiva”. Ou seja, as relações entre a realidade e as ideias se fundem na práxis, e a práxis é o grande fundamento do pensamento de Marx. Pois sendo a história uma produção humana, e sendo as ideias produto das circunstâncias em que tais ideais brotaram, fazer história racionalmente é a grande meta.

É o próprio fazer da história que criará suas condições objetivas e subjetivas adjacentes, já que a objetividade histórica é produto da humanidade (dos homens associados, luta política, etc). E, assim, Marx finaliza as Teses sobre Feuerbach, não se trata de interpretar diferentemente o mundo, mas de transformá-lo, pois a própria interpretação está condicionada ao mundo posto, só a ação revolucionária produz a transcendência do mundo vigente. 

Mais-valia

O conceito de mais-valia foi empregado por Karl Marx para explicar a obtenção dos lucros no sistema capitalista. Para Marx, o trabalho gera a riqueza, portanto, a mais-valia seria o valor extra da mercadoria, a diferença entre o que o empregado produz e o que ele recebe. Os operários em determinada produção produzem bens (ex: 100 carros num mês). Se dividirmos o valor dos carros pelo trabalho realizado dos operários, teremos o valor do trabalho de cada operário.

Entretanto os carros são vendidos por um preço maior: esta diferença é o lucro do proprietário da fábrica. A esta diferença, Marx chama de “valor excedente ou maior”, ou mais-valia. Segundo ele, o lucro teria uma tendência decrescente devido a necessidade de se investir na produção, à medida que a remuneração dos trabalhadores estaria submetida a mais-valia. 

O Capital

A grande obra de Marx é O Capital, na qual trata de fazer uma extensa análise da sociedade capitalista. É predominantemente um livro de Economia Política, mas não só. Nesta obra monumental, Marx discorre desde a economia, até a sociedade, cultura, política e filosofia. É uma obra analítica, sintética, crítica, descritiva, científica, filosófica, etc. Uma obra de difícil leitura, ainda que suas categorias não tenham a ambiguidade especulativa própria da obra de Hegel, possui, no entanto, uma linguagem pouco atraente e nem um pouco fácil.

Dentro da estrutura do pensamento de Marx, só uma obra como O Capital é o principal conhecimento, tanto para a humanidade em geral, quanto para o proletariado em particular, já que através de uma análise radical da realidade que está submetido, só assim poderá se desviar da ideologia dominante (“a ideologia dominante” é sempre da “classe dominante”), como poderá obter uma base concreta para sua luta política.

Sobre o caráter da abordagem econômica das formações societárias humanas, afirmou Alphonse De Waelhens: “O marxismo é um esforço para ler, por trás da pseudo-imediaticidade do mundo econômico reificado as relações inter-humanas que o edificaram e se dissumularam por trás de sua obra.” Cabe lembrar que O Capital é uma obra incompleta, tendo sido publicado apenas o primeiro volume com Marx vivo. Os demais volumes foram organizados por Engels e publicados posteriormente. 

Outras obras

Na obra A Ideologia Alemã, Marx apresenta os pressupostos de seu novo pensamento. No Manifesto Comunista, apresenta sua tese política básica, propondo a construção de uma nova sociedade, derrubando a burguesia através da luta contra a propriedade privada de poucos. No ensaio “Sobre a Questão Judaica”, apresenta sua crítica à religião, dizendo que não se deve apresentar questões humanas como teológicas, mas as teológicas como questões humanas, e que afirmar ou negar a existência de Deus, são ambas teologia.

Para ele, deve-se sempre ver as religiões como reflexões fantasiosas do ser humano acerca de si mesmo, mas que representam a condição real a qual está submetido o ser humano. Em Crítica ao Programa de Gotha, Marx faz sua mais extensa e sistemática apresentação do que seria uma sociedade socialista. Em A Guerra Civil na França, Marx supera todas as suas tendências jacobinas de antes e defende claramente que só com o fim do Estado o proletariado oferece a si mesmo as condições de manter o próprio poder recém conquistado, e o fim do Estado é literalmente o “povo em armas”, ou seja, o fim do “monopólio da violência” que o Estado representa.

Em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, além da profunda análise sobre o terror da “burocracia”, outros aspectos marcantes são a questão do campesinato como aliado da classe operária na revolução iminente, o papel dos partidos políticos na vida social e uma caracterização profunda da essência do bonapartismo. Karl Marx foi um dos poucos ideólogos que acompanharam todo o percurso de instabilidade política francesa pós-revolução francesa, revolução industrial e globalização sendo que influenciou muito na obra do autor e contribuiu para alimentar os debates políticos dentro da esquerda. 

Recepção da obra

Durante a vida de Marx, suas ideias receberam pouca atenção de outros estudiosos. Talvez o maior interesse tenha se verificado na Rússia, onde, em 1872, foi publicada a primeira tradução do Tomo I de O Capital. Na Alemanha, a teoria de Marx foi ignorada durante bastante tempo, até que, em 1879, Adolph Wagner, um alemão estudioso da economia política, comentou o trabalho de Marx ao longo de uma obra intitulada Allgemeine oder theoretische Volkswirthschaftslehre. A partir de então, os escritos de Marx começaram a atrair cada vez mais atenção. 

Ao final do século XIX, o principal local de debate da teoria de Marx era o Partido Social-Democrata da Alemanha. Contudo, nos primeiros anos após sua morte, sua teoria obteve crescente influência intelectual e política sobre os movimentos operários e, em menor proporção, sobre os círculos acadêmicos ligados às ciências humanas – notadamente na Universidade de Viena e na Universidade de Roma, primeiras instituições acadêmicas a oferecerem cursos voltados para o estudo de Marx. Marx foi herdeiro da filosofia alemã, considerado ao lado de Kant, Nietzsche e Hegel um de seus grandes representantes.

Foi um dos maiores (para muitos, o maior) pensadores de todos os tempos, tendo uma produção teórica com a extensão e densidade de um Aristóteles, de quem era um admirador. Marx criticou ferozmente o sistema filosófico idealista de Hegel. Enquanto que, para Hegel, “da realidade se faz filosofia”, para Marx, a filosofia precisa incidir sobre a realidade. Para transformar o mundo, é necessário vincular o pensamento à prática revolucionária, união conceitualizada como práxis: união entre teoria e prática. 

Legado

As ideias de Marx tiveram um profundo impacto na política mundial e pensamento intelectual. Os seguidores de Marx vêm debatendo entre si sobre como interpretar seus escritos e aplicar seus conceitos para o mundo moderno. O legado do pensamento de Marx tornou-se objeto de contestação entre inúmeras tendências, cada uma se vendo como a intérprete mais precisa de Marx. Na esfera política, estas tendências incluem o leninismo, marxismo-leninismo, trotskismo, maoísmo, luxemburguismo e o marxismo libertário. Várias correntes também se desenvolveram no marxismo acadêmico, muitas vezes sob influência de outros pontos de vista, resultando no marxismo estruturalista, marxismo histórico, fenomenológica marxista, marxismo analítico e marxismo hegeliano. 

Do ponto de vista acadêmico, a obra de Marx contribuiu para o nascimento da sociologia moderna. Ele tem sido citado como um dos três mestres da “escola cínica” do século XIX, ao lado de Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud, e como um dos três principais arquitetos da ciência social moderna juntamente com Émile Durkheim e Max Weber. Em contraste com outros filósofos, Marx ofereceu teorias que, muitas vezes, poderiam ser testadas com o método científico.

Tanto Marx quanto Auguste Comte começaram a desenvolver ideologias cientificamente fundadas durante a secularização européia e novos desenvolvimentos na filosofia da história e ciência. Trabalhando na tradição hegeliana, Marx rejeitou o positivismo sociológico comtiano na tentativa de desenvolver uma ciência da sociedade. Karl Löwith considerou Marx e Søren Kierkegaard os dois maiores sucessores filosóficos de Hegel. Na teoria sociológica moderna, a sociologia marxista é reconhecida como uma das principais perspectivas clássicas. Isaiah Berlin considera Marx o verdadeiro fundador da sociologia moderna, “na medida em que qualquer um pode reivindicar o título”. Além da ciência social, ele também teve um legado duradouro na filosofia, na literatura, nas artes e nas humanidades. 

Na teoria social, pensadores do século XX e XXI adotaram duas estratégias principais em resposta a Marx: a primeira, conhecida como marxismo analítico, tende a reduzi-lo ao seu núcleo analítico, e precisa sacrificar suas ideias mais interessantes e intrigantes; a segunda, mais comum, dilui as reivindicações explicativas da teoria social de Marx e enfatiza a “autonomia relativa” dos aspectos da vida social e econômica, não diretamente relacionadas com a narrativa central de Marx: a interação entre o desenvolvimento das forças de produção e a sucessão dos modos de produção.

Nesta segunda estratégia, incluem-se, por exemplo, a teorização neomarxista — adotada pelos historiadores inspirados na teoria social de Marx como E. P. Thompson e Eric Hobsbawm — e a linha de pensamento adotada por pensadores e ativistas como Antonio Gramsci, que têm procurado entender as oportunidades e as dificuldades da prática política transformadora vista à luz da teoria social marxista. Gramsci desenvolveu o conceito de revolução passiva, a qual é definida como “revolução sem revolução”. 

Politicamente, o legado de Marx é mais complexo. Ao longo do século XX, ocorreram revoluções em dezenas de países que se autorotularam de “marxistas”, mais notavelmente a Revolução Russa, que levou à fundação da URSS. Líderes mundiais como Vladimir Lenin, Mao Zedong, Fidel Castro, Salvador Allende, Josip Tito e Kwame Nkrumah citaram Marx como uma influência, e suas ideias estão presentes em vários partidos políticos em todo o mundo, além daqueles onde ocorreram “revoluções marxistas”.

As ditaduras brutais associadas com algumas nações marxistas levaram oponentes políticos a culpar Marx por milhões de mortes, mas a fidelidade destes líderes, partidos e revoluções à obra de Marx é contestada e rejeitada por muitos marxistas. Atualmente, é comum distinguir entre o legado e a influência de Marx especificamente, e o legado e influência de suas ideias para fins políticos. 

Críticas

Em A Miséria do Historicismo (1936), Karl Popper discorda de Marx quanto à história ser regida por leis que, se compreendidas, podem servir para se antecipar o futuro. Segundo Popper, a história não pode obedecer a leis e a ideia de “lei histórica” é uma contradição em si mesma. Já em A sociedade aberta e seus inimigos (1945), Popper afirma que o historicismo conduz necessariamente a uma sociedade “tribal” e “fechada”, com total desprezo pelas liberdades individuais.

Popper considera Marx como “não-científico” também porque sua teoria não é passível de contestação. Uma teoria científica tem que ser falseável – caso contrário, é incluída no campo das crenças ou ideologias. Resta saber, é claro, se afirmações sobre fatos históricos, necessariamente únicos, podem ser, nos termos de Popper, falseáveis. 

Ludwig von Mises, em Ação Humana – um tratado de Economia (1949), tentou demonstrar a impossibilidade de se organizar uma economia nos moldes socialistas, pela ausência do sistema de preços, que, segundo ele, funcionaria como sinalizador aos empreendedores acerca das necessidades dos consumidores. Aponta, desta forma, que cálculo econômico sem o equivalente universal (dinheiro) só poderia ser medido pelo tempo de trabalho.

Mises ainda levanta que estatizar todos os produtos acabaria com o mercado, e na ausência da lei da oferta e da demanda não seria possível fazer o cálculo de preço. Sem o cálculo de preço, seria inviabilizada a economia planificada – e consequentemente o socialismo. Mises também refinou argumentos formulados por Eugen von Böhm-Bawerk na obra Marxism Unmasked: From Delusion to Destruction. 

Raymond Aron em O ópio dos intelectuais (1955), criticou de forma agressiva os intelectuais seguidores de Marx e condenou a teoria da revolução e o determinismo histórico. Eric Voegelin relata em seu livro Reflexões Autobiográficas que, induzido pela onda de interesse sobre a Revolução Russa de 1917, estudou O Capital de Marx e foi marxista entre agosto e dezembro de 1919. Porém, durante seu curso universitário, ao estudar disciplinas de teoria econômica e história da teoria econômica, aprendera o que estava errado em Marx.

Voegelin afirma que Marx comete uma grave distorção ao escrever sobre Hegel. Como prova de sua afirmação, cita os editores dos Frühschiften (Escritos de Juventude) de Karl Marx (Kröner, 1953), especialmente Siegfried Landshut, que dizem o seguinte sobre o estudo feito por Marx da Filosofia do Direito de Hegel: 

“Ao equivocar-se deliberadamente sobre Hegel, se nos é dado falar desta maneira, Marx transforma todos os conceitos que Hegel concebeu como predicados da ideia em enunciados sobre fatos”. Marx acreditava que a história humana é regida pela luta de classes. Para Pitirim Sorokin, a história do mundo não é definida unicamente pelo conflito entre as classes sociais e, segundo ele: “A cooperação entre as classes sociais, é um fenômeno ainda mais universal do que o antagonismo entre elas.”

Veja mais:

Apesar de dizer que Marx trouxe, em alguns aspectos, um progresso maior para a sociedade do que figuras como Margaret Thatcher, em Thinkers of the New Left (1985), Roger Scruton afirma: 

“Consideremos as teorias de Karl Marx: desde sua primeira aparição, estas têm despertado as controvérsias mais vivas e é pouco provável que tenham permanecido intocadas. O fato, me parece, é que todas as teorias marxistas já foram refutadas em sua essência: a teoria da história por Maitland, Weber e Sombart; a teoria do valor por Eugen von Böhm-Bawerk, Mises, Sraffa e muitos outros; a teoria da consciência falsa, alienação e luta de classes por um vasto grupo de pensadores, de Mallock a Sombart e Popper e de Hayek a Aron.”

Revendo posições anteriores sobre a ideia de reformismo ontológico, o historiador marxista Jacob Gorender afirma que o proletariado é ontologicamente, em si, reformista, e descarta uma teleologia na história, em sua obra Marxismo sem utopia (1999).

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Lao Zi https://canalfezhistoria.com/lao-zi/ https://canalfezhistoria.com/lao-zi/#respond Mon, 17 Mar 2025 17:53:38 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6204 Lao Zi ou Laozi (também conhecido como Lao-Tzu e Lao-Tze, chinês simplificado: 老子, pinyin: Lǎozǐ, literalmente “Velho Mestre”) foi um filósofo e escritor da Antiga China. É conhecido por ser o autor do importante livro Tao Te Ching, o fundador do taoismo filosófico e uma divindade no taoismo religioso e nas religiões tradicionais chinesas. 

Embora seja uma figura lendária, Lao Zi é geralmente situado por volta do século VI a.C. e pensa-se que foi coevo de Confúcio, mas alguns historiadores acreditam que ele viveu no Período do Estados Combatentes algures nos séculos V e IV a.C. É uma personagem chave na cultura chinesa, sendo que tanto os imperadores da dinastia Tang como as pessoas hodiernas do apelido Li, consideram-no o fundador da sua linhagem. O trabalho de Lao Zi tem sido adoptado por vários movimentos anti-autoritários e pelo legalismo chinês. 

Nomes

Segundo os registros tradicionais, o nome real de Lao Zi é tido geralmente como Li Er (李耳, Ant. *Rəʔ Nəʔ, Pin. Lǐ Ěr) e o seu nome de cortesia como Boyang (trad. 伯陽, simp. 伯阳, Ant. *Pˤrak-lang, Pin. Bóyáng). Um nome póstumo proeminente era Li Dan (李聃, Lǐ Dān). 

Lao Zi é um título honorífico: 老 (Ant. *rˤuʔ, “velho, venerável”) e 子 (Ant. *tsə′, “mestre”). Tem sido romanizado de várias maneiras, levando por vezes à confusão. A forma mais comum hodiernamente é Laozi ou Lǎozǐ, baseada no sistema de transliteração Hanyu Pinyun, adoptado pela República Popular da China em 1958 e por Taiwan em 2009. Ao longo do século XX, Lao-tzu era mais comum, baseada no outrora dominante sistema Wade-Giles. No século XIX, o título costumava ser romanizado como Lao-tse. Outras variantes são Lao-tze e Lao-tsu.

Tsé é o sufixo de muitos nomes chineses, indicando menino, menina, jovem e adolescente. De maneira que podemos transliterar Lao-Tsé por “jovem sábio” ou “adolescente maduro”.

Sendo uma figura religiosa, ele é adorado com o nome de “Senhor Velho Supremo” (太上老君, Tàishàng Lǎojūn) e como um dos “Três Puros”. Durante a dinastia Tang, ele recebeu o título de “Imperador Supremamente Misterioso e Primordial” (太上玄元皇帝, Tàishàng Xuānyuán Huángdì). 

Visões históricas

A meados do século XX, houve um consenso entre os especialistas e doutos que punha em dúvida a historicidade da pessoa conhecida como Lao Zi e que o Tao Te Ching era “uma compilação de ditados e adágios taoistas de diversa procedência”. Alan Watts pediu mais precaução, alegando que este consenso era resultado de uma tendência académica cética acerca de personagens históricas espirituais e religiosas e dizendo que ainda não se saberia por anos – ou possivelmente nunca – para fazer uma avaliação sólida. 

A primeira referência da que temos segurança sobre a figura de Lao Zi é achada no livro Registos do Historiador (simp. 史记 ; trad. 史記 ; Pin. Shǐjì) do século I a.C. reunido pelo historiador Sima Qian a partir de relatos anteriores. Num destes relatos, diz-se que Lao Zi foi um contemporâneo de Confúcio durante o século VI ou V a.C.. O seu apelido era Li e o seu nome pessoal era Er ou Dan. Ele era um funcionário nos arquivos imperiais e escreveu um livro dividido em duas partes antes de partir para o oeste. Noutro, Lao Zi era também contemporâneo de Confúcio mas chamado Lao Laizi (老莱子) e escreveu um livro divido em quinze partes.

Numa terceira versão, era o astrólogo da corte Lao Dan, o qual viveu durante o século IV a.C. durante o reinado de Xian de Qin da dinastia Qin. O texto mais antigo do Tao Te Ching até hoje recuperado foi escrito em faixas de bambu e é datado de finais do século IV a.C.. De acordo com os registos tradicionais, Lao Zi foi um erudito que trabalhou como curador dos arquivos da corte real de Zhou.

Isto dar-lhe-ia accesso livre à obra de Huangdi e outros clássicos daquele tempo. As estórias afirmam que Lao Zi nunca abriu uma escola formalmente, tendo porém, atraído muitos estudantes e discípulos leais. Há muitas variações acerca do encontro entre ele e Confúcio, mais conhecido no Zhuangzi.

Por vezes, é dito que provinha da aldeia de Chu Jen em Chu. Nos relatos que dizem que Lao Zi era casado, refere-se que tinha um filho chamado Zong que se tornaria num soldado célebre. Muitos clãs da família Li traçam a sua ascendência até Lao Zi, incluindo os imperadores da dinastia Tang. Esta família era conhecida como a linhagem Longxi Li (隴西李氏). De acordo com os Simpkinses, embora a maioria (senão todas mesmo) destas linhagens sejam questionáveis, fornecem-nos uma clara imagem do impacto de Lao Zi na cultura chinesa. 

A terceira história colectada por Sima Qian, afirma que Lao Zi cansou-se da corrupção moral da sociedade e dos bons costumes em Luoyang e notou o declínio do reino. Ele foi viver para o oeste como um eremitão nas incertas fronteiras do reino, com oitenta anos. Na parte occidental da cidade (ou do reino), ele foi reconhecido pelo guarda Yinxi. Antes de lhe franquear a saída, o guarda exigiu do velho mestre que registrasse por escrito a sua sabedoria para o bem do país.

O texto que Lao Zi escreveu, relaciona-se como sendo o Tao Te Ching, embora a versão actual do texto inclui adições de épocas mais tardias. Nalgumas versões da história, o sentinela ficou tão comovido pela obra que tornar-se-ia em discípulo de Lao Zi desaparecendo com este. Noutras, o “Velho Mestre” viajou até à Índia e fora o professor de Sidarta Gautama, o Buda. Outros dizem que ele próprio era o Buda. Uma obra do século VII, o Sandong Zhunang (“Saco Nacarado das Três Cavernas”), idealizou a relação entre Lao Zi e Yin xi. Lao Zi fingiu ser um lavrador quando chegou ao portão ocidental, mas foi reconhecido por Yin xi, quem pediu ao mestre para que lhe ensinasse.

Lao Zi não estava satisfeito pelo simples facto do guarda ter reparado nele e pediu uma explicação. Yin xi expressou o seu forte desejo em encontrar o Tao e disse que o seu estudo prolongado da astrologia permitia-lhe detectar a aproximação de Lao Zi. Yin xi foi aceito por Lao Zi como discípulo. Isto é considerado como uma interação exemplar entre um discípulo e um mestre taoista, refletindo o “teste” pelo qual um candidato deve passar antes de ser aceito. Espera-se do candidato que prove a sua determinação e talento, expressando claramente os seus desejos e mostrando que ele tinha aprendido de forma autodidata no seu caminho do Tao. 

O Sandong Zhunang prossegue a analogia com a procura dum sequaz. Yin xi foi ordenado quando Lao Zi transmitiu o Tao Te Ching, juntamente com outros textos e preceitos, tal como as ceremónias tradicionais taoistas, nas quais os candidatos recebem vários ensinamentos, escrituras sagradas e métodos nas suas ordenações. Isto é apenas um ordenação inicial e Yin xi ainda precisava de mais tempo para perfeccionar as suas virtudes, por isso, Lao Zi acordou com Yinxi que em três anos o encontraria em Changan em um mercado que vendia vísceras de ovelhas negras. Yinxi dedicou-se de corpo e alma à vida religiosa.

Depois dos três anos, Yinxi voltou a demonstrar a sua determinação e capacidades, e retornou ao mercado na hora marcada, estabelecendo este gesto como sinal. Finalmente encontra-se outra vez com Lao Zi, quem anuncia a Yin xi que o seu nome era imortal, estando na lista do céus e invoca uma procissão celeste para vestir Yin xi com as vestes dos imortais. A história prossegue, dizendo que Lao Zi outorgou vários títulos a Yin xi e levou-o consigo numa viagem pelo universo, inclusive nos nove céus. Depois desta viagem fantástica, os dous sábios foram às terras ocidentais habitadas pelos bárbaros.

O período de treino, as reuniões e as viagens representam a realização mais fiel das prescrições da mais alta patente do taoismo medieval chamada “Preceptor das Três Cavernas”. Nesta lenda, Lao Zi é o mestre taoista perfeito e Yin xi é o discípulo taoista ideal. Lao Zi é apresentado como o Tao personificado, dando a sua doutrina à humanidade para a sua salvação. Yin xi segue os procedimentos formais de preparação, teste, treino e retidão.

A história de Lao Zi tem adotado fortes implicações e conotações religiosas desde a dinastia Han. Com a expansão do taoismo, Lao Zi seria adorado como um deus. A crença na revelação do Tao através de Lao Zi, resultaria na formação do Caminho dos Mestres Celestiais, a primeira seita taoista organizada. Na tradição taoista mais tardia, Lao Zi começou a considerar-se como a personificação do Tao.

É dito que passou por várias “metamorfoses” e assumiu várias aparências em diversas incarnações ao longo da história para iniciar os devotos no Caminho. O taoismo religioso costuma realçar que “O Velho Mestre” não desapareceu depois de escrever o Tao Te Ching mas teria passado o resto da sua vida a viajar e a espalhar a doutrina do Tao. 

Os mitos taoistas proferem que Lao Zi foi engendrado quando a sua mãe contemplou uma estrela cadente. Ele supostamente teria estado no seu útero sessenta e dois anos antes da nascer enquanto a sua mãe estava inclinada sobre uma ameixoeira. (O apelido chinês Li é escrito com o mesmo caractere que “amêixoa”). É dito que Lao Zi surgiu como um homem adulto, com uma barba cinzenta já crescida e com longos lóbulos da orelha, ambos símbolos de sapiência e longevidade.

Outros mitos expõem que ele se tinha reencarnado treze vezes antes da sua primeira vida, a qual decorreu na altura de Fu Xi. Na sua última encarnação, como Lao Zi, viveu novecentos noventa anos e dedicou-se inteiramente a viajar de maneira a revelar o Tao. 

Tao Te Ching

Lao Zi é tido tradicionalmente como o autor do Tao Te Ching (Pinyin. Dàodéjīng), embora a identidade do autor ou do compilador seja incerta, sendo palco de vários debates ao longo da história. É um dos tratados mais importantes da cosmogonia chinesa. Tal como a maioria dos filósofos chineses, Lao Zi frequentemente explica as suas ideias através de paradoxos, analogias e utilização de ditados e adágios antigos, repetições, simetrias, rimas e ritmos. De facto, o livro inteiro pode ser considerado como uma analogia – por um lado, o governante é a personificação da consciência, ou da consciência própria, na meditação e pelo outro lado, o império é a experiência do corpo, dos sentidos e dos desejos. 

O Tao Te Ching, geralmente chamado Lao Zi pelo nome do seu autor presumido tradicionalmente, descreve o Tao como a fonte e origem de toda existência: é invisível, mas não transcendente, omnipotente, contudo, humilde; sendo a raiz de todas as coisas. As pessoas têm desejos e livre vontade (por conseguinte, podem alterar a sua própria natureza). Muitos atuam “artificialmente”, contrariando o equilíbrio natural do Tao. O Tao Te Ching pretende levar os discípulos a “voltar” ao seu estado natural, em harmonia com o Tao. A linguagem e a sabedoria convencional são avaliadas com dureza. O taoismo considera-as como tendenciosas e artificiais, servindo-se amplamente de paradoxos para provar o seu ponto de vista. 

Livia Kohn fornece um exemplo de como Lao Zi encorajou uma mudança na abordagem, ou voltar para “a natureza”, ao invés da ação. A tecnologia pode trazer uma falsa percepção de progresso. A resposta dada por Lao Zi não é a rejeição da tecnologia, mas a procura do estado calma do Wu wei, livre de desejos. Isto junta-se às diversas declarações de Lao Zi encorajando os governantes a manter o seu povo na “ignorância” ou na “ingenuidade”.

Alguns eruditos insistem que esta explicação não tem em conta o contexto religioso e outros questionam-na como uma apologia da coerência filosófica da obra. Não seria um conselho político incomum se Lao Zi literalmente quisesse que os governantes mantivessem os seus súbditos ignorantes. Porém, alguns termos no texto, tais como “o vale do espírito” (gushen) e “alma” (pô), indicam um sentido e contexto metafísicos e não podem ser interpretados corretamente com uma leitura puramente ética da obra. 

O Wu wei (無爲), literalmente “não-ação”, é um conceito fulcral do Tao Te Ching. O conceito Wu wei é multifacetado e tem diversos significados, até na tradução portuguesa; pode significar “não fazer nada”, “não impor”, “não actuar”, “criar nada”, “atuar de maneira espontânea” e “acompassar o momento”. É uma noção usada para explicar o ziran (自然) (“Harmonia com o Tao”). Concebe que as diferenciações de valores são ideológicas e vê a ambição de qualquer tipo como originária da mesma fonte.

Lao Zi serviu-se do termo de forma ampla, descrevendo a simplicidade e a humildade como faculdades essenciais, contrastando-as frequentemente com as atitudes egoístas e egocêntricas. Num contexto político, significa evitar situações como a guerra, leis duras e impostos pesados. Alguns taoistas relacionam o Wu wei com as práticas esotéricas, tais como o zuowang “sentar-se no esquecimento” (esvaziando a mente do corpo e do pensamento) encontrado no Zhuangzi. 

Alguns dos ditados mais famigerados são: 

“Quando a bondade é perdida, é substituída pela moralidade.” 

“Sem trevas não pode haver luz.” 

“A utilidade duma panela vem do seu vazio.” 

“A melhor gente é como a água, a qual beneficia todas as coisas e não compete com elas. Mantém-se em lugares humildes que outros rejeitam. É por isso que é tão similar ao Caminho.” 

“Quando a gente acha algumas coisas bonitas, outras coisas tornam-se feias. Quando as pessoas vêem algumas coisas como boas, outras tornam-se más.” 

“Tenta mudá-lo e estragá-lo-ás. Tenta mantê-lo e irás perdê-lo.” 

“Aqueles que sabem, ficam calados. Aqueles que falam, não sabem.” 

“Quando tu reparas que nada falta, todo o mundo te pertence.” 

“A natureza não se apressa, dado que tudo é realizado.” 

“Um bom viajante não tem planos fixos e não está determinado a chegar.” 

“A música na alma pode ser ouvida pelo universo.” 

“Uma viagem de mil milhas começa nos seus pés.” 

“Quanta mais leis e regulações tenham importância, mais ladrões e bandidos haverá.”
— Lao Zi

Taoismo

Lao Zi é tido tradicionalmente como o fundador do taoismo, ligado intimamente ao Tao Te Ching e ao taoismo “primitivo” (ou “original”). O taoismo popular (“religioso”), considera o Imperador de Jade com a sua deidade máxima oficial. Os taoistas intelectuais (a “elite”), tais como a seita dos Mestres Celestiais, costumam pôr Lao Zi (Lao jun, “Senhor Lao”) e Os Três Puros no topo do panteão divino. 

Influência

Ao longo da história chinesa diversos oficiais sustentaram-se nos ensinamentos de sábios não-confucionistas, especialmente nos de Lao Zi e Zhuangzi, para negar-se a servir qualquer governante a qualquer instante. Zhuangzi, o seguidor mais famoso de Lao Zi nos anais, tinha muita influência na cultura e nos literati chineses, influência que continua a ser exercida na atualidade. Teóricos políticos influenciados por Lao Zi defendem a humildade na liderança e uma governança comedida, tanto por motivos éticos e pacifistas ou por objetivos tácticos. Num contexto diferente, vários movimentos anti-autoritários têm adoptado os ensinamentos de Lao Zi acerca do poder dos pobres. Lao Zi defendeu a ideia dum governo limitado.

Os libertários de esquerda têm sido influenciados por Lao Zi – no seu livro de 1937, Nationalism and Culture, o escritor e ativista anarco-sindicalista Rudolf Rocker elogiou a “gentil sabedoria” devido à sua observação acerca da oposição entre o poder político e as atividades culturais da povo. Piotr Kropotkin, no seu artigo de 1910 para a Encyclopædia Britannica, chegou à conclusão que Lao Zi teria sido um dos primeiros formuladores dos princípios básicos do anarquismo. Recentemente, anarquistas como John P. Clark e Ursula K. Le Guin têm escrito acerca das semelhanças entre o anarquismo e o taoismo em diversos pontos, especialmente com os ensinamento de Lao Zi.

Na interpretação do Tao Te Ching de Úrsula K. Le Guin, ela grafa que “Lao zi não acha o poder político mágico. Ele considera o poder justo como merecido e o poder injusto como ilegítimo. Ele acredita que o sacrifício pessoal ou dos outros é uma corrupção do poder e que o poder está disponível para qualquer que segue o Caminho. Não é de admirar que os anarquistas e os taoistas sejam bons amigos.” 

Veja mais:

O economista libertário de direita, Murray Rothbard, sugeriu que Lao Zi tinha sido o primeiro libertário, comparando os ideais governativos de Lao Zi com a teoria da ordem espontânea de F.A. Hayek. James A. Dorn concordou, grafando que Lao Zi, tal como muitos liberais do século XVIII, referiram que “reduzindo o papel do governo e deixando os indivíduos desenvolverem-se espontaneamente seria a melhor forma de alcançar uma harmonia social e económica.” Similarmente, o Instituto Cato de David Boaz incluiu trechos do Tao Te Ching no seu livro de 1997, The Libertarian Reader. O filósofo Roderick Long, contudo, defende que os conceitos libertários no taoismo na verdade, são originários de escritores confucionistas mais antigos.

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Lenin https://canalfezhistoria.com/lenin/ https://canalfezhistoria.com/lenin/#respond Mon, 17 Mar 2025 17:48:57 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6199 Vladimir Ilyich Ulyanov, mais conhecido pelo pseudônimo Lenin (Simbirsk, 22 de abril de 1870 – Gorki, 21 de janeiro de 1924), foi um revolucionário comunista, político e teórico político russo que serviu como chefe de governo da República Russa de 1917 a 1918, da República Socialista Federativa Soviética da Rússia de 1918 a 1922 e da União Soviética de 1922 a 1924. Sob sua administração, a Rússia e em seguida, a União Soviética tornaram-se um Estado socialista unipartidário governado pelo Partido Comunista. Ideologicamente marxistas, suas teorias políticas são conhecidas como leninismo. 

Nascido em uma família de classe média alta em Simbirsk, Lenin interessou-se por políticas socialistas revolucionárias após a execução de seu irmão em 1887. Expulso da Universidade Imperial de Kazan por participar de protestos contra o regime czarista do Império Russo, nos anos seguintes graduou-se em direito. Em 1893, mudou-se para São Petersburgo e tornou-se uma importante figura do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR).

Em 1887, foi preso por sedição e exilado para Shushenskoye por três anos, onde casou-se com Nadežda Krupskaja. Após seu exílio, mudou-se para a Europa Ocidental, onde se tornou um teórico de destaque através de suas publicações. Em 1903, assumiu um papel fundamental em uma divisão ideológica do POSDR, líder da facção bolchevique contra os mencheviques de Julius Martov.

Incentivou a insurreição durante a fracassada Revolução Russa de 1905, mais tarde fez campanha para que a Primeira Guerra Mundial fosse transformada em uma revolução proletária em escala europeia, que, como marxista, ele acreditava que culminaria no colapso do capitalismo e sua substituição pelo socialismo. Depois que a Revolução de Fevereiro de 1917 derrubou o czar e estabeleceu um Governo Provisório, voltou à Rússia para desempenhar um papel de liderança na Revolução de Outubro, em que os bolcheviques derrubaram o novo regime.

Seu governo bolchevique inicialmente compartilhou o poder com os Socialistas Revolucionários de Esquerda, sovietes eleitos, e uma Assembleia Constituinte multipartidária, embora em 1918 tivesse o poder centralizado no novo Partido Comunista. Sua administração redistribuiu a terra entre os camponeses e nacionalizou os bancos e a indústria em grande escala.

Retirou o país da Primeira Guerra Mundial assinando um tratado com as Potências Centrais e buscou promover a revolução mundial através da Internacional Comunista. Os oponentes foram suprimidos no Terror Vermelho, uma campanha violenta administrada pelos serviços de segurança estatal; dezenas de milhares foram mortos ou enviados aos campos de concentração. Seu governo derrotou os exércitos anti-bolcheviques da direita e da esquerda na Guerra Civil Russa de 1917 a 1922 e participou da Guerra Polonesa-Soviética de 1919 a 1921. 

Respondendo a devastação da guerra, fome e revoltas populares, em 1921, encorajou o crescimento econômico através da Nova Política Econômica orientada ao mercado. Várias nações não-russas conseguiram independência após 1917, mas três reuniram-se com a Rússia através da formação da União Soviética em 1922. Com uma saúde cada vez mais fraca, Lenin expressou oposição ao crescente poder de seu sucessor, Josef Stalin, antes de morrer na mansão de Gorki. 

Amplamente considerado uma das figuras mais importantes e influentes do século XX, Lenin tornou-se o centro de um culto à personalidade póstumo generalizado pela União Soviética até sua dissolução em 1991. Tornou-se a figura ideológica por trás do marxismo-leninismo e, assim, uma influência importante sobre o movimento comunista internacional. Um indivíduo controverso e altamente divisionista, Lenin é visto pelos marxistas-leninistas como um herói do socialismo e das classes trabalhadoras, enquanto críticos da esquerda e da direita enfatizam seu papel como fundador e líder de um regime autoritário responsável por violações aos direitos humanos.

Infância: 1870–87

O pai de Lenin, Ilya Nikolayevich Ulyanov, era de uma família de servos; suas origens étnicas permanecem obscuras, com sugestões sendo feitas de que ele era um russo chuvache, mordóvio ou calmuco. Apesar deste contexto de classe baixa, ascendeu ao status de classe média estudando física e matemática na Universidade Imperial de Kazan antes de lecionar no Instituto Penza para Nobres. Ilya casou-se com Maria Alexandrovna Blank em meados de 1863.

Bem educada e de um passado relativamente próspero, era filha de uma mulher teuto-sueca e de um médico judeu russo que se converteu ao cristianismo. É provável que ele não soubesse da ascendência judaica de sua mãe, que só foi descoberta por sua irmã Anna após sua morte. Logo após seu casamento, Ilya obteve um trabalho em Níjni Novgorod, ascendendo para se tornar Diretor de Escola Primária no distrito de Simbirsk seis anos mais tarde.

Cinco anos depois, foi promovido a Diretor de Escolas Públicas da província, supervisionando a criação de mais de 450 escolas como parte dos planos do governo para modernização. Sua dedicação à educação lhe rendeu a Ordem de São Vladimir, que lhe conferiu o status de nobre hereditário. 

Lenin nasceu em Simbirsk em 10 de abril de 1870 e foi batizado vários dias depois; quando criança, ganhou o apelido de “Volodya”, um diminutivo de Vladimir. Era um dos oito filhos, tendo dois irmãos mais velhos, Anna (nascida em 1864) e Alexander (nascido em 1868). O casal Ulyanov teve mais três filhos, Olga (nascido em 1871), Dmitry (nascido em 1874) e Maria (nascida em 1878). Dois de seus filhos mais tarde morreram na infância. Ilya era um membro devoto da Igreja Ortodoxa Russa e batizou seus filhos nela, embora sua esposa – uma luterana – fosse em grande parte indiferente ao cristianismo, o que acabou influenciando seus filhos.

Seus pais eram monarquistas e conservadores liberais, e estavam comprometidos com a reforma da emancipação de 1861 introduzida pelo czar reformista Alexander II; evitavam políticos radicais e não há evidência de que a polícia os tenha posto sob vigilância por pensamento subversivo. Todos os verões passavam as férias em uma mansão rural em Kokushkino. Entre seus irmãos, Lenin era mais próximo de Olga, a quem muitas vezes mandava; ele tinha uma natureza extremamente competitiva e poderia ser destrutivo, mas geralmente admitia seu mau comportamento. Esportista afiado, passou grande parte de sua folga ao ar livre ou jogando xadrez, e destacou-se nos estudos, no disciplinado e conservador Ginásio Clássico de Simbirsk. 

Ilya Ulyanov morreu de uma hemorragia cerebral em janeiro de 1886, quando Lenin tinha 16 anos. Posteriormente, seu comportamento tornou-se errático e conflituoso, e logo renunciou a sua crença em Deus. Na época, seu irmão mais velho Alexander — a quem ele chamava de Sasha — estudava na Universidade de São Petersburgo. Envolvido na agitação política contra a monarquia absoluta do czar reacionário Alexandre III da Rússia, Sasha estudou os escritos de esquerdistas proibidos e organizou protestos contra o governo.

Juntou-se a uma célula revolucionária que planejava assassinar o imperador e foi selecionado para construir uma bomba. Antes que o ataque pudesse acontecer os conspiradores foram presos e julgados, e em maio Sacha foi executado por enforcamento. Apesar do trauma emocional das mortes de seu pai e irmão, Lenin continuou estudando, se formou com uma medalha de ouro por um desempenho excepcional, e decidiu estudar Direito na Universidade de Kazan. 

Universidade e radicalização política: 1887–93

Ao ingressar na Universidade de Kazan em agosto de 1887, Lenin se mudou para um apartamento próximo. Lá, juntou-se a um zemlyachestvo, uma forma de sociedade universitária que representava pessoas de uma determinada região. Este grupo o elegeu como seu representante para o conselho de estudantes da universidade, e em dezembro, participou de uma manifestação contra as restrições do governo que baniu as sociedades estudantis. A polícia o prendeu e o acusou de ser um líder na manifestação; foi expulso da universidade, e o Ministério dos Assuntos Internos o exilou à propriedade de sua família em Kokushkino. Lá, leu vorazmente, apaixonando-se pelo romance pró-revolucionário Que Fazer? (1863), de Nikolay Chernyshevsky. 

Sua mãe estava preocupada com sua radicalização e ela teve um papel fundamental para convencer o Ministério do Interior a permitir que Lenin voltasse para a cidade de Kazan, embora não à universidade. Em seu retorno, juntou-se ao círculo revolucionário de Nikolai Fedoseev, através do qual descobriu o livro O Capital (1867), de Karl Marx. Isso despertou seu interesse pelo marxismo, uma teoria sociopolítica que argumenta que a sociedade desenvolveu-se em diferentes estágios através da luta de classes e que a sociedade capitalista acabaria cedendo à sociedade socialista e depois à sociedade comunista.

Desconfiada de suas opiniões políticas, a mãe de Lenin comprou uma propriedade rural na vila de Alakaevka, Oblast de Samara, na esperança de que seu filho voltasse sua atenção à agricultura. No entanto, ele tinha pouco interesse na gestão agrícola, e sua mãe logo vendeu a terra, mantendo a propriedade como uma casa de verão.

Em setembro de 1889, a família Ulyanov mudou-se para a cidade de Samara, onde Lenin se juntou ao círculo de discussão socialista de Alexei Sklyarenko. Sklyarenko e Lenin adotaram o marxismo, e o último traduziu o folheto político de Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista (1848), para o russo. Ele começou a ler as obras do marxista russo Gueorgui Plekhanov, concordando com seu argumento de que a Rússia estava passando do feudalismo para o capitalismo e assim o socialismo seria implementado pelo proletariado e não pelo campesinato.

Esta visão filosófica contrastava com as ideias do movimento populista (ou narodnik, como eram conhecidos os populistas russos) agrário-socialista, que sustentava que o campesinato podia estabelecer o socialismo na Rússia formando comunas camponesas, desviando assim o capitalismo. Esta visão dos narodnik desenvolveu-se na década de 1860 com o Partido da Vontade do Povo e era então dominante dentro do movimento revolucionário russo. Embora Lenin rejeitasse a premissa do argumento agrário-socialista, foi influenciado por adeptos dessa visão como Pyotr Tkachev e Sergey Nechayev, e fez amizade com vários narodniks. 

Em maio de 1890, Maria — que manteve influência social como a viúva de um nobre — persuadiu as autoridades a permitir que Lenin fizesse seus exames externos na Universidade de São Petersburgo, onde obteve o equivalente a um diploma de primeira classe com honras. As celebrações de graduação foram marcadas quando sua irmã Olga morreu de febre tifoide. Lenin permaneceu em Samara por vários anos, trabalhando primeiramente como um assistente legal para um tribunal regional e depois para um advogado local.

Dedicou muito tempo à política radical, permanecendo ativo no grupo de Skylarenko e formulando ideias sobre como o marxismo se aplicava à Rússia. Inspirado no trabalho de Plekhanov, coletou dados sobre a sociedade russa, usando-os para apoiar uma interpretação marxista do desenvolvimento social e contra as reivindicações dos narodniks. Nessa época, escreveu um artigo sobre economia camponesa, que foi rejeitado pela revista liberal Russkaya Mysl (“Pensamento Russo”).

Ativismo precoce e prisão: 1893–1900

No outono de 1893, Lenin mudou-se para São Petersburgo. Lá, trabalhou como assistente de um advogado e ascendeu a uma posição sênior em uma célula revolucionária marxista que denominava-se “social-democrata”, influenciados pelo partido marxista Social-Democrata da Alemanha. Promovendo publicamente o marxismo dentro do movimento socialista, ele encorajou a fundação de células revolucionárias nos centros industriais da Rússia.

No outono de 1894, liderava um círculo operário marxista, e meticulosamente cobriu suas pistas, sabendo que espiões policiais tentavam infiltrar-se no movimento. Começou uma relação romântica com Nadežda “Nadya” Krupskaja, uma professora marxista. Também escreveu um tratado político criticando os populistas agrário-socialistas, Quem são os “Amigos do Povo” e como Lutam Contra os Social-Democratas?, baseado em grande parte em suas experiências em Samara; cerca de 200 exemplares foram impressos ilegalmente em 1894. 

Lenin esperava cimentar conexões entre seus social-democratas e a Emancipação do Trabalho, um grupo de emigrantes marxistas russos sediado na Suíça; ele visitou o país para conhecer os membros do grupo, Plekhanov e Pavel Akselrod. Procedeu a Paris para encontrar-se com o genro de Marx, Paul Lafargue, e pesquisar sobre a Comuna de Paris de 1871, que considerava um protótipo inicial para um governo proletário.

Financiado por sua mãe, permaneceu em um spa de saúde suíço antes de viajar para Berlim, onde estudou por seis semanas na Staatsbibliothek e conheceu o ativista marxista Wilhelm Liebknecht. Voltando à Rússia com um estoque de publicações revolucionárias ilegais, viajou para várias cidades distribuindo tal literatura aos trabalhadores em greve. Envolvido na produção do periódico Rabochee delo (“Causa dos Trabalhadores”), estava entre os 40 ativistas presos em São Petersburgo e acusados de sedição. 

Recusando representação legal ou fiança, Lenin negou todas as acusações contra ele, mas permaneceu preso por um ano antes da sentença. Passou esse tempo teorizando e escrevendo. Nesse período, passou a analisar que a ascensão do capitalismo industrial na Rússia tinha feito com que um grande número de camponeses se mudassem para as cidades, onde formaram um proletariado. De sua perspectiva marxista, argumentava que este proletariado russo desenvolveria a consciência de classe, o que, por sua vez, os levaria a derrubar violentamente o czarismo, a aristocracia e a burguesia, estabelecendo um estado proletário que se dirigiria ao socialismo.

Em fevereiro de 1897, foi condenado sem julgamento a três anos de exílio na Sibéria oriental, embora tenham lhe concedido alguns dias em São Petersburgo para pôr seus assuntos em ordem. Usou esse tempo para se reunir com os social-democratas, que se renomearam enquanto Liga de Luta pela Emancipação da Classe Operária. Sua jornada à Sibéria oriental levou 11 semanas, muitas das quais foi acompanhado por sua mãe e irmãs.

Considerado apenas uma ameaça menor para o governo, foi exilado para uma cabana de camponeses em Shushenskoye, no distrito de Minusinsky, onde foi mantido sob vigilância policial; foi capaz de corresponder-se com outros revolucionários, muitos dos quais o visitaram, e lhe foi permitido ir em viagens para nadar no rio Ienissei e caçar patos e narcejas. 

Em maio de 1898, Nadya juntou-se a ele no exílio, sendo presa em agosto de 1896 por organizar uma greve. Embora inicialmente detida em Ufa, persuadiu as autoridades a movê-la para Shushenskoye, alegando que ela e Lenin estavam noivos. Lenin e Nadya casaram-se em uma igreja em 10 de julho de 1898. Estabelecendo uma vida familiar com a mãe de Nadya, Elizaveta Vasilyevna, em Shushenskoye, o casal traduziu a literatura socialista inglesa para o russo.

Desejosos de acompanhar a evolução do marxismo alemão – onde houve uma divisão ideológica, com revisionistas como Eduard Bernstein defendendo um caminho pacífico e eleitoral para o socialismo – Lenin permaneceu devotado à revolução violenta, atacando os argumentos revisionistas em Um Protesto dos Social-Democratas Russos. Também terminou O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia (1899), seu livro mais longo até então, no qual criticava os socialistas agrários e promoveu uma análise marxista do desenvolvimento econômico na Rússia. Publicou sob o pseudônimo de “Vladimir Ilin”, após a obra receber críticas predominantemente pobres. 

Munique, Londres e Suíça: 1900–05

Depois de seu exílio, Lenin estabeleceu-se em Pskov no início de 1900. Lá, começou a angariar fundos para o jornal Iskra (“Faísca”), novo órgão do partido marxista russo, que agora se autodenominava Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR). Em julho de 1900, deixou a Rússia para a Europa Ocidental; na Suíça, encontrou-se com outros marxistas russos e, numa conferência em Corsier, concordou em lançar o jornal de Munique, para onde mudou-se em setembro.

Contendo contribuições de marxistas europeus proeminentes, o Iskra foi contrabandeado na Rússia, tornando-se a publicação clandestina mais bem sucedida do país por 50 anos. Adotou o pseudônimo “Lenin” em dezembro de 1901, possivelmente inspirado no Rio Lena; ele costumava usar o pseudônimo “N. Lenin”, e embora o “N” não representasse nada, mais tarde surgiu um equívoco popular de que significava “Nikolai”. Sob este pseudônimo, publicou o panfleto político Que Fazer? em 1902; sua publicação mais influente até o momento tratava de seus pensamentos sobre a necessidade de um partido de vanguarda para levar o proletariado à revolução. 

Nadya juntou-se ao marido em Munique, se tornando sua secretária pessoal. Continuaram sua militância política, enquanto Lenin escrevia para o Iskra e redigia o programa do POSDR, atacando dissidentes ideológicos e críticos externos, particularmente o Partido Socialista Revolucionário (PSR), um grupo agrário-socialista narodnik fundado em 1901. Apesar de permanecer marxista, aceitou a opinião de populistas sobre o poder revolucionário do campesinato russo, em conformidade com o panfleto Aos Pobres do Campo, de 1903.

Para fugir da polícia bávara, Lenin se mudou para Londres com o Iskra em abril de 1902, lá tornou-se amigo do marxista russo Leon Trótski. Em Londres, Lenin adoeceu de erisipela e foi incapaz de assumir um papel de liderança no conselho editorial do Iskra; na sua ausência, o conselho mudou sua base de operações para Genebra. 

Em julho de 1903, foi realizado em Londres o II Congresso do POSDR. Na conferência, surgiu um cisma entre os partidários de Lenin e os de Julius Martov. Martov argumentou que os membros do partido deviam ser capazes de se expressar independentemente da liderança do partido; Lenin discordou, enfatizando a necessidade de uma liderança forte com total controle sobre o partido. Os partidários de Lenin eram maioria, passando a denominar-se bolcheviques (“maioria”, em russo bol’sheviki); em contraposição aos mencheviques (“minoria”, em russo men’sheviki) de Martov.

As discussões entre bolcheviques e mencheviques continuaram após a conferência; os bolcheviques acusavam seus rivais de oportunistas e reformistas carentes de disciplina, enquanto os mencheviques acusavam Lenin de ser um déspota e um autocrata. Enfurecido com os mencheviques, renunciou ao conselho editorial do Iskra e em maio de 1904 publicou o tratado anti-menchevique Um Passo em Frente, Dois Passos Atrás. O estresse fez Lenin adoecer, e para se recuperar passou a realizar caminhadas durante os feriados na Suíça rural. A facção bolchevique cresceu em força; na primavera, todo o Comitê Central do POSDR era bolchevique, e em dezembro fundaram o jornal Vperëd (“Progressivo”). 

Revolução de 1905 e suas consequências: 1905–14

Em janeiro de 1905, o massacre dos manifestantes no Domingo Sangrento em São Petersburgo provocou uma onda de agitação civil que ficou conhecida como a Revolução de 1905. Lenin exortou os bolcheviques a assumirem um papel maior nos eventos, incentivando a insurreição violenta. Ao fazê-lo, adotou lemas do PSR como “insurreição armada”, “terror de massa” e “expropriação de terras nobres”, resultando em acusações mencheviques de que ele se desviara do marxismo ortodoxo.

Por sua vez, insistiu que os bolcheviques se separassem completamente dos mencheviques, embora muitos membros da facção se recusassem e ambos os grupos participaram do III Congresso do POSDR, realizado em Londres, em abril de 1905. Lenin apresentou muitas de suas ideias sobre aquela conjuntura no panfleto Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática, publicado em agosto, prevendo que a burguesia liberal da Rússia seria saciada por uma transição à monarquia constitucional e, assim, trairia a revolução; argumentando que o proletariado teria de construir uma aliança com o campesinato para derrubar o regime czarista e estabelecer a “ditadura democrática revolucionária provisória do proletariado e do campesinato”. 

A insurreição já começou. Força contra Força. A luta de rua está furiosa, barricadas estão sendo lançadas, rifles estão rachando, armas estão efervescendo. Rios de sangue estão fluindo, a guerra civil pela liberdade está ardendo. Moscou e o Sul, o Cáucaso e a Polônia estão prontos para se juntar ao proletariado de São Petersburgo. O lema dos trabalhadores tornou-se: Liberdade ou Morte! 

Lenin sobre a Revolução de 1905 

Em resposta à Revolução de 1905, o czar Nicolau II aceitou uma série de reformas liberais em seu Manifesto de Outubro, depois disso Lenin sentiu-se seguro para voltar a São Petersburgo. Juntando-se ao conselho editorial do Novaya Zhizn (“Vida Nova”), um jornal legal radical dirigido por Maria Andreyeva, usou-o para discutir questões enfrentando o POSDR. Encorajou o partido a procurar um número maior de membros e defendeu a escalada contínua do confronto violento, acreditando que eram ambas medidas necessárias para o sucesso revolucionário.

Reconhecendo que os honorários de sócios e as doações de alguns simpatizantes ricos eram insuficientes para financiar as atividades dos bolcheviques, endossou a ideia de roubar correios, estações ferroviárias, trens e bancos. Sob a liderança de Leonid Krasin, um grupo de bolcheviques começou a levar a cabo tais ações criminosas, a mais conhecida acontecendo em junho de 1907, quando um grupo de bolcheviques sob a liderança de Josef Stalin realizou um assalto à mão armada do banco de Tíflis, Geórgia. 

Embora defendesse brevemente a ideia de reconciliação entre bolcheviques e mencheviques, a defesa da violência de Lenin foi condenada pelos mencheviques no IV Congresso do partido, realizado em Estocolmo, em abril de 1906. Lenin envolveu-se na criação de um Centro Bolchevique em Kuokkala, Grão-Ducado da Finlândia, na época uma parte semi-autônoma do Império Russo, antes que os bolcheviques recuperassem o domínio do POSDR em seu V Congresso, realizado em Londres em maio de 1907.

No entanto, como o governo czarista reprimiu a oposição – tanto pela dissolução da Assembleia Legislativa da Rússia, a Segunda Duma, e ordenando a sua polícia secreta, a Okhrana, prender revolucionários – Lenin fugiu da Finlândia à Suíça. Lá ele tentou trocar as notas roubadas em Tíflis que tinham números de série identificáveis nelas. 

Alexander Bogdanov e outros proeminentes bolcheviques decidiram mudar o centro da facção para Paris; embora Lenin discordasse, mudou-se para a cidade em dezembro 1908. Lenin não gostava da capital francesa, criticando-a como “um buraco sujo”, e enquanto esteve lá ele processou um motorista que o derrubou de sua bicicleta. Tornou-se um grande crítico da opinião de Bogdanov de que o proletariado da Rússia tinha que desenvolver uma cultura socialista, a fim de se tornar um veículo revolucionário bem sucedido.

Em vez disso, Lenin favorecia a ideia uma vanguarda da intelectualidade socialista que lideraria as classes trabalhadoras na revolução. Além disso, Bogdanov – influenciado por Ernst Mach – acreditava que todos os conceitos do mundo eram relativos, enquanto Lenin era adepto da visão marxista ortodoxa de que havia uma realidade objetiva independente da observação humana. Apesar de Bogdanov e Lenin terem vivido juntos na casa de Máximo Gorki, em Capri, em abril de 1908, em Paris, suas discussões encorajaram uma divisão dentro da facção bolchevique entre os seus seguidores e os de Bogdanov, que acusavam este de desviar-se do marxismo. 

Lenin viveu brevemente em Londres em maio de 1908, onde usou a Sala de Leitura do Museu Britânico para escrever Materialismo e Empiriocriticismo, um ataque ao que descreveu como a “falsidade reacionária burguesa” do relativismo de Bogdanov. Seu faccionalismo começou a alienar um número cada vez maior de bolcheviques, incluindo Aleksei Rykov e Lev Kamenev. A Okhrana explorou sua atitude faccionalista ao enviar um espião, Roman Malinovsky, para atuar como um correligionário de Lenin no partido. Vários bolcheviques expressaram suas suspeitas sobre Malinovsky a Lenin, e embora não esteja claro se ele estava ciente do papel designado ao espião, é possível que Lenin tenha usado Malinovsky para suprir informações falsas à Okhrana. 

Em agosto de 1910, Lenin participou do Oitavo Congresso da Segunda Internacional – um encontro internacional de socialistas – em Copenhague como o representante do POSDR, depois passando um feriado em Estocolmo com sua mãe. Com sua esposa e irmãs, mudou-se para França, estabelecendo-se primeiro em Bombon e depois em Paris. Tornou-se então um amigo íntimo da bolchevique francesa Inês Armand; alguns biógrafos sugerem que eles tiveram um caso extraconjugal entre 1910 e 1912.

Enquanto isso, numa reunião em Paris, em junho de 1911, o Comitê Central do POSDR decidiu transferir o seu foco de operações à Rússia, ordenando o encerramento do Centro Bolchevique e de seu jornal, Proletari. Buscando reconstruir sua importância no partido, Lenin arranjou uma conferência a ser realizada em Praga em janeiro de 1912, e embora 16 dos 18 atendentes fossem bolcheviques, ele foi fortemente criticado por suas tendências faccionalistas e não conseguiu ampliar sua influência dentro do partido. Mudando-se para Cracóvia no Reino da Galícia e Lodoméria, uma parte culturalmente polonesa do Império Austro-Húngaro, usou a biblioteca da Universidade Jaguelônica para realizar pesquisas.

Permaneceu em estreito contato com o POSDR, que estava operando no Império Russo, convencendo os membros bolcheviques da Duma a se separarem da aliança parlamentar com os mencheviques. Em janeiro de 1913, Stalin – a quem Lenin se referia como o “maravilhoso georgiano” – o visitou, e eles discutiram o futuro de grupos étnicos não-russos no Império. Devido à saúde doente de Lenin e sua esposa, mudaram-se para a cidade rural de Biały Dunajec, antes de ir a Berna para Nadya fazer a cirurgia em seu bócio. 

Primeira Guerra Mundial: 1914–17

A [Primeira] Guerra [Mundial] está sendo travada para a divisão de colônias e o roubo de território estrangeiro; ladrões caíram – e referir-se às derrotas num dado momento de um dos ladrões para identificar os interesses de todos os ladrões com os interesses da nação ou da pátria é uma mentira burguesa inconcebível. 

Interpretação de Lenin da Primeira Guerra Mundial

Estava na Galícia quando a Primeira Guerra Mundial estourou. O conflito pôs de frente o Império Russo contra o Império Austro-Húngaro, e devido à sua cidadania russa, foi detido e brevemente preso até que suas credenciais anti-czaristas foram explicadas. Lenin e sua esposa retornaram a Berna, antes de se mudarem para Zurique em fevereiro de 1916. Ele estava bravo porque o Partido Social-Democrata Alemão apoiava o esforço de guerra de seu país – uma contravenção direta da Segunda Resolução Internacional de Stuttgart de que os partidos socialistas se oporiam ao conflito – e assim viu a Segunda Internacional como extinta.

Assistiu à Conferência de Zimmerwald em setembro de 1915 e à Conferência de Kienthal, em abril de 1916, exortando os socialistas de todo o continente a converter a “guerra imperialista” numa “guerra civil” continental com o proletariado contra a burguesia e a aristocracia. Em julho de 1916, sua mãe morreu, mas ele não pôde comparecer ao funeral. A morte de sua mãe o afetou profundamente, e ele ficou deprimido, temendo que também morreria antes de ver a revolução proletária.

Em setembro de 1917, publicou a obra Imperialismo: Fase Superior do Capitalismo, em que argumentava que o imperialismo era um produto do capitalismo monopolista, à medida que os capitalistas procuravam aumentar seus lucros estendendo-se a novos territórios onde os salários eram mais baixos e as matérias-primas mais baratas.

Acreditava que a competição e o conflito aumentariam e que a guerra entre as potências imperialistas continuaria até que as classes dominantes fossem derrubadas pela revolução proletária e o socialismo fosse estabelecido. Passou grande parte desse tempo lendo as obras de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Ludwig Feuerbach e Aristóteles, todos os quais tinham sido influências-chave em Marx. Isso mudou sua interpretação do marxismo; enquanto acreditava que as políticas poderiam ser desenvolvidas com base em princípios científicos predeterminados, concluiu que a única prova para saber se a política estava correta era a sua prática.

Embora ainda se percebesse como um marxista ortodoxo, começou a desviar-se de algumas das previsões de Marx sobre o desenvolvimento social; ao passo que o filósofo alemão acreditava que uma “revolução burguesa democrática” das classes médias devia ter lugar antes de uma “revolução socialista” do proletariado, Lenin acreditava que na Rússia o proletariado poderia derrubar o regime czarista sem uma revolução intermediária. 

Revolução de Fevereiro e os Dias de Julho: 1917

Em fevereiro de 1917, a Revolução de Fevereiro estourou em São Petersburgo – renomeada Petrogrado no início da Primeira Guerra Mundial – quando trabalhadores industriais entraram em greve por conta da falta de alimentos e da deterioração das condições fabris. A agitação espalhou-se para outras partes da Rússia, e temendo que fosse violentamente derrubado, o czar Nicolau II abdicou. A Duma Estatal assumiu o controle do país, estabelecendo um Governo Provisório e convertendo o Império em uma nova República Russa.

Quando Lenin soube disso em sua base na Suíça, celebrou com outros dissidentes. Decidiu retornar à Rússia para assumir a liderança dos bolcheviques, mas descobriu que a maioria das passagens para o país foram bloqueadas devido ao conflito em curso. Organizou um plano com outros dissidentes para negociar uma passagem para eles através da Alemanha, com quem a Rússia estava em guerra.

Reconhecendo que esses dissidentes poderiam causar problemas para seus inimigos russos, o governo alemão concordou em permitir que 32 cidadãos russos viajassem em um vagão ferroviário através de seu território, entre eles Lenin e sua esposa. O grupo viajou de trem de Zurique a Sassnitz, seguindo de balsa para Trelleborg, Suécia, e de lá para Helsinque antes de pegar o trem final para Petrogrado. 

Chegando à Estação Finlândia de Petrogrado, fez um discurso aos partidários bolcheviques condenando o Governo Provisório e apelando novamente para uma revolução proletária continental na Europa. Durante os dias seguintes, falou em reuniões da facção, criticando aqueles que queriam reconciliação com os mencheviques e revelando suas Teses de Abril, um esboço de seus planos para os bolcheviques, que havia escrito na viagem da Suíça. Condenou publicamente os mencheviques e os social-revolucionários – que dominavam o influente Soviete de Petrogrado – por apoiarem o Governo Provisório, denunciando-os como traidores do socialismo.

Considerando que o governo era tão imperialista quanto o regime czarista, defendeu a paz imediata com a Alemanha e a Áustria-Hungria, a nacionalização da indústria e dos bancos, a expropriação estatal de terras, e o governo dos sovietes, tudo com a intenção de estabelecer um governo proletário e o desenvolvimento de uma sociedade socialista. Em contraste, os mencheviques acreditavam que a Rússia não estava suficientemente desenvolvida para a transição socialista e acusaram Lenin de tentar mergulhar a nova República na guerra civil.

Durante os próximos meses, ele fez campanha em prol de suas concepções militantes, participando das reuniões do Comitê Central Bolchevique, prolificamente escrevendo para o jornal bolchevique Pravda, e dando discursos públicos em Petrogrado com o objetivo de converter trabalhadores, soldados, marinheiros e camponeses à sua causa. 

Percebendo a crescente frustração entre os partidários bolcheviques, sugeriu uma manifestação política armada em Petrogrado para testar a resposta do governo. No entanto, em meio ao agravamento da saúde, deixou a cidade para se recuperar na aldeia finlandesa de Neivola. A manifestação armada dos bolcheviques, nos eventos que ficaram conhecidos como os Dias de Julho, teve lugar enquanto Lenin estava ausente, mas ao saber que os manifestantes haviam entrado em conflito violento com as forças governamentais, voltou a Petrogrado e pediu calma.

Respondendo à violência, o governo ordenou a prisão de Lenin e outros membros proeminentes do partido, invadindo seus escritórios, e alegando publicamente que ele era um “agente provocador” alemão. Escapando da prisão, escondeu-se em uma série de casas de segurança de Petrogrado. Temendo sua morte, Lenin e o bolchevique sênior Grigori Zinoviev escaparam da cidade disfarçados, mudando-se para Razliv. Lá, ele começou a trabalhar na obra O Estado e a Revolução, uma exposição sobre como acreditava que o Estado socialista se desenvolveria depois da revolução proletária e como, a partir de então, o Estado iria gradualmente desaparecer, deixando uma sociedade puramente comunista.

Começou a defender uma insurreição armada liderada pelos bolcheviques para derrubar o governo, embora em uma reunião clandestina do comitê central do partido tal ideia tivesse sido rejeitada. Lenin então seguiu de trem e a pé até a Finlândia, chegando a Helsinque em 10 de agosto, onde se escondeu em casas de segurança de simpatizantes bolcheviques. 

Revolução de Outubro: 1917

Em agosto de 1917, enquanto estava na Finlândia, o general Lavr Kornilov, comandante-em-chefe do exército russo, enviou tropas a Petrogrado, no que parecia ser uma tentativa de golpe militar contra o governo provisório. O primeiro-ministro Alexander Kerensky recorreu ao Soviete de Petrogrado – incluindo os seus membros bolcheviques – para ajudar os revolucionários a organizar trabalhadores como Guardas Vermelhos para defender a cidade.

O golpe foi impedido antes de chegar a Petrogrado, embora os acontecimentos tenham permitido aos bolcheviques retornarem ao cenário político em aberto. Temendo uma reação das forças de direita hostis ao socialismo, os mencheviques e os socialistas-revolucionários que dominaram o Soviete de Petrogrado foram fundamentais para pressionar o governo a normalizar as relações com os bolcheviques. Tanto os mencheviques quanto os socialistas-revolucionários haviam perdido muito apoio popular por causa de seu apoio ao governo provisório e sua impopular continuação da guerra. Os bolcheviques capitalizaram sobre isso, e logo o marxista pró-bolchevique Trótski foi eleito líder do Soviete de Petrogrado. Em setembro, a facção ganhou maioria nas seções operárias dos sovietes de Moscou e de Petrogrado. 

Reconhecendo que a situação era mais segura para si, Lenin retornou a Petrogrado. Ali, assistiu a uma reunião do Comitê Central Bolchevique em 10 de outubro, onde novamente argumentou que o partido deveria liderar uma insurreição armada para derrubar o Governo Provisório. Desta vez o argumento ganhou com dez votos contra dois. Os críticos do plano, Zinoviev e Kamenev, argumentaram que os trabalhadores russos não apoiariam um golpe violento contra o regime e que não havia provas claras da afirmação de Lenin de que toda a Europa estava à beira da revolução proletária.

O partido começou a organizar a ofensiva, realizando uma reunião final no Instituto Smolny em 24 de outubro. Esta era a base do Comitê Militar Revolucionário (CMR), uma milícia armada em grande parte leal aos bolcheviques que tinha sido estabelecida pelo Soviete de Petrogrado durante o golpe de Kornilov. 

Em outubro, o CMR recebeu ordens para assumir o controle dos principais centros de transporte, comunicação, impressão e serviços públicos de Petrogrado, sem o derramamento de sangue. Os bolcheviques sitiaram o governo no Palácio de Inverno e derrubaram-no, prendendo seus ministros depois que o cruzador Aurora, controlado por marinheiros bolcheviques, disparou contra o edifício. Durante a insurreição, Lenin fez um discurso ao Soviete de Petrogrado anunciando que o Governo Provisório havia sido derrubado.

Os bolcheviques declararam a formação de um novo governo, o Conselho do Comissariado do Povo ou “Sovnarkom”. Inicialmente Lenin recusou a posição de liderança do Presidente, sugerindo Trótski para o trabalho, mas outros bolcheviques insistiram e, finalmente, ele cedeu. Lenin e outros bolcheviques assistiram ao Segundo Congresso dos Sovietes em 26 e 27 de outubro e anunciaram a criação do novo governo. Os participantes mencheviques condenaram a tomada ilegítima do poder e o risco de uma guerra civil.

Nestes primeiros dias do novo regime, Lenin evitou falar em termos marxistas e socialistas para não alienar a população russa, e em vez disso falou sobre ter um país controlado pelos trabalhadores. Ele e muitos outros bolcheviques esperavam que a revolução do proletariado varresse a Europa em dias ou meses.

Organização do governo soviético: 1917-18

O Governo Provisório tinha planejado uma Assembleia Constituinte a ser eleita em novembro de 1917; contra as objeções de Lenin, o Sovnarkom concordou que a votação se realizasse como previsto. Nas eleições constitucionais, os bolcheviques ganharam aproximadamente um quarto dos votos, sendo derrotados pelo Partido Revolucionário Socialista, de base camponesa. Lenin argumentou que a eleição não era um reflexo justo da vontade do povo, que o eleitorado não teve tempo para aprender o programa político dos bolcheviques e que as listas de candidaturas tinham sido elaboradas antes dos Socialistas Revolucionários de Esquerda se separarem dos Socialistas Revolucionários.

No entanto, a recém-eleita Assembléia Constituinte Russa reuniu-se em Petrogrado, em janeiro de 1918. O Sovnarkom argumentou que a Assembleia era contra-revolucionária porque tentava remover o poder dos sovietes, mas os Socialistas Revolucionários e mencheviques negaram isso. Os bolcheviques apresentaram à Assembleia uma moção que a tiraria da maior parte de seus poderes legais; quando a Assembléia rejeitou a moção, o Sovnarkom declarou isso como prova de sua natureza contra-revolucionária e a desmantelou forçosamente. 

Lenin rejeitou repetidos apelos – incluindo de alguns bolcheviques – para estabelecer um governo de coalizão com outros partidos socialistas. No entanto, o Sovnarkom cedeu parcialmente; apesar de recusar uma coalizão com os mencheviques ou Socialistas Revolucionários, em dezembro de 1917 permitiram aos Socialistas Revolucionários de Esquerda cinco cargos no gabinete.

Esta coalizão durou apenas quatro meses, até março de 1918, quando os Socialistas Revolucionários de Esquerda retiraram-se do governo por um desacordo sobre a abordagem dos bolcheviques em acabar com a Primeira Guerra Mundial. No seu VII Congresso, em março de 1918, os bolcheviques mudaram seu nome oficial de “Partido Operário Social-Democrata Russo” para “Partido Comunista Russo”. Lenin queria distanciar seu grupo do Partido Social-Democrata da Alemanha, cada vez mais reformista, e enfatizar seu objetivo final: uma sociedade comunista. 

Embora o poder oficialmente descansasse no governo do país sob a forma do Sovnarkom e do Comitê Executivo (VTsIK), eleito pelo Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia (CSTR), o Partido Comunista estava de facto no controle da Rússia, como reconhecido por seus membros no momento. Em 1918, o Sovnarkom começou a agir unilateralmente, alegando uma necessidade de conveniência, com o CSTR e o VTsIK tornando-se cada vez mais marginalizados, de modo que os sovietes não mais governavam a Rússia. Durante 1918 e 1919, o governo expulsou mencheviques e Socialistas Revolucionários dos sovietes. A Rússia tornou-se um estado unipartidário. 

Dentro do partido foi estabelecido uma Agência Política (Politburo) e Oficina Organizacional (Orgburo) para acompanhar o Comitê Central existente; as decisões desses órgãos partidários tiveram de ser adotadas pelo Sovnarkom e pelo Conselho de Trabalho e Defesa. Lenin foi a figura central nesta estrutura de governança; além de ser o Presidente do Sovnarkom e estar no Conselho de Trabalho e Defesa, participou do Comitê Central e do Politburo do Partido Comunista.

O único indivíduo que se aproximou dessa influência foi seu braço direito, Yakov Sverdlov, que morreu em março de 1919 durante uma pandemia de gripe. Em novembro de 1917, Lenin e sua esposa viviam num apartamento de dois cômodos dentro do Instituto Smolny, e no mês seguinte saíram para um breve feriado em Halia, na Finlândia. Em janeiro de 1918, ele sobreviveu a uma tentativa de assassinato em Petrogrado; Fritz Platten, que estava com Lenin na época, o protegeu e foi ferido por uma bala. 

Preocupado que o exército alemão representasse uma ameaça a Petrogrado, em março de 1918 o Sovnarkom se mudou para Moscou, inicialmente como uma medida temporária. Lá, Lenin, Trótski e outros líderes bolcheviques se mudaram para o Kremlin, onde o líder do partido vivia com sua esposa e irmã Maria em um apartamento no primeiro andar adjacente à sala em que as reuniões do Conselho do Comissariado do Povo eram realizadas.

Lenin não gostava de Moscou, embora raramente tenha deixado o centro da cidade durante o resto de sua vida. Foi aqui, em agosto de 1918, que ele sobreviveu a uma segunda tentativa de assassinato, baleado após um discurso público e ferido gravemente. Uma Socialista Revolucionária, Fanni Kaplan, foi presa e executada. O ataque foi amplamente coberto na imprensa russa, gerando muita simpatia por ele e aumentando sua popularidade. Como uma pausa, em setembro de 1918 foi levado à propriedade de Gorki, nos arredores de Moscou, adquirida recentemente pelo governo. 

Reformas sociais, jurídicas e econômicas: 1917-18

A todos os Trabalhadores, Soldados e Camponeses. A autoridade soviética proporá imediatamente uma paz democrática a todas as nações e um armistício imediato em todas as frentes. Salvaguardará a transferência sem compensação de todas as terras – propriedades da coroa e da igreja – aos comités de camponeses; defenderá os direitos dos soldados, introduzindo uma completa democratização do exército; estabelecerá o controle dos trabalhadores sobre a indústria; assegurará a convocação da Assembléia Constituinte na data fixada; suprirá as cidades com pão e as aldeias com cláusulas de primeira necessidade; e assegurará a todas as nacionalidades que habitam a Rússia o direito à autodeterminação … Viva a revolução! 

Programa político de Lenin, outubro de 1917

Ao assumir o poder, o regime de Lenin emitiu uma série de decretos. O primeiro foi o Decreto sobre a Terra, que declarava que os latifúndios da aristocracia e da Igreja Ortodoxa deveriam ser nacionalizados e redistribuídos aos camponeses pelos governos locais. Isso contrastava com seu desejo de coletivização agrícola, mas proporcionava o reconhecimento governamental dos assaltos generalizados à terra dos camponeses que já haviam ocorrido. Em novembro de 1917, o governo emitiu o Decreto sobre a Imprensa que fechou muitos meios de comunicação da oposição, considerados contra-revolucionários. Alegaram que a medida seria temporária, embora o decreto tenha sido amplamente criticado, inclusive por muitos bolcheviques, por comprometer a liberdade de imprensa. 

Em novembro de 1917, o governo publicou a Declaração dos Direitos dos Povos da Rússia, que declarava que os grupos étnicos não-russos que viviam dentro da República tinham o direito de ceder da autoridade russa e estabelecer seus próprios Estados-nação independentes. Citando isso como justificação legal, muitas nações declararam independência: Finlândia e Lituânia em dezembro de 1917, Letônia e Ucrânia em janeiro de 1918, Estônia em fevereiro de 1918, Transcaucásia em abril de 1918 e Polônia em novembro de 1918.

Logo, os bolcheviques incentivaram ativamente os partidos comunistas nesses estados agora independentes, enquanto em julho de 1918, no V Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia, foi aprovada uma constituição que reformou a República Russa na República Socialista Federativa Soviética da Rússia. Buscando modernizar o país, o governo oficialmente converteu a Rússia do calendário juliano para o calendário gregoriano usado na Europa. 

Em novembro de 1917, o Sovnarkom emitiu um decreto abolindo o sistema jurídico da Rússia, apelando ao uso da “consciência revolucionária” para substituir as leis abolidas. Os tribunais foram substituídos por um sistema de dois níveis: Tribunais Revolucionários para lidar com crimes contra-revolucionários e Tribunais Populares para lidar com delitos civis e outros crimes. Eles foram instruídos a ignorar leis pré-existentes, e basear suas decisões nos decretos do Sovnarkom e num “senso socialista de justiça”. Em novembro também houve uma reforma das forças armadas; o Conselho do Comissariado do Povo implementou medidas igualitárias, aboliu hierarquias, títulos e medalhas prévias, e convocou os soldados a estabelecer comitês para eleger seus comandantes. 

Em outubro de 1917, foi emitido um decreto limitando o trabalho a oito horas por dia para todos os trabalhadores na Rússia. Também emitiu-se o Decreto sobre Educação Popular que estipulava que o governo garantiria educação livre e secular para todas as crianças no país e um decreto que estabelecia um sistema de orfanatos do Estado. Para combater o analfabetismo em massa, iniciou-se uma campanha de alfabetização; cerca de 5 milhões de pessoas matricularam-se em cursos intensivos de alfabetização básica de 1920 a 1926.

Abraçando a igualdade dos sexos, foram introduzidas leis que ajudaram a emancipar as mulheres, dando-lhes autonomia econômica de seus maridos e eliminando as restrições ao divórcio. Uma organização de mulheres bolcheviques, o Genotdel, foi estabelecida para promover esses objetivos. Ateu militante, Lenin e o Partido Comunista queriam demolir a religião organizada, e em janeiro de 1918 o governo decretou a separação entre igreja e estado e proibiu a instrução religiosa nas escolas. 

No mês seguinte à revolução, emitiu-se o Decreto sobre o Controle Operário, que convocava os trabalhadores de cada empresa a estabelecer um comitê eleito para monitorar a gestão de suas empresas. Naquele mês, o governo também emitiu uma ordem requisitando o ouro do país, e nacionalizou os bancos, o que Lenin viu como um passo importante para o estabelecimento do socialismo. Em dezembro, o Sovnarkom estabeleceu um Conselho Supremo da Economia Nacional (Vesenkha ou VSNKh), que tinha autoridade sobre a indústria, os bancos, a agricultura e o comércio.

Os comitês de fábrica eram subordinados aos sindicatos, que eram subordinados ao VSNKh; assim, o plano econômico centralizado no Estado foi priorizado sobre os interesses econômicos locais dos trabalhadores. No início de 1918, o Sovnarkom cancelou todas as dívidas externas e se recusou a pagar os juros devidos sobre eles. Em abril, o comércio exterior foi nacionalizado, estabelecendo um monopólio estatal sobre importações e exportações. Em junho, foi decretada a nacionalização dos serviços públicos, ferrovias, engenharia, têxteis, metalurgia e mineração, ainda que muitas vezes estes fossem estatais apenas nominalmente. A nacionalização em larga escala não ocorreu até novembro de 1920, quando empresas industriais de pequena escala foram colocadas sob controle estatal. 

Uma facção dos bolcheviques conhecida como “comunistas de esquerda” criticou a política econômica do Sovnarkom como demasiada moderada; eles queriam a nacionalização de toda a indústria, agricultura, comércio, finanças, transporte e comunicação. Lenin acreditava que isso era impraticável naquela conjuntura e que o governo só deveria nacionalizar as grandes empresas capitalistas da Rússia, como bancos, ferrovias, propriedades maiores e fábricas e minas maiores, permitindo que as pequenas empresas operassem em privado até que crescessem o suficiente para serem nacionalizadas com êxito.

Também discordava dos comunistas de esquerda sobre a organização econômica; em junho de 1918, argumentou que era necessário o controle econômico centralizado da indústria, enquanto os comunistas de esquerda queriam que cada fábrica fosse controlada por seus trabalhadores, uma abordagem sindicalista que Lenin considerava prejudicial à causa do socialismo. 

Adotando uma perspectiva da esquerda libertária, os comunistas de esquerda e outras facções no Partido Comunista criticaram o declínio das instituições democráticas na Rússia. Internacionalmente, muitos socialistas criticaram o regime de Lenin e negaram que ele estava estabelecendo o socialismo; em particular, ressaltaram a falta de ampla participação política, da consulta popular e da democracia industrial. No outono de 1918, o marxista tcheco-austríaco Karl Kautsky, autor de um panfleto anti-leninista, condenou o caráter antidemocrático da Rússia soviética, ao qual Lenin publicou uma resposta vociferante. A marxista alemã Rosa Luxemburgo fez eco aos pontos de vista de Kautsky, enquanto o anarquista russo Piotr Kropotkin descreveu a tomada bolchevique do poder como “o enterro da Revolução Russa”. 

Tratado de Brest-Litovsk: 1917-18

Ao prolongar a guerra, reforçamos inusitadamente o imperialismo alemão, e a paz terá que ser concluída de qualquer maneira, mas então ela será pior, porque será concluída por alguém que não seja nós mesmos. Sem dúvida, a paz que estamos forçando acontecer é indecente, mas se a guerra começar, o nosso governo será varrido e a paz será concluída por outro. 

Lenin sobre a paz com as Potências Centrais

Ao assumir o poder, Lenin acreditava que uma política chave de seu governo deveria ser a retirada do país da Primeira Guerra Mundial estabelecendo um armistício com as Potências Centrais da Alemanha e da Áustria-Hungria. Ele acreditava que a guerra em curso criaria ressentimento entre as tropas russas cansadas da guerra – a quem ele havia prometido paz – e que estas tropas e o avanço do Exército alemão ameaçavam tanto o seu próprio governo como o socialismo internacional.

Por outro lado, outros bolcheviques – em particular Bukharin e os Comunistas de Esquerda – acreditavam que a paz com as Potências Centrais seria uma traição ao socialismo internacional e que a Rússia devia “travar uma guerra de defesa revolucionária” que provocaria uma revolta do proletariado alemão contra seu próprio governo. 

Lenin propôs um armistício de três meses em seu Decreto de Paz de novembro de 1917, que foi aprovado pelo II Congresso dos Sovietes e apresentado aos governos alemão e austro-húngaro. Os alemães responderam positivamente, vendo isso como uma oportunidade de se concentrar na Frente Ocidental e evitar a próxima derrota. Em novembro, as negociações de armistício começaram em Brest-Litovsk, a sede do comando alemão na Frente Oriental, com a delegação russa sendo liderada por Trótski e Adolph Joffe.

Enquanto isso, foi acordado um cessar-fogo até janeiro. Durante as negociações, os alemães insistiram em manter suas conquistas – o que incluía a Polônia, Lituânia e Curlândia – enquanto os russos argumentavam que isso seria uma violação dos direitos dessas nações à autodeterminação. Alguns bolcheviques expressaram a esperança de arrastar as negociações até que a revolução proletária estourasse por toda a Europa. Em 7 de janeiro de 1918, Trótski retornou de Brest-Litovsk a São Petersburgo com um ultimato das Potências Centrais: ou a Rússia aceitava as reivindicações territoriais da Alemanha ou a guerra retomaria. 

Em janeiro e novamente em fevereiro, Lenin exortou os bolcheviques a aceitarem as propostas da Alemanha. Argumentou que as perdas territoriais eram aceitáveis se garantissem a sobrevivência do governo bolchevique. A maioria dos bolcheviques rejeitou sua posição, na esperança de prolongar o armistício e vencer o blefe da Alemanha. Em 18 de fevereiro, o Exército alemão relançou a ofensiva, avançando mais para o território controlado pela Rússia e dentro de um dia conquistando Dvinsk.

Neste ponto, Lenin finalmente convenceu uma pequena maioria do Comitê Central bolchevique a aceitar as demandas das Forças Centrais. No entanto, em 23 de fevereiro, os Potências Centrais emitiram um novo ultimato: a Rússia deveria reconhecer o controle alemão não só da Polônia e os países bálticos, mas também a Ucrânia, ou enfrentar uma invasão em grande escala. 

Em 3 de março, foi assinado o Tratado de Brest-Litovski. O tratado resultou em perdas territoriais maciças à Rússia, com 26% da população do antigo Império, 37% de sua área de colheita agrícola, 28% de sua indústria, 26% de suas ferrovias e três quartos de seus depósitos de carvão e ferro transferidos ao controle alemão. Por consequência, o Tratado foi profundamente impopular em todo o espectro político da Rússia, e vários bolcheviques e esquerdistas socialistas revolucionários renunciaram ao Sovnarkom em protesto.

Após o Tratado, o Sovnarkom se concentrou em tentar fomentar a revolução proletária na Alemanha, emitindo uma série de publicações anti-guerra e anti-governamentais no país; o governo alemão retaliou ao expulsar os diplomatas russos. Em novembro de 1918, o imperador alemão Guilherme II renunciou e a nova administração do país assinou um armistício com os aliados. Como resultado, o Sovnarkom considerou o Tratado de Brest-Litovsk como vazio. 

Campanhas Anti-Cúlaques, Cheka e Terror Vermelho: 1918-22 

A burguesia exerceu o terror contra os trabalhadores, soldados e camponeses, no interesse de um pequeno grupo de latifundiários e banqueiros, enquanto o regime Soviético aplica medidas decisivas contra os proprietários de terras, saqueadores e os seus cúmplices no interesse dos trabalhadores, soldados e camponeses. 

Lenin sobre o Terror Vermelho

Na primavera de 1918, muitas cidades da Rússia ocidental enfrentaram a fome como resultado da escassez crônica de alimentos. Lenin culpou os cúlaques – camponeses mais ricos –, que alegadamente acumulavam os grãos que produziam para aumentar seu valor financeiro. Em maio de 1918, o governo emitiu uma ordem de requisição que estabeleceu destacamentos armados para confiscar grãos dos cúlaques para distribuição nas cidades, e em junho pediu a formação de Comitês de Camponeses Pobres para auxiliar na requisição.

Esta política resultou em uma vasta desordem social e violência, uma vez que os destacamentos armados muitas vezes se chocavam com grupos de camponeses, ajudando a preparar o cenário para a guerra civil. Um exemplo proeminente dos pontos de vista de Lenin foi seu telegrama de agosto aos bolcheviques de Penza, em que os exortou a suprimir uma insurreição camponesa por enforcamento público de pelo menos 100 “cúlaques conhecidos, homens ricos e sanguessugas”. 

A exigência desincentivou camponeses de produzir mais grãos do que eles poderiam pessoalmente consumir, e assim a produção caiu. Um mercado negro em expansão complementou a economia oficial sancionada pelo Estado, e Lenin pediu que os especuladores, os comerciantes clandestinos e os saqueadores fossem mortos. Tanto os Socialistas Revolucionários como os Socialistas Revolucionários de Esquerda condenaram as apropriações armadas de grãos no V Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia em julho de 1918. Percebendo que os Comitês de Camponeses Pobres também perseguiam os que não eram cúlaques, contribuindo assim para o sentimento anti-bolchevique entre os camponeses, em dezembro de 1918 o governo os aboliu. 

Lenin enfatizou repetidamente a necessidade do terror e da violência para derrubar a velha ordem e garantir o sucesso da revolução. Falando ao Comitê Executivo Central de Toda a Rússia em novembro de 1917, declarou que “o estado é uma instituição construída pelo exercício da violência. Anteriormente, esta violência era exercida por um punhado de sacos de dinheiro contra todo o povo; agora nós queremos … organizar a violência no interesse do povo.” Ele se opôs veementemente a sugestões de abolir a pena de morte. Temendo uma derrubada do governo por forças anti-bolcheviques, em dezembro de 1917 Lenin ordenou a criação da Comissão de Emergência para Combater a Contrarrevolução e Sabotagem, ou Cheka, uma polícia política liderada por Félix Dzerjinsky. 

Em setembro de 1918, o Sovnarkom aprovou um decreto que inaugurou o Terror Vermelho, um sistema repressivo orquestrado pela Cheka. Embora às vezes descrito como uma tentativa de eliminar a burguesia, Lenin não queria exterminar todos os membros desta classe, apenas aqueles que se colocavam ao lado da reação. A maioria das vítimas do Terror eram cidadãos bem-sucedidos ou ex-membros da administração czarista, no entanto outros eram anti-bolcheviques não-burgueses e pessoas percebidas enquanto indesejáveis, como prostitutas.

A Cheka reivindicou o direito de sentenciar e executar qualquer um que fosse considerado um inimigo do governo, sem recorrer aos Tribunais Revolucionários. Por conseguinte, em toda a Rússia Soviética, a organização realizou assassinatos, muitas vezes em grande número. A Cheka de Petrogrado, por exemplo, chegou a executar 512 pessoas em poucos dias. Não há registros sobreviventes para fornecer um número preciso de quantos pereceram no Terror Vermelho, embora as estimativas posteriores dos historiadores tenham variado de 10 000 a 15 000 em uma estimativa e 50 000 a 140 000 em outra. 

Lenin nunca testemunhou essa violência e nem participou dela pessoalmente, distanciando-se publicamente dela. Seus artigos e discursos publicados raramente requeriam execuções, embora regularmente o fizesse em seus telegramas codificados e notas confidenciais. Muitos bolcheviques expressaram desaprovação em relação às execuções em massa da Cheka e temeram a aparente irresponsabilidade da organização. O partido trouxe tentativas de restringir suas atividades em fevereiro 1919, despojando-a de seus poderes do tribunal e de execução em áreas não sujeitas à lei marcial oficial, embora a Cheka continuasse a realizar chacinas pelo país. Em 1920, a Cheka tornou-se a instituição mais poderosa da Rússia soviética, exercendo influência sobre todos os outros aparelhos de Estado. 

Um decreto em abril de 1919 resultou no estabelecimento de campos de concentração, que foram confiados à Cheka, que posteriormente seriam administrados por uma nova agência governamental, o Gulag. No final de 1920, 84 campos foram estabelecidos em toda a Rússia soviética, possuindo cerca de 50 000 prisioneiros; em outubro de 1923, este número havia crescido para 315 campos e cerca de 70 000 presos. Aqueles internados nos campos foram usados como trabalhadores escravos.

A partir de julho de 1922, os intelectuais contrários ao governo bolchevique foram exilados para regiões inóspitas ou deportados da Rússia; Lenin examinou pessoalmente as listas de pessoas a serem tratadas dessa maneira. Em maio de 1922, ele emitiu um decreto pedindo a execução de padres anti-bolcheviques, causando entre 14 000 e 20 000 mortes. Embora a Igreja Ortodoxa Russa tenha sido a mais afetada, as políticas anti-religiosas do governo também impactaram as igrejas católica romana e protestantes, sinagogas judaicas e mesquitas islâmicas. 

Guerra Civil e Guerra Polonesa-Soviética: 1918-20

A existência da República Soviética ao lado dos estados imperialistas a longo prazo é impensável. No final, um ou outro triunfará. E até que esse fim tenha chegado, uma série dos conflitos mais terríveis entre a República Soviética e os governos burgueses é inevitável. Isto significa que a classe dominante, o proletariado, se apenas deseja governar e deve governar, deve demonstrar isso também com sua organização militar. 

Lenin sobre a guerra

Embora Lenin esperasse a oposição da aristocracia e da burguesia russa ao seu governo, ele acreditava que a superioridade numérica das classes mais baixas, aliada à capacidade dos bolcheviques de organizá-las efetivamente, garantiriam uma rápida vitória em qualquer conflito. Nisso, ele não conseguiu antecipar a intensidade da violenta oposição ao poder bolchevique no país.

A Guerra Civil Russa que se seguiu pôs os Vermelhos pró-bolcheviques contra os Brancos antibolchevistas, mas também englobou conflitos étnicos nas fronteiras da Rússia e confrontos entre os exércitos Vermelho e Branco e grupos de camponeses locais, os Exércitos Verdes, em todo o antigo Império. Assim, vários historiadores viram a guerra civil representando dois conflitos distintos: um entre os revolucionários e contra-revolucionários, e o outro entre diferentes facções revolucionárias. 

O Exército Branco foi criado por antigos oficiais militares czaristas e incluía o Exército Voluntário de Anton Denikin na Rússia do Sul, as forças de Aleksandr Kolchak na Sibéria e as tropas de Nikolai Yudenich nos novos Estados independentes do Báltico. Os Brancos foram reforçados quando 35 000 membros da Legião Checa – prisioneiros de guerra do conflito com as Potências Centrais – se voltaram contra o Sovnarkom e aliaram-se ao Comitê de Membros da Assembléia Constituinte (Komuch), um governo anti-bolchevique estabelecido em Samara.

Os Brancos também foram apoiados por governos ocidentais que perceberam o Tratado de Brest-Litovsk como uma traição ao esforço de guerra Aliado e temiam os apelos dos bolcheviques pela revolução mundial. Em 1918, o Reino Unido, França, Estados Unidos, Canadá, Itália e a Sérvia desembarcaram 10 000 soldados em Murmansk, apreenderam Kandalaksha, enquanto mais tarde naquele ano forças britânicas, americanas e japonesas desembarcaram em Vladivostok. As tropas ocidentais logo se retiraram da guerra civil, apoiando os Brancos apenas com oficiais, técnicos e armamentos, mas o Japão permaneceu porque via o conflito como uma oportunidade para a expansão territorial. 

Lenin incumbiu Trótski de estabelecer um Exército Vermelho dos Operários e dos Camponeses, e com seu apoio, organizou um Conselho Militar Revolucionário em setembro de 1918, do qual permaneceu enquanto presidente até 1925. Reconhecendo sua valiosa experiência militar, Lenin concordou que oficiais do antigo exército czarista poderiam servir no Exército Vermelho, embora Trótski estabelecesse conselhos militares para monitorar suas atividades.

Os Vermelhos detinham o controle das duas maiores cidades da Rússia, Moscou e Petrogrado, bem como a maior parte da Grande Rússia, enquanto os Brancos estavam localizados em grande parte nas antigas periferias do Império. Os Brancos, no entanto, foram prejudicados por estarem fragmentados e dispersos geograficamente, e porque as suas ideias de supremacia étnica russa alienaram as minorias nacionais das regiões onde se faziam presentes.

Os exércitos anti-bolchevistas realizaram o Terror Branco, uma campanha de violência contra partidários bolcheviques, embora este fosse tipicamente mais espontâneo do que o Terror Vermelho, sancionado pelo Estado. Tanto o exército Branco quanto o Vermelho foram responsáveis por ataques contra as comunidades judaicas, levando Lenin a emitir uma condenação ao antissemitismo, que ele atribuiu à propaganda capitalista. 

Em julho de 1918, Sverdlov informou ao Sovnarkom que a Regional Soviética dos Urais havia supervisionado a execução do ex-czar e a família imperial em Ecaterimburgo para impedir que eles fossem resgatados pelas tropas Brancas. Embora faltem provas, biógrafos e historiadores como Richard Pipes e Dmitri Volkogonov expressaram a opinião de que o assassinato foi provavelmente sancionado por Lenin; inversamente, o historiador James Ryan advertiu que não havia “nenhuma razão” para acreditar nisso. Para o líder comunista, porém, o assassinato era necessário; destacando o precedente estabelecido pela execução de Luís XVI na Revolução Francesa. 

Depois do Tratado de Brest-Litovsk, os Socialistas Revolucionários de Esquerda abandonaram o governo de coalizão e passaram a considerar os bolcheviques como traidores da revolução. Em julho de 1918, o Socialista Revolucionário de Esquerda Yakov Grigoryevich Blumkin assassinou o embaixador alemão na Rússia, Wilhelm von Mirbach, esperando que o incidente diplomático levasse a uma guerra revolucionária relançada contra a Alemanha. Os Socialistas Revolucionários de Esquerda então lançaram um golpe em Moscou, bombardearam o Kremlin e tomaram o posto central da cidade antes de serem detidos pelas forças de Trótski. Os líderes do partido e muitos membros foram detidos e presos, mas foram tratados com mais indulgência do que outros adversários dos bolcheviques. 

Em 1919, o exército Branco estava em recuo e, no início de 1920, foi derrotado em todas as três frentes. Embora o Sovnarkom tenha sido vitorioso, o território existente do Estado russo foi reduzido, pois muitos grupos étnicos não-russos usaram a desordem para promover a independência nacional. Em alguns casos — como as nações do nordeste da Europa como a Estônia, Letônia, Lituânia e Finlândia — os soviéticos reconheceram sua independência e concluíram tratados de paz. Em outros casos, o Exército Vermelho suprimiu os movimentos separatistas; em 1921 eles derrotaram os movimentos nacionais ucranianos e ocuparam o Cáucaso, embora combates na Ásia Central tenham durado até o final da década de 1920. 

Depois que as guarnições alemãs de Ober Ost foram retiradas da Frente Oriental na sequência do armistício, exércitos soviéticos e poloneses moveram-se para preencher o vazio. Tanto o recém-independente estado polonês quanto o governo soviético buscaram a expansão territorial na região. As tropas polonesas e russas entraram em conflito pela primeira vez em fevereiro de 1919, com o embate transformando-se na Guerra Polonesa-Soviética.

Ao contrário dos conflitos soviéticos anteriores, ele teve maiores implicações na internacionalização da revolução e o futuro da Europa. Em maio de 1920, os poloneses capitularam Kiev. Depois de forçar o Exército polonês a voltar, Lenin exortou o Exército Vermelho a empurrá-los de volta à Polônia, acreditando que o proletariado polonês iria apoiar as tropas russas e, assim, desencadear a revolução europeia. Embora Trótski e outros bolcheviques estivessem céticos, eles finalmente concordaram com a invasão.

Entretanto, o proletariado polonês não se rebelou, e o Exército Vermelho foi derrotado na Batalha de Varsóvia. Os exércitos poloneses começaram a empurrar o Exército Vermelho de volta à Rússia, forçando o Conselho do Comissariado do Povo a pedir a paz; a guerra culminou na Tratado de Riga, na qual a Rússia cedeu território à Polônia e lhe pagou reparações. 

Comintern e revolução mundial: 1919–20

Depois do Armistício na Frente Ocidental, Lenin acreditava que a explosão da revolução européia era iminente. Buscando promovê-la, o Sovnarkom apoiou o estabelecimento do governo comunista húngaro de Béla Kun em março de 1919, seguido pelo governo comunista na Baviera e várias revoltas socialistas revolucionárias em outras partes da Alemanha, incluindo a da Liga Espartaquista. Durante a Guerra Civil Russa, o Exército Vermelho foi enviado às repúblicas nacionais recentemente independentes nas fronteiras russas para lá ajudar os marxistas no estabelecimento de sistemas de governo soviéticos.

Na Europa, isso resultou na criação de novos estados liderados pelos comunistas na Estônia, Letônia, Lituânia, Bielorrússia e Ucrânia, todos eles oficialmente independentes da Rússia, enquanto mais a leste levou-se à criação de governos comunistas na Geórgia e, em seguida, na Mongólia Exterior. Vários bolcheviques seniores queriam que estes países fossem absorvidos pelo Estado russo; Lenin insistiu que as sensibilidades nacionais deveriam ser respeitadas, mas assegurou-lhes que as novas administrações do Partido Comunista dessas nações eram de facto ramos regionais do governo de Moscou. 

No final de 1918, o Partido Trabalhista britânico pediu o estabelecimento de uma conferência internacional de partidos socialistas, a Internacional Operária e Socialista. Lenin viu isso como um reavivamento da Segunda Internacional, desprezando a iniciativa, e realizou sua própria conferência socialista internacional para compensar seu impacto. Ele organizou esta conferência com a ajuda de Zinoviev, Trótski, Christian Rakovski e Angelica Balabanoff. Em março de 1919, o I Congresso desta Internacional Comunista (“Comintern”) aconteceu em Moscou. Faltou cobertura global; dos 34 delegados reunidos, 30 residiam nos países do antigo Império Russo e a maioria dos delegados internacionais não era oficialmente reconhecida pelos partidos socialistas dentro de suas próprias nações. 

Consequentemente, os bolcheviques dominaram o processo, com Lenin posteriormente autorizando uma série de regulamentos que significavam que só os partidos socialistas que apoiavam os pontos de vista dos bolcheviques fossem autorizados a aderir a Comintern. Durante a primeira conferência, falou aos delegados, criticando o caminho parlamentar do socialismo defendido por marxistas revisionistas como Kautsky e reiterando seus apelos por uma derrubada violenta dos governos da burguesia europeia. Enquanto Zinoviev se tornou o presidente da Internacional, Lenin continuou a exercer grande controle sobre ela. 

O II Congresso da Internacional Comunista aconteceu no Instituto Smolny de Petrogrado em julho de 1920, sendo aquela a última vez em que Lenin visitava uma cidade diferente de Moscou. Ali, incentivou os delegados estrangeiros a adotaram as táticas bolcheviques, e abandonou seu antigo ponto de vista de que o capitalismo era uma etapa necessária do desenvolvimento social, incentivando as nações sob ocupação colonial a passar diretamente para o estabelecimento do socialismo.

Para esta conferência, escreveu Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, um breve livro articulando sua crítica aos elementos de extrema esquerda dentro dos partidos comunistas britânicos e alemães que se recusavam a entrar nos sistemas parlamentares e nos sindicatos desses países; em vez disso, exortou-os a fazê-lo para promover a causa revolucionária. A conferência teve de ser suspensa por vários dias devido à guerra em curso com a Polônia, antes de o Congresso se mudar posteriormente para Moscou, onde continuou a realizar sessões até agosto. Contudo, a proclamada revolução mundial de Lenin não se materializou, na medida em que o governo comunista húngaro foi derrubado e as revoltas marxistas alemãs suprimidas. 

Fome e Nova Política Econômica: 1920–22

No Partido Comunista, houve dissidência de duas facções, o Grupo do Centralismo Democrático e a Oposição Operária, ambos acusando o Estado russo de ser demasiado centralizado e burocrático. A Oposição Operária, que tinha conexões com os sindicatos oficiais do estado, também expressou a preocupação de que o governo tinha perdido a confiança da classe trabalhadora russa.

Eles ficaram furiosos com a sugestão de Trótski de que os sindicatos fossem eliminados. Ele considerava os sindicatos supérfluos num “estado operário”, mas Lenin discordava, acreditando que era melhor mantê-los; a maioria dos bolcheviques adotou a visão de Lenin na “discussão sindical”. Para lidar com a dissidência, no X Congresso do Partido, em fevereiro de 1921, a atividade faccional dentro do partido foi proibida, sob pena de expulsão. 

Causada em parte por uma seca, a fome russa de 1921 foi a mais grave que o país experimentou desde a de 1891, resultando em cerca de cinco milhões de mortes. A fome foi exacerbada pelas requisições governamentais, bem como pelas exportações de grandes quantidades de grãos russos. Para auxiliar as vítimas da fome, o governo dos Estados Unidos estabeleceu uma Administração de Alívio Americano para distribuir alimentos, embora Lenin suspeitasse dessa ajuda e tenha a acompanhado de perto.

Durante a fome, o Patriarca Tikhon pediu às igrejas ortodoxas que vendessem itens desnecessários para ajudar a alimentar os famintos, uma ação endossada pelo governo. Em fevereiro de 1922, o Conselho do Comissariado do Povo foi mais longe, pedindo que todos os objetos de valor pertencentes a instituições religiosas fossem forçosamente apropriados e vendidos. Tikhon se opôs à venda de itens usados na Eucaristia e muitos clérigos resistiram às apropriações, resultando em violência. 

Em 1920 e 1921, a oposição local às requisições resultaram em revoltas camponesas anti-bolcheviques estourando em toda a Rússia, ainda que logo fossem suprimidas. Uma das mais significativas foi a Revolta de Tambov, sufocada pelo Exército Vermelho. Em fevereiro de 1921, trabalhadores entraram em greve em Petrogrado, resultando na proclamação da lei marcial na cidade e o envio do Exército Vermelho para conter as manifestações.

Em março, a Revolta de Kronstadt começou quando os marinheiros de Kronstadt se revoltaram contra o governo bolchevique, exigindo que todos os socialistas pudessem escrever livremente, que os sindicatos independentes tivessem liberdade de reunião e os camponeses liberdade de mercado e não estivessem sujeitos às requisições. Lenin declarou que os amotinados foram enganados pelos Socialistas Revolucionários e pelos imperialistas estrangeiros, pedindo represálias violentas.

Sob a liderança de Trótski, o Exército Vermelho liquidou a rebelião em 17 de março, resultando em milhares de mortes e no internamento de sobreviventes em campos de trabalho. Você deve tentar construir primeiro pontes pequenas que levarão a uma terra de pequenas propriedades camponesas através do capitalismo de Estado para o socialismo. Caso contrário, nunca levará dezenas de milhões de pessoas ao comunismo. É isso que as forças objetivas do desenvolvimento da Revolução têm ensinado. 

Lenin sobre a NEP, 1921

Em fevereiro de 1921, Lenin introduziu a Nova Política Econômica (NEP) ao Politburo, convencendo bolcheviques mais antigos de sua necessidade, e o governo aprovou a lei em abril. Lenin explicou a nova política em um folheto, Sobre o Imposto em Espécie, em que afirmou que a NEP representava um retorno aos planos econômicos bolcheviques originais; alegou que estes tinham sido descarrilhados pela guerra civil, em que o Sovnarkom fora forçado a recorrer à política econômica de “comunismo de guerra”.

A NEP autorizou a atuação de algumas empresas privadas na Rússia, permitindo a reintrodução do sistema salarial e aprovando a venda dos produtos dos camponeses no mercado aberto, na medida em que eram tributados por seus ganhos. A política também permitiu o retorno à pequena indústria privada, embora a indústria básica, os transportes e o comércio exterior continuassem sob controle estatal. Lenin chamou isso de “capitalismo de Estado”, e muitos bolcheviques pensaram que era uma traição dos princípios socialistas. Biógrafos de Lenin caracterizaram frequentemente a introdução da NEP como uma de suas realizações mais significativas e alguns acreditam que, se não fosse implementada, o Sovnarkom teria sido rapidamente derrubado por insurreições populares. 

Em janeiro de 1920, o governo implementou o trabalho obrigatório, assegurando que todos os cidadãos entre 16 e 50 anos deveriam trabalhar. Lenin também pediu um projeto de eletrificação em massa, o plano GOELRO, que começou em fevereiro de 1920; sua declaração de que “o comunismo é o poder soviético mais a eletrificação de todo o país” seria amplamente citado nos anos seguintes. Buscando avançar a economia russa através do comércio exterior, o Sovnarkom emitiu delegados à Conferência de Gênova; Lenin esperava participar, mas foi impedido por problemas de saúde.

A conferência resultou num acordo russo com a Alemanha, que foi seguido por um um acordo comercial anterior com o Reino Unido. Lenin esperava que, ao permitir que as corporações estrangeiras investissem na Rússia, o Sovnarkom exacerbaria as rivalidades entre as nações capitalistas e aceleraria sua queda; ele ainda tentou alugar os campos de petróleo de Camchaca a uma corporação americana para aumentar as tensões entre os Estados Unidos e o Japão, que desejavam a península para seu império. 

Declínio de saúde e discussões com Stalin: 1920–23

Para o embaraço e o horror de Lenin, em abril de 1920 os bolcheviques fizeram uma festa para comemorar seu quinquagésimo aniversário, que também foi marcado por celebrações difundidas em toda a Rússia e a publicação de poemas e biografias dedicadas a ele. Entre 1920 e 1926, vinte volumes de suas Obras Completas foram publicados; algumas dessas obras foram omitidas. Durante 1920, um número de figuras ocidentais proeminentes visitaram-no na Rússia; entre eles o autor H. G. Wells e o filósofo Bertrand Russell, bem como os anarquistas Emma Goldman e Alexander Berkman.

Também foi visitado no Kremlin por Armand, que estava com a saúde cada vez mais fraca. Ele a enviou para um sanatório em Kislovodsk, no Cáucaso do Norte para se recuperar, mas ela morreu lá em setembro de 1920 durante uma epidemia de cólera. Seu corpo foi transportado para Moscou, onde Lenin visivelmente afligido supervisionou seu enterro sob o Muro do Kremlin. 

Lenin estava seriamente doente na segunda metade de 1921, sofrendo de hiperacusia, insônia e dores de cabeça regulares. Por insistência do Politburo, deixou Moscou em julho para um mês de licença em sua mansão em Gorki, onde foi cuidado por sua esposa e irmã. Começou a contemplar a possibilidade de suicídio, pedindo a Krupskaya e Stalin que adquirissem cianeto de potássio para ele. Vinte e seis médicos seriam contratados para ajudar Lenin durante seus últimos anos; muitos eram estrangeiros e foram contratados a grandes custos.

Alguns sugeriram que a doença dele poderia ter sido causada pela oxidação do metal das balas que foram alojadas em seu corpo da tentativa de assassinato de 1918; em abril de 1922 ele foi submetido a uma operação cirúrgica para removê-las. Os sintomas continuaram depois disso, com os médicos inseguros da causa; alguns sugeriram que estava sofrendo de neurastenia ou arteriosclerose cerebral, embora outros acreditavam que ele tinha sífilis, uma ideia endossada num relatório de 2004 de uma equipe de neurocientistas que sugeriram que isso foi mais tarde deliberadamente ocultado pelo governo.

Em maio de 1922, Lenin sofreu seu primeiro acidente vascular cerebral, perdendo temporariamente sua capacidade de falar e ficando com seu lado direito paralisado. Convalesceu em Gorki, e recuperou-se ao longo de julho. Em outubro retornou à Moscou, embora em dezembro tenha sofrido um segundo derrame e retornado à mansão. 

Apesar de sua doença, permaneceu profundamente interessado na política. Quando a liderança do Partido Socialista Revolucionário foi considerada culpada de conspirar contra o governo num julgamento realizado entre junho e agosto de 1922, Lenin pediu sua execução; eles foram presos indefinidamente, sendo executados apenas durante o Grande Expurgo sob a liderança de Stalin. Com seu apoio, o governo também conseguiu erradicar virtualmente o menchevismo na Rússia, expulsando todos os membros da facção rival de instituições e empresas estatais em março de 1923 e, em seguida, aprisionando a adesão do partido nos campos de concentração.

Lenin mostrava-se preocupado com a sobrevivência do sistema burocrático czarista na Rússia Soviética, e ficou cada vez mais preocupado com isso em seus últimos anos de vida. Condenando a postura burocrática, sugeriu uma revisão total da burocracia para lidar com tais problemas, em uma carta queixando-se de que “estamos sendo sugados para um pântano burocrático”. Durante dezembro de 1922 e janeiro de 1923, ditou seu “Testamento”, no qual discutia as qualidades pessoais de seus camaradas, particularmente Trótski e Stalin.

Recomendou que o último fosse removido do cargo de Secretário-Geral do Partido Comunista, julgando-o inapto para o cargo. Em vez disso, recomendou Trótski para o trabalho, descrevendo-o como “o homem mais capaz no atual Comitê Central”; destacando seu intelecto superior, mas ao mesmo tempo criticando sua autoconfiança e inclinação para o excesso administrativo. Durante este período, ditou uma crítica à natureza burocrática da Inspeção Operária e Camponesa, apelando para o recrutamento de novo pessoal da classe trabalhadora como antídoto para este problema, enquanto em outro artigo pedia que o estado combatesse o analfabetismo, promovesse a pontualidade e a conscientização dentro da população e encorajasse os camponeses a se unirem às cooperativas. 

Stalin é brusco demais, e este defeito, plenamente tolerável em nosso meio e entre nós, os comunistas, se coloca intolerável no cargo de Secretário Geral. Por isso proponho aos camaradas que pensem a forma de passar Stalin a outro posto e nomear a este cargo outro homem que se diferencie do camarada Stalin em todos os demais aspectos apenas por uma vantagem a saber: que seja mais tolerante, mais leal, mais correto e mais atento com os camaradas, menos caprichoso etc. 

Lenin, 4 de janeiro de 1923

Na ausência de Lenin, Stalin consolidava seu poder, nomeando seus partidários em posições proeminentes e cultivando uma imagem de si mesmo como o sucessor mais íntimo e meritório de Lenin. Em dezembro de 1922, assumiu a responsabilidade pelo regime de Lenin, sendo incumbido pelo Politburo de controlar quem tinha acesso a ele.

No entanto, Lenin tornava-se cada vez mais crítico de Stalin; enquanto insistia que o Estado deveria manter seu monopólio no comércio internacional durante o verão de 1922, Stalin estava levando vários outros bolcheviques a se oporem sem êxito a isso. Também havia argumentos pessoais entre os dois; ele chateou Krupskaya gritando com ela durante uma conversa telefônica, o que por sua vez irritou muito Lenin, que o enviou uma carta expressando seu aborrecimento. 

A divisão política mais significativa entre os dois surgiu durante o caso georgiano. Stalin havia sugerido que tanto a Geórgia como os países vizinhos como o Azerbaijão e a Armênia deveriam ser fundidos ao Estado russo, apesar dos protestos de seus governos nacionais. Lenin via isso como uma expressão do chauvinismo étnico da Grande Rússia por parte de Stálin e seus partidários.

Em vez disso, pediu que esses estados-nação se unissem à Rússia como partes semi-independentes de uma união maior, que sugeriu ser chamada União das Repúblicas Soviéticas da Europa e Ásia. Stalin inicialmente resistiu à proposta, mas finalmente a aceitou, embora tenha mudado o nome do estado recém-proposto para União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Lenin enviou Trótski para falar em seu nome no plenário do Comitê Central em dezembro, onde os planos para a URSS foram sancionados; esses planos foram então ratificados em 30 de dezembro pelo Congresso dos Sovietes, resultando na formação da União Soviética. Apesar de sua saúde ruim, foi eleito presidente do novo governo do país. 

Morte e funeral: 1923–24

Em março de 1923, Lenin sofreu um terceiro acidente vascular cerebral e perdeu a capacidade de fala; naquele mês, teve paralisia parcial em seu lado direito e começou a exibir afasia sensorial. Em maio, parecia estar fazendo uma recuperação lenta, quando começou a recuperar sua mobilidade, fala e habilidades de escrita. Em outubro, fez uma visita final a Moscou e ao Kremlin.

Em suas últimas semanas, foi visitado por Zinoviev, Kamenev e Bukharin, com este último visitando-o em sua mansão em Gorki no dia de sua morte. Lenin morreu em sua mansão em 21 de janeiro de 1924, após entrar em coma no início do dia. A causa oficial de sua morte foi registrada como uma doença incurável dos vasos sanguíneos. 

O governo anunciou publicamente seu falecimento no dia seguinte. No dia 23 de janeiro, os deputados do Partido Comunista, sindicatos e sovietes visitaram Gorki para inspecionar o corpo, que foi levado em um caixão vermelho por líderes bolcheviques. Transportado em um trem para Moscou, o caixão foi levado à Casa dos Sindicatos, onde o corpo teve um velório público. Nos próximos três dias, cerca de um milhão de pessoas vieram ver o corpo, gerando muitas filas por horas num frio congelante.

Em 26 de janeiro, o XI Congresso dos Sovietes reuniu-se para prestar homenagem ao líder falecido, com os discursos de Kalinin, Zinoviev e Stalin, mas notavelmente não Trótski, que convalescera no Cáucaso. Seu funeral ocorreu no dia seguinte, quando seu corpo foi levado à Praça Vermelha, acompanhado de música marcial, onde multidões reunidas ouviam uma série de discursos antes que o cadáver fosse colocado no cofre de um mausoléu especialmente erguido. Apesar das temperaturas congelantes, dezenas de milhares compareceram. 

Contra os protestos de Krupskaya, o corpo de Lenin foi mumificado para preservá-lo em exibição pública de longo prazo no mausoléu da Praça Vermelha. Durante esse processo, seu cérebro foi removido; em 1925 um instituto foi estabelecido para dissecá-lo, revelando que Lenin sofria de uma severa esclerose. Em julho de 1929, o Politburo concordou em substituir o mausoléu temporário por um de granito permanente, que foi concluído em 1933.

O sarcófago em que o cadáver estava contido foi substituído em 1940 e novamente em 1970. De 1941 a 1945 o corpo foi movido de Moscou e armazenado em Tiumen para segurança em meio à Segunda Guerra Mundial. O corpo ainda permanece em exibição pública no Mausoléu de Lenin na Praça Vermelha. 

Ideologia política

Não pretendemos que Marx ou os marxistas conheçam o caminho do socialismo em toda a sua concretude. Isso não faz sentido. Conhecemos a direção da estrada, sabemos que as forças de classe o guiarão, mas concretamente, praticamente, isso será demonstrado pela experiência dos milhões quando empreenderem o ato. 

Lenin, 11 de setembro de 1917

Lenin era um marxista fervoroso e acreditava que sua interpretação de Marx – denominada “leninismo” por Julius Martov em 1904 – era a única autêntica e ortodoxa. De acordo com a sua perspectiva marxista, a humanidade acabaria por chegar ao comunismo puro, se tornando uma sociedade sem classes e sem Estado de trabalhadores livres da exploração e alienação, controlando seu próprio destino e respeitando a regra “de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”. Segundo Dmitri Volkogonov, Lenin acreditava “profunda e sinceramente” que o caminho no qual ele liderava a Rússia levaria finalmente ao estabelecimento desta sociedade comunista. 

No entanto, as crenças marxistas de Lenin o levaram à visão de que a sociedade não podia se transformar diretamente do seu estado atual para o comunismo, mas deveria primeiro entrar em um período de transição socialista, e sua principal preocupação foi converter a Rússia em uma sociedade socialista. Para isso, Lenin acreditava que uma ditadura do proletariado era necessária para reprimir a burguesia e desenvolver uma economia socialista.

Lenin definiu o socialismo como “uma ordem de cooperadores civilizados nos quais os meios de produção são de propriedade social”, e acreditava que esse sistema econômico tinha que ser expandido até que pudesse criar uma sociedade de abundância. Para conseguir isso, Lenin considerava que centralizar a economia russa sob o controle estatal era fundamental, com – em suas palavras – “todos os cidadãos” se tornando “funcionários contratados do Estado”. A interpretação de Lenin do socialismo era centralizada, planejada e estatista, com a produção e a distribuição estritamente controladas.

Lenin acreditava que todos os trabalhadores em todo o país se uniriam voluntariamente para permitir a centralização econômica e política do Estado. Desta forma, seus apelos ao “controle operário” dos meios de produção não se referiam ao controle direto das empresas por seus trabalhadores, mas ao funcionamento de todas as empresas sob o controle de um “Estado operário”. Isso resultou em dois temas conflitantes no pensamento de Lenin: o controle dos trabalhadores populares e um aparato estatal centralizado, hierárquico e coercivo. 

Antes de 1914, Lenin concordava principalmente com as teses dominantes do marxismo ortodoxo europeu. Entretanto, o leninismo introduziu revisões e inovações ao marxismo ortodoxo e adotou uma perspectiva mais absolutista e doutrinária. Da mesma forma, o leninismo se distinguiu das variantes estabelecidas do marxismo pela intensidade emocional de sua visão liberacionista e seu foco no papel de liderança de um partido de vanguarda revolucionário. 

As ideias de Lenin foram fortemente influenciadas tanto pelo pensamento pré-existente dentro do movimento revolucionário russo como por variantes teóricas do marxismo russo, que se concentraram estreitamente na forma como os escritos de Marx e Engels se aplicariam à Rússia. Consequentemente, Lenin também foi influenciado por correntes anteriores do pensamento socialista russo, como as dos narodnik agrários. Por outro lado, ele ridicularizou os marxistas que adotaram ideias de filósofos e sociólogos não-marxistas.

Em seus escritos teóricos, particularmente em Imperialismo, Lenin examinou o que pensava ser os desenvolvimentos do sistema capitalista desde a morte de Marx, argumentando que o capitalismo havia atingido uma nova etapa, o capitalismo monopolista de estado. Antes de assumir o poder em 1917, Lenin acreditava que ainda que a economia russa fosse dominada pelo campesinato, a existência de um capitalismo monopolista na Rússia significava que o país estava suficientemente desenvolvido materialmente para passar ao socialismo. 

Lenin era um internacionalista e um fervoroso defensor da revolução mundial, considerando as fronteiras nacionais um conceito ultrapassado e o nacionalismo uma distração da luta de classes. Ele acreditava que sob o socialismo haveria “a fusão inevitável das nações” e o estabelecimento do “Governo mundial”. Ele se opôs ao federalismo, considerando-o burguês, e enfatizou a necessidade de um estado unitário centralizado. Lenin era anti-imperialista e acreditava que todas as nações mereciam “o direito à autodeterminação”.

Ele assim apoiou a guerra de libertação nacional, aceitando que tais conflitos poderiam ser necessários para que um grupo minoritário se separasse de um estado socialista, porque os estados socialistas não são “santos ou livres de erros ou fraquezas”. Lenin aceitou a verdade transmitida por Marx e dados e argumentos selecionados para reforçar essa verdade. Ele não questionou os antigos escritos marxistas, ele simplesmente comentou, e os comentários se tornaram um novo escrito. 

Biógrafo Louis Fischer, 1964

Lenin acreditava que a democracia representativa dos países capitalistas tinha sido usada para dar uma ilusão democrática enquanto mantinha a ditadura da burguesia. Descrevendo o sistema democrático representativo dos Estados Unidos, se referiu aos “duelos espetaculares e sem sentido entre dois partidos burgueses”, ambos liderados por “multimilionários astuciosos” que exploravam o proletariado americano. Ele também se opôs ao liberalismo, exibindo uma antipatia geral pela liberdade como valor, e acreditando que as liberdades do liberalismo eram fraudulentas porque não libertavam os trabalhadores da exploração capitalista. 

Expressou a opinião de que “o governo soviético é milhões de vezes mais democrático do que a república democrático-burguesa”, república que era simplesmente “uma democracia para os ricos”. Considerou sua “ditadura do proletariado” democrática por meio da eleição de representantes para os sovietes e por trabalhadores que elegiam seus próprios funcionários, com rotação regular e envolvimento de todos os trabalhadores na administração do país.

Assim, Lenin passou a se desviar da corrente dominante marxista sobre a questão de como estabelecer um Estado proletário. Sua crença em um Estado forte que excluía a burguesia entrava em conflito com as opiniões de marxistas europeus como Karl Kautsky que imaginava um governo parlamentar democrático em que o proletariado detivesse a maioria.

Além disso, de acordo com o historiador James Ryan, Lenin era “o primeiro e mais significativo teórico marxista a elevar dramaticamente o papel da violência como instrumento revolucionário”. Lenin incorporou mudanças em suas próprias crenças, e as realidades pragmáticas de governar a Rússia em meio à guerra, à fome e ao colapso econômico resultaram em se desviar de muitas das idéias marxistas que ele articulou antes da Revolução de Outubro. 

Antes de assumir o poder em 1917, ele estava preocupado que as minorias étnicas e nacionais tornassem o Estado soviético ingovernável com seus apelos à independência; de acordo com o historiador Simon Sebag Montefiore, ele incentivou Stalin a desenvolver “uma teoria que oferecia o ideal de autonomia e o direito de separação sem necessariamente ter que concedê-las”.

Ao tomar o poder, Lenin pediu o desmantelamento dos laços que forçaram os grupos étnicos minoritários a permanecerem no Império Russo e adotaram o direito de se separarem; no entanto, ele também esperava que eles se reunissem imediatamente no espírito do internacionalismo proletário. Ele estava disposto a usar a força militar para garantir essa unidade, resultando em incursões armadas nos estados independentes que se formaram na Ucrânia, Geórgia, Polônia, Finlândia e os estados bálticos. Somente quando os conflitos com a Finlândia, os Estados do Báltico e a Polônia não tiveram sucesso, seu governo reconheceu oficialmente sua independência. 

Lenin via a si mesmo como um homem do destino e acreditava firmemente na justiça de sua causa e em sua própria habilidade como líder revolucionário. O biógrafo Louis Fischer o descreveu como “um amante da mudança radical e da agitação máxima”, um homem para quem “nunca havia um meio-termo. Ou ele era um exagerador, ou preto ou vermelho”. Destacando sua “capacidade extraordinária de trabalho disciplinado” e “devoção à causa revolucionária”, Pipes observou que ele exibia muito carisma. Da mesma forma, Volkogonov acreditava que “pela própria força de sua personalidade, Lenin tinha uma influência sobre as pessoas”.

Por outro lado, seu amigo Gorki comentou que, em sua aparência física como “pessoa careca, atarracada e robusta”, o revolucionário comunista era “muito comum” e não dava “a impressão de ser um líder”. 

[Escritos reunidos de Lenin] revelam em detalhes um homem com vontade de ferro, auto-escravização da auto-disciplina, desprezo pelos adversários e obstáculos, a fria determinação de um partidário apaixonado, o impulso de um fanático e a capacidade de convencer ou intimidar as pessoas mais fracas pela sua singularidade de propósito, imponente intensidade, abordagem impessoal, sacrifício pessoal, astúcia política e completa convicção da posse da verdade absoluta. Sua vida tornou-se a história do movimento bolchevique. 
—Louis Fischer em The Life of Lenin, 1964

O historiador e biógrafo Robert Service afirmou que Lenin foi um jovem intensamente emocional, que exibia um forte ódio às autoridades czaristas. De acordo com Service, ele desenvolveu uma “ligação emocional” com seus heróis ideológicos, como Marx, Engels e Chernyshevsky; ele possuía retratos deles, e confidencialmente se descreveu como “apaixonado” por Marx e Engels. Segundo o biógrafo James D. White, ele tratou seus escritos como “escrituras santas”, um “dogma religioso” que “não devia ser questionado, mas acreditado”. Na opinião de Volkogonov, Lenin aceitou o marxismo como “verdade absoluta” e, portanto, agiu como “um fanático religioso”.

Da mesma forma, Bertrand Russell sentiu que ele exibia “fé inabalável – fé religiosa no evangelho marxista”. O biógrafo Christopher Read sugeriu que ele era “um equivalente secular de líderes teocráticos que derivam sua legitimidade da verdade percebida de suas doutrinas, não mandatos populares”. Lenin era, no entanto, um ateu e crítico da religião, acreditando que o socialismo era inerentemente ateu; ele considerava assim o socialismo cristão uma contradição em termos. 

Service afirmou que Lenin poderia ser “temperamental e volátil”, e Pipes o considerou “um misantropo completo”, uma visão rejeitada por Read, que destacou muitos casos em que mostrou bondade, particularmente em relação às crianças. De acordo com vários biógrafos, ele era intolerante com a oposição e muitas vezes desconsiderava opiniões claras que diferiam das suas.

Ele poderia ser “venenoso em sua crítica aos outros”, exibindo uma propensão à ataques ad hominem ridículos e chacota contra aqueles que discordaram dele. Ele ignorou fatos que não combinavam com seus argumentos, abominava compromissos e raramente admitia seus próprios erros. Recusou-se a rever suas opiniões, até as rejeitar completamente, posteriormente tratando a nova visão como se fosse imutável.

Apesar de não mostrar nenhum sinal de sadismo ou de desejar pessoalmente cometer atos violentos, Lenin endossou as ações violentas de terceiros e não exibiu nenhum remorso para aqueles mortos pela causa revolucionária. Adotando uma postura amoral, em sua visão o fim sempre justificava os meios; de acordo com Service, seu “critério de moralidade era simples: uma determinada ação avança ou dificulta a causa da Revolução?” 

O Lenin que parecia externamente gentil e bondoso, que gostava de rir, amava animais e era propenso a reminiscências sentimentais, se transformou quando surgiam questões de classe ou políticas. Imediatamente tornou-se selvagem, intransigente, sem remorsos e vingativo. Mesmo em tal estado, no entanto, ele era capaz de humor negro. 
—Historiador Dmitri Volkogonov, 1994 

Além do russo, falava e lia francês, alemão e inglês. Preocupado com a aptidão física, exercitava-se regularmente, gostava de andar de bicicleta, nadar e caçar, e também desenvolveu uma paixão pelas montanhas andando pelos alpes suíços. Também gostava de animais de estimação, em particular gatos. Tendendo a evitar o luxo, viveu um estilo de vida espartano, e Pipes observou que era “extremamente modesto em suas necessidades pessoais”, levando “um estilo de vida austero, quase ascético”.

Lenin desprezava a desordem, sempre mantendo sua mesa de trabalho arrumada e seus lápis afiados, e insistia em silêncio total enquanto estava trabalhando. De acordo com Fischer, sua “vaidade era mínima”, e por esta razão não gostava do culto à personalidade que a administração soviética começou a construir em torno dele; ele, no entanto, aceitou que poderia ter alguns benefícios por unificar o movimento comunista. 

Apesar de sua política revolucionária, Lenin não gostava da experimentação revolucionária na literatura e nas artes, por exemplo, expressando sua aversão ao expressionismo, futurismo e cubismo, e, inversamente, favorecendo o realismo e a literatura clássica russa. Também tinha uma atitude conservadora em relação ao sexo e casamento. Durante sua vida adulta, manteve um relacionamento com Krupskaya, uma colega marxista com quem casou-se. Lenin e sua esposa ficaram tristes por não terem tido filhos, embora gostassem de se entreter com os de seus amigos. Read observou que Lenin tinha “relações muito próximas, quentes e duradouras” com membros da família, embora não tivesse amigos por toda a vida, e Armand foi citada como sua única confidente íntima. 

Etnicamente, Lenin é identificado como um russo. Service o descreveu como “um pouco esnobe em termos nacionais, sociais e culturais”. O líder bolchevique acreditava que outros países europeus, especialmente a Alemanha, eram culturalmente superiores à Rússia, “um dos mais ignorantes, medievais e vergonhosamente atrasados dos países asiáticos”. Lenin irritava-se com o que ele percebia como falta de consciência e disciplina entre o povo russo, e desde sua juventude queria que a Rússia se tornasse mais culturalmente ocidentalizada.

Impressões política e acadêmica

Volkogonov afirmou que “dificilmente poderia haver outro homem na história que conseguiria mudar tão profundamente uma sociedade tão grande em tal escala”. A administração de Lenin estabeleceu a estrutura para o sistema de governo que conduziu a Rússia por sete décadas e forneceu o modelo para os estados mais tarde liderados pelos comunistas que vieram cobrir um terço do mundo habitado em meados do século XX. Assim, sua influência foi global.

Uma figura controversa, Lenin continua sendo vilipendiado e reverenciado; foi idolatrado pelos comunistas e demonizado por críticos de todo o espectro político. Mesmo durante sua vida, Lenin “foi amado e odiado, admirado e desprezado” pelo povo russo. Isso se estendeu aos estudos acadêmicos de Lenin e do Leninismo, que têm sido muitas vezes polarizado em debates políticas. 

O historiador Albert Resis sugeriu que se a Revolução de Outubro é considerada o evento mais significativo do século XX, então Lenin “deve, para o bem ou para o mal, ser considerado o líder político mais significativo do século”. White o descreveu como “uma das figuras inegavelmente destacadas da história moderna”, enquanto Service notou que o líder russo era amplamente entendido como um dos “atores principais” do século passado. Read o descreveu como “um dos ícones mais difundidos e universalmente reconhecidos do século XX”, enquanto Ryan o chamou de “uma das figuras mais significativas e influentes da história moderna”.

A revista Time o nomeou uma das 100 pessoas mais importantes do século XX e um dos seus 25 principais ícones políticos de todos os tempos. No mundo ocidental, biógrafos começaram a escrever sobre Lenin logo após sua morte; alguns – como Christopher Hill – eram simpáticos a ele, e outros – como Richard Pipes e Robert Gellately – expressamente hostis. Vários biógrafos posteriores, como Read e Lars T. Lih, procuraram evitar comentários hostis ou positivos sobre ele, prevenindo assim estereótipos politizados. Entre os simpatizantes, ele foi retratado como um intérprete genuíno da teoria marxista e que permitiu que ela se adequasse às condições socioeconômicas particulares da Rússia.

A visão soviética o caracterizou como um homem que reconheceu o historicamente inevitável e, consequentemente, ajudou a fazer o inevitável acontecer. Por outro lado, a maioria dos historiadores ocidentais veem Lenin como uma pessoa que manipulava os acontecimentos para alcançar e depois reter o poder político, considerando suas ideias como tentativas de justificar ideologicamente suas políticas pragmáticas. Mais recentemente, revisionistas na Rússia e no Ocidente têm destacado o impacto das idéias pré-existentes e as pressões populares exercidas sobre ele e suas políticas. 

Vários historiadores e biógrafos caracterizaram a administração de Lenin como totalitária e como um estado policial, e muitos a descreveram como uma ditadura unipartidária. Diversos desses estudiosos descreveram Lenin como um ditador, embora Ryan declarasse que ele “não foi um ditador no sentido de que todas as suas recomendações foram aceitas e implementadas”, pois muitos de seus colegas discordaram dele em várias questões. Fischer observou que “Lenin era um ditador, mas não era o tipo que Stalin se tornou”, enquanto Volkogonov acreditava que enquanto Lenin estabelecia uma “ditadura do Partido”, só sob Stalin a União Soviética se tornaria a “ditadura de um homem”. 

Por outro lado, vários acadêmicos marxistas – incluindo os historiadores ocidentais Hill e John Rees – argumentaram contra a visão de que o governo de Lenin era uma ditadura, vendo-a como uma forma imperfeita de preservar elementos da democracia sem alguns dos processos encontrados nos estados democráticos liberais. Ryan sustenta que o historiador esquerdista Paul Le Blanc “faz uma observação bastante válida de que as qualidades pessoais que levaram Lenin a políticas brutais não eram necessariamente mais fortes do que em alguns dos principais líderes ocidentais do século XX”.

O historiador J. Archibald Getty observou: “Lenin merece muito crédito pela noção de que os mansos podem herdar a terra, que pode haver um movimento político baseado na justiça social e na igualdade”. Alguns intelectuais de esquerda, entre eles Slavoj Žižek, Alain Badiou, Lars T. Lih e Fredric Jameson, defendem a revitalização do espírito revolucionário intransigente de Lenin para abordar os problemas globais contemporâneos. 

Dentro da União Soviética

Na União Soviética, um culto de personalidade devotado a Lenin começou a se desenvolver durante sua vida, mas só foi plenamente estabelecido após sua morte. Segundo a historiadora Nina Tumarkin, isso representou o “culto de um líder revolucionário mais elaborado do mundo” desde o de George Washington nos Estados Unidos, e tem sido repetidamente descrito como “quase-religioso” na natureza. Bustos ou estátuas de Lenin foram erguidos em quase todas as aldeias, e seu rosto adornava selos postais, louças, cartazes e as primeiras páginas dos jornais soviéticos Pravda e Izvestia.

Os lugares onde tinha vivido ou ficado foram convertidos em museus dedicados a ele. As bibliotecas, as ruas, as fazendas, os museus, as cidades, e as regiões inteiras foram nomeadas em sua honra, a cidade de Petrogrado foi renomeada “Leningrado” em 1924, e seu lugar de nascimento de Simbirsk que transforma-se “Ulianovsk”. A Ordem de Lenin foi estabelecida como uma das condecorações mais altas do país. Tudo isso era contrário aos próprios desejos de Lenin, e foi publicamente criticado por sua viúva. 

Vários biógrafos afirmaram que os escritos de Lenin eram tratados de modo semelhante a uma escritura sagrada dentro da União Soviética, enquanto Pipes acrescentou que “todas as suas opiniões foram citadas para justificar uma política ou outra e tratadas como evangelho”. Stalin codificou o leninismo através de uma série de palestras na Universidade de Sverdlov, que foram posteriormente publicadas como Questões do Leninismo. Stalin também tinha muitos dos escritos do líder falecido recolhidos e armazenados em um arquivo secreto no Instituto Marx-Engels-Lenin. Material esse, que tal como a coleção de seus livros na Cracóvia, também foram coletados do exterior para serem guardados no Instituto, muitas vezes com grande custo.

Durante a era soviética, esses escritos eram estritamente controlados e o acesso era restrito. Todos os escritos de Lenin que se revelaram úteis a Stalin foram publicados, mas os outros permaneceram ocultos, e o conhecimento de sua ascendência não-russa e status de nobre foi suprimido. Em particular, sua ascendência judaica foi omitida até a década de 1980, talvez fora do antissemitismo soviético, e de modo a não minar os esforços Russos de seu sucessor, e talvez para não fornecer combustível para o sentimento antissoviético entre antissemitas internacionais.

Após a descoberta de sua ascendência judaica, esse aspecto foi repetidamente enfatizado pela extrema direita russa, que alegou que sua genética judaica herdada explicava seu desejo de desarraigar a sociedade russa tradicional. Sob o regime de Stalin, Lenin foi retratado ativamente como um amigo próximo, que tinha apoiado sua candidatura para ser o próximo líder soviético. Durante a era soviética, cinco edições separadas dos trabalhos publicados de Lenin foram publicados em russo, o primeiro começando em 1920 e o último de 1958 a 1965; embora a quinta edição fosse descrita como “completa”, na realidade tinha sido muito omitida por conveniência política. 

Após a morte de Stalin, Nikita Khrushchov tornou-se líder da União Soviética e iniciou um processo de desestalinização, citando os escritos de Lenin, incluindo os de Stalin, para legitimar este processo. Quando Mikhail Gorbachev assumiu o poder em 1985 e introduziu as políticas de glasnost e perestroika, ele também citou essas ações como um retorno aos princípios de Lenin.

No final de 1991, em meio à dissolução da União Soviética, o presidente russo Boris Iéltsin ordenou que o arquivo de Lenin fosse removido do controle do Partido Comunista e colocado sob o controle de um órgão estatal, o Centro Russo para a Preservação e Estudo de Documentos da História Recente, em que foi revelado que mais de 6 000 escritos de Lenin eram inéditos. Estes foram desclassificados e disponibilizados para estudo acadêmico. Iéltsin, no entanto, não desmantelou o mausoléu de Lenin reconhecendo que ele era muito popular e muito respeitado entre a população russa para que isso fosse viável. 

Na Rússia, em 2012, uma proposta do Partido Liberal Democrata da Rússia, com o apoio de alguns membros do partido Rússia Unida, propôs a remoção de todos os monumentos de Lenin, uma proposta fortemente contraposta pelo Partido Comunista da Federação Russa. Na Ucrânia, durante os protestos do Euromaidan entre 2013 e 2014, várias estátuas de Lenin foram danificadas ou destruídas por manifestantes que as viam como um símbolo do imperialismo russo, e em abril de 2015 o governo ucraniano ordenou que todas as outras fossem desmanteladas para cumprir as leis de descomunização estabelecidas pelo país.

Veja mais:

No movimento comunista internacional

De acordo com o biógrafo David Shub, escrevendo em 1965, são as ideias e o exemplo de Lenin que “constituem a base do movimento comunista atualmente”. Regimes comunistas que professam lealdade a essas ideias apareceram em várias partes do mundo durante o século XX. Escrevendo em 1972, o historiador Marcel Liebman afirmou que “quase não há movimento insurrecional hoje, da América Latina a Angola, que não reivindica a herança do leninismo”.

Após sua morte, o governo de Stalin estabeleceu uma ideologia conhecida como marxismo-leninismo, movimento que passou a ser interpretado de forma diferente por várias facções rivais no movimento comunista. Depois de ser forçado ao exílio pelo governo de Stalin, Trótski argumentou que o stalinismo era uma degradação do leninismo, que era dominado pelo burocratismo e a ditadura pessoal do novo líder soviético.

O marxismo-leninismo seria adaptado a muitos dos mais importantes movimentos revolucionários do século passado, formando-se em variantes como o stalinismo, maoismo, a ideologia Juche, o pensamento de Ho Chi Minh e o castrismo. Por outro lado, muitos comunistas ocidentais posteriores, como Manuel Azcárate e Jean Ellenstein, que estavam envolvidos no movimento eurocomunista, expressaram a opinião de que Lenin e suas ideias eram irrelevantes para seus próprios objetivos, abraçando assim uma perspectiva marxista, mas não marxista-leninista. 

A maioria dos historiadores ocidentais tomaram a posição de que Lenin era um elemento crucial no desenvolvimento do marxismo sem, no entanto, considerar que ele estava operando dentro de um projeto marxista. O ex-comunista Max Eastman, por exemplo, observou em 1926 que “uma diferença fundamental entre Marx e Lenin é visível em quase todas as páginas que eles escreveram”. Stephen J. Lee e James Ryan citam que Lenin distorceu a concepção original de marxismo e aplicou uma abordagem distinta na Rússia, resultando na imposição de uma visão marxista numa economia relativamente primitiva.

A. James Gregor escreveu que, “para cimentar o compromisso de populações apenas parcialmente industrializadas”, o marxismo-leninismo invocou o “sentimento coletivo e a disciplina” semelhante àquelas “enunciadas por totalitários em todos os lugares” no século passado.

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Leonardo da Vinci https://canalfezhistoria.com/leonardo-da-vinci/ https://canalfezhistoria.com/leonardo-da-vinci/#respond Mon, 17 Mar 2025 10:26:47 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6191 Leonardo di Ser Piero da Vinci, ou simplesmente Leonardo da Vinci (Anchiano, 15 de abril de 1452 — Amboise, 2 de maio de 1519), foi um polímata nascido na atual Itália, uma das figuras mais importantes do Alto Renascimento, que se destacou como cientista, matemático, engenheiro, inventor, anatomista, pintor, escultor, arquiteto, botânico, poeta e músico. É ainda conhecido como o percursor da aviação e da balística.

Leonardo frequentemente foi descrito como o arquétipo do homem do Renascimento, alguém cuja curiosidade insaciável era igualada apenas pela sua capacidade de invenção. É considerado um dos maiores pintores de todos os tempos e como possivelmente a pessoa dotada de talentos mais diversos a ter vivido. Segundo a historiadora de arte Helen Gardner, a profundidade e o alcance de seus interesses não tiveram precedentes e sua mente e personalidade parecem sobre-humanos para nós, e o homem em si [nos parece] misterioso e distante. 

Nascido como filho ilegítimo de um notário, Piero da Vinci, e de uma camponesa, Caterina, em Vinci, na região da Florença, foi educado no ateliê do renomado pintor florentino, Verrocchio. Passou a maior parte do início de sua vida profissional a serviço de Ludovico Sforza (Ludovico il Moro), em Milão; trabalhou posteriormente em Veneza, Roma e Bolonha, e passou seus últimos dias na França, numa casa que lhe foi presenteada pelo rei Francisco I.

Leonardo era, como até hoje, conhecido principalmente como pintor. Duas de suas obras, a Mona Lisa[1] e A Última Ceia, estão entre as pinturas mais famosas, mais reproduzidas e mais parodiadas de todos os tempos, e sua fama se compara apenas à Criação de Adão, de Michelangelo. O desenho do Homem Vitruviano, feito por Leonardo, também é tido como um ícone cultural, e foi reproduzido por todas as partes, desde o euro até camisetas.

Cerca de quinze de suas pinturas sobreviveram até os dias de hoje; o número pequeno se deve às suas experiências constantes — e frequentemente desastrosas — com novas técnicas, além de sua procrastinação crônica. Ainda assim, estas poucas obras, juntamente com seus cadernos de anotações — que contêm desenhos, diagramas científicos, e seus pensamentos sobre a natureza da pintura — formam uma contribuição às futuras gerações de artistas que só pode ser rivalizada à de seu contemporâneo, Michelangelo. 

Leonardo é reverenciado pela sua engenhosidade tecnológica; concebeu ideias muito à frente de seu tempo, como um protótipo de helicóptero, um tanque de guerra, o uso da energia solar, uma calculadora, o casco duplo nas embarcações, e uma teoria rudimentar das placas tectônicas. Um número relativamente pequeno de seus projetos chegou a ser construído durante sua vida (muitos nem mesmo eram factíveis), mas algumas de suas invenções menores, como uma bobina automática, e um aparelho que testa a resistência à tração de um fio, entraram sem crédito algum para o mundo da indústria. Como cientista, foi responsável por grande avanço do conhecimento nos campos da anatomia, da engenharia civil, da óptica e da hidrodinâmica.

Leonardo da Vinci é considerado por vários o maior gênio da história, devido a sua multiplicidade de talentos para ciências e artes, sua engenhosidade e criatividade, além de suas obras polêmicas. Num estudo realizado em 1926 seu QI foi estimado em cerca de 180.

Genealogia

Leonardo nasceu em 15 de abril de 1452, “na terceira hora da noite”, de um sábado, no vilarejo de Anchiano, na comuna italiana de Vinci, na Toscana, situada no vale do rio Arno, dentro do território dominado à época por Florença. Era filho ilegítimo de Messer Piero Fruosino di Antonio da Vinci, um notário florentino e Caterina di Meo Lippi, uma órfã de 15 anos, camponesa que pode ter sido uma escrava oriunda do Oriente Médio.

Leonardo não tinha um sobrenome no sentido atual; “da Vinci” significa simplesmente “de Vinci”: seu nome completo de batismo era “Leonardo di ser Piero da Vinci”, que significava “Leonardo, (filho) de (Mes)ser, Piero de Vinci”. O próprio Leonardo da Vinci assinava seus trabalhos simplesmente como Leonardo ou Io Leonardo (“Eu, Leonardo”); presume-se que ele não usou o nome do pai por causa do estado ilegítimo. 

Infância, 1452–1468

Pouco se sabe da infância de Leonardo. Provavelmente passou os seus primeiros quatro ou cinco anos no vilarejo de Anchiano, e depois do casamento de sua mãe com um lavrador de nome Accattabriga di Piero del Vaca, mudou-se para a casa da família de seu pai então casado com uma jovem de dezesseis anos chamada Albiera di Giovanni Amadori, com a qual Leonardo tinha uma boa relação, a quem chamava de madrinha, em companhia de seu avô, Antonio, e tio, Francesco, na paróquia de Santa Croce em Vinci, em um ambiente bucólico aconchegante, o que é significativo na personalidade de um Leonardo ligado a natureza.

Albiera morreu muito cedo sem filhos. A morte do seu avô Antonio a quem muito estimava deu-se logo após em 1468, e Leonardo apesar de ilegítimo continuara filho único no segundo casamento do seu pai Piero, com Francesca di Giuliano Lanfredini; testemunharia a mais dois casamentos deste, até que em 1476, quando viviam em Florença, Piero teve o tão esperado filho legítimo.

Em sua vida adulta, Leonardo só se recordaria de dois incidentes de sua infância, um deles, tinha como presságio: Parece-me que sempre fui destinado a me interessar muito profundamente por falcões, pois lembro-me como uma de minhas primeiras recordações que, quando estava no berço, um falcão desceu sobre mim e abriu-me a boca com a cauda, e me bateu muitas vezes entre os lábios com ela. 

O segundo ocorreu enquanto ele brincava nas montanhas da região, e depois de vagar por alguma distância entre as rochas projetadas acima, cheguei à boca de uma imensa caverna, diante da qual me quedei por algum tempo estupefato, pois ignorava a sua existência (…) e após ficar ali algum tempo, de repente despertaram dentro de mim duas emoções — medo e desejo — medo da escura e ameaçadora caverna, desejo de ver se haveria alguma coisa maravilhosa lá dentro.

A infância e a juventude de Leonardo foram tema de diversas conjunturas históricas. Giorgio Vasari, biógrafo do século XVI que escreveu sobre os pintores do Renascimento, conta como um camponês local teria pedido a Ser Piero que mandasse seu filho pintar um quadro numa placa redonda ou escudo. Leonardo respondeu com uma pintura de serpentes soltando fogo — ou mesmo um dragão — tão terrível e mesmo assim tão surpreendente que Ser Piero decidiu vender a um negociante de arte florentino que, por sua vez, a vendeu ao Duque de Milão.

Enquanto isso, com parte do lucro da venda, Ser Piero comprou uma placa, decorada com um coração penetrado por uma flecha, que ele deu ao camponês. Leonardo tornou-se um jovem instruído e sempre referido pelos estudiosos como dono de uma bela aparência de fartos cabelos louros e olhos claros, além de uma personalidade afável com o trato das pessoas. 

Ateliê de Verrocchio, 1469–1476

Na sua adolescência, Leonardo foi fortemente influenciado por duas grandes personalidades da época, Lourenço de Médici e o grande artista Andrea del Verrocchio. 

Em 1469, com dezessete anos, Leonardo passou a ser aprendiz de um dos mais bem-sucedidos artistas de seu tempo, Andrea di Cione, conhecido como Verrocchio (Olho verdadeiro). O ateliê de Verrocchio estava no centro das correntes intelectuais de Florença, o que garantiu ao jovem Leonardo uma educação nas ciências humanas. Outros pintores famosos que passaram por um aprendizado neste mesmo ateliê foram Ghirlandaio, Perugino, Botticelli e Lorenzo di Credi. Leonardo foi exposto desde cedo a uma vasta gama de técnicas, e teve a oportunidade de aprender desenho técnico, química, metalurgia, mecânica, carpintaria, a trabalhar com materiais como couro e metal, fazer moldes, além das técnicas artísticas de desenho, pintura, escultura e modelagem. 

Boa parte da produção de pinturas do ateliê de Verrocchio era feita por seus funcionários. De acordo com Vasari, Leonardo colaborou com Verrocchio em seu O Batismo de Cristo, pintando o jovem anjo da esquerda, que segura a túnica de Jesus de maneira tão superior ao seu próprio mestre que Verrocchio teria decidido nunca mais pintar. Isto provavelmente é um exagero; mas um exame atento da pintura mostra que existem diversos retoques feitos sobre a têmpera utilizando a nova técnica de pintura a óleo, como o cenário, as rochas que podem ser vistas ao fundo e boa parte da figura do próprio Jesus, todas testemunhas da mão de Leonardo. 

O próprio Leonardo pode ter sido o modelo para duas obras de Verrocchio, incluindo a estátua de bronze de David, no Bargello, e o Arcanjo em Tobias e o Anjo. Na altura apenas se disse que a estátua de David tinha sido inspirada num dos mais belos aprendizes do atelier de Verrocchio.

Em 1472, com vinte anos de idade, Leonardo se qualificou para o cargo de mestre na Guilda de São Lucas, uma guilda de artistas e doutores em medicina, porém mesmo depois de seu pai ter montado seu próprio ateliê, sua ligação com Verrocchio permaneceu tal que ele continuou a colaborar com ele. Aos poucos, as pessoas da corte passam a fazer encomendas diretamente a Leonardo. Sua obra mais antiga a ser datada é um desenho em pena e tinta do vale do Arno, feito em 5 de agosto de 1473. 

Vida profissional, 1476–1513

Em 1476, Leonardo da Vinci, juntamente com mais três alunos do ateliê de Verrocchio, foram acusados de sodomia; segundo a acusação referente a Leonardo, ele teria tido relações homossexuais com Jacopo Saltarelli, um jovem de 17 anos muito popular à época em Florença como prostituto. Diante, no entanto, da falta de provas concretas que confirmassem semelhante acusação, Leonardo foi absolvido.

A partir desta data até 1478 não existem registros nem de obras suas nem de seu paradeiro, embora se costuma presumir que Leonardo tenha estado no ateliê, em Florença, entre 1476 e 1481. Em 1478 foi-lhe encomendada a pintura de um retábulo para a Capela de São Bernardo, e a Adoração dos Magos, em 1481, para os monges de San Donato a Scopeto. Esta importante encomenda foi interrompida com a ida de Leonardo para Milão. 

Em 1482, Leonardo, que de acordo com Vasari era um músico muito talentoso, criou uma lira de prata, com a forma da cabeça de um cavalo. Lourenço de Médici, dito “il Magnifico”, grande humanista, enviou Leonardo, a portar a lira como um presente, a Milão, para selar a paz com Ludovico Sforza (dito il Moro, “o Mouro”), Duque de Milão não oficial. Foi nesta época que Leonardo da Vinci escreveu uma carta a Ludovico, citada frequentemente, na qual ele descreve as coisas diversas e maravilhosas que conseguia realizar no campo da engenharia, e informando o seu senhor que ele também podia pintar.

Leonardo continuou a trabalhar em Milão, entre 1482 e 1499. Recebeu a encomenda de pintar a Virgem dos Rochedos para a Confraria da Imaculada Conceição, e a Última Ceia para o mosteiro de Santa Maria delle Grazie. Enquanto vivia em Milão, entre 1493 e 1495, Leonardo listou uma mulher, chamada Caterina, entre seus dependentes, nas suas declarações de imposto de renda. Quando ela morreu, em 1495, a lista dos gastos com o funeral sugere que ela pode ter sido sua mãe.

Trabalhou em diversos projetos para Ludovico, incluindo o preparo de carros alegóricos e desfiles para ocasiões especiais, o projeto de uma cúpula para a Catedral de Milão, e um modelo de um imenso monumento equestre para Francesco Sforza, o antecessor de Ludovico. Setenta toneladas de bronze foram separadas para a sua confecção; o monumento permaneceu inacabado durante anos, o que não foi comum na carreira de Leonardo. Em 1492 um modelo de argila foi terminado; ele era maior, em tamanho, que as duas únicas estátuas equestres do Renascimento, a estátua de Gattemelata, em Pádua, e a de Bartolomeo Colleoni, de Verrocchio, em Veneza, e ficou conhecido como o “Gran Cavallo”. 

Leonardo começou a fazer os projetos detalhados para a sua fundição; Michelangelo, no entanto, sugeriu, de maneira indelicada, que Leonardo seria incapaz de fazê-lo. Em novembro de 1494 Ludovico usou o bronze para fabricar canhões, visando defender a cidade da invasão de Carlos VIII da França.

No início da Segunda Guerra Italiana, em 1499, as tropas invasoras francesas de Luís XII sucessor de Carlos VIII, utilizaram-se do modelo de argila do Gran Cavallo como alvo para praticar tiro. Com a deposição de Ludovico Sforza, Leonardo, juntamente com seu assistente, Salai, e seu amigo, o matemático Luca Pacioli, abandonou Milão e fugiu para Veneza, passando por Mântua, sendo que em Veneza foi empregado como arquiteto e engenheiro militar, planejando métodos de defender a cidade de um ataque naval. 

Ao retornar a Florença, em 1500, foi recebido, juntamente com sua família e criadagem, pelos monges servitas do mosteiro de Santissima Annunziata, onde tinha à sua disposição um ateliê. Foi ali que, de acordo com Vasari, criou o desenho da Virgem, o Menino, Sant’Ana e São João Batista — uma obra que conquistou tanta admiração que homens e mulheres, jovens e velhos vinham vê-la, em massa, como se estivessem frequentando um grande festival. 

Em 1502, Leonardo passou a trabalhar para César Bórgia, filho do papa Alexandre VI, atuando como arquiteto e engenheiro militar, e viajando por toda a Itália com seu patrão; foi nessa viagem que conheceu Nicolau Maquiavel.

Retornou a Florença, onde voltou a fazer parte da Guilda de São Lucas, em 18 de outubro de 1503; recebeu a encomenda de um retrato: a Mona Lisa, e passou os dois anos seguintes desenhando e pintando um grande mural da Batalha de Anghiari para a Signoria, enquanto Michelangelo foi responsável pela peça que a acompanhava, A Batalha de Cascina. Ainda em Florença, em 1504, fez parte de um comitê formado para transferir, contra a vontade do próprio autor, Michelangelo, a célebre estátua do Davi.

Em 1506, retornou a Milão. Muitos dos seus pupilos e seguidores mais importantes, no campo da pintura, ou o conheceram ou trabalharam com ele naquela cidade, incluindo Bernardino Luini, Giovanni Antonio Boltraffio e Marco D’Oggione. Seu pai morreu em 1504, e como resultado, em 1507 Leonardo teve de voltar a Florença para resolver com seus irmãos os problemas decorrentes da herança e das propriedades paternas.

No ano seguinte, retornou a Milão por solicitação do governador francês Charles d’Amboise, para resolver problemas de trabalhos inconclusos, onde passou a viver em sua própria casa, na região da Porta Orientale, na paróquia de São Bábila. Após mercenários suíços expulsarem os franceses em 1512, Massimiliano Sforza filho de Ludovico, ascendeu ao poder, e Leonardo ficou sem patrono. No ano seguinte foi convidado por Juliano de Médici, filho de il Magnifico, para viajar para Roma, que estava sob o controle do papa Leão X, um Médici. 

Últimos anos, 1513–1519

De setembro de 1513 a 1516, Leonardo passou a maior parte do seu tempo vivendo no Belvedere, no Vaticano, em Roma, período durante o qual Rafael e Michelangelo também estavam em atividade. Em outubro de 1515, Francisco I da França reconquistou Milão; Leonardo estava presente no encontro entre Francisco I e o papa Leão X, em 19 de dezembro, ocorrido em Bolonha. 

Foi de Francisco que Leonardo recebeu a encomenda de construir um leão mecânico, que pudesse caminhar para a frente, e abrir seu peito, revelando um ramalhete de lírios. Em 1516, passou a trabalhar diretamente a serviço de Francisco, e foi-lhe concedido o solar de Clos Lucé, próximo à residência do rei, no Castelo de Amboise. Foi aqui que ele passou os três últimos anos de sua vida, acompanhado por seu amigo e aprendiz, o conde Francesco Melzi, e sustentado por uma pensão que totalizava 10 000 escudos. 

“LEONARDUS VINCIUS: QUID PLURA? DIVINUM INGENIUM, DIVINA MANUS, EMORI IN SINU REGIO MERUERE. VIRTUS ET FORTUNA HOC MONUMENTUM CONTINGERE GRAVISSIMIS IMPENSIS CURAVERUNT.”

Leonardo morreu em Clos Lucé, em 2 de maio de 1519. Francisco havia se tornado um grande amigo; e Vasari relata que o rei segurava a cabeça de Leonardo em seus braços quando este morreu — embora a história, amada pelos franceses e retratada em pinturas românticas de artistas como Ingres e Angelica Kauffmann, possa ser mais lenda do que realidade. 

Vasari também conta que, em seus últimos dias, Leonardo teria pedido que um padre lhe fosse trazido, para que se confessasse e recebesse a extrema unção. De acordo com o que pediu em seu testamento, sessenta mendigos seguiram o seu cortejo. Foi enterrado na Capela de Saint-Hubert, no Castelo de Amboise. Melzi foi o principal herdeiro e inventariante, e recebeu, além de todo o dinheiro de Leonardo, todos os seus cadernos, ferramentas, sua biblioteca e seus objetos pessoais.

Leonardo também se lembrou de seu antigo pupilo e companheiro, Salai, e de seu criado, Battista di Vilussis; cada um recebeu uma metade das vinhas de Leonardo, sendo que de Salai tornaram-se posses as pinturas que acompanhavam o mestre desde então. Seus irmãos também receberam terras, e sua criada recebeu um manto negro de bom material, com as bordas de pele.

Cerca de vinte anos após a morte de Leonardo, o rei Francisco teria falado, segundo o escultor Benvenuto Cellini: Nunca nasceu no mundo outro homem que soubesse tanto quanto Leonardo, nem tanto [por seus conhecimentos] de pintura, escultura e arquitetura, mas por ele ter sido um grande filósofo.

Florença – contexto social e artístico de Leonardo

Leonardo começou seu aprendizado com Verrocchio em 1466, no ano em que morreu o mestre do próprio Verrocchio, o grande escultor Donatello. O pintor Uccello, cujas experiências com a perspectiva influenciariam o desenvolvimento da pintura de paisagem, já era um homem de idade muito avançada, e os pintores Piero della Francesca e Fra Filippo Lippi, o escultor Luca della Robbia, e o arquiteto e escritor Alberti já estavam em seus sessenta anos de idade.

Entre os artistas mais bem sucedidos da geração seguinte estavam, além do próprio professor de Leonardo, Verrocchio, Antonio Pollaiuolo e o escultor Mino de Fiesole, cujos bustos realistas são até hoje as evidências mais confiáveis da aparência real do pai de Lourenço de Médici, Piero, e de seu tio, Giovanni. 

Leonardo passou sua juventude numa Florença decorada pelas obras destes artistas, e pelos contemporâneos de Donatello, como Masaccio — cujos afrescos figurativos estavam imbuídos de realismo e emoção, ou de Ghiberti, cujas Portas do Paraíso, folheadas a ouro, mostravam a arte da combinação de composições figurativas complexas com fundos arquitetônicos ricamente detalhados. Piero della Francesca fez um estudo detalhado da perspectiva, e foi o primeiro pintor a fazer um estudo científico da luz. Estes estudos, juntamente com o Trattato de Leone Battista Alberti, teriam um efeito profundo nos artistas mais jovens, e especialmente nas próprias observações e obras de Leonardo. 

A Expulsão do Jardim do Éden, de Massaccio, mostrando Adão e Eva nus e transtornados, abandonando o Jardim do Éden, criou uma imagem tremendamente expressiva da forma humana, representada em três dimensões através do uso de luz e sombra — algo que seria desenvolvido nas obras de Leonardo a ponto de influenciar a história da pintura a partir de então. As influências humanistas do Davi de Donatello podem ser vistas nas pinturas da velhice de Leonardo, em especial o São João Batista. 

Uma tradição recorrente em Florença era a de pequenos retábulos retratando a Virgem e o Menino. Muitos eram feitos em têmpera ou terracota vitrificada, pelos ateliês de Filippo Lippi, Verrocchio e da prolífica família della Robbia. As primeiras madonas de Leonardo, como A Virgem do Cravo e Virgem Benois seguiram nesta tradição, embora mostrassem diferenças idiossincráticas, especialmente no caso da Virgem Benois, na qual a Virgem está retratada num ângulo oblíquo ao espaço do quadro, com o Menino Jesus num ângulo oposto. O mesmo tema reapareceria em diversas pinturas posteriores de Leonardo, como A Virgem e o Menino com Santa Ana. 

Leonardo foi contemporâneo de Botticelli, Ghirlandaio e Perugino, embora fossem um pouco mais velhos que ele. Teria conhecido todos no atelier de Verrocchio, com quem eles tinham ligações, e na Academia dos Médici. Botticelli era especialmente preferido pela família Médici, e seu sucesso como pintor era praticamente garantido. Ghirlandaio e Perugino eram prolíficos, e também geriam grandes ateliês; foram responsáveis por comissões realizadas com competência, para patronos satisfeitos, que apreciavam a habilidade de Ghirlandaio de retratar os cidadãos ricos de Florença em grandes afrescos religiosos, e a habilidade de Perugino em criar multidões de santos e anjos de inescapável doçura e inocência.

Estes três estavam entre os que foram comissionados para pintar as paredes da Capela Sistina, no Vaticano, obra que havia sido iniciada por Perugino em 1479. Leonardo não fez parte desta comissão de prestígio; sua primeira encomenda significante, a Adoração dos Magos, para os monges de Scopeto, nunca foi terminada.

Em 1476, durante o período em que Leonardo esteve ligado ao atelier de Verrocchio, o pintor flamengo Hugo van der Goes chegou em Florença, trazendo o Retábulo de Portinari e as novas técnicas de pintura do Norte da Europa que afetariam profundamente os pintores florentinos do período. Em 1479 o pintor siciliano Antonello da Messina, que trabalhava exclusivamente com óleos, viajou para o norte, em direção a Veneza, onde o principal pintor da cidade, Giovanni Bellini, também adotara a técnica da pintura a óleo, transformando-a rapidamente na técnica preferida do local. Leonardo também visitaria Veneza algum tempo depois. 

Como dois arquitetos contemporâneos, Bramante e Antonio da Sangallo, o Velho, Leonardo experimentou com projetos para igrejas planejadas centralmente, diversas das quais aparecem em seus diários, tanto em plantas quanto vistas — embora nenhum destes projetos tenha chegado a ser posto em prática. Os contemporâneos políticos de Leonardo foram Lourenço de Médici (il Magnifico), três anos mais velhos que ele, e seu popular irmão mais novo, Juliano, morto na Congiura dei Pazzi de 1478. Ludovico Sforza (il Moro), que governou Milão entre 1479 e 1499, período durante o qual Leonardo foi enviado como embaixador em nome da corte dos Médici, também tinha aproximadamente a mesma idade. 

Juntamente com Alberti, Leonardo passou a frequentar o lar dos Médici, e através deles conheceu filósofos humanistas como Marsilio Ficino, proponente do neoplatonismo, Cristoforo Landino, autor de comentários sobre os escritos da Antiguidade Clássica, e João Argyropoulos, professor de grego e tradutor das obras de Aristóteles. Outro contemporâneo de Leonardo que também teve seu nome associado à Academia dos Médici foi o jovem e brilhante poeta e filósofo Pico della Mirandola. Leonardo escreveu mais tarde, na margem de um de seus diários: “Os Médici me fizeram, e os Médici me destruíram.” Embora tenha sido através de Lourenço que Leonardo receberia importantes trabalhos em Milão, não se sabe o que ele quis dizer exatamente com este comentário críptico. 

Embora costumem ser agrupados como os três gigantes do Alto Renascimento, Leonardo, Michelangelo e Rafael não pertenceram à mesma geração. Leonardo tinha vinte e três anos quando Michelangelo nasceu, e trinta e um no nascimento de Rafael, este último teve uma vida curta, morrendo em 1520, no ano após a morte de Leonardo; já Michelangelo continuou criando por mais 45 anos. 

Vida pessoal

Ao longo da vida de Leonardo, seu extraordinário poder de inventividade, sua “espetacular beleza física”, “graça infinita”, “grande força e generosidade”, “espírito régio e tremendo alcance mental”, como foram descritos por Vasari, atraíram a curiosidade daqueles que o cercavam. Diversos autores especularam sobre os vários aspectos da personalidade de Leonardo; um deles, a sua adoção de éticas e práticas pessoais, que podem ser ocasionadas de sua crescente admiração pela natureza e suas criaturas, como pode ser exemplificado por seu vegetarianismo e o hábito, descrito também por Vasari, de comprar pássaros engaiolados e libertá-los. 

Leonardo teve muitos amigos que se tornaram profissionais renomados em seus campos, ou que são célebres até hoje por sua importância histórica. Entre eles está o matemático Luca Pacioli, com quem ele colaborou num livro na década de 1490, assim como Franchinus Gaffurius e Isabella d’Este, a grande dama do Renascimento. Com a exceção desta última, Leonardo parece não ter se relacionado intimamente com mulheres. Isabella foi retratada por ele durante uma viagem que levou-os a Mântua; o retrato teria sido usado como rascunho para uma pintura, que já não existe mais. 

Além de suas amizades, Leonardo mantinha sua vida privada em segredo. Sua sexualidade foi alvo frequente de estudos, análises e especulações. Esta tendência já se tinha iniciado no meio do século XV, e tomou novo ímpeto nos séculos XIX e XX, especialmente a partir de Sigmund Freud. 

Assistentes e pupilos

Os relacionamentos mais íntimos de Leonardo foram com seus dois pupilos, Gian Giacomo Caprotti da Oreno, apelidado Salai ou il Salaino (“pequeno diabo” na gíria da época), que entrou para o seu convívio familiar em 1490. Depois de apenas um ano, Leonardo fez uma lista de suas contravenções, chamando-o de “um ladrão, um mentiroso, teimoso, e glutão”, depois de ele ter roubado dinheiro e objetos de valor em pelo menos cinco ocasiões, e gastar uma fortuna em roupas.

Ainda assim, em seus primeiros anos, os cadernos de Leonardo contêm diversas pinturas do estudante, que permaneceu como parte da família de Leonardo pelos trinta anos seguintes. Salai também fez uma série de pinturas, sob o nome de Andrea Salai; embora Vasari tenha alegado que Leonardo “ensinou-lhe muito sobre pintura”, sua obra é geralmente considerada como tendo um mérito artístico menor do que outros pupilos de Leonardo, como Marco d’Oggione e Boltraffio. Em 1515 Salai pintou uma versão nua da Mona Lisa, conhecida como Mona Vanna. O próprio Salai era proprietário da Mona Lisa na ocasião de sua morte, em 1525, e em seu testamento ela foi estimada em 505 liras, um valor excepcionalmente alto para um pequeno retrato. 

Em 1506 Leonardo acolheu outro pupilo, o conde Francesco Melzi, filho de um aristocrata da Lombardia. Melzi, estudante predileto de Leonardo, viajou com o tutor para a França, onde esteve ao seu lado durante todo o fim de sua vida. Com a morte de Leonardo, Melzi herdou as coleções, manuscritos e obras artísticas e científicas de Leonardo, patrimônio que ele administrou fielmente a partir de então. 

Obra artística

Apesar do recente interesse e admiração por Leonardo como cientista e inventor, durante mais de quatrocentos anos a sua enorme fama apoiou-se nos seus feitos como pintor e num punhado de obras, autenticadas ou atribuídas a ele, que têm sido vistas desde então como algumas das obras-primas supremas já criadas pelo homem.

Estas pinturas ficaram famosas por uma série de qualidades que foram muito imitadas por estudantes e discutidas extensivamente por conhecedores e críticos. Entre algumas destas qualidades que tornam a obra de Leonardo única estão as técnicas inovadoras que ele usou na aplicação da tinta, seu conhecimento detalhado de anatomia, luz, botânica e geologia, seu interesse na fisiognomonia e na maneira pelo qual os humanos registram emoções em suas expressões e gestos, seu uso inovador da forma humana em composições figurativas, e o uso da graduação sutil da tonalidade. Todas estas qualidades encontram-se reunidas em suas obras mais famosas, como a Mona Lisa, A Última Ceia e a Virgem dos Rochedos. 

A Última Ceia (L’ultima cena ou Cenacolo), em Milão, é uma das mais conhecidas pinturas atribuídas a da Vinci, exposta no refeitório do convento de Santa Maria delle Grazie e tema central da obra O Código da Vinci de Dan Brown, assim como a Mona Lisa (também conhecida como La Gioconda, exposta no museu do Louvre, em Paris). 

Leonardo não foi um pintor prolífico, mas foi o mais prolífico desenhista (projetista), mantendo diários cheios de pequenos rascunhos e desenhos detalhados registrando todas as coisas que lhe chamavam atenção. Juntamente com os diários, existem diversos estudos de pinturas, alguns dos quais podem ser identificados como preparações para trabalhos específicos como A Adoração dos Magos, a Virgem dos Rochedos e A Última Ceia. Seu desenho mais antigo, é o Vale do Arno (1473), que ostenta as montanhas tão frequentes em suas obras. 

Entre seus desenhos mais famosos está o Homem Vitruviano, um estudo das proporções do corpo humano, e a Cabeça de Anjo, esboço de Uriel em A Virgem dos Rochedos, no Louvre, e um grande desenho em giz, A Virgem, o Menino, Sant’Ana e São João Batista, na National Gallery em Londres. Este desenho emprega o efeito sutil do sfumato, técnica de sombreado presente em Mona Lisa. Pensa-se que Leonardo nunca fez uma pintura a partir dele, mas há uma notável semelhança com a pintura A Virgem e o Menino com Santa Ana, atualmente no Louvre. 

Outros desenhos de interesse incluem numerosos estudos geralmente referidos como “caricaturas”, porque, embora exagerados, parecem ser baseados em observação de modelos vivos, como Cabeças Grotescas. Vasari refere que, se Leonardo encontrasse pessoas com personalidade interessante, ele iria acompanhá-las o dia todo observando. Existem numerosos estudos de belos jovens, muitas vezes associados a Salai, com sua rara e muito admirada beleza facial, o então chamado “perfil grego”. Outros estudos muito detalhados são os de roupagens, um bom exemplo é o macabro Retrato de Bernardo di Bandino Baroncelli executado, em que com desapaixonada integridade Leonardo descreve as vestes do participante da Congiura dei Pazzi.

Em Florença, 1469–1482

Leonardo da Vinci nasceu no seio de uma família cujas posses equivaliam à riqueza das famílias que hoje chamamos classe-média, instruída e altruísta. Jovem, Leonardo revelou desde cedo uma aptidão genial para o desenho, área em que, tecnicamente, mais se destacou, pelo menos na sua carreira prematura. 

Segundo, Giorgio Vasari, sua família, amiga íntima da família de Verrocchio, tinha um estreito contato com a arte florentina. Messer Piero, pai de Da Vinci, levou um dia alguns dos trabalhos de Leonardo ao ateliê do pintor, questionando-o sobre o eventual talento de Leonardo e se valeria a pena investir no jovem. Verrocchio ficou espantado com a habilidade de Leonardo e, prontamente, aceitou o jovem no seu estúdio. 

Os trabalhos prematuros de Leonardo resumiam-se, de fato, a desenhos, esboços a carvão, tinta nanquim ou aguada. Embora somente se conheça um retrato masculino a óleo na sua obra, o pintor explorou com ênfase o retrato da virilidade masculina, um interesse que se revela mesmo neste tempo de aprendiz. Um dos seus trabalhos mais intrigantes deste início de carreira é Retrato de Bernardo di Baroncelli executado, já no estúdio de Verrocchio, a pena e tinta, realizado a caneta de aparo sobre papel preparado, que conclui o maior registro desenhado, realizado em 29 de dezembro de 1479.

Trata-se do retrato de um cadáver, um participante da Congiura dei Pazzi, executado pelo assassinato de Juliano de Médici. Na inscrição no topo do papel, Leonardo descreve o vestuário do executado, incluindo as cores com sua típica escrita invertida. Na margem inferior direita do trabalho aparece ainda uma cabeça.

Referência notável para o seu trabalho é a facilidade e o domínio do traço, que revelaria mais tarde no pincel. Duas outras pinturas parecem datar deste seu período no ateliê de Verrocchio, ambas Anunciações. Uma é pequena, com 59 centímetros por 14; é uma predella, destinada a adornar a base de uma composição maior — neste caso, uma pintura de Lorenzo di Credi da qual ela foi separada. A outra é uma obra muito maior, com dois metros e 17 centímetros.

Em ambas as Anunciações Leonardo utilizou-se de um arranjo formal (como nas célebres pinturas de Fra Angelico sobre o mesmo assunto), da Virgem Maria sentada ou ajoelhada à direita do quadro, com um anjo de perfil se aproximando pela esquerda, com as asas eretas e portando um lírio em um cenário aberto, com um rico jogo de perspectiva linear. Embora tenha sido atribuído anteriormente a Ghirlandaio, a maior das duas obras é considerada de maneira unânime nos dias de hoje como sendo de Leonardo. 

Na menor das pinturas, Maria desvia seus olhos, e dobra suas mãos, num gesto que simbolizava a submissão à vontade de Deus; na outra, no entanto, Maria não está nem um pouco submissa. A bela jovem, interrompida em sua leitura por este inesperado mensageiro, coloca um dedo na sua Bíblia para marcar o lugar onde parou e levanta sua outra mão num gesto formal de saudação ou surpresa. Esta jovem tranquila parece aceitar seu papel como a Mãe de Deus, não com resignação, mas com confiança. Nesta pintura, o jovem Leonardo apresenta a face humanista da Virgem Maria, reconhecendo o papel da humanidade na encarnação de Deus. 

Uma série de estudos meticulosos o levou a concretizar trabalhos como A Anunciação ou a futura Virgem do Cravo. O estudo de roupagens das personagens das obras são um dos marcos do seu percurso artístico, concebidos com uma primazia notável. Baseando-se em esculturas ou modelos de madeira ou terracota, cobertos por panejamentos e joias — algo em voga, para não ter que pagar cortesãs para posarem para si — Leonardo desenvolveu as suas competências no desenho e sabendo-o bem, no seu Trattato della Pittura, aconselha os artistas a praticarem o desenho através do estudo de relevos e esculturas. Estes estudos, primeiramente postos em prática pelo artista, prepararam um génio sagaz e um mestre inconfundível.

O humanista Paolo Giovio e Vasari referem constantemente nas suas obras, a perfeição do jovem artista nos seus desenhos. Vasari refere mesmo que “os desenhos de Da Vinci são tão perfeitos e relatam tão incansável procura por novos detalhes, com um esforço de imaginação soberbo, que dificilmente os conseguem igualar.” 

Nesta época, Leonardo desenvolveu um vitium (na acepção portuguesa, uma «obsessão») pela perfeição das obras e desenvolveu imensamente a sua técnica, que o levou a criar outras inéditas, como o sfumato, hoje conhecido através da Mona Lisa. Tal exigência para consigo próprio levaria à não conclusão de diversos trabalhos, pois assim que os iniciava punha-os de lado, tal era a rapidez e eficácia com que aprendia novas técnicas. 

Ao mesmo tempo em que realizava os seus famosos estudos de roupagens, Leonardo concretizou vários desenhos e estudos a partir da natureza. Estes são tipificados pelo trabalho que produziu ainda enquanto aprendiz, assim como uma das primeiras obras datadas constantes entre a coleção da Galeria dos Uffizi, atualmente. No canto superior de o Vale do Arno aponta, na sua acostumada escrita invertida, «no dia de Santa Maria do Milagre da Neve, 5 de agosto de 1473». 

Estudo a pena e tinta sobre um suporte preparatório quase invisível, mostra a vista sobre um vale com montes e escarpas de ambos os lados, abrindo no fundo uma escassa visibilidade do mar. A vista poderá ser do caminho entre Vinci e Pistoia e, provavelmente, terá sido esboçado a lápis ao ar livre in loco, e depois completada a pena e tinta no ateliê.

No início do século XX, Woldemar von Seidlitz compreendeu as fortificações de Papiano nas muralhas e torres numa colina à esquerda da composição. A importância deste desenho não se reflete só no fato de ter sido feito por Leonardo, mas sim, em figurar como um dos primeiros desenhos autónomos de paisagens de toda a História da Arte. 

Estes estudos da natureza e de modelos vivos eram postos em prática nas suas obras pintadas, como no Batismo de Cristo, onde, conclusivamente, pintou o anjo que segura às vestimentas de Cristo, que é de longe, muito melhor e elegante que as figuras pintadas por Verrocchio e Botticelli, e a paisagem de sutis transições de tons cromáticos, com incríveis efeitos da luz, desfocando contornos de montanhas e colinas distantes, fundindo-as a uma neblina luminosa — efeito obtido pelo emprego prematuro do óleo em sua obra artística —, uma evocação ao desenho do Vale do Arno e antecipação do fundo de Mona Lisa.

Vida profissional, 1476–1513

Dando início à carreira profissional de artista, o retrato de uma jovem foi encomendado diretamente a Leonardo. Marcante, o retrato possui uma forte presença iconográfica e uma austera amargura. Prematuramente noiva de Luigi di Bernardo di Lapo Niccolini, a juventude de Ginevra, filha de Amerigo Benci, um banqueiro, e possivelmente desejada do embaixador de Veneza, Bernardo Bembo alcançou a eternidade com esta pintura, encomendada provavelmente pelo último, embora seja sugerido que a encomenda tenha sido feita pela família da jovem em comemoração de seu casamento. 

A pintura, inicialmente maior, sofreu danos, e proprietários posteriores provavelmente a compactaram com um corte de cerca de nove centímetros em sua parte inferior. Tal suposição é sustentada pela pintura do reverso, e por um desenho preparatório de mãos, que seria da mesma jovem. O desenho encontra-se na Royal Library, Castelo de Windsor. 

Tem-se conta de que o nome da jovem e o da pintura formam um jogo iconográfico de palavras. Atrás da bela jovem, surge uma juniperus. A palavra italiana que define esta árvore é ginepro, significando genebra ou zimbro. Contudo, o significado renascentista da árvore era a pureza e a castidade. Esta ideia é reforçada pela frase inscrita no reverso da pintura, na qual está pintado um pergaminho com louros e uma palma, ambos em torno de um pequeno ramo de zimbro. No pergaminho há os seguintes dizeres: A beleza adorna a virtude (VIRTUTEM FORMA DECORAT). 

A expressão facial da jovem é o mais intrigante na pintura. Olhando o espectador sem encarar, a incerteza dos seus sentimentos intriga os especialistas; não se sabe se está cansada, triste, serena, zangada, ou seja, um rol de sentimentos inacabáveis que a expressão facial lhe atribui. Uma jovem que oculta o íntimo, modesta, ausente de joias, tem como maior adorno a própria beleza natural como a paisagem que a cerca, o que poderia justificar a inscrição do reverso. 

Obras da década de 1480

Na década de 1480 recebeu três importantes encomendas e começou outro trabalho ainda, cujo tema abriu uma rotura em termos de composição. Infelizmente, dois desses três trabalhos nunca foram acabados (devido a sua partida para Milão) e o terceiro levou tanto tempo, que tornou-se alvo de longas negociações ao longo da sua execução e pagamento. Uma destas pinturas é São Jerônimo no Deserto. Esta pintura é associada com um período difícil da vida de Leonardo, e coincide com sinais de melancolia encontrados em seu diário: “Achei que estava aprendendo a viver; estava apenas aprendendo a morrer.”

A composição da pintura foge às práticas costumeiras da época; São Jerônimo, como um penitente, ocupa o centro da figura, levemente inclinado diagonalmente, e visto quase que de cima. A sua forma, ao ajoelhar-se, adquire um contorno trapezoide, com um braço esticado à borda exterior da pintura, e seu olhar virado para a direção oposta; alguns estudiosos apontam na obra ligações com os estudos anatômicos de Leonardo. Da Vinci serviu-se de um modelo de madeira e pano para conceber a figura do santo, como se fazia na altura.

Para o poder pintar nesta posição, a cabeça de Leonardo colocava-se à mesma altura que o meio da tíbia do modelo, pintando-o na diagonal. Por toda a extensão do quadro está o seu símbolo, um grande leão cujo corpo e cauda formam uma espiral dupla ao longo da base do espaço da pintura. Outra característica que se destaca é o cenário incompleto, de rochas escarpadas, contra o qual a figura está delineada. 

Outra composição um tanto quanto atrevida, os elementos paisagísticos e o drama pessoal ressoam na obra de arte inacabada: A Adoração dos Magos, encomenda dos monges de San Donato a Scopeto. É uma composição muito complexa sobre cerca de 250 cm de largura e comprimento de uma placa de madeira. Para este trabalho o artista esboçou vários desenhos e numerosos trabalhos e estudos preparatórios, incluindo um detalhe de uma perspectiva linear das ruínas de um edifício clássico. Mas em 1482 Leonardo saiu com destino a Milão por ordens de Lourenço de Médici, em tributo a Ludovico Sforza, o mouro, e a pintura e todo o trabalho que havia tido foi abandonada. 

Em Milão, 1482–1499

Em Milão, o primeiro registo de Leonardo da Vinci é um contrato de uma Confraria religiosa intitulada Imaculada Conceição, datado de 25 de abril de 1483, para a pintura de um retábulo para abrilhantar o altar da capela de São Francisco, o Grande. O resultado seria o terceiro mais importante trabalho pictórico do artista, A Virgem dos Rochedos. 

A encomenda era a execução de pinturas com a ajuda dos imãos Ambrogio e Evangelista de Predis, para um grande e complexo altar, já construído anteriormente por Giacomo da Maiano. Leonardo, encarregado do painel central, escolheu pintar um enfático momento da infância de Cristo, quando o pequeno João Baptista, com a proteção do anjo Uriel, conheceu a Sagrada Família numa gruta do Egito, cena da tradição cristã dos livros apócrifos e de uma Florença deixada para trás, de numerosas lendas sobre São João Batista.

Neste cenário rochoso que evoca a um passeio de infância do artista ao Monte Ceceri (próximo do território florentino), João reconhece e adora Jesus como o Cristo. A pintura mostra uma misteriosa beleza como as graciosas figuras ajoelhadas em adoração em torno do Menino Jesus, em uma paisagem selvagem de queda de rochas e um vale de águas azuis, e coincide com a abandonada Adoração dos Magos devido ao seu naturalismo e contraste de luz e sombra (chiaroscuro), aqui distintamente visível.

A pintura solenemente declara a riqueza do conhecimento estilístico do traje e da sua representação, a julgar pela concepção notável do vestuário de Uriel (que compete com a simples túnica enegrecida azul da Virgem), impressa numa figura sóbria e imponente, que perde lugar na segunda versão onde assume outra pose, desta feita mais singela, cedente a uma nova Virgem vestida de um manto de azul brilhante, suavizando o cenário áspero e contrastando com a representação da primeira versão. 

Apesar das avantajadas medidas, cerca de 200 por 120 cm (a segunda versão existente cerca de 190 por 120 cm), a pintura da Virgem nas Pedras não é tão complexa quanto a encomenda dos monges de São Donato, constando em cena somente quatro figuras em vez de cerca de cinquenta — cuja forma conjunta completa uma pirâmide triangular — numa paisagem rochosa, em vez de detalhes arquitetônicos. Eventualmente, a pintura foi acabada.

De fato, duas versões desta pintura foram feitas, uma entregue a Confraria religiosa e a outra levada para a França pelo próprio Leonardo. Arasse, Daniel (1997), Leonardo da Vinci, ISBN 1 56852 1987, Konecky & Konecky Acredita-se que a versão do Louvre seja a primeira das versões, pintada entre 1483–1486, ou mais cedo. A segunda versão, pertencente a National Gallery desde 1880, foi vendida pela igreja em 1781, e,certamente, em 1785 tornou-se posse de Gavin Hamilton, que a levou para a Inglaterra, onde passou por várias coleções.

Nesta versão é provável a participação de outros artistas como Ambrogio de Pedris, e, de certo modo, mesmo tratando-se de uma pintura mais madura, seu naturalismo perde lugar para um idealismo muito maior do que o da versão anterior. 

Atualmente, existe a especulação de uma outra versão (Versão Cheramy), em que Leonardo tenha participado, cronologicamente anterior a versão de Londres. 

Encargos na Corte

Entre 1487 e 1490, Leonardo assume uma posição de destaque na corte milanesa. O seu trabalho não se resumia a pintar, e entre outras coisas, também era responsável pela organização de festividades, trabalho que intimamente não o contentava; trabalhou vários anos na realização de uma estátua equestre para o antecessor de Ludovico, Francesco Sforza, que nunca concluiu e na edificação de estruturas defensivas, como arquiteto militar do duque. Leonardo também participou da decoração de quartos e apartamentos da corte (sendo somente parte da Salla delle Asse trabalhada por volta de 1498, o que restou deste encargo), e na decoração do refeitório dos padres dominicanos de Santa Maria delle Grazie (1495–1498). 

É nesta época de grandes feitos que inúmeros retratos de mulheres intimamente ligadas ao seu patrono são realizados, entre eles o retrato de uma jovem muito admirada na corte, cujo resultado seria uma mistura da linguagem iconográfica de Ginevra de’ Benci e o naturalismo da Virgem dos Rochedos.

Entre as suas obras acabadas ocupa uma posição de destaque um retrato de uma senhora da aristocracia, que segura nas mãos um arminho: o retrato de Cecília Gallerani, mundialmente conhecido como Dama com Arminho. Pintado por volta de 1488, o quadro concentra todas as inovações de Leonardo na época: a representação do rosto virado em uma posição de três-quartos, o gesto da mão, a definição da forma pela luz e a representação do movimento interrompido visando uma estrutura helicoidal.

Cecília parece reagir à presença de alguém fora da pintura, em um movimento de giros de cabeça e tronco, o arminho de tamanho um tanto exagerado, repete-lhe o gesto, a mão curvada elegantemente corresponde, por sua vez, ao movimento do animal, criando um sintonia entre modelo e o arminho. 

De fato, a linguagem iconográfica utilizada por Leonardo nesta obra — que nos remete a uma pintura de sua fase inicial, a Ginevra de’ Benci —, fez com que permanecessem vários mistérios em relação ao simbolismo do arminho. Acredita-se que o arminho é uma alusão ao apelido da jovem aristocrata, visto que o som de «Gallerani» é remanescente da acepção grega para arminho, “galée”. Noutra vertente, o animal é considerado um sinal de pureza, pois, acreditava-se, o arminho preferia morrer em uma caçada, do que se refugiar em alguma toca, para não sujar seu manto branco.

Porém, a razão mais provável é a terceira, ou seja, a alusão a Ludovico Sforza. A jovem era a amante de eleição de Ludovico e, a partir de meados de 1488, este começou a usar o arminho como um dos seus emblemas. Assim Ludovico, sob a simbólica forma de animal, surge no regaço da jovem, bem penteado e acariciado pelas mãos da sua amante. Existem provas documentais de que o quadro pertenceu a retratada. 

Obras da década de 1490

O Retrato de Mulher de Perfil (c. 1493–1495), trata-se do retrato da esposa de Ludovico Sforza, Beatriz d’Este. Pintado, provavelmente, por Ambrogio de Pedris, com a qualidade do traço da cabeça da retratada sugerindo, segundo Martin Kemp, professor emérito de pesquisa em história da arte na Universidade de Oxford, que Leonardo tenha participado da pintura, se responsabilizando pelas bases do desenho.

A atribuição é reforçada de forma recíproca com a atribuição de um quadro a que, inicialmente, foi dada origem alemã, do século XIX, mas que foi, em 2009, atribuído a Leonardo. Trata-se de um retrato de mulher igualmente de perfil e com características semelhantes ao retrato de Cecília Gallerani, que foi identificado graças a uma impressão digital e análises científicas. Inicialmente denominado Mulher de Perfil com Vestido da Renascença, foi renomeado de La Bella Principessa por Kemp, que identificou a retratada como Bianca Sforza, filha de Ludovico Sforza e sua amante Bernardina de Corradis. Os membros da família Sforza sempre foram retratados em perfil, em contraste com as amantes de Ludovico que não eram. 

Por volta deste período datam-se mais dois retratos atribuídos ao artista, o inacabado Retrato de um Músico, seu único retrato pictórico masculino e La Belle Ferronière, retrato de Lucrezia Crivelli, amante de Ludovico, encerrando um ciclo de retratos femininos na corte milanesa. 

Há uma referência documentada de uma encomenda, possivelmente do duque Ludovico Sforza, presente em uma lista que instruía um de seus funcionários, Marchesino Stanga, com tarefas que lhe exigiam atenção.

Uma das tarefas era que Apresse Leonardo, o florentino, a terminar o trabalho no refeitório delle Grazie, que ele começou, para que se ocupe em seguida do outro salão do refeitório delle Grazie; e que os contratos que ele assinou com sua mão sejam cumpridos, pois o obrigam a terminar o trabalho dentro do tempo que será combinado com ele — Ludovico Sforza A pintura mais famosa de Leonardo, da década de 1490, é A Última Ceia (1495–1498), pintada no refeitório dos padres dominicanos de Santa Maria delle Grazie em Milão.

É uma obra fundamental da história da Arte. A pintura apresenta a Última Ceia, partilhada por Jesus com seus discípulos, antes de sua captura e execução. Mostra o momento específico em que Jesus, de acordo com o relato bíblico, teria dito aos apóstolos que um deles o trairia. Leonardo mostra a consternação que esta afirmação provocou entre os doze seguidores de Jesus. O romancista Matteo Bandello observou Leonardo trabalhando na obra, e escreveu que Por diversas ocasiões, presenciei Leonardo dirigir-se logo pela manhã para se dedicar à pintura de A Última Ceia.

Costumava permanecer ali, desde o nascer do sol até o entardecer, sem deixar os pincéis descansarem de suas mãos, pintando sempre, sem comer nem beber. Depois, por três ou quatro dias, não voltava a tocar no trabalho” — Matteo Bandello Isto, de acordo com Vasari, estava além da compreensão do prior, que o atormentou até que Leonardo pedisse a intervenção de Ludovico. Vasari descreve como Leonardo, atormentado com a dúvida de sua capacidade de retratar os rostos de Cristo e do traidor Judas, disse ao duque que seria obrigado a usar o próprio prior como seu modelo. 

Quando terminada, a pintura foi aclamada como uma obra-prima do desenho e da caracterização, porém rapidamente deteriorou-se, a tal ponto que, cem anos depois de seu término, a obra foi descrita por um observador seu como “completamente arruinada”. Leonardo, em vez de usar a técnica mais confiável do afresco, utilizou-se da têmpera sobre uma superfície feita basicamente de gesso — o que resultou num material sujeito ao mofo e a esfarelar-se. Apesar disso, a pintura continua a ser uma das obras de arte mais reproduzidas de todos os tempos, e incontáveis cópias suas são feitas corriqueiramente, das maneiras mais variadas — de tapetes a camafeus. 

Explode em Milão a Segunda Guerra Italiana (1499–1504), e Ludovico Sforza é deposto. Após a destruição de seu modelo em argila para o Gran Cavallo pelas tropas francesas, Leonardo sente-se fortemente motivado a abandonar a cidade. Acompanhado de Salai e seu amigo Luca Pacioli parte, passando por Mântua e depois Veneza, sendo aí empregado como engenheiro e arquiteto militar, e, no ano seguinte, vai para Florença. 

Obras da década de 1500

Retorno a Florença, 1500–1506

Em Florença estão documentadas uma ou duas pequenas pinturas da Virgem com o Menino, trabalhadas por Leonardo e seu ateliê, por volta de 1501 em uma carta de Pietro da Novellara para Isabella d’Este, a grande dama do Renascimento protetora das artes em Mântua. A pintura da Virgem do Fuso — como no caso da Virgem dos Rochedos com mais de uma versão —, destinava-se ao secretário de Estado francês Florimond Robertet, sendo-lhe entregue, provavelmente, uma de suas versões em 1507, em Blois.

A Virgem do Fuso retrata uma cena de um forte vínculo entre mãe e filho — um amor maternal que se repetiria em pinturas como A Virgem e o Menino com Santa Ana —, o que leva a crer que a pintura fosse destinada a devoção privada. O nome da obra baseia-se no fuso de significado ambíguo presente na pintura. 

Ao longo dos tempos, vários críticos têm atribuído diversas interpretações ao fuso, mas o mais certo é mesmo que represente uma cruz, mas simplesmente, de forma simbólica. De fato, a enorme inteligência e criatividade de Leonardo permitiam-lhe tratar todos os assuntos que lhe provocavam algum interesse recorrendo a símbolos. Caso queira representar uma cruz, especialistas apontam duas hipóteses, sendo a mais provável a segunda.

Muitos creem, baseando-se nas cópias existentes, que o Menino mira o fuso (simbolicamente, a cruz) com uma devoção perplexa, reforçada pela expressão do seu olhar, que parece agradado com o objeto que tem em mãos. No entanto, em segunda hipótese está a ideia de que o Menino brinca com o fuso com alegria, o que seria considerado uma heresia na altura em que foi pintada, caso este represente uma cruz. A imagem de Jesus brincando com a cruz não seria aceita pela conservadora sociedade, e menos ainda pela Igreja e pelo Tribunal Inquisidor, o que reforçaria os fins de devoção privada. 

Atualmente, existem duas versões associadas a Leonardo, mas as atribuições não são unânimes. É provável que as pinturas sejam cópias do original de Leonardo, de autoria dos pupilos do artista, com ou sem o auxílio do mestre. 

Entre as obras realizadas por Leonardo na década de 1500 está um pequeno retrato, conhecido como Mona Lisa ou La Gioconda, “a risonha”. A pintura é famosa principalmente pelo sorriso elusivo no rosto da retratada, e pela qualidade misteriosa, possivelmente provocada pelo fato de que o artista sombreou sutilmente os cantos de sua boca e olhos, para que a natureza exata do sorriso não pudesse ser determinada.

Este sombreado peculiar, pelo qual a obra é conhecida, veio a ser chamado de sfumato (“esfumaçado”). Vasari, que se acredita ter conhecido a pintura apenas pela sua reputação, disse que o seu “sorriso era tão agradável que parecia ser divino, em vez de humano; e aqueles que o viram ficaram espantados ao descobrir que ele parecia tão vivo quanto o original”.

Outra característica observada nesta obra é o vestido sem adornos (uma maneira de evitar que o espectador não tenha a sua atenção desviada dos olhos e das mãos da retratada), o cenário de fundo, dramático, no qual o mundo parece estar no estado de fluxo contínuo, com uma coloração controlada, e a natureza extremamente suave da técnica de pintura, que emprega tintas a óleo aplicadas como se fossem têmpera, e misturadas de tal maneira na superfície que as pinceladas não podem ser percebidas.

Vasari expressou a opinião de que a maneira com que Leonardo fez a pintura faria mesmo “o mais confiante dos mestres (…) desesperar-se e desanimar.” O estado perfeito de conservação em que a pintura se encontra, e o fato de que não existem outros sinais de reparos relevantes ou pinturas sobrepostas é extremamente raro numa pintura desta idade. 

A identidade do modelo é motivo de controvérsias, acredita-se que seja Lisa del Giocondo (Lisa Gherardini), mulher de um comerciante florentino, Francesco del Giocondo, com base em notas escritas de Agostino Vespucci de 1503 em um livro impresso de Cícero, de 1477 (parte do acervo de livros datados da primeira fase da imprensa), encontradas na Biblioteca da Universidade de Heidelberg, confirmando a afirmação de Vasari, que identificou a pintura como “Monalisa” em sua publicação em 1550, em referência à Lisa del Giocondo.

Descobriu-se também que Lisa tinha sido mãe recentemente, e o retrato foi realizado possivelmente em comemoração da recente maternidade. Esta teoria é reforçada pela descoberta de um fino véu negro — utilizado pelas aristocratas toscanas durante, e alguns meses após a gestação —, durante pesquisas do Centro de Pesquisa e Restauração dos Museus da França (C2RMF) e o Conselho Nacional de Pesquisas do Canadá (NRC), quando a pintura foi submetida ao exame em infravermelho. 

Lillian Schwartz, cientista dos Laboratórios Bell, sugere que a Mona Lisa é, na verdade, um autorretrato de Leonardo, porém, vestido de mulher. Esta teoria baseia-se no estudo da análise digital das características faciais do rosto de Leonardo e os traços do modelo. Comparando um autorretrato de Leonardo com a mulher do quadro, verifica-se que as características dos rostos alinham-se perfeitamente. Essa hipótese ganha ênfase em O Código da Vinci, best-seller de Dan Brown. O quadro está exposto no Museu do Louvre desde 1804 e é a maior atração dos seis milhões de visitantes anuais do museu. 

Em 1506, o então governador francês do ducado de Milão, Charles d’Amboise, solicitou ao governo de Florença a permissão para a viagem de Leonardo a Milão, para resolver o problema de trabalhos pendentes. A permissão concedida era de três meses, entretanto, o artista acabou permanecendo na cidade mais tempo do que o previsto. 

Retorno a Milão, 1506–1513

Não se sabe ao certo a natureza da origem do trabalho inacabado, é sugerido tratar-se da Virgem dos Rochedos versão de Londres, em que, em uma sentença judicial datada de 27 de abril, era cobrada a finalização da pintura à Leonardo e Ambrogio de Pedris. Possivelmente, a pintura inicial tratava de uma cena de adoração ao Menino Jesus, já que exames em infravermelho realizados em 2005 revelaram uma pintura diferente oculta, por baixo da versão visível, entretanto, Leonardo retomou a composição da anterior Virgem dos Rochedos de 1483, com leves alterações, e figuras maiores e mais monumentais do que a versão anterior.

O fator da execução da mesma pintura é alvo de controvérsias, mas sabe-se que a versão de Londres foi a entregue, de fato, a confraria, mesmo provavelmente, ainda inacabada, e a anterior ficou em mãos de Leonardo. 

Leonardo teve uma estranha carreira, de não cumprimento de prazos, de encomendas inconcluídas ou mesmo jamais entregues, o que resultava em clientes insatisfeitos e frequentes cobranças. Destes trabalhos inacabados, parece existir um importante que retoma as posições oblíquas de pinturas anteriores como São Jerônimo no Deserto, e cuja origem não é necessariamente de uma encomenda. 

Nessa nova pintura, a coroação dos muitos desenhos e esboços do tema, abordado pelo artista em diversas ocasiões como em A Virgem, o Menino, Sant’Ana e São João Batista, Leonardo emprega novamente o sutil efeito do sfumato. A pintura retrata a Virgem Maria (cujo manto parece evocar a igualmente oblíqua Virgem Benois, uma de suas primeiras Madonas), seu filho Jesus e sua mãe Santa Ana, avó de Jesus, em uma cena privada e intimista. O que faz esta pintura incomum é que há duas figuras posicionadas obliquamente, sobrepostas. Maria está sentada no joelho de sua mãe, Santa Ana.

Ela se inclina para frente para segurar o menino Jesus que brinca (um tanto grosseiramente) com um cordeiro, sinal de seu próprio e vindouro sacrifício. Essa pintura copiada muitas vezes, foi influência para Michelangelo, Rafael e Andrea del Sarto, della Chiesa, Angela Ottino (1967), The Complete Paintings of Leonardo da Vinci, ISBN 0-1400-8649-8, Penguin e através deles Pontormo e Correggio. Na composição, Leonardo mostra novidades que serão adotadas principalmente pelos pintores venezianos Tintoretto e Veronese. Essa pintura assim como Mona Lisa acompanharia Leonardo desde então, entretanto devido a problemas, ficou por concluir. 

Últimas obras

Em 1512, Massimiliano Sforza, filho de Ludovico toma posse do ducado de Milão, após a expulsão das tropas francesas de Luís XII, e Leonardo viu-se sem patrono. Em 1513, o filho de Lourenço il Magnifico, Juliano de Médici, o então chefe do estado de Florença, fez um convite para Leonardo viajar a Roma, que estava sobre o controle do seu irmão mais velho, Giovanni (João), agora Papa Leão X. 

Em Roma, 1513–1516

Em 1513, Leonardo está hospedado no Palácio do Belvedere, no Vaticano, onde residiria até 1516, época em que seu rival Michelangelo e Rafael eram ativos em Roma. Leonardo então sente-se envolvido em crescentes problemas resultantes de seu afastamento da corte — incluindo intrigas com Michelangelo —, e depois é acusado e punido pelo papado devido aos seus estudos anatômicos, sendo proibido de continuar seus estudos por possíveis irregularidades sacrílegas, sendo que de seu patrono, Juliano, não houve nenhuma intervenção. Suas últimas pinturas datam deste período em que o avanço de um problema de articulação em uma das mãos o faz aos poucos perder as forças, sendo que após esse período não pinta mais.

Suas últimas pinturas são São João Batista em que novamente emprega o sutil efeito do Sfumato, Leda e o Cisne seu único nu, hoje perdido, e devido a fraqueza de sua mão, estava incapaz de dar continuidade a Virgem e o Menino com Santa Ana, que leva consigo, juntamente de outras pinturas como Mona Lisa para a França em 1516, onde viveria seus últimos anos acompanhado de Salai e Francesco Melzi, seu pupilo preferido. 

Cientista e inventor

O humanismo renascentista não via polaridades mutuamente exclusivas entre as ciências e as artes, sendo os estudos de Leonardo, em ciências e engenharia, tão impressionantes e inovadores como o seu trabalho artístico, gravados em cadernos compostos por cerca de 13 000 páginas de notas e desenhos que fundem arte e filosofia natural (precursora da ciência moderna). Estas notas foram feitas e mantidas cotidianamente durante toda a vida de Leonardo e suas viagens, como ele fez em suas observações contínuas do mundo ao seu redor. 

Os cadernos são, em sua maioria, escritos de forma invertida (da direita para a esquerda). A razão pode ter sido mais uma oportunidade prática, do que por razões de sigilo como muitas vezes é sugerido. Sendo Leonardo provavelmente canhoto, é possível que lhe era mais fácil escrever da direita para a esquerda. 

Suas anotações e desenhos mostram uma enorme gama de interesses e preocupações, algumas tão banais como as listas de compras e as pessoas que lhe deviam dinheiro, e outras tão intrigantes como desenhos de asas e sapatos para caminhar sobre a água. Há composições de pinturas, estudos de detalhes e planejamentos, estudos de rostos e gestos, de animais, bebês, dissecações, estudo de plantas, formações rochosas, piscinas de hidromassagem, máquinas de guerra, helicópteros e arquitetura.

Essas páginas de cadernos originalmente soltas, de diferentes tamanhos, distribuídas após sua morte, encontraram caminho em coleções importantes, como a Royal Library do Castelo de Windsor, o Museu do Louvre, a Biblioteca Nacional da Espanha, o Museu Vitória e Alberto, a Biblioteca Ambrosiana de Milão, que detém os doze volumes Codex Atlanticus, e a Biblioteca Britânica em Londres, que disponibilizou de forma on-line uma seleção a partir do seu caderno BL Arundel MS 263. O Codex Leicester é a única grande obra científica de Leonardo em mãos privadas. É propriedade de Bill Gates e é exibido uma vez por ano em diferentes cidades pelo mundo. 

Os estudos de Leonardo parecem ter sido destinados à publicação, porque muitas das folhas têm uma forma e ordem que facilitam a mesma. Em muitos casos, um único tópico, por exemplo, o coração ou o feto humano, é abordado em detalhes em palavras e imagens, em uma única folha. O motivo de eles não terem sido publicados durante a vida de Leonardo é desconhecido. 

Estudos científicos

Leonardo tentou entender os fenômenos e descrevendo em detalhe extremo, e não enfatizou experiências ou explicações teóricas. Ao longo de sua vida, planejou uma enciclopédia baseado em desenhos detalhados de tudo. Como não dominava o latim e a matemática, o Leonardo da Vinci cientista era ignorado pelos estudiosos contemporâneos, como evoca sua famosa frase uomo senza lettere, em que claramente se refere a tais limitações. Na década de 1490, estudou matemática com seu amigo, o matemático Luca Pacioli e preparou uma série de gravuras — incluindo o Homem Vitruviano — para ilustrar o livro de Pacioli, De Divina Proportioni, publicado em 1509. 

Parece que a partir do conteúdo de seus diários estava planejando uma série de tratados que seriam publicados em uma variedade de assuntos. Um tratado coerente sobre a anatomia foi dito ter sido observado durante a visita do cardeal secretário Louis D’Aragon, em 1517.

Aspectos do seu trabalho sobre os estudos de anatomia, luz e de paisagem foram montados para a publicação por seu pupilo Francesco Melzi e, finalmente publicado como Trattato della Pittura de Leonardo da Vinci, postumamente na França e na Itália em 1651, e na Alemanha em 1724, com gravuras baseadas em desenhos do pintor clássico Nicolas Poussin. Segundo Arasse, o tratado, que na França foi publicado em sessenta e duas edições em cinquenta anos, ocasionou que Leonardo fosse visto como o precursor do pensamento acadêmico francês sobre a arte. 

Uma análise recente e exaustiva de Leonardo como cientista por Frtijof Capra defende que Leonardo era um tipo fundamentalmente diferente de cientistas como Galileu, Newton e outros cientistas que o seguiram. Sua experimentação seguiu claro, abordagens com métodos científicos, e juntamente a sua teorização e hipotética voltada às artes, particularmente na pintura, o fizeram um Leonardo único e integrado, em que pontos de vista holísticos da ciência, fazem dele um precursor dos modernos sistemas teóricos e complexas escolas de pensamento. 

Anatomia

A formação de Leonardo da anatomia do corpo humano iniciou-se com o seu aprendizado no ateliê de Andrea del Verrocchio, seu mestre insistia que todos os alunos deviam aprender anatomia. Como artista, ele rapidamente se tornou mestre da anatomia topográfica, realizando muitos estudos de músculos, tendões e outras características anatômicas visíveis. 

Como um artista de sucesso, ele recebeu a permissão para dissecar cadáveres humanos no Hospital de Santa Maria Nuova, em Florença e mais tarde no hospital de Milão e Roma. Entre 1510 e 1511, colaborou em seus estudos o médico Marcantonio della Torre, e juntos elaboraram um trabalho teórico sobre a anatomia, em que Leonardo fez mais de 200 desenhos. Foi publicado apenas em 1680 (161 anos após sua morte), integrando o Trattato della Pittura. 

Leonardo desenhou muitos estudos sobre o esqueleto humano e suas partes, bem como os músculos e nervos, o coração e o sistema vascular, os órgãos sexuais, e outros órgãos internos. Ele fez um dos primeiros desenhos científicos de um feto no útero. Como artista, Leonardo observou e registrou cuidadosamente os efeitos da idade e da emoção humana sobre a fisiologia, estudando em particular os efeitos da raiva. Ele também desenhou muitas figuras importantes que tinham deformidades faciais ou sinais de doença.

Ele também estudou e desenhou a anatomia de animais diversos, bem como, dissecando vacas, aves, macacos, ursos e rãs, e comparava seus desenhos em sua estrutura anatômica com o dos seres humanos. Ele também fez uma série de estudos de cavalos. 

Engenharia e invenções

Durante sua vida, Leonardo era valorizado como um engenheiro. Em uma carta a Ludovico Sforza, o duque de Milão, afirmou ser capaz de criar todos os tipos de máquinas, tanto para a proteção de uma cidade, quanto para o cerco. Quando ele fugiu para Veneza em 1499, encontrou emprego como engenheiro e arquiteto militar e concebeu um sistema de barricadas móveis para proteger a cidade de um ataque naval. Ele também tinha um esquema para desviar o fluxo do rio Arno, um projeto no qual também trabalhou Nicolau Maquiavel. Os cadernos de Leonardo incluem um vasto número de invenções, alguns de possível construção, outros impossíveis. Eles incluem instrumentos musicais, bombas hidráulicas, canhões, entre outros. 

Em 1502, Leonardo da Vinci produziu um desenho de uma ponte como parte de um projeto de engenharia civil para o sultão Bajazeto II de Istambul. Nunca foi construída, mas a visão de Leonardo foi ressuscitada em 2001 quando uma ponte menor, baseada no projeto dele, foi construída na Noruega.

Em 17 de maio de 2006, o governo turco decidiu construir a ponte de Leonardo para medir o Corno de Ouro. Por maior parte de sua vida, Leonardo foi fascinado pelo fenômeno de voo, produzindo muitos estudos detalhados do voo dos pássaros, incluindo o seu Codex sobre o Voo dos Pássaros de 1505, bem como planos para várias máquinas voadoras, tentou aplicar seus estudos para os protótipos que desenhou, o primeiro batizado de SWAN DI VOLO (Cisne voador), segundo especialistas é de 1510, inclusive um helicóptero movimentado por quatro homens, e um planador cuja viabilidade já foi provada. 

Legado

Em vida, a fama de Leonardo foi tamanha que o rei da França levou-o como um troféu, o mantendo na velhice, e o tinha preso nos braços quando morreu. O interesse por Leonardo nunca afrouxou. As multidões ainda fazem filas para ver suas obras mais famosas, seu desenho mais famoso, hoje é estampa de camisetas e escritores, como Vasari, continuam a maravilhar-se com seu gênio e especular sobre sua vida privada e, particularmente, sobre o que uma pessoa tão inteligente realmente acreditava intimamente. 

Giorgio Vasari, na edição ampliada de Le vite de’ più eccellenti pittori, scultori e architettori, 1568, apresenta o seu capítulo sobre Leonardo da Vinci com as seguintes palavras: No curso natural dos acontecimentos, muitos homens e mulheres nascem com talentos notáveis, mas, ocasionalmente, de uma maneira que transcende a natureza, uma única pessoa é maravilhosamente dotada pelo céu com a beleza, graça e talento em abundância tal que ele deixa os outros homens para trás, todas as suas ações parecem inspiradas e, na verdade tudo o que faz claramente vem de Deus e não da habilidade humana.

Todos reconhecem que isso era verdade em Leonardo da Vinci, um artista de beleza física excepcional, que mostrou infinita graça em tudo que ele fez e que cultivou seu gênio tão brilhante que todos os problemas que estudou, ele resolveu facilmente. 

A admiração por Leonardo continuou comandada a partir de pintores, críticos e historiadores, refletida em muitas outras homenagens escritas. Baldassare Castiglione, autor de Il Cortegiano (“O Cortesão”), escreveu em 1528: (…) Outro dos maiores pintores nesse mundo olha para baixo sobre esta arte em que ele é inigualável (…),enquanto o biógrafo conhecido como “Anônimo Gaddiano”, escreve em 1540: Seu gênio era tão raro e universal, que pode-se dizer que a natureza fez um milagre em seu nome (…).

O século XIX trouxe uma admiração especial pelo gênio de Leonardo, fazendo com que Henry Fuseli escrevesse em 1801: Tal foi o alvorecer da arte moderna, quando Leonardo da Vinci quebrou adiante com um esplendor que afastasse a excelência anterior: formada por todos os elementos que constituem a essência do gênio (…) Isto é ecoado por A. E. Rio, que escreveu em 1861: Ele elevou-se acima de todos os outros artistas com a força e a nobreza de seus talentos. 

Por volta do século XIX, os cadernos de Leonardo já eram conhecidos, bem como suas pinturas. Hippolyte Taine escreveu em 1866: Não pode haver no mundo um exemplo de outro gênio tão universal, tão incapaz de cumprimento, tão cheio de desejo para o infinito, tão naturalmente refinado, tanto à frente do seu século, e os séculos seguintes. 

O famoso historiador de arte Bernard Berenson escreveu em 1896: Leonardo é o artista, um dos quais pode-se dizer perfeito literalmente: nada do que tocou se transformou, se não em uma coisa de beleza eterna. Quer seja a seção transversal de um crânio, a estrutura de uma erva daninha, ou um estudo de músculos, ele, com seu sentimento de linha e de luz e sombra, sempre transformou isso em vida, comunicando valores. 

Veja mais:

O interesse pelo gênio de Leonardo continuou inabalável; especialistas estudam e traduzem seus escritos, analisam suas pinturas com técnicas científicas, discutem sobre atribuições e buscam por trabalhos que nunca foram encontrados. Liana Bortolon, escrevendo em 1967, disse: Por causa da multiplicidade de interesses que lhe incentivou a buscar cada campo do conhecimento (…) Leonardo pode ser considerado, muito justamente, ter sido um gênio universal por excelência, e com todas as implicações inerentes a esse inquietante termo. O homem é como um incômodo hoje, enfrentado como o gênio, como era no século XVI, cinco séculos se passaram, mas continuamos a ver Leonardo com temor.

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Leonhard Euler https://canalfezhistoria.com/leonhard-euler/ https://canalfezhistoria.com/leonhard-euler/#respond Mon, 17 Mar 2025 00:42:36 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6187 Leonhard Paul Euler 15 de abril de 1707 – São Petersburgo, 18 de setembro de 1783, foi um matemático e físico suíço de língua alemã que passou a maior parte de sua vida na Rússia e na Alemanha. Fez importantes descobertas em várias áreas da matemática como o cálculo e a teoria dos grafos. Também introduziu muitas das terminologias da matemática moderna e da notação matemática, particularmente na análise matemática, como também no conceito de função matemática. É também reconhecido por seus trabalhos na mecânica, dinâmica de fluidos, óptica, astronomia e teoria da música. 

Euler é considerado um dos mais proeminentes matemáticos do século XVIII e também é considerado como um dos grandes matemáticos de todos os tempos, assim como Isaac Newton, Arquimedes e Carl Friedrich Gauss. Foi um dos mais prolíficos matemáticos, calcula-se que toda a sua obra reunida teria entre 60 e 80 volumes de quartos. Viveu a maior parte da vida em São Petersburgo, na Rússia, e em Berlim, que na época era capital da Prússia.

Uma declaração atribuída a Pierre-Simon Laplace manifestada sobre Euler na sua influência sobre a matemática: “Leiam Euler, leiam Euler, ele é o mestre de todos nós”.

Primeiros anos

Leonhard Paul Euler nasceu no dia 15 de abril de 1707 em Basileia, na Suíça, filho do pastor calvinista Paul Euler e Margaret Brucker, filha de um pastor. Teve duas irmãs mais novas, Anna Maria e Maria Magdalena. Depois do nascimento de Leonhard, sua família mudou da cidade de Basiléia para a cidade de Riehen, onde viveu a maior parte de sua infância. Paul Euler era amigo da família Bernoulli; Johann Bernoulli, que era então o matemático mais importante da Europa, foi a ser a influência mais relevante da vida do jovem Leonhard. 

Sua educação primeira foi dada por seu pai Paul que lhe ensinou matemática. Em 1720, aos treze anos, Euler ingressou na pequena Universidade de Basileia que possuía um famoso departamento de estudos da matemática liderada por Johann I Bernoulli, irmão de Jacob Bernoulli. Johann recusou-se a dar aulas particulares a Euler, oferecendo então um valioso conselho de como estudar por conta própria.

Em 1722, recebe o grau de Mestre em Artes, e no seu exame deu um discurso em latim comparando as filosofias de Descartes e Newton. Nesta altura, já recebia, aos sábados à tarde, lições de Johann Bernoulli, que rapidamente descobriu o seu talento para a matemática. Euler nesta altura estudava teologia, grego e hebraico, pela vontade de seu pai – para mais tarde se tornar pastor. Porém Johann Bernoulli resolveu intervir e convenceu Paul Euler que o seu filho estava destinado a ser um grande matemático.

Em 1726, Euler completou a sua dissertação sobre propagação do som intitulada de De Sono. Na época estava tentando, sem sucesso, obter um cargo na Universidade de Basileia. Em 1727 entrou pela primeira vez na competição premiada da Academia de Paris; o problema do ano era encontrar a melhor maneira de colocar os mastros num navio. Ganhou o segundo lugar, perdendo para Pierre Bouguer, mais tarde conhecido como “o pai da arquitetura naval”. Euler, entretanto, ganharia o prêmio anual doze vezes. 

São Petersburgo

Na época os dois filhos de Johann Bernoulli, Daniel e Nicolaus, foram trabalhar na Academia Russa de Ciências. No dia 10 de julho de 1726 Nicolaus morreu de apendicite após viver um ano na Rússia, e quando Daniel assumiu o cargo do seu irmão na divisão de matemática e física da universidade, ele indicou a vaga em fisiologia que ele tinha desocupado para ser preenchida por seu amigo Euler.

Em novembro de 1726 Euler aceitou ansiosamente a oferta, porém atrasou durante a viagem para São Petersburgo enquanto ele tentava uma vaga como professor de física na Universidade de Basileia. Leonhard chegou em São Petersburgo no dia 17 de maio de 1727. Foi promovido a assistente do departamento médico da academia para uma vaga no departamento de matemática. Apresentou com Daniel Bernoulli com quem frequentemente trabalhava em uma estreita parceria. Euler aprendeu russo e instalou-se em São Petersburgo. Também aceitou um trabalho adicional como médico na Marinha Russa. 

A Academia de S. Petersburgo, sob a política de Pedro I da Rússia, tinha intenção de melhorar a educação na Rússia e corrigir a defasagem no campo das ciências do país em relação à Europa Ocidental. Como resultado, a instituição criou um programa de internalização, com o objetivo de atrair estudantes estrangeiros como Euler. A instituição possuía vultosos recursos financeiros e uma biblioteca abrangente esboçadas a partir das bibliotecas privadas da nobreza e do príncipe Pedro.

Poucos estudantes foram inscritos na academia para diminuir a grade curricular e enfatizar a pesquisa, oferecendo para o corpo docente tempo e liberdade para prosseguir o questionamento científico. A benfeitora da Academia, Catarina I da Rússia, que tinha continuado a política progressiva da gestão anterior, morreu no dia em que Euler foi viajar. A aristocracia, em seguida, teve mais poder durante os dois anos de mandato do Pedro II. A nobreza, desconfiada dos cientistas estrangeiros da Academia, cortou-lhes o financiamento e causou dificuldades para Euler e seus colegas. 

As condições melhoram um pouco depois da morte de Pedro II, e Euler tornou-se professor de física em 1731 pela sua classificação no ranking da escola. Dois anos mais tarde, Daniel Bernoulli, que foi perseguido com a censura e pela hostilidade que enfrentou em St. Petersburgo, partiu para Basileia, e, assim, Euler o substituiu como professor de Matemática. 

No dia 7 de janeiro de 1734, Leonhard Euler casa com Katharina Gsell, filha de Georg Gsell, um pintor da Academia Gymnasium. O jovem casal construiu uma casa perto do rio Neva. Tiveram treze filhos, dos quais apenas cinco sobreviveram à infância. 

Berlim

Preocupado com a contínua turbulência na Rússia, Euler deixou São Petersburgo em 19 de Julho de 1741, para assumir uma posição em Berlim que tinha sido ofertada por Frederico II da Prússia. Viveu por vinte e cinco anos em Berlim, onde escreveu 380 artigos. Em Berlim publicou dois de seus mais renomados trabalhos: A Introductio in analysin infinitorum, um texto sobre funções matemáticas publicado em 1748 e o Institutiones calculi differentialis, publicado em 1755 sobre cálculo diferencial.

No mesmo ano foi eleito um membro estrangeiro da Academia Real das Ciências da Suécia. Entretanto, é convidado para ser tutor de Friederike Charlotte of Brandenburg-Schwedt, a Princesa de Anhalt-Dessau e sobrinha de Frederico II, o Grande. Euler escreveu mais de 200 cartas dirigidas à princesa, que mais tarde foram compiladas num volume best-selling intitulado Cartas de Euler sobre diferentes assuntos da Filosofia natural para uma Princesa Alemã.

Este trabalho incorpora exposições sobre vários assuntos pertencentes à física e matemática, dando também a conhecer as perspectivas religiosas e a própria personalidade do seu autor. Este livro veio a ser o mais lido de todas as suas obras matemáticas, e foi publicado dentro da Europa e nos Estados Unidos. A popularidade das “Cartas” atesta a capacidade de Euler para comunicar sobre assuntos científicos de maneira eficaz para um público leigo, uma rara habilidade para um cientista dedicado à pesquisa. 

Apesar da imensa e impressionante contribuição para a Academia de Berlim, provocou a ira de Frederico II, o que o forçou a abandonar Berlim. O rei da Prússia tinha um grande círculo social de intelectuais em sua corte e ele permaneceu um matemático sem sofisticações e informal, tanto em seu trabalho como na vida pessoal. Euler foi simples, religioso devoto que nunca questionou a existência de ordens ou crenças convencionais, em muitas situações, opositor direto de Voltaire – que tinha uma posição privilegiada na corte de Frederick.

Euler não era um debatedor qualificado e muitas vezes fez dela um ponto para discutir assuntos sobre os quais ele sabia pouco, fazendo dele o alvo frequente de sagacidade de Voltaire. Frederick também comentou decepcionado com Euler as habilidades práticas de engenharia: 

Citação: Eu quero ter um jato de água em meu jardim: Euler calculava a força necessária das rodas para transportar a água para o reservatório, de onde deve voltar por meio de canais, até finalmente jorrar em Sanssouci. Meu moinho foi geometricamente construído e não poderia levantar um gole de água mais perto do que a quinze passos até o reservatório. A vaidade das vaidades! A vaidade da geometria! 

Problemas na visão

A acuidade visual de Euler piorou ao longo de sua carreira matemática. Em 1738, três anos depois de sofrer uma febre quase fatal em 1735, tornou-se quase cego do olho direito, mas, ao invés de se lamentar, apresentou um trabalho meticuloso sobre cartografia para a Academia de São Petersburgo. A visão de Euler se agravou durante a sua estada na Alemanha, na medida em que Frederico II da Prússia se referia a ele como “Cyclops”.

Euler mais tarde desenvolveu uma catarata no olho esquerdo, deixando-o quase totalmente cego poucas semanas depois de sua descoberta em 1766. No entanto, sua condição parece ter pouco efeito sobre sua produtividade, compensando com suas habilidades de cálculo mental e de memória fotográfica. Por exemplo, Euler conseguia repetir a Eneida de Virgílio, do começo ao fim, sem hesitação. Com a ajuda de seus escribas, a produtividade de Euler em muitas áreas de estudo, na verdade, aumentou. Produziu, em média, um artigo matemático durante todas as semanas do ano 1775. 

Retorno à Rússia e falecimento

Em 1760, com o alastramento da Guerra dos Sete Anos, a fazenda de Euler em Charlottenburg foi devastada pelo avanço das tropas russas. Como punição, o general Ivan Petrovich Saltykov indenizou pelos danos causados na propriedade de Euler, depois da tsarina Isabel da Rússia adicionar um pagamento de 4000 rublos – um valor exorbitante na época. A situação política russa se estabilizaria após a ascensão de Catarina, a Grande ao trono, quando em 1766, Euler aceita um convite para voltar a Academia de St. Petersburgo.

Suas condições foram bastante exorbitantes – um salário anual de 3000 rublos, uma pensão para a sua esposa e a promessa de cargos de alto escalão para os seus filhos. Todas destas condições foram atendidas. Viveu o resto de sua vida na Rússia. Contudo, sua segunda estadia no país foi marcada por uma tragédia: Um incêndio em Santo Petersburgo em 1771 destruiu a sua casa, e quase o matou. Em 1773, faleceu a sua esposa Katharina após 40 anos de casamento. 

Três anos depois da morte de sua esposa, Euler casou com sua meia-irmã, Salome Abigail Gsell (1723–1794). Este casamento durou até o fim de sua vida. Em 1782 foi eleito membro honorário estrangeiro da Academia de Artes e Ciências dos Estados Unidos.

Em Santo Petersburgo no dia 18 de setembro de 1783, depois de um almoço com sua família, Leonhard estava discutindo sobre a descoberta de um novo planeta da época, chamado Urano e sua órbita com o também acadêmico Anders Johan Lexell, quando sucumbiu por causa de uma hemorragia cerebral. Morreu algumas horas depois. Jacob von Staehlin-Storcksburg escreveu no obituário de Leonard para a Academia de Santo Petersburgo e o matemático russo Nicolaus Fuss, um de seus discípulos, escreveram uma detalhada eulogia, em que ele encomendou uma assembléia em memória. Em sua eulogia para a Academia Francesa, o filósofo e matemático francês marquês de Condorcet, escreveu: 

Foi enterrado próximo de Katharina no cemitério luterano de Smolensk na Ilha de Vassiliev. Em 1785, a Academia de Ciências da Rússia pôs um busto de mármore de Leonhard Euler em um pedestral próximo à reitoria e, em 1837, esculpiram uma lápide para Euler. Para comemorar os duzentos e cinquenta anos do nascimento dele, a lápide foi transferida em 1956, junto com seus restos mortais, para a necrópole do século XVIII no monastério Alexander Nevsky, o cemitério Tikhvin. 

Contribuições para a matemática 

Euler trabalhou em quase todas as áreas da matemática: geometria, cálculo infinitesimal, trigonometria, álgebra e teoria dos números, bem como deu continuidade na física newtoniana, teoria lunar e outras áreas da física. É uma figura seminal na história da matemática, e suas obras, muitas das quais são de interesse fundamental, ocupam entre 60 e 80 volumes. O nome de Euler está associado a um grande número de temas. Euler é o único matemático que tem dois números em homenagem a ele: O número e, aproximadamente igual a 2,71828, e a constante de Euler-Mascheroni γ (gama) por vezes referida apenas como “constante de Euler”, aproximadamente igual a 0,57721. Não se sabe se γ é racional ou irracional.

Notação matemática

Euler introduziu e popularizou várias convenções de notação matemática através de seus numerosos e amplamente divulgados livros didáticos. Mais notavelmente, introduziu o conceito de uma função, e foi o primeiro a escrever f(x) para denotar a função f aplicada ao argumento x. Também introduziu a notação moderna para as funções trigonométricas, a letra e para a base do logaritmo natural (agora também conhecido como número de Euler), a letra grega Σ (sigma maiúsculo) para somatórios e a letra i para representar a unidade imaginária. O uso da letra grega π (pi) para designar a razão entre a circunferência de um círculo e o seu diâmetro também foi popularizado por Euler, embora não tenha se originado com ele. 

Análise

O desenvolvimento do cálculo infinitesimal estava na vanguarda da pesquisa matemática do século XVIII, e os amigos, de Euler, da Família Bernoulli – foram responsáveis por grande parte do progresso inicial no campo. Graças à sua influência, estudar cálculo tornou-se o foco principal do trabalho de Euler. Embora algumas das provas de Euler não sejam aceitáveis para os padrões modernos de rigor matemático (em particular a sua dependência em relação ao princípio da generalidade da álgebra), suas ideias levaram a muitos grandes avanços. Euler é bem conhecido na análise pela sua utilização frequente e desenvolvimento da série de potência, a expressão de funções como somas de um número infinito de termos, tais como: 

Notavelmente, Euler provou diretamente as expansões em séries de potência para e e a função da tangente inversa. (Prova indireta através da técnica de séries de potência inversa foi dada por Newton e Leibniz. (Entre 1670 e 1680) Seu uso ousado da série de potência lhe permitiu resolver o famoso problema de Basileia em 1735 (ele forneceu um argumento mais elaborado em 1741): 

Euler introduziu o uso da função exponencial e logaritmo em provas analíticas. Descobriu maneiras de expressar diversas funções logarítmicas utilizando séries de potência, e conseguiu definir logaritmos para números negativos e complexos, ampliando consideravelmente o leque de aplicações matemáticas de logaritmos. Também definiu a função exponencial para números complexos, e descobriu a sua relação com as funções trigonométricas. 

Para qualquer número real φ (tida como radianos), a fórmula de Euler afirma que o complexo satisfaz a função exponencial. 

Um caso especial da fórmula acima é conhecida como a identidade de Euler, chamada de “a fórmula mais notável em matemática”, por Richard Feynman, por seus usos individuais das noções de adição, multiplicação, exponenciação, e igualdade, e os usos individuais da constantes 0, 1, e, i e π. Em 1988, os leitores da Mathematical Intelligencer votaram como sendo “a fórmula matemática mais bela de todos os tempos”.

No total, Euler foi responsável por três das cinco melhores fórmulas nessa enquete. Pafnuti Tchebychev escreveu: “Euler foi o início de todas as pesquisas que compõem a teoria geral dos números.” A maioria dos matemáticos do século XVIII se dedica ao desenvolvimento de análise, mas Euler carregava a antiga paixão aritmética ao longo de sua vida. Por causa de seu interesse na teoria dos números, a mesma foi revivida até o final do século. 

Euler continuou com suas pesquisas feitas anteriormente (sob influência de Diophantus), uma série de hipóteses separadas sobre os números naturais. Euler provou rigorosamente essas hipóteses, muito generalizadas, e as combinou em uma interessante teoria dos números. Introduziu na matemática “função de Euler” crítica e formulada com a ajuda do “teorema de Euler.” Euler criou a teoria dos resíduos quadráticos e comparações, apontando para o último critério de Euler. 

Euler Introduziu a função zeta de Riemann, uma generalização, que mais tarde recebeu o nome de Bernhard Riemann verdadeiro. Euler provocou a sua expansão: 

onde o produto é feita sobre todos os primos, Devido a isso, provou que a soma do inverso simples diverge. 

A fórmula de De Moivre é uma conseqüência da fórmula de Euler. Além disso, Euler elaborou a teoria do nível superior das funções transcendentes pela introdução da função gama e introduziu um novo método de solução das funções quárticas. Também descobriu um meio de calcular integral com limites complexos, o prenúncio do desenvolvimento da análise complexa moderna. Ele, igualmente, inventou o cálculo das variações incluindo suas melhores soluções pela Equação de Euler-Lagrange. Euler iniciou também o uso de métodos de análise para resolução dos problemas da teoria dos números. 

Teoria dos números

O interesse de Euler na teoria dos números pode ser atribuído à influência de Christian Goldbach, seu amigo na Academia de São Petersburgo. Muitos dos primeiros trabalhos de Euler na teoria dos números foram baseadas nas obras de Pierre de Fermat. Euler desenvolveu algumas das ideias de Fermat, e refutou algumas das suas conjeturas. 

Euler ligou a natureza da distribuição privilegiada, com ideias de análise. Conseguiu provar que a soma dos recíprocos dos primos divergem. Ao fazer isso, descobriu a conexão entre a função zeta de Riemann e os números primos, o que é conhecido como a fórmula do produto Euler para a função zeta de Riemann. 

Euler provou identidades de Newton, Pequeno teorema de Fermat, teorema de Fermat em somas de dois quadrados, e fez contribuições distintas ao Teorema de Fermat-Lagrange. Inventou também a função φ totiente (n). Usando as propriedades desta função, generalizou o teorema de Fermat ao que é hoje conhecido como o teorema de Euler. Contribuiu de forma significativa para a teoria dos números perfeitos, que havia fascinado os matemáticos desde Euclides. Euler também conjeturou a lei da reciprocidade quadrática. O conceito é considerado como um teorema fundamental da teoria dos números, e suas ideias pavimentaram o caminho para o trabalho de Carl Friedrich Gauss. 

Teoria dos grafos

Em 1736, Euler resolveu o problema conhecido como sete pontes de Königsberg. A cidade de Königsberg, Prússia, foi construída no rio Pregel, e incluiu duas grandes ilhas que estavam conectadas entre si e ao continente por sete pontes. O problema era o de decidir se é possível seguir um caminho que atravessa cada uma das pontes exatamente uma vez e retornar ao ponto de partida. Esta solução é considerada como sendo o primeira teorema da teoria dos grafos, especificamente da teoria gráfica planar. 

Euler também descobriu a fórmula V – E + F = 2 relacionando o número de vértices, arestas e faces de um poliedro convexo e, portanto, de um grafo planar. A constante nesta fórmula é agora conhecida como a característica de Euler para o gráfico (ou objeto de cálculo), e está relacionada ao gênero do objeto. O estudo e generalização desta fórmula foram, especificamente através de Augustin-Louis Cauchy, Simon Antoine Jean L’Huillier, estando na origem da topologia. 

Matemática aplicada

Alguns dos maiores sucessos de Euler foram na resolução de problemas do mundo real analiticamente, e em descrever inúmeras aplicações do números de Bernoulli, série de Fourier, diagramas de Venn, os números de Euler, as constantes e e pi, frações contínuas e integrais. Integrou cálculo diferencial de Leibniz com o de Newton, e as ferramentas que tornaram mais fácil de aplicar o cálculo de problemas físicos desenvolvidos. Fez grandes progressos na melhoria da aproximação numérica de integrais, inventando o que hoje é conhecido como aproximações de Euler. As mais notáveis dessas aproximações são o método de Euler e a fórmula de Euler. Também facilitou o uso de equações diferenciais, em particular, a introdução da constante de Euler-Mascheroni. 

Um dos interesses mais incomuns de Euler foi a aplicação de ideias matemáticas na música. Em 1739, escreveu o Tentamen novae theoriae musicae, na esperança de, eventualmente, incorporar a teoria musical como parte da matemática. Esta parte de seu trabalho, no entanto, não recebeu grande atenção e já foi descrita como muito matemática para músicos e demasiado musical para matemáticos. 

Trabalhos na física e na astronomia 

Euler ajudou a desenvolver o modelo de viga de Euler-Bernoulli, que se tornou um marco da engenharia. Além de aplicar com sucesso as suas ferramentas analíticas para problemas em mecânica clássica, Euler também aplicou essas técnicas para problemas celestes. Seu trabalho em astronomia foi reconhecido por uma série de prêmios da Paris Academy ao longo de sua carreira. Suas realizações incluem determinar com grande precisão as órbitas de cometas e outros corpos celestes, compreender a natureza dos cometas, e calcular a paralaxe do Sol. Seus cálculos também contribuíram para o desenvolvimento de tabelas de longitude precisas. 

Além disso, Euler fez importantes contribuições na óptica. Discordou da teoria corpuscular de Newton da luz nos Opticks, que era então a teoria prevalecente. Seus trabalhos sobre óptica em 1740 ajudaram a garantir que a teoria ondulatória da luz proposta por Christiaan Huygens se tornasse o modo dominante de pensamento, pelo menos até o desenvolvimento da teoria quântica da luz. Em 1757 publicou um importante conjunto de equações, que agora são conhecidas como as Equações de Euler. 

Ângulos de Euler

Em 1765, em seu livro “A Teoria do movimento dos corpos sólidos”, Euler matematicamente descreveu a cinemática de um corpo rígido de tamanho finito. Introduziu na matemática o teorema de Euler de ângulos de rotação. Seu nome também é usado na fórmula de cinemática da distribuição de velocidade em um sólido, conhecido como as equações (Euler – Poisson), dinâmica de corpo rígido, um dos três casos gerais integráveis no problema da dinâmica de um corpo rígido com um ponto fixo.

Euler generalizou o princípio da mínima ação, um conjunto bastante confuso e apontou para a sua importância fundamental na mecânica. Infelizmente, não revelou a natureza do princípio variacional, mas, no entanto, atraiu a atenção de físicos, que mais tarde descobriram que o seu papel fundamental na natureza era válido. 

Euler trabalhou no campo da mecânica celeste. Lançou as bases da teoria de perturbações, mais tarde completadas por Pierre Simon Laplace, e desenvolveu uma teoria muito precisa do movimento da Lua. Esta teoria provou ser adequada para resolver o problema urgente de determinar a longitude no mar. Principais obras de Euler nesta área: 

• “A teoria do movimento da Lua”, 1753.
• “A teoria do movimento dos planetas e cometas” (latim Theoria motus Planetarum et cometarum), 1774.
• “A nova teoria do movimento da Lua”, 1772.
Euler estudou o campo gravitacional não só esférico, mas os corpos elipsoidais, o que representa um significativo passo em frente 

Lógica

Euler é também creditado por utilizar as curvas fechadas para ilustrar os argumentos do silogismo em 1768. Estes diagramas são conhecidos como diagramas de Euler. Um Diagrama de Euler é uma forma diagramática de representar conjuntos e suas relações. Este diagrama consiste de curvas fechadas simples (geralmente círculos) no plano que representam os conjuntos. Cada curva de Euler divide o plano dentro de duas regiões ou “zonas”: o interior, simbologicamente representa os elementos do conjunto, e o exterior que representa todos os elementos que não são membros do conjunto.

As partes das formas das curvas não são importantes: o significado do diagrama é em como eles se coincidem. As relações espaciais entre as fronteiras entre regiões de cada curva (sobrepõem, contenção ou nem um dos casos) correspondem às relações aos conjuntos teóricos (interseção, subconjunto e conjuntos disjuntos). Desde então, eles têm também sido adotados por outros campos curriculares, como leitura. 

Frederico II, o Grande e Voltaire

Porém Euler tinha caído em desgraça junto de Frederico II, que lhe chamava “ciclope” – numa referência ao seu defeito físico. Já desde 1735, Euler sofria de alguns problemas de saúde, como febres altas. Em 1738, perdeu a visão do olho direito, devido ao excesso de trabalho. Mas tal infelicidade não diminuiu em nada a sua produção Matemática. 

Euler nunca teve problemas em produzir trabalhos de diferentes géneros, como por exemplo, material para livros-textos para as escolas russas. Geralmente escrevia em latim, mas também em francês, embora a sua língua de origem fosse o alemão. Tinha uma enorme facilidade para línguas, como bom suíço que era, o que lhe facilitava muito a vida nas diversas viagens que fazia, como era costume dos matemáticos do século XVIII. Em 1749, depois de 7 anos de trabalho e quase cem anos após a morte de Fermat, conseguiu provar a teoria de Fermat. 

Em 1759, com a morte de Maupertius (1698-1759), o lugar de diretor da Academia foi dado a Euler. Ao saber que outro cargo, o de presidente, tinha sido oferecido ao matemático d’Alembert, com quem tinha tido algumas divergências sobre questões científicas, Euler ficou bastante perturbado. Apesar de d’Alembert não ter aceite o cargo, Frederico continuou a implicar com Euler, que farto de tal situação, aceitou o convite feito por Catarina, a Grande de voltar para a Academia de S. Petersburgo.

Euler e d’Alembert

O trabalho entre Euler e d’Alembert sempre convergiu no mesmo sentido. Os seus interesses eram quase os mesmos, apesar de ter havido alguma controvérsia entre eles sobre o problema das membranas vibrantes, em 1757, cuja solução da equação de Bessel, Euler conseguiu obter, o que ocasionou um afastamento. Mas, com a teoria dos números houve um grande apoio por parte de d’Alembert a Euler. A contribuição de Euler para a teoria dos logaritmos não se restringiu à definição de expoentes, como usamos hoje. Trabalhou, também, no conceito de logaritmo de números negativos. 

Enquanto se mantinha ocupado a pesquisar matemática em Berlim, d’Alembert pesquisava em Paris. Em 1747, Euler escreveu a este matemático explicando corretamente a questão dos logaritmos dos números negativos. Mas ao contrário do que seria de se esperar, a fórmula formulada por Euler, válida para qualquer ângulo (em radianos), não foi compreendida por Bernoulli nem por d’Alembert pois, para estes, os logaritmos de números negativos eram reais, o que não é verdade já que se tratam de números imaginários puros. 

Através da sua identidade – mais tarde conhecida como Igualdade de Euler – é possível observar que os logaritmos de números complexos, reais ou imaginários, também são números complexos. Usando as identidades de Euler é também possível expressar quantidades como sen(1 + i) ou cos(i), na forma usual para números complexos. Desta maneira, vê-se que ao efetuar operações transcendentes elementares sobre os números complexos, os resultados são números complexos. Assim sendo, Euler foi capaz de demonstrar que o sistema de números complexos é fechado sob as operações transcendentes elementares, enquanto d’Alembert sugerira que o sistema de números complexos era algebricamente fechado. 

Euler e Fermat

Tanto Fermat como Euler sentiram-se bastante interessados pela teoria dos números. Embora não haja qualquer livro sobre este assunto, Euler escreveu cartas e artigos sobre vários aspetos desta teoria. Entre elas encontram-se as conjeturas apresentadas por Fermat, que foram derrubadas por Euler. Duas dessas conjeturas foram: 

• Os números da forma 22n + 1 são sempre primos;
• Se p é primo e a um inteiro, então ap – a é divisível por a.

A primeira foi derrubada em 1732 com o auxílio do seu domínio em computação, evidenciando que 225 + 1 = 4294967297 é fatorizável em 6700417 * 641. No entanto, no recurso a um contra-exemplo para deitar por terra a segunda conjetura, Euler também errou, apesar do erro só ter sido descoberto em 1966, dois séculos depois e com o auxílio de um computador. 

Euler também realizou a demonstração de uma conjetura bastante conhecida, denominada como Pequeno teorema de Fermat. Tal demonstração foi apresentada numa publicação em 1736, denominada Commentarii. Posteriormente, demonstrou uma afirmação mais geral do Pequeno teorema de Fermat, que veio a chamar-se Função de Euler.

Mas, contrariando o que seria esperado, Euler não foi capaz de demonstrar o Último Teorema de Fermat, embora provasse a impossibilidade de soluções inteiras de xn + yn = zn para n = 3. Em 1747, definiu mais 27 números amigáveis, que se juntaram aos três já conhecidos por Fermat. Mais tarde aumentou o número para 60. Euler também provou que todos os números perfeitos pares são da forma dada por Euclides, 2n-1(2n – 1), onde 2n – 1 é primo. Se existe ou não um número ímpar perfeito foi uma questão levantada por Euler e Goldbach, através de correspondência, ainda hoje sem resposta.

Comemorações

Euler foi destaque na sexta série de notas de 10 francos suíços e em numerosos selos suíços, alemães e russos. O asteroide 2002 Euler foi nomeado em sua honra. Também é comemorada pela Igreja Luterana em seu Calendário dos Santos em 24 de maio, ele era um devoto cristão (crente na infalibilidade bíblica), que escreveu apologéticas e argumentou energicamente contra os ateus proeminentes de seu tempo. Em 15 de abril de 2013, os 306 anos de Euler foi comemorado com um Google Doodle. 

Veja mais:

Obras

  • Dissertatio physica de sono (Dissertação sobre a física do som) (Basileia, 1727, in quarto)
  • Mechanica, sive motus scientia analytice; expasita (São Petersburgo, 1736, in 2 vols. quarto)
  • Ennleitung in die Arithmetik (ibid., 1738, in 2 vols. octavo), in German and Russian
  • Tentamen novae theoriae musicae (ibid. 1739, in quarto)
  • Methodus inveniendi limas curvas, maximi minimive proprictate gaudentes (Lausanne, 1744, in quarto)
  • Theoria motuum planetarum et cometarum (Berlin, 1744, in quarto)
  • Beantwortung, &c., ou Answers to Different Questions respecting Comets (ibid., 1744, in octavo)
  • Neue Grundsatze, c., ou New Principles of Artillery, traduzido para o inglês por Benjamin Robins, com notas e ilustrações (ibid., 1745, in octavo)
  • Opuscula varii argumenti (ibid., 1746-1751, in 3 vols. quarto)
  • Novae et carrectae tabulae ad loco lunae computanda (ibid., 1746, in quarto)
  • Tabulae astronomicae solis et lunae (ibid., quarto)
  • Gedanken, &c., ou Thoughts on the Elements of Bodies (ibid. quarto)
  • Rettung der gall-lichen Offenbarung, &c., Defence of Divine Revelation against Free-thinkers (ibid., 1747, in 4t0)
  • Introductio it analysin infinitorum (Lausanne, 1748, in 2 vols. 4t0)
  • Scientia navalis, seu tractatus de construendis ac dirigendis navi bus (St Petersburg, 1749, in 2 vols. quarto)
  • Theoria motus lunae (Berlin, 1753, in quarto)
  • Dissertatio de principio mininiae actionis, ‘una cum examine objectionum cl. prof. Koenigii (ibid., 1753, in octavo)
  • Institutiones calculi differentialis, cum ejus usu in analysi Intuitorum ac doctrina serierum (ibid., 1755, in 410)
  • Constructio lentium objectivarum, &c. (St Petersburg, 1762, in quarto)
  • Theoria motus corporum solidoruni seu rigidorum (Rostock, 1765, in quarto)
  • Institutiones,calculi integralis (St Petersburg, 1768-1770, in 3 vols. quarto)
  • Lettres a une Princesse d’Allernagne sur quelques sujets de physique it de philosophic (St Petersburg, 1768-1772, in 3 vols. octavo)
  • Anleitung zur Algebra, ou Introduction to Algebra (ibid., 1770, in octavo); Dioptrica (ibid., 1767-1771, in 3 vols. quarto)
  • Theoria motuum lunge nova methodo pertr.arctata (ibid., 1772, in quarto)
  • Novae tabulae lunares (ibid., in octavo); La théorie complete de la construction et de la manteuvre des vaisseaux (ibid., .1773, in octavo)
  • Eclaircissements svr etablissements en favour taut des veuves que des marts, without a date
  • Opuscula analytica (St Petersburg, 1783-1785, in 2 vols. quarto). See Rudio, Leonhard Euler (Basel, 1884)
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Louis Jacques Mandé Daguerre https://canalfezhistoria.com/louis-jacques-mande-daguerre/ https://canalfezhistoria.com/louis-jacques-mande-daguerre/#respond Mon, 17 Mar 2025 00:36:06 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6184 Louis Jacques Mandé Daguerre (Cormeilles-en-Parisis, Val-d’Oise, 18 de novembro de 1787 — Bry-sur-Marne, 10 de julho de 1851) foi um pintor, cenógrafo, físico e inventor francês, tendo sido o autor, em 1835, da primeira patente para um processo fotográfico, o daguerreótipo. 

Índice de Conteúdo

Louis Jacques Mandé Daguerre

Na sequência da sua parceria com Joseph Nicéphore Niépce (selada em contrato assinado a 14 de dezembro de 1829), Daguerre herdou a invenção e os conhecimentos adquiridos por Niépce o que lhe permitiu adicionar uma nova variação da câmara obscura. Cada um trabalhou de forma independente mas por diferentes vias, Niépce procurava teimosamente resolver o seu processo com betume da Judeia ao passo que Daguerre procurava modificar o processo e os materiais usados a fim de reduzir o tempo de exposição que ainda se mantinha em cerca de uma hora.

A imagem formada na chapa, depois de revelada, continuava sensível à luz do dia e padecia de curta durabilidade. Daguerre solucionou este último problema ao descobrir que, mergulhando as chapas reveladas numa solução aquecida de sal de cozinha, este tinha um poder fixador, obtendo assim uma imagem inalterável. O Artista Lemaître escreveu a Niépce sobre Daguerre: “Acredito que ele possui uma inteligência rara em tudo o que envolva máquinas e o efeito da luz”.

A parceria de Daguerre com Niépce levou ao uso de placas revestidas a prata (cujo primeiro uso tem de ser creditado a Niépce) quando, na sequência de numerosas experiências, um novo químico foi introduzido e que se provou decisivo para o método de Daguerre – iodo. 

A fotografia não foi inventada apenas por uma pessoa. Ao invés disso, foi o resultado de favoráveis condições econômicas, políticas e sociais bem como critérios científicos, observações afortunadas e intuição de algumas mentes inteligentes. Durante um período de dois anos (1839 – 1840) a fotografia deu passos decisivos através do trabalho de estudiosos como Fox Talbot (inventor do calótipo) ou Hércules Florence (cidadão francês exilado no Brasil) cujos estudos e descobertas tiveram lugar na mesma altura que os estudos de Daguerre e Niépce. 

Veja mais:

Daguerre tinha problemas financeiros e não conseguiu obter o apoio de industriais por querer manter secreta a parte fundamental do seu processo. Após um incêndio no seu diorama a 8 de março de 1839, ficou acordado uma pensão anual de 4000 francos para Daguerre e Isidore Niépce (herdeiro de Joseph Nicéphore Niépce) acrescidos de mais 2000 francos para Daguerre pelos “segredos do diorama”. Daguerre ficou implicitamente reconhecido como o pai do daguerreótipo apesar de conflitos posteriores com Isidore Niépce que representava os interesses do pai. Em 19 de agosto de 1839, no Instituto de França, foi anunciado ao mundo um novo processo, o daguerreótipo, tendo sido posteriormente vendido ao governo francês.

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Louis Pasteur https://canalfezhistoria.com/louis-pasteur/ https://canalfezhistoria.com/louis-pasteur/#respond Mon, 17 Mar 2025 00:33:48 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6181 Louis Pasteur (Dole, 27 de dezembro de 1822 – Marnes-la-Coquette, 28 de setembro de 1895) foi um cientista francês, cujas descobertas tiveram enorme importância na história da química e da medicina. É reconhecido pelas suas notáveis descobertas das causas e prevenções de doenças. Entre seus feitos mais notáveis podem-se citar a redução da mortalidade e a criação da primeira vacina contra a raiva (vacina antirrábica). As suas experiências deram fundamento para a teoria microbiológica da doença. Foi mais conhecido do público em geral por inventar um método para impedir que leite e vinho causem doenças, um processo que veio a ser chamado pasteurização, em homenagem ao seu sobrenome. 

Pasteur é considerado um dos três principais fundadores da microbiologia, juntamente com Ferdinand Cohn e Robert Koch. Também fez muitas descobertas no campo da química, principalmente a base molecular para a assimetria de certos cristais. O seu corpo está enterrado sob o Instituto Pasteur em Paris, numa tumba decorada por mosaicos em estilo bizantino que lembram os seus feitos. 

Primeiros anos

Seu pai foi sargento na Armada Napoleônica. Pasteur não foi um aluno especialmente aplicado ou brilhante na escola e nem mesmo na universidade em que estudou. Quando era jovem, tinha um gosto especial pela pintura e fez diversos retratos de sua família. Aos dezenove anos, abandonou a pintura para se dedicar à carreira científica, que perdurou por toda a sua vida. Em 1847 ele completou os seus estudos de doutorado na escola de física e química em Paris. 

Estudos e a influência na evolução da ciência

Louis Pasteur iniciou os seus estudos no Colégio Royal em Besançon, transferindo-se para a Escola Normal Superior em 1843 de Paris, estudando química, física e cristalografia. Foi na cristalogia que Louis fez suas primeiras descobertas. Descobriu em 1848 o dimorfismo do ácido tartárico, ao observar no microscópio que o ácido racêmico apresentava dois tipos de cristais, com simetria especular.

Foi portanto o descobridor das formas dextrógiras e levógiras, comprovando que desviavam o plano de polarização da luz no mesmo ângulo porém em sentido contrário. Esta descoberta valeu ao jovem químico, com apenas 26 anos de idade, a concessão da “Légion d’Honneur” Francesa. Após licenciar-se e assistir às aulas do grande químico francês Jean-Baptiste Dumas, começou a se interessar pela química. 

Exerceu o cargo de professor de química em Dijon e depois em Estrasburgo. Casou-se com Marienne Laurente, filha do reitor da Academia. Em 1854 foi nomeado decano da Faculdade de Ciências na Universidade de Lille.

A pedido dos vinicultores e cervejeiros da região, começou a investigar a razão pela qual azedavam os vinhos e a cerveja. De novo, utilizando o microscópio, conseguiu identificar a bactéria responsável pelo processo. Propôs eliminar o problema aquecendo a bebida lentamente até alcançar 48° C, matando, deste modo, as bactérias, e encerrando o líquido posteriormente em cubas hermeticamente seladas para evitar uma nova contaminação. Este processo originou a atual técnica de pasteurização dos alimentos. Demonstrou, desta forma, que todo processo de fermentação e decomposição orgânica ocorre devido à ação de organismos vivos. 

Na Inglaterra, em 1865, o cirurgião Joseph Lister aplicou os conhecimentos de Pasteur para eliminar os micro-organismos vivos em feridas e incisões cirúrgicas. Em 1871, o próprio Pasteur obrigou os médicos dos hospitais militares a ferver o instrumental e as bandagens que seriam utilizados nos procedimentos médicos. 

Expôs a “teoria germinal das enfermidades infecciosas”, segundo a qual toda enfermidade infecciosa tem sua causa (etiologia) num micróbio com capacidade de propagar-se entre as pessoas. Deve-se buscar o micróbio responsável por cada enfermidade para se determinar um modo de combatê-lo.

Pasteur passou a investigar os microscópicos agentes patogênicos, terminando por descobrir vacinas, em especial a antirrábica, que utilizou com sucesso em 1885 para tratar Joseph Meister, um garoto de 9 anos que fora mordido por um cão infectado pela raiva, utilizando-se de injeções diárias por 13 dias seguidos, com vírus cada vez menos atenuados. Meister nunca contraiu a raiva, felizmente, pois Pasteur, por não ser médico, arriscou-se a ser processado, caso o tratamento não tivesse sucesso. Fundou em 1888 o Instituto Pasteur, um dos mais famosos centros de pesquisa da atualidade. 

Pasteur foi quem derrubou definitivamente a ideia da geração espontânea aristotélica, com a utilização de uma vidraria chamada pescoço de cisne. Pasteur colocou um caldo nutritivo em um balão de vidro, de pescoço curvo. Ferveu o caldo existente no balão, o suficiente para matar todos os possíveis microrganismos que poderiam existir nele. Cessado o aquecimento, vapores da água proveniente do caldo condensaram-se no pescoço do balão e se depositaram, sob forma líquida, na sua curvatura inferior. Como os frascos ficavam abertos, não se podia falar da impossibilidade da entrada do “princípio ativo” do ar. Com a curvatura do gargalo, os micro-organismos do ar ficavam retidos na superfície interna úmida e não alcançavam o caldo nutritivo. 

Quando Pasteur quebrou o pescoço do balão, permitindo o contato do caldo existente dentro dele com o ar, constatou que o caldo contaminou-se com os microrganismos provenientes do ar. Morreu em Villeneuve-L’Etang no dia 28 de Setembro de 1895. Encontra-se sepultado no Instituto Pasteur, Ilha de França, Paris, na França. 

Fé e espiritualidade

Citado muitas vezes como um fervoroso católico, mas, de acordo com o seu neto Pasteur Vallery-Radot, no entanto, Pasteur só tinha guardado da sua formação católica uma espiritualidade sem prática religiosa. 

Maurice Vallery-Radot, neto do irmão do genro de Pasteur e católico declarado, assegura que Pasteur fundamentalmente permaneceu católico. O genro de Pasteur, provavelmente na mais completa biografia de Louis Pasteur, escreveu o seguinte: 

“Uma fé absoluta em Deus e na eternidade, e a convicção de que o poder para o bem dado a nós neste mundo será continuado para além dele, foram sentimentos que permearam toda a sua vida; as virtudes do Evangelho estiveram sempre presentes nele. Com o máximo de respeito para com a forma de religião que tinha sido a dos seus antepassados, ele recorreu simplesmente á religião naturalmente para ajuda espiritual nestas últimas semanas da sua vida.”

Veja mais:

Tanto Pasteur Vallery-Radot quanto Maurice Vallery-Radot afirmam que a bem conhecida citação atribuída a Pasteur: “Quanto mais sei, mais a minha fé se aproxima da do camponês bretão. Gostaria de saber tudo, mas eu teria a fé da esposa de um camponês bretão”, é apócrifa.

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Ludwig van Beethoven https://canalfezhistoria.com/ludwig-van-beethoven/ https://canalfezhistoria.com/ludwig-van-beethoven/#respond Mon, 17 Mar 2025 00:31:36 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6176 Ludwig van Beethoven (Bonn, batizado em 17 de dezembro de 1770 — Viena, 26 de março de 1827) foi um compositor alemão, do período de transição entre o Classicismo (século XVIII) e o Romantismo (século XIX). É considerado um dos pilares da música ocidental, pelo incontestável desenvolvimento, tanto da linguagem como do conteúdo musical demonstrado nas suas obras, permanecendo como um dos compositores mais respeitados e mais influentes de todos os tempos. “O resumo de sua obra é a liberdade”, observou o crítico alemão Paul Bekker (1882-1937), “a liberdade política, a liberdade artística do indivíduo, sua liberdade de escolha, de credo e a liberdade individual em todos os aspectos da vida”. 

Família

Ludwig van Beethoven transliterado em português como Luis de Betovêm foi batizado em 17 de dezembro de 1770, mas nasceu presumivelmente no dia anterior,[nota 1] na cidade de Bonn, Reino da Prússia, atual Renânia do Norte (Alemanha). Sua família era de origem flamenga, cujo sobrenome significava horta de beterrabas e no qual a partícula van não indicava nobreza alguma.

Seu avô, Lodewijk van Beethoven — também chamado “Luís”, na transliteração —, de quem herdou o nome, nasceu na Mechelen, hoje parte da Bélgica, em 1712, e imigrou para Bonn, onde foi maestro de capela do príncipe. Descendia de artistas, pintores e escultores, era músico e foi nomeado regente da Capela Arquiepiscopal na corte da cidade de Colônia (atual Alemanha).

Foi do pai, Johann, que Beethoven recebeu suas primeiras lições de música: o objetivo era afirmá-lo como “menino-prodígio” ao piano, dada sua habilidade musical demonstrada desde ainda muito cedo. Por essa razão, a partir dos cinco anos de idade seu pai passou a obrigá-lo a estudar música diariamente, durante muitas horas. No entanto, seu pai terminou consumido pelo álcool, pelo que a infância de Ludwig foi infeliz. 

Sua mãe, Maria Magdalena Keverich (1746–1787), era filha do chefe de cozinha do príncipe da Renânia, Johann Heinrich Keverich. Casou-se duas vezes. O primeiro marido foi Johann Doge Leym (1733–1765). Tiveram apenas um filho, Johann Peter Anton, que nasceu e morreu em 1764 (morte na infância). Depois da morte do marido, Magdalena, viúva, casou-se com Johann van Beethoven (1740–1792). No total, tiveram sete filhos:

1. Ludwig Maria: nasceu em 1769 e morreu poucos dias depois de seu nascimento (morte na infância);
2. Ludwig van Beethoven (1770–1827);
3. Kaspar Anton Carl van Beethoven (1774–1815);
4. Nicolaus Johann van Beethoven (1776–1848);
5. Anna Maria, que nasceu e morreu em 1779 (morte na infância);
6. Franz Georg (1781–1783: morte na infância); e
7. Maria Magdalena (1786-1787: morte na infância).

Portanto, Ludwig van Beethoven foi o terceiro filho mais velho por parte de mãe e o segundo por parte de pai. Teve um total de sete irmãos, dos quais cinco morreram ainda na infância. Entre os irmãos vivos, Beethoven foi o penúltimo a morrer: 12 anos após Kaspar e 21 anos antes de Nicolaus. 

Início de carreira

Ludwig nunca teve estudos muito aprofundados, mas sempre revelou talento excepcional para a música. Com apenas oito anos de idade, foi confiado a Christian Gottlob Neefe (1748-1798), o melhor mestre de cravo da cidade de Colônia na época,[4] que lhe deu uma formação musical sistemática, levando-o a conhecer os grandes mestres alemães da música. Numa carta publicada em 1780, pela mão de seu mestre, afirmava que “seu discípulo, de dez anos, domina todo o repertório de Johann Sebastian Bach”, e que o apresentava como um “novo Mozart”.

Compôs as suas primeiras peças aos onze anos de idade, iniciando a sua carreira de compositor, de onde se destacam alguns Lieder. Os seus progressos foram de tal forma notáveis que, em 1784, já era organista-assistente da Capela Eleitoral, e pouco tempo depois, foi violoncelista na orquestra da corte e professor, assumindo já a chefia da família, devido à doença do pai – alcoolismo. Foi nesse ano que conheceu o jovem Conde Waldstein, a quem mais tarde dedicou algumas das suas obras, pela sua amizade.

Este, percebendo o seu grande talento, enviou-o, em 1787, para Viena, a fim de estudar com Joseph Haydn. O Arquiduque da Áustria, Maximiliano, subsidiou então os seus estudos. No entanto, teve que regressar pouco tempo depois, assistindo à morte de sua mãe. A partir daí, Ludwig, com apenas dezessete anos de idade, teve que lutar contra dificuldades financeiras, já que seu pai tinha perdido o emprego, devido ao seu já elevado grau de alcoolismo. 

Foi o regresso de Viena que o motivou a um curso de literatura. Foi aí que teve o seu primeiro contato com ideais da Revolução Francesa, com o Iluminismo e com um movimento literário romântico: Sturm und Drang – Tempestade e ímpeto/paixão, dos quais um dos seus melhores amigos, Friedrich Schiller, foi, juntamente com Johann Wolfgang von Goethe, dos líderes mais proeminentes deste movimento, que teria enorme influência em todos os setores culturais na Alemanha. 

Viena

Em 1792, já com 21 anos de idade, mudou-se para Viena (apenas um ano após a morte, na cidade, de Mozart), onde, fora algumas viagens, permaneceu para o resto da vida. Foi imediatamente aceito como aluno por Joseph Haydn, o qual manteve o contato à primeira estadia de Ludwig na cidade. Procura então complementar mais os seus estudos, o que o leva a ter aulas com Antonio Salieri, com Foerster e Albrechtsberger, que era maestro de capela na Catedral de Santo Estêvão.

Tornou-se então um pianista virtuoso, cultivando admiradores, muitos dos quais da aristocracia. Começou então a publicar as suas obras (1793-1795). O seu Opus 1 é uma coleção de três trios para piano, violino e violoncelo. Afirmando uma sólida reputação como pianista, compôs suas primeiras obras-primas, as três sonatas para piano Op. 2 (1794-1795). Elas mostravam já a sua forte personalidade. 

Surdez em Viena

Foi em Viena que lhe surgiram os primeiros sintomas da sua grande tragédia. Foi-lhe diagnosticado, por volta de 1796, aos 26 anos de idade, a congestão dos centros auditivos internos (que mais tarde o deixou surdo), o que lhe transtornou bastante o espírito, levando-o a isolar-se e a grandes depressões. 

“Ó homens que me tendes em conta de rancoroso, insociável e misantropo, como vos enganais. Não conheceis as secretas razões que me forçam a parecer deste modo. Meu coração e meu ânimo sentiam-se desde a infância inclinados para o terno sentimento de carinho e sempre estive disposto a realizar generosas acções; porém considerai que, de seis anos a esta parte, vivo sujeito a triste enfermidade, agravada pela ignorância dos médicos.”

Consultou vários médicos, inclusive o médico da corte de Viena. Fez curativos, usou cornetas acústicas, realizou balneoterapia, mudou de ares, mas os seus ouvidos permaneciam arrolhados. Desesperado, entrou em profunda crise depressiva e pensou em suicidar-se. 

“Devo viver como um exilado. Se me acerco de um grupo, sinto-me preso de uma pungente angústia, pelo receio que descubram meu triste estado. E assim vivi este meio ano em que passei no campo. Mas que humilhação quando ao meu lado alguém percebia o som longínquo de uma flauta e eu nada ouvia! Ou escutava o canto de um pastor e eu nada escutava! Esses incidentes levaram-me quase ao desespero e pouco faltou para que, por minhas próprias mãos, eu pusesse fim à minha existência. Só a arte me amparou!”

Embora tenha feito muitas tentativas para se tratar, durante os anos seguintes a doença continuou a progredir e, aos 46 anos de idade (1816), estava praticamente surdo. Porém, ao contrário do que muitos pensam, Ludwig jamais perdeu a audição por completo, muito embora nos seus últimos anos de vida a tivesse perdido, condições que não o impediram de acompanhar uma apresentação musical ou de perceber nuances timbrísticas. 

O gênio

No entanto, o seu verdadeiro gênio só foi realmente revisado com a publicação das suas Op. 7 e Op. 10, entre 1796 e 1798: a sua Quarta Sonata para Piano em Mi Maior, e as suas Quinta em Dó Menor, Sexta em Fá Maior e Sétima em Ré Maior Sonatas para Piano. 

Em 2 de Abril de 1800, a sua Sinfonia nº1 em Dó maior, Op. 21 faz a sua estreia em Viena. Porém, no ano seguinte, confessa aos amigos que não está satisfeito com o que tinha composto até então, e que tinha decidido seguir um novo caminho. Em 1802, escreve o seu testamento, mais tarde revisto como O Testamento de Heilingenstadt, por ter sido escrito na localidade austríaca de Heilingenstadt, então subúrbio de Viena, dirigido aos seus dois irmãos vivos: Kaspar Anton Carl van Beethoven (1774-1815) e Nicolaus Johann van Beethoven (1776-1848).

Finalmente, entre 1802 e 1804, começa a trilhar aquele novo caminho que ambiciona, com a apresentação de Sinfonia nº3 em Mi bemol Maior, Op.55, intitulada de Eróica. Uma obra sem precedentes na história da música sinfônica, considerada o início do período Romântico, na Música Erudita.

Os anos seguintes à Eroica foram de extraordinária fertilidade criativa, e viram surgir numerosas obras-primas:

  • a Sonata para Piano nº 21 em Dó maior, Op.53, intitulada de Waldstein, entre 1803 e 1804;
  • a Sonata para Piano nº 23 em Fá menor, Op.57, intitulada de Appassionata, entre 1804 e 1805;
  • o Concerto para Piano nº 4 em Sol Maior, Op.58, em 1806;
  • os Três Quartetos de Cordas, Op.59, intitulados de Razumovsky, em 1806;
  • a Sinfonia nº 4 em Si bemol Maior, Op.60, também em 1806;
  • o Concerto para Violino em Ré Maior, Op.61, entre 1806 e 1807;
  • a Sinfonia nº 5 em Dó Menor, Op.67, entre 1807 e 1808;
  • a Sinfonia nº 6 em Fá maior, Op.68, intitulada de Pastoral, também entre 1807 e 1808;
  • a Ópera Fidelio, Op.72, cuja versão definitiva data de 1814;
  • e o Concerto para Piano nº 5 em Mi bemol Maior, Op.73, intitulado de Imperador, em 1809. 

Ludwig escreveu ainda uma Abertura, música destinada a ilustrar uma peça teatral, uma tragédia em cinco actos de Goethe: Egmont. E muito se conta do encontro entre Johann Wolfgang von Goethe e Ludwig van Beethoven. 

“Uma criatura completamente indomável.”

Crise criativa

Depois de 1812, a surdez progressiva aliada à perda das esperanças matrimoniais e problemas com a custódia do sobrinho levaram-no a uma crise criativa, que faria com que durante esses anos ele escrevesse poucas obras importantes. 

Neste espaço de tempo, escreve a Sinfonia nº 7 em Lá Maior, Op.92, entre 1811 e 1812, a Sinfonia nº 8 em Fá Maior, Op.93, em 1812, e o Quarteto em Fá Menor, Op.95, intitulado de Serioso, em 1810. A partir de 1818, Ludwig, aparentemente recuperado, passou a compor mais lentamente, mas com um vigor renovado. Surgem então algumas de suas maiores obras: a Sonata nº 29 em Si bemol Maior, Op.106, intitulada de Hammerklavier, entre 1817 e 1818; a Sonata nº 30 em Mi Maior, Op.109 (1820); a Sonata nº 31 em Lá bemol Maior, Op.110 (1820-1821); a Sonata nº 32 em Dó Menor, Op.111 (1820-1822); as Variações Diabelli, Op.120 (1819. 1823), a Missa Solemnis, Op.123 (1818-1822). 

Derradeiros anos

A culminância destes anos foi a Sinfonia nº 9 em Ré Menor, Op.125 (1822-1824), para muitos a sua obra-prima. Pela primeira vez é inserido um coral num movimento de uma sinfonia. O texto é uma adaptação do poema de Friedrich Schiller, “Ode à Alegria”, feita pelo próprio Ludwig van Beethoven. 

“Alegria bebem todos os seres
No seio da Natureza:
Todos os bons, todos os maus,
Seguem seu rastro de rosas.
Ela nos deu beijos e vinho e
Um amigo leal até à morte;
Deu força para a vida aos mais humildes
E ao querubim que se ergue diante de Deus!”

A obra de Beethoven refletiu em um avivamento cultural. Conforme o historiador Paul Johnson, “Existia uma nova fé e Beethoven era o seu profeta. Não foi por acidente que, aproximadamente na mesma época, as novas casas de espetáculo recebiam fachadas parecidas com as dos templos, exaltando assim o status moral e cultural da sinfonia e da música de câmara.” 

Os anos finais de Ludwig foram dedicados quase exclusivamente à composição de Quartetos para Cordas. Foi nesse meio que ele produziu algumas de suas mais profundas e visionárias obras, como o Quarteto em Mi bemol Maior, Op.127 (1822-1825); o Quarteto em Si bemol Maior, Op.130 (1825-1826); o Quarteto em Dó sustenido Menor, Op.131 (1826); o Quarteto em Lá Menor, Op.132 (1825); a Grande Fuga, Op.133 (1825), que na época criou bastante indignação, pela sua realidade praticamente abstrata; e o Quarteto em Fá Maior, Op.135 (1826).

De 1816 até 1827, ano da sua morte, ainda conseguiu compor cerca de 44 obras musicais. Sua influência na história da música foi imensa. Ao morrer, a 26 de Março de 1827, estava a trabalhar numa nova sinfonia, assim como projectava escrever um Requiem. Ao contrário de Mozart, que foi enterrado anonimamente em uma vala comum (o que era o costume na época), 20.000 cidadãos vienenses enfileiraram-se nas ruas para o funeral de Beethoven, em 29 de março de 1827.

Franz Schubert, que morreu no ano seguinte e foi enterrado ao lado de Beethoven, foi um dos portadores da tocha. Depois de uma missa de réquiem na igreja da Santíssima Trindade (Dreifaltigkeitskirche), Beethoven foi enterrado no cemitério Währing, a noroeste de Viena. Seus restos mortais foram exumados para estudo, em 1862, sendo transferidos em 1888 para o Cemitério Central de Viena. 

Há controvérsias sobre a causa da morte de Beethoven, sendo citados cirrose alcoólica, sífilis, hepatite infecciosa, envenenamento, sarcoidose e doença de Whipple. Amigos e visitantes, antes e após a sua morte haviam cortado cachos de seus cabelos, alguns dos quais foram preservadas e submetidos a análises adicionais, assim como fragmentos do crânio removido durante a exumação em 1862. Algumas dessas análises têm levado a afirmações controversas de que Beethoven foi acidentalmente levado à morte por envenenamento devido a doses excessivas de chumbo à base de tratamentos administrados sob as instruções do seu médico. 

Vida artística, síntese

A sua vida artística poderá ser dividida – o que é tradicionalmente aceite desde o estudo, publicado em 1854, de Wilhelm von Lenz – em três fases: a mudança para Viena, em 1792, quando alcança a fama de brilhantíssimo improvisador ao piano; por volta de 1794, se inicia a redução da sua acuidade auditiva, fato que o leva a pensar em suicídio; os últimos dez anos de sua vida, quando fica praticamente surdo, e passa a escrever obras de carácter mais abstrato. 

Em 1801, Beethoven afirma não estar satisfeito com o que compôs até então, decidindo tomar um “novo caminho”. Dois anos depois, em 1803, surge o grande fruto desse “novo caminho”: a sinfonia nº3 em Mi bemol Maior, apelidada de “Eroica”, cuja dedicatória a Napoleão Bonaparte foi retirada em 1804, com a autoproclamação de Napoleão imperador da França. E, a antiga dedicatória fora substituída por: “à memoria de um grande homem”. A sinfonia Eroica era duas vezes mais longa que qualquer sinfonia escrita até então. 

Em 1808, surge a Sinfonia nº5 em Dó menor (sua tonalidade preferida), cujo famoso tema da abertura foi considerado por muitos como uma evidência da sua loucura. Em 1814, na segunda fase, Beethoven já era reconhecido como o maior compositor do século. Em 1824, surge a Sinfonia nº9 em Ré Menor. Pela primeira vez na história da música, é inserido um coral numa sinfonia, inserida a voz humana como exaltação dionisíaca da fraternidade universal, com o apelo à aliança entre as artes irmãs: a poesia e a música.

Beethoven começou a compor música como nunca antes se houvera ouvido. A partir de Beethoven a música nunca mais foi a mesma. As suas composições eram criadas sem a preocupação em respeitar regras que, até então, eram seguidas. Considerado um poeta-músico, foi o primeiro romântico apaixonado pelo lirismo dramático e pela liberdade de expressão.

Foi sempre condicionado pelo equilíbrio, pelo amor à natureza e pelos grandes ideais humanitários. Inaugura, portanto, a tradição de compositor livre, que escreve música para si, sem estar vinculado a um príncipe ou a um nobre. Hoje em dia muitos críticos o consideram como o maior compositor do século XIX, a quem se deve a inauguração do período Romântico, enquanto que outros o distinguem como um dos poucos homens que merecem a adjetivação de “gênio”. 

Veja mais:

Obras

  • Nove sinfonias, dentre elas a Nona, sua última sinfonia, a que mais se consagrou no mundo inteiro
  • Cinco concertos para piano
  • Concerto para violino
  • “Concerto Tríplice” para piano, violino, violoncelo e orquestra
  • 32 sonatas para piano (ver abaixo relação completa das sonatas):
  • 16 quartetos de cordas´
  • 1 septeto de cordas para piano
  • Dez sonatas para violino e piano
  • Cinco sonatas para violoncelo e piano
  • Doze trios para piano, violino e violoncelo
  • “Bagatelas” (Klenigkeiten) para piano, entre as quais a famosíssima Bagatela para piano “Für Elise” (“Para Elisa”)
  • Missa em Dó Maior
  • Missa em Ré Maior (“Missa Solene”)
  • Oratório “Christus am Ölberge”, op. 85 (“Cristo no Monte das Oliveiras”)
  • “Fantasia Coral”, op. 80 para coro, piano e orquestra
  • Aberturas
  • Danças
  • Ópera Fidelio
  • Canções
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Mahatma Gandhi https://canalfezhistoria.com/mahatma-gandhi/ https://canalfezhistoria.com/mahatma-gandhi/#respond Mon, 17 Mar 2025 00:20:19 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6171 Mohandas Karamchand Gandhi (2 de outubro de 1869 – 30 de janeiro de 1948) foi um advogado, nacionalista, anticolonialista e especialista em ética política indiano, que empregou resistência não violenta para liderar a campanha bem-sucedida para a independência da Índia do Reino Unido, e por sua vez, inspirar movimentos pelos direitos civis e liberdade em todo o mundo. O honorífico Mahātmā (sânscrito: “de grande alma”, “venerável”), aplicado a ele pela primeira vez em 1914 na África do Sul, é agora usado em todo o mundo. 

Nascido e criado em uma família hindu no litoral de Guzerate, oeste da Índia, e formado em direito no Inner Temple, Londres, Gandhi empregou pela primeira vez a desobediência civil não-violenta como advogado expatriado na África do Sul, na luta da comunidade indígena pelos direitos civis. Após seu retorno à Índia em 1915, ele começou a organizar camponeses, agricultores e trabalhadores urbanos para protestar contra o imposto sobre a terra e a discriminação excessiva. Assumindo a liderança do Congresso Nacional Indiano em 1921, Gandhi liderou campanhas nacionais para várias causas sociais e para alcançar o Swaraj ou o autogoverno. 

Gandhi levou os indianos a desafiar o imposto salino cobrado pelos ingleses com a Marcha do Sal, de 400 km, em 1930, e mais tarde pedindo aos britânicos que abandonassem a Índia em 1942. Ele foi preso por muitos anos, em várias ocasiões, na África do Sul e na Índia. Vivia modestamente em uma comunidade residencial auto-suficiente e usava o dhoti e o xale indiano tradicional, entrelaçados com fios feitos à mão em um charkha. Comia comida vegetariana simples e também realizou longos jejuns como um meio de auto-purificação e protesto político. 

A visão de Gandhi de uma Índia independente baseada no pluralismo religioso foi desafiada no início da década de 1940 por um novo nacionalismo muçulmano que exigia uma pátria muçulmana separada da Índia. Em agosto de 1947, o Reino Unido concedeu a independência, mas o Império Britânico da Índia foi dividido em dois domínios, a Índia de maioria hindu e o Paquistão de maioria muçulmana.

Como muitos indianos, muçulmanos e sikhs deslocados chegaram às suas novas terras, a violência religiosa irrompeu, especialmente em Panjabe e em Bengala. Evitando a celebração oficial da independência em Delhi, Gandhi visitou as áreas afetadas, tentando proporcionar consolo. Nos meses seguintes, ele realizou várias greves de fome para deter a violência religiosa. O último deles, realizado em 12 de janeiro de 1948, quando tinha 78 anos, também teve o objetivo indireto de pressionar a Índia a pagar alguns ativos em dinheiro devidos ao Paquistão. Alguns indianos pensavam que Gandhi era muito complacente com os muçulmanos. Entre eles estava Nathuram Godse, um nacionalista hindu, que assassinou Gandhi em 30 de janeiro de 1948, disparando três vezes contra seu peito.

O aniversário de Gandhi, 2 de outubro, é comemorado na Índia como Gandhi Jayanti, um feriado nacional e em todo o mundo como o Dia Internacional da Não-Violência. Gandhi é comumente, embora não formalmente considerado o Pai da Pátria indiana. Gandhi também é chamado de Bapu (Guzerate: carinho por pai, papa).

Juventude

Mohandas Karamchand Gandhi nasceu no dia 2 de outubro de 1869, na cidade de Porbandar, na Índia ocidental, hoje estado de Gujarat. Seu pai era o primeiro-ministro do minúsculo principado, e a mãe era uma devota vaisnava. 

Como era costume em sua cultura nesta época, em maio de 1883, com a idade de 13 anos, a família de Gandhi realizou seu casamento arranjado com Kasturba Gandhi, de 14 anos, através de um acordo entre as respectivas famílias. 

Formação na Inglaterra

Depois de um pouco de educação indistinta, foi decidido que ele deveria ir para a Inglaterra para estudar direito na University College London. Ele ganhou a permissão da mãe, prometendo se abster de vinho, mulheres e carne, mas ele desafiou os regulamentos de sua casta, que proibiam a viagem para a Inglaterra. Cursou a faculdade de direito em Londres. 

Procurando um restaurante vegetariano, descobriu, na filosofia de Henry Stephens Salt, um argumento para o vegetarianismo e convenceu-se dessa prática. Ele organizou um clube vegetariano onde se encontravam teósofos e pessoas com interesses altruísticos. 

Sua primeira leitura do Bhagavad-Gita foi através de uma tradução poética para a língua inglesa de Edwin Arnold: A Canção Celestial. Esta escritura hindu e o “Sermão da Montanha”, do Evangelho, se tornaram, mais tarde, suas “bíblias” e guias espirituais. Ele memorizou o Gita em suas meditações diárias, frequentemente recitando o texto original em sânscrito em suas orações. 

A vida na África do Sul

Quando Gandhi voltou à Índia, em 1891, sua mãe havia falecido, e ele, devido à timidez, não obteve êxito na sua profissão legal de advogado. Assim, aproveitou a oportunidade que surgiu de ir para África do Sul, durante um ano, representando a firma hindu de Dada Abdulla em KwaZulu-Natal, em um processo judicial. 

Sua estadia na África do Sul, notório local de discriminação racial, despertou-lhe a consciência social. Como advogado, Gandhi fez o melhor para descobrir os fatos. Depois de resolver um caso difícil, ele passou a ter notoriedade por sua atuação. Ele mesmo relata: “eu aprendi a descobrir o lado bom da natureza humana e a entrar nos corações dos homens. Eu percebi que a verdadeira função de um advogado era unir partes separadas”.

Acreditava que o dever do advogado era ajudar o tribunal a descobrir a verdade, não tentar incriminar o inocente. Ao término do ano, durante uma festa de despedida, de retorno à Índia, Gandhi tomou conhecimento que uma lei estava sendo proposta para privar os hindus do voto. Os amigos dele insistiram: “fique e conduza a briga para os direitos de nossos compatriotas na África do Sul.” Gandhi fundou, em KwaZulu-Natal, o Congresso Hindu em 1894, e seus esforços foram uma vigorosa advertência para a imprensa. 

Nessa época quando estava tentando organizar o Congresso Indiano de Natal e a comunidade indiana para protestar contra a discriminação racial e a legislação policial que infringiam suas liberdades civis, Gandhi conheceu Charles Freer Andrews, um missionário cristão. Andrews ficou profundamente impressionado com o conhecimento de Gandhi dos valores cristãos e sua adoção do conceito de ahimsa, não-violência – algo que Gandhi misturou com a inspiração de elementos do anarquismo cristão.

Ele ajudou Gandhi a organizar um Ashram em Natal e publicar sua famosa revista, The Indian Opinion. Quando Gandhi retornou à África, após buscar a esposa e filhos na Índia em janeiro de 1897, os sul-africanos tentaram interromper suas atividades de maneiras sórdidas. Uma delas foi a tentativa de subornar e ameaçar o empresário Dada Abdulla Sheth; mas Dada Abdulla era cliente de Gandhi e, finalmente, depois de um período de quarentena, Gandhi recebeu permissão para aterrissar. A turba de espera reconheceu Gandhi e começou a espancá-lo até que a esposa do Superintendente Policial veio ao salvamento dele.

A turba ameaçou linchá-lo, mas Gandhi escapou usando um disfarce. Depois, ele se recusou a processar os que o haviam espancado, permanecendo firme no princípio de controle do egoísmo com respeito à pessoa infratora; além de que tinham sido os líderes da comunidade e do governo de Natal que haviam causado o problema. 

Entre 11 de outubro de 1899 até 31 de maio de 1902, foi travada a Segunda Guerra dos Bôeres. Em Natal, Gandhi incentivou os britânicos a recrutar indianos. Ele argumentou que estes deveriam apoiar os esforços de guerra, a fim de legitimar suas reivindicações à cidadania plena. Os britânicos aceitaram a oferta de Gandhi de liderar um destacamento de 20 voluntários indianos como um corpo padioleiro para tratar dos soldados feridos. Esse corpo foi comandado por Gandhi e operou por aproximadamente dois meses. A experiência ensinou-lhe que era impossível desafiar diretamente o poder militar do exército britânico e que este só poderia ser combatido de uma forma não violenta. 

Gandhi acabou permanecendo vinte anos na África do Sul defendendo a minoria hindu, liderando a luta de seu povo pelos seus direitos. Ele experimentou o celibato durante trinta anos de sua vida e, em 1906, retomou o juramento de Brahmacharya até o fim da vida. De acordo com uma biografia recente bastante polêmica, Gandhi separou-se em 1908, quando já tinha quatro filhos, para viver com Hermann Kallenbach, um fisiculturista alemão de origem judaica que emigrara para a África do Sul e viria a tornar-se um de seus discípulos mais próximos. Viveram sob o mesmo teto por dois anos, separando-se quando Gandhi retornou à Índia em 1914. 

Satyagraha, a força da verdade

O primeiro uso de desobediência civil em massa ocorreu em setembro de 1906. O Governo de Transvaal quis registrar a população hindu inteira. Os hindus formaram uma massa que se encontrou no Teatro Imperial de Joanesburgo; eles estavam furiosos com a ordem humilhante, e alguns ameaçaram exercer uma resposta violenta à ordem injusta. 

Porém, eles decidiram, em grupo, se recusar a obedecer às providências de inscrição; havia unanimidade, e apenas alguns poucos se registraram. Gandhi decidiu chamar esta técnica, de se recusar a se submeter à injustiça, de Satyagraha, que quer dizer, literalmente: “força da verdade”. Uma semana depois de desobediência, as mulheres Asiáticas foram dispensadas do registro. Quando o governo de Transvaal finalmente pôs em prática o “Ato de Inscrição Asiático” em 1907, Gandhi e vários outros hindus foram presos. 

A pena dele foi de dois meses sem trabalho duro, dedicando-se durante esse período à leitura. Durante a vida, Gandhi passaria um total de mais de seis anos como prisioneiro. Enquanto lia na prisão, Gandhi travou contato, por carta, com Leon Tolstoi, um de seus ídolos. O escritor russo, com suas ideias libertárias, influenciou o indiano. Ele também indicou, a este, a leitura de Henry David Thoreau. Gandhi descobriu, então, a desobediência civil. Também teve, papel importante sobre o pensamento de Gandhi, a obra do pensador anarquista Piotr Kropotkin. Logo, ele começou a perceber, cada vez mais, as possibilidades infinitas do “amor universal”. 

O movimento de protesto em prol da conquista dos direitos para os indianos na África do Sul continuou crescendo; em um certo ponto, foram presos 2 500 indianos dos 13 000 existentes na província, enquanto 6 000 fugiram do Transvaal. 

Durante a desobediência civil, Gandhi desenvolveu o uso de ahimsa que significa “sem dor” e que, normalmente, é traduzido como “não violência”. Gandhi seguiu o preceito de “odiar o pecado e não o pecador. Desde que nós vivemos espiritualmente, ferir ou atacar outra pessoa é atacar a si mesmo. Embora nós possamos atacar um sistema injusto, nós sempre temos que amar as pessoas envolvidas. Assim, ahimsa é a base da procura pela verdade”. 

Gandhi também foi atraído para a vida agrícola simples. Ele começou duas comunidades rurais de Satyagrahis: “Fazenda Fênix” e “Fazenda Tolstoi”. Escreveu e editou o diário “Opinião indiana”, para elucidar os princípios e a prática de Satyagraha. Três assuntos foram abordados e questionados: os direitos dos hindus na África do Sul; a proibição de imigrantes Asiáticos; e, por fim, o invalidamento de todos casamentos não Cristãos. 

Em novembro de 1913, Gandhi conduziu uma marcha com mais de duas mil pessoas. Gandhi foi preso e solto após pagar fiança. Logo após, o prenderam novamente e o libertaram, e novamente foi preso depois de quatro dias de liberdade. Foi, então, condenado ao trabalho forçado durante três meses, mas as greves continuaram, envolvendo aproximadamente 50 000 operários, e milhares de indianos foram presos. Finalmente, através de negociação, os assuntos foram resolvidos.

Todos os matrimônios, independente de qual fosse a religião, se tornaram válidos; os impostos em atraso foram cancelados, e os operários, contratados; e foi concedida mais liberdade aos indianos. Gandhi constatou o poder do método de Satyagraha e profetizou que ele poderia transformar a civilização moderna. “É uma força que, se se tornasse universal, revolucionaria ideais sociais e anularia o despotismos e o militarismo.” 

Enquanto isso, a Índia ainda estava sofrendo debaixo das regras coloniais britânicas. Gandhi sugeriu que a Índia podia ganhar sua independência por meios não violentos e por via da autoconfiança. Gandhi rejeitou a força bruta e a opressão e declarou que a força da alma ou amor é que mantém a unidade das pessoas em paz e harmonia. Seguindo o conselho de vários líderes do Congresso indiano e do diretor Susil Kumar Rudra, do St. Stephen’s College, C. F. Andrews foi fundamental para persuadir Gandhi a retornar à Índia em 1915. 

Retorno à Índia

De volta à Índia em 1915, Gandhi passou a exercer o papel de conscientizador da sociedade hindu e muçulmana sobre a luta pacífica pela independência indiana, baseada no uso da não violência. O uso da não violência, por sua vez, baseava-se no uso da desobediência civil. Gandhi estava pronto para morar nas ruas sujas com os intocáveis se necessário, mas um benfeitor anônimo doou dinheiro suficiente para um ano. Gandhi passou então a ajudar os necessitados e as crianças carentes. 

Em 1917, Gandhi ajudou as pessoas que trabalhavam em tecelagens, diante da exploração injusta dos proprietários sobre esses trabalhadores. Ele foi detido, mas logo perceberam que o Mahatma era o único que poderia controlar as multidões. Em 1918, Andrews discordou das tentativas de Gandhi de recrutar combatentes para a Primeira Guerra Mundial, acreditando que isso era inconsistente com seus pontos de vista sobre a não-violência. Nas Ideias de Mahatma Gandhi, Andrews escreveu sobre a campanha de recrutamento de Gandhi: “Pessoalmente, nunca fui capaz de conciliar isso com sua própria conduta em outros aspectos, e é um dos pontos em que me encontrei em dolorosa discordância”.

Reformas foram ganhas novamente por meio da desobediência civil. Os trabalhadores têxteis de Ahmedabad também eram economicamente oprimidos. Gandhi sugeriu uma greve e, como os trabalhadores temiam as consequências dela, ele fez um jejum para encorajar a continuação da greve. O primeiro desafio de Gandhi ao governo britânico na Índia foi em resposta aos poderes arbitrários do “Rowlatt Act” de 1919. A Índia tinha cooperado com a Inglaterra durante a guerraː no entanto, lhe estavam sendo reduzidas as liberdades civis. 

Guiado por um sonho ou experiência interna, Gandhi decidiu pedir um dia de greve geral. Porém, a filosofia de Mahatma não foi bem entendida pelas massas, e violências estouraram em vários lugares. O Mahatma se arrependeu declarando que tinha feito “um erro de cálculo”, e cancelou a campanha. Gandhi fundou e publicou dois semanários sem anúncios – a “Índia Jovem” em inglês e o “Navajivan” em Gujarati. Em 1920, Gandhi iniciou uma campanha de âmbito nacional de não cooperação com o governo britânico que, para o camponês, significou o não pagamento de impostos e nenhuma compra de bebida alcoólica, pois o governo ganhava toda a renda de sua venda. 

Gandhi realizou várias viagens ao longo de todo o território hindu, com a função de conseguir a conscientização em massa de todas as pessoas, mostrando a necessidade da prática da desobediência civil e do uso da não violência. Durante finais dos anos 1920, Gandhi escreveu uma autobiografia retratando suas experiências vividas. Nesse livro, descreveu os erros cometidos, e o esforço de os superar. 

Em suas falas, ele exibe, através dos dedos da mão, seu programa de cinco pontos: 

• igualdade;
• nenhum uso de álcool ou droga;
• unidade hindu-muçulmana;
• amizade;
• e igualdade para as mulheres.

Esses cinco pontos, os cinco dedos representando o sistema, estavam conectados ao pulso, simbolizando a não violência. Finalmente em 1928, ele anunciou uma campanha de Satyagraha em Bardoli contra o aumento de 22% em impostos britânicos. As pessoas se recusaram a pagar os impostos, sendo repreendidas pelo governo britânico. No entanto, os indianos continuavam não violentos. Finalmente, após vários meses, os britânicos cancelaram os aumentos, libertaram os prisioneiros, e devolveram as terras e propriedades confiscadas; e os camponeses voltaram a pagar seus tributos. 

Ainda nesse ano, o Partido do Congresso Nacional Indiano quis a autonomia da Índia e considerou a guerra aos ingleses para conseguir esse fim. Gandhi se recusou a apoiar uma atitude como esta, porém declarou que, se a Índia não se tornasse um Estado independente ao final de 1929, então ele exigiria sua independência. 

A “Marcha do Sal”

Por conseguinte, em 1930, Mahatma Gandhi informou, ao vice-rei, que a desobediência civil em massa iniciaria-se no dia 11 de março. “Minha ambição é nada menos que converter as pessoas britânicas à não violência, e, assim, lhes fazer ver o mal que fizeram para a Índia. Eu não busco prejudicar as pessoas.” Gandhi decidiu desobedecer as “Leis do Sal” que proibiam os hindus de fazer seu próprio sal; este monopólio britânico golpeou especialmente os pobres. 

Começando com setenta e oito participantes, Gandhi iniciou uma marcha de 124 milhas para o mar que duraria mais de vinte e quatro dias. Milhares tinham se juntado no começo, e vários milhares uniram-se durante a marcha. Primeiro, Gandhi e, então, outros, juntaram um pouco de água salgada à beira-mar em panelas, deixando-as ao sol para secar.

Em Bombaim, o Partido do Congresso Nacional Indiano colocou panelas no telhado; 60 000 pessoas juntaram-se ao movimento, e foram presas centenas delas. Em Karachi, onde 50 000 assistiram ao sal sendo feito, a multidão era tão espessa que impedia a polícia de efetuar alguma apreensão. As prisões estavam lotadas com pelo menos 60 000 transgressores. Incrivelmente, lá “não havia praticamente nenhuma violência por parte da população; as pessoas não queriam que Gandhi cancelasse o movimento.”

Gandhi foi preso, mas o amigo dele, Sarojini Naidu, conduziu 2 500 voluntários e os advertiu a não resistir às interferências da polícia. De acordo com uma testemunha ocular, o repórter Miller de Webb, eles continuaram marchando até serem detidos por quatrocentos policiais, mas eles não tentaram lutar. Tagore declarou que a Europa tinha perdido a moral e o prestígio na Ásia. Logo, mais de 100 000 hindus estavam na prisão, incluindo quase todos os seus líderes. 

Gandhi foi chamado a uma reunião com o vice-rei Irwin em 1931, e eles firmaram um acordo em março. A desobediência civil foi cancelada; foram libertados os prisioneiros; a fabricação de sal foi permitida na costa; e os líderes do Partido do Congresso Nacional Indiano assistiriam à próxima conferência de mesa-redonda em Londres. Para participar desta conferência, Gandhi viajou novamente a Londres, onde conheceu Charlie Chaplin, George Bernard Shaw e Maria Montessori, entre outros. Em transmissão de rádio para os Estados Unidos, ele falou que a força não violenta é um modo mais consistente, humano e digno. Discutindo relações com os britânicos, ele disse que ele não quis somente a independência, mas também a interdependência voluntária baseada no amor. 

Enquanto preso em 1932, Gandhi entrou em um jejum em nome dos Harijans porque, a eles, tinha sido determinado que formassem um eleitorado separado. Poderia ser um jejum até a morte, a menos que ele pudesse despertar a consciência hindu. O assunto foi resolvido, e até mesmo templos hindus destinados aos “intocáveis” foram abertos pela primeira vez. No próximo ano, Gandhi fez um jejum de vinte e um dias para purificação, e os funcionários britânicos, amedrontados de que ele pudesse morrer, colocaram-no na prisão. Gandhi anunciou que não se ocuparia da desobediência civil até que sua oração fosse completada. 

Mesmo com a Segunda Guerra Mundial se aproximando, Gandhi confirmou seus princípios pacifistas. Ele mostrou como a Abissínia (Etiópia) poderia ter usado a não violência contra Mussolini, e ele a recomendou para os Tchecos e para os chineses. “Se é valente, como é, morrer, a um homem que luta contra preconceitos, é ainda valente se recusar a briga e ainda recusar se render ao usurpador”.

Já em 1938, ele exortou os judeus a defender os seus direitos e, se necessário, morrer como mártires. “Uma caçada humana degradante pode ser transformada em uma postura tranquila e determinada, oferecendo-se, aos homens e mulheres desarmados, a força dada a eles por Jehovah.” Mahatma recomendou o uso de métodos não violentos aos britânicos para combater Hitler, já que não podia dar seu apoio a qualquer tipo de guerra ou matança. 

O Partido do Congresso Nacional Indiano prometeu, a Gandhi, que ele ficaria fora da prisão, mas outros 23 223 indianos foram presos, inclusive Vinoba Bhave, Jawaharlal Nehru e Patel. Em 1942, Gandhi sugeriu modos para resistir não violentamente aos japoneses. Ele propôs, às pessoas japonesas, a causa da “federação mundial da fraternidade, sem a qual não poderia haver nenhuma esperança para a humanidade”. 

Porém, Gandhi continuou exercendo uma revolução não violenta para a Índia e, em 1942, ele e outros líderes foram presos. Ele decidiu jejuar novamente, sendo que apenas ele sobreviveu. Quando a guerra terminou, ele afirmou sobre a necessidade de “uma paz real baseada na liberdade e igualdade de todas as raças e nações”. Nos últimos anos de sua vida, ele havia dito: “violência é criada por desigualdade, a não violência pela igualdade”. 

Ele foi a uma peregrinação para Noakhali para ajudar aos pobres. A independência para a Índia era agora iminente, mas Jinnah, o líder muçulmano, estava exigindo a criação de um estado separado: o Paquistão. Gandhi pregou em favor da unidade e tolerância, até mesmo lendo, às reuniões, o Alcorão. Os hindus o atacaram porque pensaram que ele era a favor dos muçulmanos, e os muçulmanos exigiram, dele, a criação do Paquistão.

Gandhi foi para Calcutá para acalmar a discussão e a violência entre hindus e muçulmanos. Mais uma vez, ele jejuou até que os líderes da comunidade assinaram um acordo para manter a paz. Antes de que eles assinassem, ele os advertiu de que, se se rebelassem, ele jejuaria até a morte. Gandhi, em janeiro de 1948, fez muito para acalmar os conflitos entre hindus e muçulmanos, permitindo a divisão da Índia em dois países. 

O movimento pela independência indiana

Após a guerra, Gandhi se envolveu com o Congresso Nacional Indiano e com o movimento pela independência. Ganhou notoriedade internacional pela sua política de desobediência civil e pelo uso do jejum como forma de protesto. 

Por esses motivos, sua prisão foi decretada diversas vezes pelas autoridades britânicas, prisões às quais sempre se seguiram protestos pela sua libertação (por exemplo, em 18 de março de 1922, quando foi sentenciado a seis anos de prisão por desobediência civil, dos quais cumpriu apenas dois anos). Outra estratégia eficiente de Gandhi pela independência foi a política do swadeshi – o boicote a todos os produtos importados, especialmente os produzidos na Inglaterra. Aliada a esta estratégia, estava sua proposta de que todos os indianos deveriam vestir o khadi – vestimentas caseiras – ao invés de comprar os produtos têxteis britânicos. 

Gandhi declarava que toda mulher indiana, rica ou pobre, deveria gastar parte do seu dia fabricando o khadi em apoio ao movimento de independência. Esta era uma estratégia para incluir as mulheres no movimento, em um período em que pensava-se que tais atividades não eram apropriadas às mulheres.

Sua posição pró-independência endureceu após o Massacre de Amritsar em 1920, quando soldados britânicos abriram fogo matando centenas de indianos que protestavam pacificamente contra medidas autoritárias do governo britânico e contra a prisão de líderes nacionalistas indianos. Uma de suas mais eficientes ações foi a marcha do sal, conhecida como Marcha Dândi, que começou em 12 de março de 1930 e terminou em 5 de abril, quando Gandhi levou milhares de pessoas ao mar a fim de coletarem seu próprio sal ao invés de pagar a taxa prevista sobre o sal comprado. 

Em 8 de Maio de 1933, Gandhi começou um jejum que duraria 21 dias em protesto à opressão britânica contra a Índia. Em Bombaim, no dia 3 de março de 1939, Gandhi jejuou novamente em protesto às regras autoritárias e autocráticas para a Índia. 

Segunda Guerra Mundial

Gandhi passou cada vez mais a pregar a independência durante a II Guerra Mundial, através de uma campanha clamando pela saída dos britânicos da Índia (Quit Índia, literalmente Saiam da Índia), que, em pouco tempo, se tornou o maior movimento pela independência indiana, ocasionando prisões em massa e violência em uma escala inédita. 

Gandhi e seus partidários deixaram claro que não apoiariam a causa britânica na guerra a não ser que fosse garantida, à Índia, independência imediata. Durante este tempo, ele até mesmo cogitou um fim do seu apelo à não violência, um princípio até então intocável, alegando que a “anarquia ordenada” ao redor dele era “pior do que a anarquia real”. Foi, então, preso em Bombaim pelas forças britânicas em 9 de agosto de 1942 e mantido em cárcere por dois anos. 

A divisão da Índia entre hindus e muçulmanos

Gandhi teve grande influência entre as comunidades hindu e muçulmana da Índia. Costuma-se dizer que ele terminava rixas comunais apenas com sua presença. Gandhi posicionou-se veementemente contra qualquer plano que dividisse a Índia em dois estados, o que efetivamente aconteceu, criando a Índia – predominantemente hindu – e o Paquistão – predominantemente muçulmano. No dia da transferência de poder, Gandhi não celebrou a independência com o resto da Índia, mas ao contrário, lamentou sozinho a partilha do país em Calcutá. 

Gandhi tinha iniciado um jejum no dia 13 de janeiro de 1948 em protesto contra as violências cometidas por indianos e paquistaneses. No dia 20 daquele mês, sofreu um atentado: uma bomba foi lançada na sua direção, mas ninguém ficou ferido. Entretanto, no dia 30 de janeiro de 1948, Gandhi foi assassinado a tiros, em Nova Déli, por Nathuram Godse, um hindu radical que responsabilizava Gandhi pelo enfraquecimento do novo governo ao insistir no pagamento de certas dívidas ao Paquistão. Godse foi, depois, julgado, condenado e enforcado, a despeito do último pedido de Gandhi, que foi, justamente, a não punição do seu assassino. O corpo do Mahatma foi cremado, e suas cinzas foram jogadas no rio Ganges. 

Cronologia

  • 1869 – 2 de Outubro: Gandhi nasce em Porbandar.
  • 1885 – Fundação do Congresso Nacional Indiano.
  • 1888 – Gandhi vai para Londres para estudar direito.
  • 1893 – abril: Gandhi chega à África do Sul.
  • 1894 – maio: Gandhi funda o Congresso Indiano de Natal.
  • 1899 – A Guerra dos Bôeres na África do Sul.
  • 1903 – 16 de Agosto: Gandhi lidera um comício em Johannesburg e encoraja a queima dos certificados de registro.
  • 1907 – julho: Ato de Registro dos Asiáticos do Transvaal torna-se lei e Gandhi lança a campanha de Satyagraha.
  • 1914 – Gandhi e Jan Smuts negociam o Ato de Reforma da Questão Indiana.
  • 1915 – 9 de janeiro: Gandhi retorna à Índia.
  • 1919 – Gandhi inicia a greve geral nacional.
  • 13 de abril: O Massacre de Amritsar.
  • 1920 – Gandhi reconhece o Partido do Congresso e começa a campanha da Satyagraha.
  • 1924 – Gandhi conduz um jejum pela união hindu-muçulmana.
  • 1930 – A Marcha do Sal e a campanha de Satyagraha.
  • 1931 – 4 de Março: Irwin e Gandhi assinam o Pacto de Delhi.
  • Setembro: A Conferência da Mesa-Redonda em Londres.
  • 1942 – Movimento “Deixem a Índia!”.
  • 1947 – 22 de Março: Lord Louis Mountbatten, 1.º Conde Mountbatten da Birmânia, o último vice-rei, chega à Índia.
  • 15 de agosto: A Índia torna-se independente e Nehru é nomeado primeiro-ministro.
  • 1948 – 30 de Janeiro: Gandhi é assassinado por Nathuram Godse.

Princípios, práticas e crenças

As declarações, cartas e vida de Gandhi têm atraído muita análise política e acadêmica de seus princípios, práticas e crenças, incluindo o que o influenciou. Alguns escritores o apresentam como um modelo de vida ética e pacifismo, enquanto outros o apresentam como um personagem mais complexo, contraditório e evolutivo, influenciado por sua cultura e circunstâncias. 

Influências

Gandhi cresceu em uma atmosfera religiosa hindu e jainista em seu Gujarat natal, que foram suas principais influências, mas ele também foi influenciado por suas reflexões pessoais e literatura sobre os santos hindus Bhakti, Advaita Vedanta, islamismo, budismo, cristianismo e pensadores como Tolstoi, Ruskin e Thoreau. Aos 57 anos, ele se declarou hindu advaitista em sua persuasão religiosa, mas acrescentou que ele apoiava os pontos de vista dvaitistas e o pluralismo religioso.

Gandhi foi influenciado por sua devota mãe hindu vaishnava, os templos hindus regionais e a tradição santa que coexistia com a tradição jainista em Gujarat. O historiador R.B. Cribb afirma que o pensamento de Gandhi evoluiu ao longo do tempo, com suas primeiras ideias se tornando o núcleo ou andaimes para sua filosofia madura. Ele se comprometeu cedo com a veracidade, a temperança, a castidade e o vegetarianismo. 

O estilo de vida de Gandhi em Londres incorporou os valores com os quais ele havia crescido. Quando retornou à Índia em 1891, sua perspectiva era provinciana e ele não podia ganhar a vida como advogado. Isso desafiou sua crença de que a praticidade e a moralidade necessariamente coincidiam. Ao mudar-se em 1893 para a África do Sul, ele encontrou uma solução para esse problema e desenvolveu os conceitos centrais de sua filosofia madura.

De acordo com Bhikhu Parekh, três livros que mais influenciaram Gandhi na África do Sul foram a Religião Ética de William Salter (1889); Sobre o Dever da Desobediência Civil (1849) de Henry David Thoreau; e O Reino de Deus está dentro de vós, de Leon Tolstoi (1894). Ruskin inspirou sua decisão de viver uma vida austera em uma comunidade, a princípio na Fazenda Phoenix em Natal e depois na Fazenda Tolstoy, nos arredores de Joanesburgo, África do Sul.

A influência mais profunda sobre Gandhi foram as do hinduísmo, cristianismo e jainismo, afirma Parekh, com seus pensamentos “em harmonia com as tradições indianas clássicas, especialmente a tradição Advaita ou monista”. De acordo com Indira Carr e outros, Gandhi foi influenciado pelo Vaishnavismo, Jainismo e Advaita Vedanta. Balkrishna Gokhale afirma que Gandhi foi influenciado pelo hinduísmo e pelo jainismo, e seus estudos do Sermão da Montanha do Cristianismo, Ruskin e Tolstoi. 

Teorias adicionais de possíveis influências em Gandhi foram propostas. Por exemplo, em 1935, N. A. Toothi afirmou que Gandhi foi influenciado pelas reformas e ensinamentos da tradição Swaminarayana do hinduísmo. De acordo com Raymond Williams, Toothi pode ter negligenciado a influência da comunidade jainista, e acrescenta paralelos próximos que existem em programas de reforma social na tradição de Swaminarayan e aqueles de Gandhi, baseados em “não-violência, veracidade, limpeza, temperança e elevação das massas.” O historiador Howard afirma que a cultura de Gujarat influenciou Gandhi e seus métodos. 

Tolstoi

Juntamente com o livro mencionado acima, em 1908, Leon Tolstoi escreveu Uma Carta para um Hindu, que dizia que somente usando o amor como arma através da resistência passiva o povo indiano poderia derrubar o domínio colonial. Em 1909, Gandhi escreveu a Tolstói em busca de conselhos e permissão para republicar Uma Carta para um Hindu em guzerate. Tolstoi respondeu e os dois continuaram correspondendo até a morte de Tolstoi em 1910 (a última carta de Tolstói foi para Gandhi).

As cartas dizem respeito às aplicações práticas e teológicas da não-violência. Gandhi se viu um discípulo de Tolstoi, pois concordavam em se opor à autoridade estatal e ao colonialismo; ambos odiavam a violência e pregavam a não-resistência. No entanto, eles diferiam fortemente na estratégia política. Gandhi pediu envolvimento político; ele era nacionalista e estava preparado para usar força não violenta. Ele também estava disposto a se comprometer. Foi na Fazenda Tolstoi onde Gandhi e Hermann Kallenbach sistematicamente treinaram seus discípulos na filosofia da não-violência. 

Shrimad Rajchandra

Gandhi creditou Shrimad Rajchandra, um poeta e filósofo jainista, como seu influente conselheiro. Na revista Modern Review de junho de 1930, Gandhi escreveu sobre seu primeiro encontro em 1891 na residência do Dr. P. J. Mehta em Bombaim. Gandhi trocou cartas com Rajchandra quando ele estava na África do Sul, referindo-se a ele como Kavi (literalmente, “poeta”). Em 1930, Gandhi escreveu: “Tal foi o homem que cativou meu coração em assuntos religiosos como nenhum outro homem jamais fez até agora”.”Eu disse em outro lugar que moldando minha vida interior, Tolstoi e Ruskin competiram com Kavi. Mas a influência de Kavi foi, sem dúvida, mais profunda, apenas porque eu tinha chegado em contato pessoal mais íntimo com ele.” 

Gandhi, em sua autobiografia, chamou Rajchandra de seu “guia e ajudante” e seu “refúgio […] em momentos de crise espiritual”. Ele havia aconselhado Gandhi a ser paciente e estudar profundamente o hinduísmo. 

Textos religiosos

Durante sua estada na África do Sul, junto com escrituras e textos filosóficos do hinduísmo e outras religiões indianas, Gandhi leu textos traduzidos do cristianismo, como a Bíblia, e o islamismo, como o Corão. Uma missão Quaker na África do Sul tentou convertê-lo ao cristianismo. Gandhi juntou-se a eles em suas orações e debateu a teologia cristã com eles, mas recusou a conversão afirmando que ele não aceitou a teologia ou que Cristo era o único filho de Deus. 

Seus estudos comparativos das religiões e interação com os estudiosos levaram-no a respeitar todas as religiões, bem como a se preocupar com as imperfeições em todas elas e frequentes interpretações errôneas. Gandhi se apegou ao hinduísmo e referiu-se ao Bhagavad Gita como seu dicionário espiritual e maior influência individual em sua vida. 

Sufismo

Gandhi estava familiarizado com a Ordem Chishti do Islã Sufi durante sua estada na África do Sul. Ele participou de reuniões em khanqah lá em Riverside. De acordo com Margaret Chatterjee, Gandhi como um hindu vaishnava compartilhou valores como humildade, devoção e fraternidade para os pobres que também são encontrados no Sufismo. Winston Churchill também comparou Gandhi a um faquir sufi. 

Sobre guerras e a não violência

A filosofia de Gandhi e suas ideias sobre o satya e o ahimsa foram influenciadas pelo Bhagavad Gita e por crenças hindus e da religião jainista. O conceito de não violência (ahimsa) já faz parte há muito tempo do pensamento religioso da Índia e pode ser encontrado em diversas passagens do textos hindus, budistas e jainistas. Gandhi explica sua filosofia como um modo de vida em sua autobiografia A História de meus Experimentos com a Verdade (As Minhas Experiências com a Verdade, em Portugal) – (The Story of my Experiments with Truth). 

Sendo lactovegetariano, escreveu livros sobre o vegetarianismo enquanto estudava direito em Londres (onde encontrou um entusiasta do vegetarianismo, Henry Stephens Salt, nos encontros da chamada Sociedade Vegetariana). Ser vegetariano fazia parte das tradições hindus e jainistas. A maioria dos hindus no estado de Gujarat eram-no, efetivamente. Gandhi experimentou diversos tipos de alimentação e concluiu que uma dieta deve ser suficiente apenas para satisfazer as necessidades do corpo humano. Jejuava muito, e usava o jejum frequentemente como estratégia política. 

Gandhi renunciou ao sexo quando tinha 36 anos de idade e ainda era casado, uma decisão que foi profundamente influenciada pela crença hindu do brahmacharya, ou pureza espiritual, largamente associada ao celibato. Também passava um dia da semana em silêncio. Abster-se de falar, segundo acreditava, lhe trazia paz interior. A mudez tinha origens nas crenças do mouna e do shanti. Nesses dias, ele se comunicava com os outros apenas escrevendo. 

Depois de retornar à Índia de sua bem-sucedida carreira de advogado na África do Sul, ele deixou de usar as roupas que representavam riqueza e sucesso. Passou a usar um tipo de roupa que costumava ser usada pelos mais pobres entre os indianos. Promovia o uso de roupas feitas em casas (khadi).

Gandhi e seus seguidores fabricavam artesanalmente os tecidos da própria roupa e usavam esses tecidos em suas vestes; também incentivava os outros a fazer isso, o que representava uma ameaça ao negócio britânico – apesar de os indianos estarem desempregados, em grande parte pela decadência da indústria têxtil, eles eram forçados a comprar roupas feitas em indústrias inglesas. Se os indianos fizessem suas próprias roupas, isso arruinaria a indústria têxtil britânica, ao invés de fortalecê-la. O tear manual, símbolo desse ato de afirmação, viria a ser incorporado à bandeira do Congresso Nacional Indiano e à própria bandeira indiana. 

Também era contra o sistema convencional de educação em escolas, preferindo acreditar que as crianças aprenderiam mais com seus pais e com a sociedade. Na África do Sul, ele e outros homens mais velhos formaram um grupo de professores que lecionava diretamente e livremente às crianças. Dentro do ideal de paz e não violência que ele defendia, uma de suas frases foi: “Não existe um caminho para paz! A paz é o caminho!”. 

“Felicidade é quando o que você pensa, o que você diz e o que você faz estão em harmonia.”

Representações artísticas

A representação mais famosa da vida de Gandhi é o filme Gandhi, de 1982, dirigido por Richard Attenborough e com Ben Kingsley como protagonista. Outro filme que trata da vida de Gandhi, particularmente de sua passagem pela África do Sul, é The Making of the Mahatma, dirigido por Shyam Benegal. 

No Brasil, o ator João Signorelli interpreta o papel do Mahatma na peça teatral “Gandhi, um líder servidor”, monólogo de autoria de Miguel Filiage concebido em 2003. Uma das citações de Gandhi selecionada para a peça foi: “Nós devemos ser a revolução que queremos ver no mundo.” Em Deli, foi criado o “Museu Gandhi” (National Gandhi Museum), com a finalidade de manter viva a sua memória. 

Indicações para o Prêmio Nobel da Paz

Gandhi nunca recebeu o prêmio Nobel da Paz, apesar de ter sido indicado cinco vezes entre 1937 e 1948. Décadas depois, no entanto, o erro foi reconhecido pelo comitê organizador do Nobel. Quando o Dalai Lama Tenzin Gyatso recebeu o prêmio em 1989, o presidente do comitê disse que o prêmio era “em parte um tributo à memória de Mahatma Gandhi”.

Veja mais:

Comentários a respeito de Gandhi

Ao longo de sua vida, as atividades de Gandhi atraíram todo tipo de comentário e opinião. Winston Churchill chegou a chamá-lo de “faquir castanho”. Sobre Gandhi, Albert Einstein escreveu que “as gerações por vir terão dificuldade em acreditar que um homem como este realmente existiu e caminhou sobre a Terra.”

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Mahavira https://canalfezhistoria.com/mahavira/ https://canalfezhistoria.com/mahavira/#respond Mon, 17 Mar 2025 00:13:10 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6168 Mahavira, também conhecido como Vardhamana, foi o vigésimo quarto tirthankara (fabricante de vau) que reviveu o jainismo. Ele expôs os ensinamentos espirituais, filosóficos e éticos dos tirthankaras anteriores da remota era pré-védica. Na tradição jainista, acredita-se que Mahavira nasceu no início do século 6 aC em uma família real Kshatriya na atual Bihar, na Índia. Ele abandonou todos os bens do mundo aos 30 anos de idade e saiu de casa em busca do despertar espiritual, tornando-se um asceta.

Mahavira praticou intensa meditação e severas austeridades por 12 anos, após o que acredita-se que ele tenha atingido Kevala Jnana (onisciência). Ele pregou por 30 anos e é acreditado pelos jainistas como tendo atingido moksha no século 6 aC, embora o ano varie por seita. Estudiosos como Karl Potter consideram sua biografia incerta; alguns sugerem que ele viveu no século 5 aC, contemporaneamente com o Buda. Mahavira alcançou o nirvana aos 72 anos e seu corpo foi cremado. 

Depois de atingir Kevala Jnana, Mahavira ensinou que a observância dos votos de ahimsa (não-violência), satya (verdade), asteya (não-roubar), brahmacharya (castidade) e aparigraha (não-apego) é necessária para a libertação espiritual. Ele ensinou os princípios de Anekantavada (realidade multifacetada): syadvada e nayavada. Os ensinamentos de Mahavira foram compilados por Indrabhuti Gautama (seu principal discípulo) como os Agamas Jainistas. Acredita-se que os textos, transmitidos oralmente pelos monges jainistas, foram em grande parte perdidos por volta do século I (quando foram escritos pela primeira vez). As versões sobreviventes dos Agamas ensinadas por Mahavira são alguns dos textos fundamentais do jainismo.

Mahavira é geralmente descrita em uma postura meditativa sentada ou em pé, com o símbolo de um leão abaixo dele. Sua iconografia mais antiga é de sítios arqueológicos na cidade de Mathura, no norte da Índia, e é datada do século I aC ao século 2 dC. Seu nascimento é celebrado como Mahavir Jayanti, e seu nirvana é observado pelos jainas como Diwali. 

Biografia de Mahavira 

Mahavira pertencia à casta guerreira (xátria), sendo o seu pai, Sidarta, o líder de um clã e a sua mãe, Devananda, pertencente à casta dos brâmanes; outras tradições apresentam outros nomes para a sua mãe, como Trishala, Videhadinna ou Priyakarini, colocando-a na casta guerreira. 

A narrativa afirma que o Mahavira vivia num ambiente de luxo que mais tarde abandonou, num relato que se assemelha ao da vida do Buda, do qual se julga ter sido contemporâneo. Estes dois homens viveram numa época em que as práticas religiosas tradicionais começavam a entrar em crise; em particular, o sacrifício de animais e o sistema de castas eram postos em causa e quer o Mahavira, quer o Buda, rejeitaram-nos. 

Por volta dos trinta anos, Mahavira deixou a sua vida confortável para se entregar a práticas ascéticas na esperança de alcançar a iluminação espiritual. Durante um ano, usou roupa, mas, depois, passou a andar nu, deixou que insetos o atacassem, sofreu ataques físicos e verbais, dormiu em locais inóspitos, praticou jejuns extremos, num período total de doze anos. Teve, também, particular cuidado em não fazer mal a qualquer forma de vida, desenvolvendo, assim, a teoria do ahimsa ou não violência. O Mahavira dedicou as seguintes décadas da sua vida a ensinar às pessoas as suas doutrinas. 

Ensinamentos

Mahavira ensinou que os humanos podem libertar-se das partículas que se agregam às suas almas, uma crença do jainismo atual, seguindo uma vida de ascetismo extremo. A tradição afirma que ele recomendou aos seus adeptos que tomassem cinco votos (mahavratas), que são os seguintes: 

1. Ahimsa – não causar mal ou sofrimento a qualquer ser (não violência);
2. Satya – evitar a mentira;
3. Asteya – não se apropriar do que não foi dado;
4. Brahmacharya – não faltar à castidade;
5. Aparigraha – não se apegar às posses materiais, não ter apego pelas coisas mundanas.

Veja mais:

O Mahavira faleceu aos 72 anos, tendo os seus seguidores organizado a religião jaina nos seus moldes actuais.

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Manes, O Profeta https://canalfezhistoria.com/manes-o-profeta/ https://canalfezhistoria.com/manes-o-profeta/#respond Mon, 17 Mar 2025 00:11:20 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6165 Manes ou Mani, também conhecido como Maniqueu, foi um profeta de origem iraniana, fundador do maniqueísmo, uma religião gnóstica extinta atualmente, mas que foi bastante difundida durante a Antiguidade tardia. Manes nasceu em Ctesifonte (ou em suas proximidades), na satrapia do Assuristão (Assíria), à época parte do Império Parta. Seis de suas principais obras foram escritas no aramaico siríaco, e a sétima, dedicada ao monarca do império, Sapor I (r. 242–273), foi escrita no persa médio. Morreu em Bendosabora, já sob o Império Sassânida. 

Índice de Conteúdo

Vida de Manes 

Pouco se sabe, com certeza, a respeito da vida de Manes. Sabe-se que ele nasceu no que hoje é o Iraque (naquele tempo território do Império Sassânida) durante o século III. A data tanto de seu nascimento quanto de sua morte é incerta e varia de acordo com os autores. Teve, quando jovem ainda, uma visão em que seu anjo protetor o ordenava isolar-se do mundo para receber a revelação de uma nova religião, que seria a interpretação correta de diversas crenças religiosas da época.

Depois de receber essa revelação, passou a pregar, na Pérsia, um novo entendimento do zoroastrismo, o qual tentou conciliar com os fundamentos do cristianismo. Dotado de grande aptidão para aprender línguas, viajou pela Índia, China e Tibete, de onde recolheu ensinamentos religiosos e filosóficos que acrescentou a sua religião.

Após gozar da proteção do rei Sapor I, sofreu perseguição dos sacerdotes do zoroastrismo, os Magos, durante o reinado de Vararanes I (r. 274–277). Preso e condenado como herege, teria sido, segundo a tradição, esfolado vivo e sua carne atirada ao fogo, enquanto que sua pele, crucificada em praça pública na cidade de Bendosabora. 

Veja mais:

A sua vida é descrita no Vita Mani escrito em em grego mas de origem Aramaico.

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Mao Tse-Tung https://canalfezhistoria.com/mao-tse-tung/ https://canalfezhistoria.com/mao-tse-tung/#respond Mon, 17 Mar 2025 00:07:44 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6159 Mao Tsé-Tung, em chinês tradicional: 毛澤東; chinês simplificado: 毛泽东; Mao Tse-tung pela transliteração Wade-Giles, ou Máo Zédōng, pela pinyin; (Shaoshan, 26 de dezembro de 1893 — Pequim, 9 de setembro de 1976) foi um político, teórico, líder comunista e revolucionário chinês. Liderou a Revolução Chinesa e foi o arquiteto e fundador da República Popular da China, governando o país desde a sua criação em 1949 até sua morte em 1976. Sua contribuição teórica para o marxismo-leninismo, estratégias militares, e suas políticas comunistas são conhecidas coletivamente como maoísmo. 

Mao chegou ao poder comandando a Longa Marcha, formando uma frente unida com Kuomintang (KMT) durante a Guerra Sino-Japonesa para repelir uma invasão japonesa, e posteriormente conduzindo o Partido Comunista Chinês até à vitória contra o generalíssimo Chiang Kai-shek do KMT na Guerra Civil Chinesa. Mao restabeleceu o controle central sobre os territórios fraturados da China, com exceção de Taiwan, e com sucesso suprimiu os opositores da nova ordem.

Ele promulgou uma reforma agrária radical, usando a violência e o terror para derrubar latifundiários antes de tomar suas grandes propriedades e dividir as terras em comunas populares. O triunfo definitivo do Partido Comunista aconteceu depois de décadas de turbulência na China, que incluiu uma invasão brutal pelo Japão e uma prolongada guerra civil. O Partido Comunista de Mao finalmente atingiu um grau de estabilidade na China, apesar do seu período no governo ser marcado pela crise de eventos como o Grande Salto em Frente e a Revolução Cultural, com seus esforços para fechar a China ao comércio de mercado e erradicar a cultura tradicional chinesa, o que tem sido amplamente rejeitado pelos seus sucessores.

Mao se intitulava “O Grande Timoneiro” e partidários continuam a sustentar que ele foi responsável por uma série de mudanças positivas que vieram à China durante seu governo de três décadas. Estas incluíram a duplicação da população escolar, proporcionando a habitação universal, abolindo o desemprego e a inflação, aumentando o acesso dos cuidados a saúde, e elevando drasticamente a expectativa de vida.

O seu Partido Comunista ainda domina na China continental, detém o controle dos meios de comunicação e da educação e oficialmente celebra o seu legado. Como resultado desses fatores, Mao ainda possui alta consideração por muitos chineses como um grande estrategista político, mentor militar e “salvador da nação”. Os maoístas também divulgam seu papel como um teórico, estadista, poeta e visionário, e os anti-revisionistas continuam a defender a maioria de suas políticas.

Em 1950, ele enviou o Exército de Libertação Popular para o Tibete para impor a reivindicação da China na região do Himalaia; esmagou uma revolta ali em 1959; e em 1962, Mao lançou a Guerra sino-indiana. Na política externa, Mao apoiou a “revolução mundial” e, inicialmente, procurou alinhar a China com a União Soviética de Josef Stalin, o envio de forças para a Guerra da Coreia e a Primeira Guerra da Indochina, bem como auxiliando movimentos comunistas na Birmânia, Camboja, e em outros países. A China e a União Soviética divergiram após a morte de Stalin, e pouco antes da morte de Mao, a China começou sua abertura comercial com o Ocidente. 

Mao continua sendo uma figura controversa na atualidade, com um legado importante e igualmente contestado. Muitos chineses acreditam também que, através de suas políticas, ele lançou os fundamentos econômicos, tecnológicos e culturais da China moderna, transformando o país de uma ultrapassada sociedade agrária em uma grande potência mundial. Além disso, Mao é visto por muitos como um poeta, filósofo e visionário. Como consequência, seu retrato continua a ser caracterizado na Praça Tiananmen e em todos as notas Renminbi.

Inversamente, no Ocidente, Mao é acusado de com seus programas sociais e políticos, como o Grande Salto Adiante e a Revolução Cultural, de causar grave fome e danos a cultura, sociedade e economia da China. Embora Mao tenha incentivado o crescimento populacional e a população chinesa quase tenha duplicado durante o período de sua liderança (de cerca de 550 a mais de 900 milhões), suas políticas e os expurgos políticos de seu governo entre 1949 a 1975, provocaram a morte em massa de 50 a 70 milhões de pessoas.

A fome severa durante a Grande Fome Chinesa, o suicídio em massa, como resultado das Campanhas Três-Anti e Cinco-Anti, e perseguição política durante a Campanha Antidireitista, expurgos e sessões de luta, todos resultaram destes programas. Suas campanhas e suas variadas consequências catastróficas são posteriormente culpadas por danificar a cultura chinesa e a sociedade, como as relíquias históricas que foram destruídas e os locais religiosos que foram saqueados.

Apesar dos objetivos declarados de Mao de combater a burocracia, incentivar a participação popular e sublinhar na China a auto-confiança serem geralmente vistos como louváveis e a rápida industrialização, que começou durante o reinado de Mao, é reconhecida por estabelecer bases para o desenvolvimento da China no final do século XX, os duros métodos que ele usou para persegui-los, incluindo tortura e execuções, têm sido amplamente repreendidos como sendo cruéis e auto-destrutivos.

Desde que Deng Xiaoping assumiu o poder em 1978, muitas políticas maoístas foram abandonadas em favor de reformas econômicas. Mao é visto como uma das figuras mais influentes na história do mundo moderno, e foi nomeado pela revista Time como uma das cem personalidades mais influentes do século XX.

Juventude

Mao Tsé-Tung nasceu na aldeia de Shaoshan, província de Hunan, China, filho de camponeses, frequentou a escola até os 13 anos de idade, quando foi trabalhar como lavrador. Por conflitos com seu pai, saiu de casa para estudar em Changsha, capital da província. 

Conheceu as ideias políticas ocidentais e especialmente as do líder nacionalista Sun Yat Sen. Em 1911, no mês de outubro iniciou-se a Revolução de Xinhai contra a dinastia Manchu que dominava o país. As lutas estenderam-se até Hunan. Mao Tsé-Tung alistou-se como soldado no exército revolucionário até o início da república chinesa em 1912. 

De 1913 a 1918 estudou na Escola Normal de Hunan, aprendeu filosofia; história e literatura chinesa. Continuou estudando e assimilando o pensamento ocidental e política. Tornou-se líder estudantil com participação em várias associações, mudou-se para Pequim em 1919, onde iniciou seus estudos universitários em Filosofia e Pedagogia, trabalhou na Biblioteca Universitária, conheceu Chen Tu Hsiu e Li Ta Chao fundadores do Partido Comunista Chinês. 

Participou do Movimento Quatro de Maio contra a entrega ao império do Japão de regiões chinesas que até então tinham estado sob domínio alemão. Em função deste acontecimento, aderiu ao marxismo-leninismo. Em 1921, Mao Tsé-Tung participou na fundação do Partido Comunista Chinês. Nos primeiros anos à frente do partido, insistiu, contra a linha pró-soviética dos seus aliados, no potencial revolucionário dos camponeses (Inquérito sobre o Movimento Camponês em Hunan, 1927).

Guerra

Em 1927, Chiang Kai Shek assumiu o poder e virou-se contra os comunistas. Após a ruptura com o Kuomintang, Mao Tsé-Tung organizou um movimento revolucionário em Hunan e Jiangxi, fundando, em 1931, um soviete que se defendeu dos ataques dos aliados, adaptando tácticas de guerrilha.

Em Outubro de 1934, Mao Tsé-Tung e seu exército rompem o cerco das tropas do Kuomintang e seguem para o noroeste do país, iniciando a Grande Marcha (1934-1935) até Yanan, na província de Saanxi, transformada em nova região sob controle comunista. Essa ação espetacular reafirmou sua independência do Kuomintang e tornou Mao uma personalidade dominante do Partido Comunista Chinês. Em 7 de julho de 1937, os japoneses invadem a China após o Incidente Lugouqiao (Incidente da Ponte de Marco Polo), o que demarca o início da II Guerra Mundial na Ásia. De 1936 a 1940, Mao Tsé-Tung fez oposição à tese dos comunistas pró-soviéticos, e conseguiu impôr o seu ponto de vista, afastando do partido os seus oponentes. 

Em 1945, Mao Tsé-Tung foi confirmado oficialmente como chefe do partido, sendo nomeado presidente do Comitê Central. Após a invasão japonesa, e no término da guerra o exército revolucionário tinha em torno de um milhão de soldados; os comunistas controlavam politicamente noventa milhões de chineses. Após o ataque japonês à China (1937), o Partido Comunista Chinês e o Kuomintang se aliam novamente, mas com o fim da guerra, estourou, em 1946, uma guerra civil entre comunistas e nacionalistas que durou até 1949 quando o Kuomintang é finalmente derrotado. 

Liderança da China

Em 1 de Outubro de 1949, proclama na Praça Tiananmen, em Pequim, a República Popular da China; em Dezembro foi proclamado presidente da república. Em 1954, após a promulgação da nova Constituição, Mao Tsé-Tung é reconduzido à presidência da República. 

Após a consolidação do poder comunista, contrariando a linha soviética, Mao Tsé-Tung manteve-se fiel à ideia do desenvolvimento da luta de classes, tentando em vão, entre 1956 e 1957, na chamada Campanha das Cem Flores, dar-lhe novo impulso, através da liberdade de expressão, o que acabou em perseguição àqueles que criticaram o regime durante o breve período em que foram instados a fazê-lo. Entre 1957 e 1958, iniciou uma política de desenvolvimento chamada de Grande Salto, baseado na industrialização associada à coletivização agrária.

O “Grande Salto” pretendia tornar a República Popular da China uma nação desenvolvida e socialmente igualitária em tempo recorde, acelerando a coletivização do campo e a industrialização urbana. O primeiro plano, inflexível, fez aumentar a superfície cultivada e o aumento da produção agrícola no país. O segundo (que tornou famoso o termo “Grande Salto Adiante”) incentivou a industrialização. A iniciativa enfrentou muitos problemas, sobretudo no campo prático graças a secas, inundações, falta de pessoal técnico, o rompimento das relações com a União Soviética (com a consequente saída dos técnicos soviéticos do território chinês e a suspensão dos tratados económicos bilaterais), o deslocamento da mão de obra do campo para a indústria e a insuficiência de transporte ferroviário.

Na mesma época, também foi adotado o sistema de Comunas Populares, onde foram criadas sociedades de um total de 20 mil pessoas. Cada uma das comunidades deveria produzir tudo do que precisasse: alimentos, roupas, calçados, ferramentas, além de possuir seus próprios moinhos, lavanderias comunitárias, postos de saúde, escola, centrais elétricas, etc. 

Entre 1953 e 1958, houve o primeiro plano quinquenal chinês (reforma agrária, educação obrigatória e formação de cooperativas), em que foi formada a parceria com a União Soviética, governada na época por Nikita Kruchov, a qual exportava tecnologia para a República Popular da China. Porém, durante o período da Guerra Fria chamado de coexistência pacífica, Nikita fez uma visita aos Estados Unidos, provocando um rompimento de suas relações com Mao Tsé-Tung.

Esse plano representou, para a economia chinesa, o afastamento definitivo do modelo socialista soviético. Afastamento este que teve origem com a divulgação dos “Documentos Secretos” em que Nikita denunciava as práticas stalinistas. Apesar disso, Mao Tsé-Tung continuou influente, como ficou claro na ruptura com a União Soviética, devido a profundas diferenças nas políticas interna e externa. O prestígio internacional de Mao Tsé-Tung não foi afetado, tornando-se, após a morte de Stálin, em 1953, a personalidade mais influente do comunismo internacional. 

A Revolução Cultural

A polêmica Revolução Cultural (1966-1969), empreendida por Mao Tsé-Tung com o apoio de sua esposa, Jiang Qing, destituiu os quadros do Partido Comunista Chinês, que queriam uma linha política e econômica mais moderada. Em 1968, Mao Tsé-tung destituiu Liu Shaoqi e, em 1971, tirou do poder seu sucessor, Lin Biao. Foram criados os guardas vermelhos, que se fundamentavam no chamado Livro Vermelho, que continha citações de Mao. 

Mais tarde, apoiou a política de Zhou Enlai, consolidando o crescimento econômico e ultrapassando o isolamento da China. Em 1972, recebeu o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, em Pequim. Nos últimos anos de vida, com a saúde seriamente afetada, caiu sob a influência da facção radical do partido (Bando dos Quatro), organizada em torno de Jiang Qing. Apesar da desmaoização iniciada após sua morte, Mao Tsé-Tung teve especial aceitação nos países do Terceiro Mundo como teórico da guerra popular revolucionária. 

Vida pessoal

A primeira experiência sexual de Mao ocorreu ainda na adolescência, no vilarejo de Shaoshan, na província de Huan. Teve um romance juvenil com uma garota de doze anos. Em seus últimos anos, Mao gostava de relembrar essa iniciação e, em 1962, até providenciou para encontrar de novo a mulher com quem havia perdido a virgindade. Ela envelhecera, seus cabelos haviam branqueado. Mao lhe deu 2 mil iuanes e, depois que a idosa senhora se foi, comentou com melancolia: “Como está mudada!” Mao casou-se pela primeira vez em 1908, aos 15 anos de idade, com uma mulher seis anos mais velha. Ela morreu em 1910, de causas desconhecidas. 

Em 1921 Mao casou-se pela segunda vez, com Yang Kai-hui, que lhe deu dois filhos. Nenhum deles teve um final feliz: em 1930, Yang foi executada por partidários de Chiang Kai-shek. Os dois meninos escaparam para Xangai, onde tiveram que cuidar da própria sobrevivência pelas ruas. O mais novo, Anqing, desenvolveu uma doença mental que foi atribuída às pancadas que levou da policia de Xangai, quando o prenderam por vadiagem. O mais velho, Anying, foi morto num ataque aéreo norte-americano durante a Guerra da Coreia. 

Mao casou-se com Ho Tzu-chen logo após a morte de Yang, que lhe deu ao todo seis filhos. Apenas uma menina, Lin Min, sobreviveu. Mao divorciou-se de Ho em 1939, para casar-se com Chiang Ch’ing. Encontra-se sepultado no Mausoléu de Mao Tsé-Tung, em Pequim, na China. 

Família

Antepassados

Seus antepassados foram: 

• Mao Yichang (毛贻昌), nascido em Xiangtan em 15 de outubro de 1870, morreu em Shaoshan em 23 de janeiro de 1920), seu pai, nome de cortesia Mao Shunsheng (毛顺生) ou também conhecido como Mao Jen-sheng
• Wen Qimei (文七妹, nascida em Xiangxiang em 1867, morreu em 5 de outubro de 1919), sua mãe. Ela era analfabeta e uma budista devota. Era descendente de Wen Tianxiang.

Esposas

Mao teve várias esposas que contribuíram para uma grande família. Estas foram: 

1. Luo Yixiu (罗一秀, 20 de Outubro de 1889 – 1910) de Shaoshan: casada de 1907 a 1910
2. Yang Kaihui (杨开慧, 1901–1930) de Changsha: casada de 1921 a 1927, executada pelo KMT em 1930; mãe de Mao Anying, Mao Anqing, e Mao Anlong
3. He Zizhen (贺子珍, 1910–1984) de Jiangxi: casada de Maio de 1928 a 1939; mãe de Mao Anhong, Li Min, e outras quatro crianças
4. Jiang Qing: (江青, 1914–1991), casada de 1939 até a morte de Mao; mãe de Li Nah Irmãos

Teve vários irmãos: 

• Mao Zemin (毛泽民, 1895–1943), irmão mais novo, executado por um dos senhores da guerra da China
• Mao Zetan (毛泽覃, 1905–1935), irmão mais novo, executado pelo KMT
• Mao Zejian (毛泽建, 1905–1929), irmã adotiva, executada pelo KMT

Os pais de Mao Tsé Tung ao todo tiveram cinco filhos e duas filhas. Dois dos filhos e duas filhas morreram jovens, deixando três irmãos: Mao Tse Tung, Mao Zemin e Mao Zetan. Como todas as três esposas de Mao Tse Tung, Mao Zemin e Mao Zetan eram comunistas. Como Yang Kaihui, tanto Zemin quanto Zetan foram mortos na guerra durante a vida de Mao Tsé-tung. Note que o caracter ze (泽) aparece em todos os nomes dos irmãos citados. Esta é uma convenção de nomenclatura comum chinesa. 

A partir da próxima geração, o filho de Zemin, Mao Yuanxin, foi criado pela família de Mao Tsé-tung. Ele se tornou colaborador de Mao Tsé-tung com o Politburo em 1975. Fontes como Li Zhisui (The Private Life of Chairman Mao) dizem que ele desempenhou um papel nas últimas lutas pelo poder. 

Filhos

Mao Tse Tung teve um total de dez filhos, incluído: 

  • Mao Anying (毛岸英, 1922–1950): filho com Yang, casado com Liu Siqi (刘思齐), que nasceu Liu Songlin (刘松林), morto em ação durante a Guerra da Coreia
  • Mao Anqing (毛岸青, 1923–2007): filho com Yang, casado com Shao Hua (邵华), seu filho é Mao Xinyu (毛新宇), e neto Mao Dongdong
  • Mao Anlong (1927–1931): filho com Yang, morto durante a Guerra Civil Chinesa
  • Mao Anhong (b. 1932): filho com He, entregue para o irmão mais novo de Mao, Zetan, e depois para um dos guardas de Zetan, quando ele partiu para a guerra, nunca se ouviu falar dele novamente
  • Li Min (李敏, b. 1936): filha com He, casada com Kong Linghua (孔令华), cujo filho é Kong Ji’ning (孔继宁), e neto Kong Dongmei (孔冬梅)
  • Li Na (李讷, Pinyin: Lĭ Nà, b. 1940): filha com Jiang (cujo nascimento deu nome de Li, um nome também usado por Mao enquanto estava fugindo do KMT), casada com Wang Jingqing (王景清), cujo filho é Wang Xiaozhi (王效芝)

A primeira e segunda filhas de Mao foram deixadas para os moradores locais, porque era muito perigoso criá-las enquanto lutava contra o Kuomintang e posteriormente contra os japoneses. Sua filha mais nova (nascida no início de 1938 em Moscou depois que Mao separou-se dela) e um outro filho (nascido em 1933) morreram na infância. Dois pesquisadores ingleses, que reconstituiram a rota inteira da Longa Marcha em 2002-2003 localizaram uma mulher que eles acreditam que poderia muito bem ser uma das crianças desaparecidas abandonadas por Mao aos camponeses em 1935. Ed Jocelyn e Andrew McEwen esperam que um membro da família Mao responderá aos pedidos de um teste de DNA. 

Veja mais:

Ideologia maoísta

Uma das estratégias do regime implantado pelo Partido Comunista Chinês foi a propagação dos ideias de Mao.
Além do Livro Vermelho, de leitura incentivada nos tempos do poder, Mao Tsé-Tung produziu outras peças ideológicas, antes e depois de assumir o governo chinês (além dos excertos de seus discursos): 

  • Sobre a prática (《实践论》); 1937
  • Sobre a contradição (《矛盾论》); 1937
  • Uma Nova democracia (《新民主主义论》); 1940
  • Literatura e arte; 1942
  • Guerra de guerrilhas (《论持久战》).
  • O homem tolo que removeu as montanhas (《愚公移山》)
  • Servir ao povo (《为人民服务》).
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Maomé https://canalfezhistoria.com/maome/ https://canalfezhistoria.com/maome/#respond Mon, 17 Mar 2025 00:01:34 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6152 Abul Alcacim Maomé ibne Abdalá ibne Abdal Mutalibe ibne Haxim (Abū al-Qāsim Muḥammad ibn ʿAbd Allāh ibn ʿAbd al-Muṭṭalib ibn Hāshim), mais conhecido somente como Maomé; Meca, ca. 25 de Abril de 571 — Medina, 8 de Junho de 632) foi um líder religioso, político e militar árabe. Segundo a religião islâmica, Maomé é o mais recente e último profeta do Deus de Abraão. Para os muçulmanos, Maomé foi precedido em seu papel de profeta por Jesus, Moisés, Davi, Jacó, Isaac, Ismael e Abraão. Como figura política, ele unificou várias tribos árabes, o que permitiu as conquistas árabes daquilo que viria a ser um califado que se estendeu da Pérsia até à Península Ibérica. 

Não é considerado pelos muçulmanos como um ser divino, mas sim, um ser humano; contudo, entre os fiéis, ele é visto como um dos mais perfeitos seres humanos, e o próprio Alcorão o estabelece. Nascido em Meca, Maomé foi durante a primeira parte da sua vida um mercador que realizou extensas viagens a trabalho. Tinha por hábito retirar-se para orar e meditar nos montes perto de Meca.

Os muçulmanos acreditam que em 610, quando Maomé tinha quarenta anos, enquanto realizava um desses retiros espirituais numa das cavernas do Monte Hira, foi visitado pelo anjo Gabriel que lhe ordenou que recitasse os versos enviados por Deus, e comunicou que Deus o havia escolhido como o último profeta enviado à humanidade. Maomé deu ouvidos à mensagem do anjo e, após sua morte, estes versos foram reunidos e integrados no Alcorão, durante o califado de Abacar.

Maomé não rejeitou completamente o judaísmo e o cristianismo, duas religiões monoteístas já conhecidas pelos árabes. Em vez disso, teria declarado que é necessária proteção a estas religiões e informou que tinha sido enviado por Deus para restaurar os ensinamentos originais destas religiões, que tinham sido corrompidos e esquecidos. Porém, isto de acordo com a Enciclopédia Judaica, Maomé tornou-se cada vez mais hostil aos judeus ao longo do tempo quando “percebeu que havia diferenças irreconciliáveis entre a religião deles e a sua, especialmente quando a crença em sua missão profética se tornou o critério de um verdadeiro muçulmano”.

Muitos habitantes de Meca rejeitaram a sua mensagem e começaram a persegui-lo, bem como aos seus seguidores. Em 622 Maomé foi obrigado a abandonar Meca, numa migração conhecida como a Hégira (Hijra), tendo se mudado para Iatrebe (atual Medina). Nesta cidade, Maomé tornou-se o chefe da primeira comunidade muçulmana. Seguiram-se anos de batalhas entre os habitantes de Meca e Medina, que resultaram em geral na vitória de Maomé e de seus seguidores. A organização militar criada durante estas batalhas foi usada para derrotar as tribos da Arábia. Por altura da sua morte, Maomé tinha unificado praticamente todo o território sob o signo de uma nova religião, o islão.

O nome completo de Maomé em árabe pode ser transliterado como abū al-qāsim muḥammad ibn ʿabd allāh ibn ʿabd al-muṭṭalib ibn hāshim, sendo que Muhammad significa “louvável” e seu nome completo, inclui o nome “Abd Allah”, que significa “servo de Deus”. Este nome já era comum na Arábia antes do surgimento do islão, não sendo por isso necessário ver nele um epíteto criado pelo próprio.

Maomé é uma forma aportuguesada do francês Mahomet, que por sua vez é uma deformação do turco Mehmet, tendo daí derivado os adjetivos portugueses maometano e maometismo para designar, respectivamente, o seguidor e a crença difundida por ele. Na África Negra muçulmana, o nome foi deformado para Mamadou, e entre os berberesencontra-se a forma Mohand.

Nos textos portugueses mais antigos, este antropónimo aparece grafado de variadíssimas formas, como Mafoma, Mafamede, Mafomede, Mafomade, Mahamed, Mahoma, Mahomet, Mahometes ou Mahometo, sendo Mafamede e Mafoma por ventura as mais divulgadas (de resto, a última forma é correlata do nome do profeta nas outras línguas ibéricas, sendo que em castelhano, catalão, galego e até basco, se diz Mahoma). Desde o século XIX, porém, que tais termos caíram completamente em desuso no português, sendo até considerados ofensivos, posto que o seu uso, nas crónicas antigas, se fez sempre associado num contexto de cruzada contra a religião muçulmana.

Hoje em dia, alguns arabistas, islamólogos e historiadores lusófonos optam por utilizar a forma Muhammad em vez de Maomé, por considerarem que esta é a transliteração mais correcta a partir do árabe, sendo sua pronúncia a mais aproximada ao nome original (de facto, nos últimos anos, uma parte significativa e crescente da produção científica em Portugal na área dos estudos árabes e islâmicos tem vindo a consagrar este uso). Neste grupo inclui-se o falecido arabista português José Pedro Machado, autor de uma tradução do Alcorão em português na qual utiliza a forma Muhammad para se referir ao profeta do islão.

Todavia, os principais dicionários da língua portuguesa e alguns linguistas e lexicógrafos adotam a forma Maomé, vulgarizada por dois séculos de uso. Ademais, a língua árabe não estipula uma transliteração oficial (como o chinês, por exemplo), portanto a representação morfológica no alfabeto latino das palavras em árabe varia enormemente com as particularidades de cada língua. Outro argumento a favor do emprego de Maomé encontra-se no facto que praticamente todos os nomes de personalidades históricas anteriores ao século XX já possuem forma vernácula em português, como Moisés, Jesus, Martinho Lutero.

Fontes

As principais fontes para o estudo da vida de Maomé são o Alcorão, as biografias surgidas nos primeiros séculos do islão (nos séculos VIII e IX, conhecidas como Siras) e os hádices (ahadith). Embora o Alcorão não seja uma biografia de Maomé, ele proporciona algumas informações sobre a sua vida, apesar de habitualmente não fornecer um contexto histórico.

Entre as siras, destaca-se a sira de ibne Ixaque, Vida do Mensageiro de Deus (Sirat Rasul Allah) escrita em 767. O original perdeu-se, mas foi transcrito na sua maior parte por ibne Hixam e Tabari. Outras das mais antigas fontes são a história das campanhas militares de Maomé (O Livro de Raides), por Uaquidi (747–823) e os trabalhos do seu secretário ibne Sade de Bagdá (784–845). 

Outras fontes importantes incluem as coleções de hádices que são os relatos daquilo que o profeta disse, fez ou aprovava, e foram transmitidos através de uma cadeia oral. Os hádices foram compilados várias gerações após a morte do profeta (séculos VIII e IX) por vários dos seus seguidores, como Mohammed Al-Bukhari, Muslim ibne Alhajaje, Mohammed ibne Issa al-Tirmidi, Abdal Ramane Alnaçai, Abu Dawood, ibne Majá, Malique ibne Anas e al-Daracutni. São classificados pelos religiosos muçulmanos e juristas pela sua fiabilidade, sendo que os mais considerados (“sahih”, isto é, autênticos) são os de al-Bukhari e Muslim ibne Alhajaje. 

A Arábia pré-islâmica

A Península Arábica era em grande parte árida e vulcânica, tornando a agricultura difícil, exceto perto dos oásis ou nascentes. A paisagem era pontilhada de povoações, sendo 2 das mais proeminentes Meca e Iatrebe (Medina). Medina era um florescente assentamento agrícola, e Meca era um centro financeiro importante para muitas tribos circunvizinhas. A vida comunal era essencial para a sobrevivência nas duras condições do deserto.

A afiliação tribal, baseada no parentesco ou em alianças, era uma importante fonte de coesão social. Os árabes indígenas eram nômadas ou sedentários, os primeiros viajando constantemente de um lugar para outro buscando água e pasto para seus rebanhos, enquanto os segundos se estabeleceram e se concentraram no comércio e/ou na agricultura. A sobrevivência nómada também dependia de raides habituais de caravanas ou de oásis; os nômadas não viam isso como um crime, embora tivessem o cuidado de não cometer assassínio, para evitar vinganças. Comenta Karen Armstrong na sua biografia de Maomé, que os raides eram uma espécie de desporto local, conduzido com estilo, para redistribuir a pouca riqueza existente. 

Na Arábia pré-islâmica, deuses ou deusas eram vistos como protetores das tribos, e os seus espíritos eram associados a árvores sagradas, nascentes e poços, e até pedras. Além de ser o local de uma peregrinação anual, o santuário de Caaba, em Meca, abrigava centenas de ídolos de deuses tribais – cerca de 360, segundo as fontes tradicionais. Existiam comunidades monoteístas na Arábia, entre elas cristãos e judeus. 

Vida

Maomé, nos braços da mãe, Amina, em miniatura turca, ambos com o rosto velado Maomé nasceu em Meca no dia 12 do mês de Rabi al-Awwal (terceiro mês do calendário árabe) no “ano do Elefante”. Esse ano recebeu esta denominação porque nele se verificou o ataque pelas tropas de Abraha (governador do sul da Arábia ao serviço do imperador da Etiópia) que estavam equipadas com elefantes. Na era cristã este ano corresponde a 570.

Maomé pertencia ao clã dos hachemitas, por sua vez integrado na tribo dos coraixitas (Quraysh, “tubarão”). Era filho de Abdalá e de Amina. Seu pai faleceu pouco tempo antes do seu nascimento, deixando à esposa como herança cinco camelos e uma escrava. Entre as famílias de Meca existia na época a tradição de entregar temporariamente as crianças às famílias beduínas que viviam no deserto, uma vez que se considerava que o clima de Meca era pouco saudável; para além disso, acreditava-se que uma temporada de vida no deserto prepararia melhor a criança para a vida adulta.

Em troca desta adopção temporária, os beduínos recebiam presentes dos habitantes de Meca. Apesar das limitações económicas, Amina entregou Maomé aos cuidados de uma ama-de-leite chamada Halíma (Haleemah).

Quando Maomé tinha seis anos de idade a sua mãe faleceu; passou a viver então com o seu avô paterno, Abdal Mutalibe, e com os filhos destes, entre os quais se encontravam Abas e Hâmeza e que eram praticamente da mesma idade que Maomé, fruto de um casamento tardio do avô. Abdal Mutalibe ocupava em Meca o importante cargo de siqáya (serviço de distribuição pelos peregrinos da água sagrada do poço de Zamzam). Dois anos depois, o avô de Maomé faleceu e este foi viver com o seu tio Abu Talibe, novo chefe do clã hachemita.

Meca era nesta altura uma cidade-estado no deserto, onde se encontrava um santuário conhecido por Caaba (“Cubo”) administrado pelos coraixitas. A Caaba era venerada por todos os árabes, sendo alvo de uma peregrinação anual. Nela se encontrava a Pedra Negra (possívelmente um meteorito) e uma série de ídolos, representações de deusas e de deuses, dos quais se destacava o deus nabateu Hubal. Alguns habitantes de Meca distanciavam-se quer dos cultos pagãos, quer do monoteísmo dos judeus e dos cristãos, declarando-se hunafá, isto é, crentes no Deus único de Abraão, que acreditavam ter sido o fundador da Caaba. Apesar de a cidade não possuir recursos naturais, ela funcionava como um centro comercial e religioso, visitado por muitos comerciantes e peregrinos.

Durante a adolescência Maomé foi pastor e teria também acompanhado o seu tio em expedições comerciais à Síria. Segundo os relatos muçulmanos, quando Maomé, o seu tio e outros acompanhantes regressavam de uma destas viagens cruzaram-se perto de Bostra com um eremita cristão chamado Bahira que após ter examinado Maomé concluiu que este era o enviado que todos aguardavam. Bahira recomendou a Abu Talibe que levasse o seu sobrinho para Meca e que velasse pelo bem-estar deste.

Por volta de 595 Maomé conheceu Cadija, uma viúva rica de 40 anos de idade. O jovem (na altura com 25 anos de idade) impressionou Cadija pela sua honestidade nos negócios de tal forma que ela propôs o casamento. Este casamento representou uma mudança social para Maomé, já que segundo os costumes árabes da época os menores não herdavam, razão pela qual Maomé nada tinha recebido da herança do pai e do avô.

Maomé permaneceu com Cadija até à morte desta em 619. Cadija teve seis filhos de Maomé, quatro mulheres (Zainabe, Rucaia, Um Cultum e Fátima) e dois homens (Alcacim e Abdulá, que faleceram durante a infância). Para Karl-Heinz Ohlig a génese do islamismo assenta na religião professada pela esposa ebionita, que tal como outras seitas árabes cristãs, os arianos e nestorianos divergiam do cristianismo na aceitação do dogma da trindade.

Habitualmente afirma-se que Maomé teria sido analfabeto; contudo, é provável que alguém que desempenhou funções na área do comércio tenha possuído, autonomamente, conhecimentos essenciais de escrita.

O seu tio Zubair fundou a ordem de cavalaria conhecida como a Hilf al-fudul, que assistia os oprimidos, habitantes locais e visitantes estrangeiros. Maomé foi um membro entusiasta; ajudou na resolução de disputas, e tornou-se conhecido como Al-Ameen (“o confiável”) devido à sua reputação sem mácula nestas intermediações. Como exemplo, quando a Caaba sofreu danos após uma inundação, e todos líderes de Meca queriam receber a honra de resolver o problema, Maomé foi nomeado para solucionar a situação.

Propôs que estendessem um lençol branco no chão, que colocassem a Pedra Negra (também conhecida como Hajar el Aswad) no meio e pediu aos líderes tribais que a transportassem ao seu devido local, segurando os cantos do lençol. Chegados ao devido local, o próprio Maomé tratou de a colocar na posição devida.

Vida familiar

Durante a sua vida e depois da morte de Cadija, Maomé viria a casar com um grande número de outras mulheres, de onze a quinze consoante as fontes na sua maioria viúvas, excepto Aixa. Algumas destas mulheres eram viúvas de companheiros de Maomé, tinham uma idade avançada e o casamento com o profeta surgia como uma forma de garantir protecção e/ou estabilidade económica; outras eram viúvas da guerra com Meca, algumas sendo parte do saque, como Sufiá binte Huiai, cujo marido tinha sido torturado e executado; algumas ainda eram escolhidas também pela sua beleza, como Juai Riá binte Alharite, que tinha sido feita prisoneira num ataque. Em outros casos os casamentos serviram para cimentar alianças políticas.

Embora os textos sagrados islâmicos determinem que cada muçulmano só possa desposar simultaneamente quatro esposas, no próprio Alcorão é aberta uma excepção para o profeta. Uma das esposas mais importantes de Maomé foi Aixa, a sua segunda esposa, que tinha seis anos de idade na altura do noivado e segundo vários hádices, nove anos na altura de seu casamento com o profeta. Conta-nos a própria Aixa que nessa altura levou consigo as suas bonecas. Outras fontes afirmam que o casamento foi consumado por volta dos 13 ou 16 anos de Aixa. 

Morte e legado

Um ano antes da sua morte, Maomé dirigiu-se pela última vez aos seus seguidores naquilo que ficou conhecido como o sermão final do profeta – o sermão do adeus. Partes do seu texto encontram-se nos livros de ḥádīces e várias versões traduzidas do sermão foram publicadas. O texto que se segue é um dos vários frequentemente citados:

Ó gentes, ouvi-me atentamente porque não sei se estarei entre vós depois deste ano. Portanto, ouvi o que tenho a dizer com muita atenção e levai essas palavras àqueles que não puderam estar presentes aqui, hoje.

Ó gentes, da mesma forma que guardai este mês, este dia, esta cidade como sagrados, respeitai também a vida e propriedade de todo muçulmano, como uma responsabilidade sagrada. Devolvei os bens que vos foram confiados aos seus legítimos donos. Não feri ninguém porque assim ninguém vos ferirá. Lembrem-se de que verdadeiramente vós vos encontrareis com o vosso Senhor e que Ele ajustará as contas. Deus proibiu a usura (juros), portanto, todas as obrigações decorrentes de juros devem ser postas de lado.

Cuidado com Satanás, para segurança de vossa religião. Ele perdeu toda a esperança de que pudesse desviar-vos das grandes coisas, portanto, cuidado para não segui-lo nas pequenas. Ó gentes, é verdade que vós tendes certos direitos em relação a vossas mulheres, mas elas também têm direitos sobre vós. Se elas forem fiéis então a elas pertence o direito de serem alimentadas e vestidas com bondade. Tratai suas mulheres bem e sejai gentis com elas porque elas são vossas parceiras e auxiliares comprometidas. E é vosso direito que elas não façam amizade com quem não aproveis, e que elas jamais sejam impuras.

Ó gentes, levai-me a sério, adorai Alá, fazei as cinco preces diárias (salat), jejuai no mês de Ramadan e distribui de vossos bens em Zakat. Fazei o Hajj (peregrinação) desde que possível. Sabei que todo muçulmano é um irmão de todo muçulmano e que os muçulmanos constituem uma irmandade. São todos iguais, ninguém é superior, exceto pela piedade e boas ações.

Lembrai-vos de que um dia vós estareis diante de Deus e respondereis por vossos atos. Portanto, cuidado, não vos desvieis do caminho da justiça depois que eu tiver partido. Ó gentes, nenhum profeta ou apóstolo virá depois de mim e nem surgirá uma nova fé. Raciocinai bem e compreendei as palavras que vos estou transmitindo. Deixo-vos duas coisas, o Corão e o meu exemplo, as sunnas, e se seguirdes esses dois, jamais vos desviareis.

Todos que me ouvem deverão difundir minhas palavras para os outros, e estes para outros, e assim por diante, e que o último que as ouvir possa compreender minhas palavras melhor do que aqueles que agora me ouvem diretamente. Sede minha testemunha, ó Alá, de que eu transmiti Vossa mensagem ao Vosso povo Existe outra versão do sermão em The History of al-Tabari (The History of the Prophets and Kings) do conhecido historiador Atabari, mas diz-se não ser reconhecida por alguns estudiosos do Islã.

Há ainda mais uma versão bastante extensa, e também diferente, em “The Life of Muhammad” – a tradução da obra de de ibne Ixaque, (Sirat Rasul Allah)- por A. Guillaume (página 651 e 652). Também a versão de Sunan Abu Dawood (considerada fiável, i.é, Sahih) apresenta algumas diferenças, essencialmente em pontos de vista sobre as mulheres. 

Vários historiadores afirmam que as mudanças sociais islâmicas em áreas tais como a segurança social, a estrutura da família, a escravidão e os direitos das mulheres e das crianças melhoraram a sociedade árabe após o Islão. Por exemplo, de acordo com Bernard Lewis, o Islã “denunciou desde o início o privilégio aristocrático, rejeitou a hierarquia, e adotou uma fórmula de carreira aberta aos talentos”. As reformas econômicas olharam para a situação dos pobres, que se estava transformando um problema na Meca pré-islamica. O Alcorão requer o pagamento de um imposto para esmolas (zakat) para o benefício dos pobres; quando o poder de Maomé cresceu, ele exigiu que as tribos que se submetessem implementassem o Zakat.

Porém o ponto de vista de que toda a sociedade árabe experimentou uma melhoria após o Islão é habitualmente contestado por alguns estudiosos e historiadores, essencialmente no que toca aos direitos das mulheres. É certo que o Alcorão condena o costume existente de enterrar vivas as filhas indesejadas; não se sabe contudo com que frequência isso acontecia. Também não existia uma situação única, mas sim várias, conforme as tribos.

Leila Ahmed é de opinião de que em algumas culturas do Médio Oriente, as mulheres estavam considerávelmente melhor antes do surgimento do Islão do que após. Comenta W. Robertson Smith : “É muito notável que, apesar dos regulamentos humanos de Maomé, o lugar da mulher na família e na sociedade declinou constantemente sob sua lei. Na antiga Arábia, encontramos, lado a lado com as instâncias de opressão registradas em Medina, muitas provas de que as mulheres se moviam mais livremente e se afirmavam mais fortemente do que no Oriente moderno.” Também Jane I. Smith escreve que uma visão geral dos primeiros tempos do Islão fornece um panorama de crescente segregação, reclusão e degradação das mulheres.

A morte de Maomé ocorreu em Junho de 632 na casa de sua esposa Aixa em Medina, com a idade de 62 anos, deixando como legado uma Península Arábica onde todas as tribos tinham sido unidas por uma religião como nenhuma outra, segundo os crentes.[40] A morte do profeta deu origem a uma grande crise entre os seus seguidores, dado que nenhum dos filhos varões de Maomé tinha atingido a idade adulta, não havendo assim a possibilidade de uma sucessão natural.

Um conselho dos companheiros em Medina nomeou Abacar como o primeiro califa. Porém, alguns dos seguidores do profeta (os xiitas) acreditam que ele designou Ali, seu genro, como seu sucessor, num sermão público na sua última Haje, (i.é, peregrinação a Meca) num lugar chamado Ghadir Khom, enquanto que os sunitas discordam. Na verdade, esta disputa acabaria por originar a divisão do islãonos ramos dos sunitas e xiitas.

Imediatamente após a morte de Maomé, muitas tribos abandonaram o Islão, tendo algumas regressado ao politeísmo. Isso deu origem ás chamadas “guerras da apostasia” guerras Ridda), que duraram ainda cerca de um ano, com o resultado da reconversão total dos rebeldes. Ao mesmo tempo, o Império expandia-se constantemente, ao longo do reinado dos diversos califas, tendo chegado até a conquistar praticamente toda a Península Ibérica, durante o Califado Omíada (661-750). 

Revelação

Maomé tinha por hábito passar noites nas cavernas das montanhas próximas de Meca, praticando o jejum e a meditação. Sentia-se desiludido com a atmosfera materialista que dominava a sua cidade e insatisfeito com a forma como órfãos, pobres e viúvas eram excluídos da sociedade. A tradição muçulmana informa que no ano de 610, enquanto meditava numa caverna do Monte Hira, Maomé recebeu a visita do arcanjo Gabriel (Jibrīl), que o declarou como profeta de Deus. Desde este momento e até à sua morte, também recebeu outras revelações.

Ao receber estas mensagens, Maomé teria transpirado e entrado em estado de transe. A visão do arcanjo Gabriel o teria perturbado, mas sua mulher Cadija o reconfortou, assegurando que não se trataria de uma possessão de um génio. Para tentar compreender o sucedido, o casal consultou Uaraca ibne Naufal, um primo de Cadija que se acredita ter sido cristão. Com a ajuda deste, Maomé interpretou as mensagens como sendo uma experiência idêntica à vivida pelos profetas do judaísmo e cristianismo.

As primeiras pessoas a acreditar na missão profética de Maomé foram Cadija e outros familiares e amigos que se reuniam na casa de um homem chamado Al-Arqam. Por volta de 613, encorajado pelo seu círculo restrito de seguidores, Maomé começou a pregar em público. Ao proclamar a sua mensagem na cidade, ganhou seguidores, incluindo os filhos e irmãos do homem mais rico de Meca. A religião que ele pregou tornou-se conhecida como islão (“submissão à vontade de Deus”).

De acordo com Watt, á medida que os seus seguidores cresciam, ele se tornava uma ameaça para as tribos locais e os líderes da cidade, cuja riqueza se apoiava na Caaba, o ponto focal da vida religiosa de Meca, que Maomé ameaçava derrubar. Isto era especialmente ofensivo para os Coraixitas, a sua própria tribo, que tinha a responsabilidade pelo cuidado da Caaba, que nesta altura hospedava centenas de ídolos que os árabes adoravam como deuses. 

Rejeição

Apesar da mensagem monoteísta de Maomé ter sido aceita por alguns habitantes de Meca, muitos rejeitaram-na. Os conceitos religiosos por ele apresentados, e em particular a ideia de um Julgamento Final, geravam incredulidade e zombaria junto dos mequenses. Pediam-lhe que fizesse um milagre capaz de comprovar as suas alegações ou então acusavam-no de estar possuído por um djiin (um espírito maligno).

Para além disso, ele tornou-se muito impopular com os governantes, e seus seguidores foram alvos de ataques físicos repetidos, bem como de ataques às suas propriedades. De acordo com os relatos, alguns dos habitantes de Meca lançaram ataques vigorosos e brutais contra esta nova religião: forçaram pessoas a deitar-se sobre areia ardente, colocaram enormes pedras sobre seus peitos, derramaram ferro derretido sobre eles. Alguns teriam morrido.

Esta perseguição não atingiu inicialmente o próprio Maomé, pelo simples motivo de que a sua família detinha muita influência. Assim, a perseguição dos convertidos exerceu-se preferencialmente sobre os escravos, não protegidos por uma tribo ou um patrono. Sumaia binte Caiate, uma escrava negra, é celebrada como a primeira mártir do Islão. Estas circunstâncias tornaram-se intoleráveis e Maomé aconselhou alguns dos seus seguidores a irem para a Abissínia, por volta do ano 615. 

Os mequenses quiseram obrigar Maomé a deixar a sua missão religiosa oferecendo-lhe poder político. À medida que os seus seguidores aumentaram, os seus oponentes tentaram demovê-lo a deixar ou alterar a sua religião. Ofereceram-lhe uma boa parte do comércio e o casamento com mulheres de algumas das famílias mais ricas, mas ele rejeitou todas estas ofertas.Nessa ocasião, a reação de Maomé foi recitar a Sura 41 do Alcorão, que afirma que todos os descrentes em Alá arderão no fogo do Inferno.

Por esta altura, (ano 619) teria recebido uma revelação que o fez reconhecer como divindades legítimas as pagãs de Meca – Allat, Manat e al-Uzza. Os mequenses teriam acolhido bem esta mudança, mas logo após uma alegada visita do anjo Gabriel, Maomé voltou atrás, dizendo que a anterior revelação tinha sido obra de Satan – são os “versículos satânicos” – mencionados por ibne Ixaque, biógrafo do profeta. A maioria dos exegetas rejeitam essa narração. 

De acordo com as tradições muçulmanas, ainda em Meca, enquanto Maomé descansava, o anjo Gabriel surgiu, seguido por Buraque, uma criatura mitológica alada, “maior do que um burro mas menor do que uma mula, de orelhas compridas”. Maomé montou Buraque, e na companhia de Gabriel, eles viajaram para a “mesquita mais distante” (provavelmente Jerusalém). Seguidamente, Buraque levou-o aos vários céus, para encontrar primeiro os profetas mais antigos – incluindo Jesus Cristo – e depois Alá, que instruiu Maomé a dizer a seus seguidores que eles deveriam oferecer orações cinco vezes ao dia. Malique, guardião do Inferno (Jahannam) mostrou-lhe os terríveis suplícios reservados aos pecadores após a morte. Buraque então transportou-o de regresso a Meca. 

Os habitantes de Meca acabaram por exigir que Abu Talibe entregasse o seu sobrinho Maomé para execução. Uma vez que ele recusou, a oposição exerceu pressão comercial contra a tribo de Maomé e seus apoiantes. Houve também uma tentativa de assassinato. Após a morte do seu tio e de Cadija no ano de 619 (ano a que a tradição muçulmana se refere como o “Ano da Tristeza”), o próprio clã de Maomé retirou-lhe a proteção. Maomé mudou-se então para a cidade de At-Ta’if, onde não encontrou apoio por parte dos seus habitantes. Por esta razão ele regressou a Meca, onde sofreu abusos, foi apedrejado e atirado contra espinhos e lixo. Os seus inimigos preparavam-se para tentar novamente assassiná-lo.

A Hégira

Em 622, e em resultado do incremento da perseguição aos muçulmanos, estes começaram a deixar Meca em direcção a Iatrebe, uma cidade a cerca de 350 km a norte de Meca, que mais tarde passaria a ser conhecida por Medina. Esta migração é conhecida como a Hégira, palavra por vezes traduzida como “fuga”, embora o seu sentido preciso seja de “emigração”, mas não num sentido geográfico, mas de separação em relação à família e ao clã. O calendário islâmico tem início no dia em que começou a Hégira, 16 de Julho de 622.

A migração de Meca para Medina não foi um acto impulsivo, mas o resultado de contactos prévios. No Verão de 621, doze homens de Medina visitaram Meca durante a peregrinação anual e declararam-se muçulmanos. Em Junho do ano seguinte uma delegação de setenta e cinco medineneses também se declara muçulmana em Meca e jura proteger Maomé de qualquer ataque. Os primeiros muçulmanos começaram a abandonar Meca em Julho de 622; na época a viagem duraria nove dias. Os muçulmanos partiram em pequenos grupos e como tal não se gerou desconfiança entre os mequenses.

Maomé partiu em Setembro, tendo conseguido escapar a um plano que visava matá-lo. O plano estabelecia que um homem pertencente a cada um dos clãs de Meca enfiaria a sua espada em Maomé; desta forma, a vingança (conceito enraizado entre as tribos árabes) seria difícil de concretizar. O plano fracassou uma vez que Maomé fugiu durante a noite, tendo deixado a dormir na sua cama Ali, vestido com o seu manto verde. Quando o grupo pretendia executar o plano deparou-se com Ali, que nada sofreu. Maomé chegaria a Medina a 24 de Setembro.

Medina era um oásis que tinha na agricultura a sua principal actividade económica. Nesta cidade viviam três tribos judaicas, – Banu Cainuca, Banu Nadir, e Banu Curaiza – talvez aí chegadas depois da destruição do Segundo Templo pelos Romanos em 70 e duas tribos árabes pagãs, os Khazradj e os Aws. Os habitantes de Medina esperavam que Maomé os unisse e evitasse incidentes tais como a guerra civil de 618, na qual muitas vidas se tinham perdido.

Os anos em Medina

A deslocação para Medina colocou grandes dificuldades financeiras para o grupo de seguidores de Maomé.

Os vindos de Meca (muhajirun) tiveram de ser apoiados pelos muçulmanos de Medina (ansari, ou seja, ajudantes ou auxiliadores) Entre as primeiras coisas que o profeta Maomé fez com a preocupação de encerrar as disputas de longa data entre as tribos de Medina foi elaborar um documento conhecido como a Constituição de Medina, “estabelecendo uma forma de aliança ou confederação” entre as oito tribos de Medina e os emigrantes muçulmanos de Meca; o documento especificou os direitos e deveres de todos os cidadãos e as relações das diferentes comunidades em Medina (incluindo incluindo as relações da comunidade muçulmana com outras comunidades, especificamente os judeus e outros Povos do Livro).

A comunidade definida na Constituição de Medina (Umma), tinha uma orientação religiosa, também moldada por considerações práticas e preservava substancialmente as formas legais das antigas tribos árabes. 

Bernard Lewis afirma que a chamada constituição de Medina não era realmente um tratado no sentido moderno da palavra, mas sim uma proclamação unilateral de Maomé. Nela se encontra já delineada a separação nítida entre os crentes e os não crentes. Arent Jan Wensinck é de opinião que “não se tratava de um tratado,(…) mas de um édito, definindo a relação entre as três partes; acima de todos estava Alá, isto é, Maomé”. Também Julius Wellhausen diz duvidar que de facto houvesse um acordo escrito do qual ambas as partes tivessem uma cópia. Aponta o facto de que os judeus nunca mencionaram o documento; mais tarde, os Banu Curaiza alegaram que não havia acordo entre eles e Maomé. 

Após alguns meses em Medina, Maomé começou a atacar as caravanas de Meca que negociavam com a Síria, tendo ele próprio participado de três ataques, que a princípio resultaram em fracassos; mas finalmente teve sucesso quando enviou uma expedição (cuja missão era inicialmente de espiar) para interceptar uma caravana durante o final do mês sagrado de Rajab (a expedição de Nakhla) – altura em que, segundo os costumes da época, era proibido o derramamento de sangue.

Maomé tomou um quinto do saque, após ter recebido uma revelação de Alá que justificava a luta mesmo nos meses sagrados, visto ser um mal menor do que a perseguição aos crentes (Alcorão, 2ː217). A correcta distribuição dos despojos de guerra, fonte de disputas entre os fiéis, foi estabelecida no Alcorão mais tarde, após a batalha de Badr. 

Guerras

Em Março de 624, Maomé preparou um ataque a uma caravana de Meca que regressava da Síria. A caravana, liderada por Abu Sufiane (líder do clã omíada), conseguiu enganar os muçulmanos. Contudo, Amir ibne Hixam, de Meca (líder do clã Makhzum) que se tinha previamente oposto a Maomé e organizado um boicote contra o clã haxemita, pretendia ensinar-lhe uma lição.

A 15 de Março de 624, próximo de um lugar chamado Badir, as duas forças colidem. Apesar de serem apenas 300 mal equipados contra 800 mequenses melhores equipados na batalha, os muçulmanos, com maior disciplina e saber militar, tiveram sucesso, matando pelo menos 45 naturais de Meca, incluindo Amir ibne Hixam, e tomando 70 prisioneiros, com apenas 14 baixas muçulmanas. O Alcorão, pela voz de Alá, esclarece que ajudou os fiéis na batalha, enviando milhares de anjos. Para os muçulmanos a vitória foi encarada como uma confirmação da missão profética de Maomé. Muitos habitantes de Medina converteram-se ao Islão e Maomé tornou-se o governador de facto da cidade.

Várias importantes alianças pelo casamento ocorreram nesta altura. Das filhas de Maomé, Fátima casou com Ali (seria mais tarde o quarto califa) e Um Cultum casou com Otomão (o terceiro califa entre 644 e 656). O próprio Maomé, já casado com Sauda binte Zama e com Aixa, filha de Abu Baquir (o primeiro califa) casou então com Hafsá, a filha de Omar (o segundo califa), cujo marido tinha falecido na Batalha de Badr.

Após a expedição de Nakhla, mas principalmente após o êxito da batalha de Badir, começaram a ser eliminadas as vozes dissidentes em Medina. De acordo com relatos coletados por Ibn Ishaq e Ibn Sa’d, Asma binte Maruane e Abu Afaque que tinham composto poemas contra o profeta, foram mortos por seguidores de Maomé Estes relatos, no entanto, são considerados por alguns como uma invenção. Ka’b ibn al-Ashraf, um dos líderes judaicos de Medina, um poeta, morreu por ordem do Profeta após a batalha de Badir. 

As relações com os judeus de Medina continuaram a se degradar. Para estes era impossível aceitar a mensagem religiosa de um homem que colocava Moisés, João Baptista e Jesus no mesmo grau de consideração religiosa. Por volta desta altura, Maomé mudou a direcção da quibla de Jerusalém para Meca.

Em 624, sob acusações de quebra do chamado tratado de Medina, Maomé cerca a tribo judaica dos Banu Cainuca. Após duas semanas de cerco, rendem-se sem condições. Maomé tencionava executar todos os homens, só não o fazendo após os pedidos de clemência de Abdulá ibne Ubai; assim, exilou-os de Medina e confiscou as suas propriedades.

A 21 de Março de 625, Abu Sufiane, em busca de vingança, acercou-se de Medina com 3 000 homens. Na manhã de 23 de Março começou a luta nos montes Uude. Quando a batalha parecia prestes a ser decidida a favor dos muçulmanos, um grave erro foi cometido por uma parte do seu exército, que alterou o resultado da batalha.

Segundo os relatos e o Corão, onde a batalha é citada, os arqueiros deixaram os seus postos designados, precipitando-se para despojar o campo de Meca, o que permitiu um ataque de surpresa da cavalaria mequense. Cerca de 70 muçulmanos perderam a vida e o próprio Maomé foi bastante ferido. Após a batalha, o exército adversário retirou-se de volta para Meca, declarando vitória. Nos dois anos seguintes, ambos os lados prepararam-se para o encontro decisivo.

Em Julho de 625, conforme ibne Ixaque, teria havido traição dos Banu Nadir, que tentam matar Maomé atingindo-o com uma grande pedra. Maomé cerca-os durante duas semanas até á rendição. Finalmente, a tribo é forçada ao exílio para Caibar, levando apenas consigo o que conseguisse carregar nos seus camelos, excepto as armas. O episódio é citado no Alcorão. 

Em Março de 627, Abu Sufiane e as tribos no resto da Arábia formaram uma confederação e durante o dia da Batalha da Trincheira sitiaram Medina. Maomé ordenou que fosse cavada uma trincheira à volta de Medina, por sugestão do escriba persa Salman e-Farsi. Esperando conseguir fazer diversos ataques simultaneamente, os confederados persuadiram então os Banu Curaiza a atacarem a cidade a partir do sul. A diplomacia de Maomé, no entanto, conseguiu desestabilizar as negociações, e dissolveu a aliança existente contra ele. Os defensores bem-organizados, a diminuição do moral entre os confederados e as condições climáticas fizeram que o cerco terminassem num fiasco. 

Em 628, o Tratado de Hudaybiyah foi assinado entre Meca e os muçulmanos e foi quebrado por Meca dois anos depois. Após a assinatura do tratado muito mais pessoas se converteram ao Islã. Ao mesmo tempo, as rotas comerciais de Meca foram cortadas quando Maomé trouxe as tribos do deserto circundantes para o seu controle. 

Após a retirada de Abu Sufiane e suas forças, os muçulmanos dirigiram a sua atenção para os grupos que teriam cometido traição ao acordo de Medina. Os munafiqun (isto é, os hipócritas, um grupo de muçulmanos que eram secretamente adversos à causa) desmoronaram-se rapidamente, e seu líder Abdulá ibne Ubai prometeu aliança com Maomé. Conta Aixa: “Quando o apóstolo de Alá voltou, no dia da Batalha de al-Candaque, ele poisou as armas e tomou um banho.

Então Gabriel, com a cabeça coberta de pó, apareceu-lhe dizendo: “Poisaste as armas! Por Alá, eu não poisei as minhas armas ainda.” O Apóstolo disse, “onde vamos agora?” Gabriel disse: “Por este caminho”, apontando a tribo de Banu Curaiza. Assim, o apóstolo foi ter com eles”. Os muçulmanos cercaram então os Banu Curaiza, que teriam conspirado contra eles. Após um cerco de 25 dias, a tribo rendeu-se; quando os seus antigos aliados da tribo Aws tentaram interceder por eles, Maomé perguntou-lhes se aceitariam que fosse um da sua própria tribo a julgá-los. Eles aceitaram: Maomé escolheu então Saade ibne Muade. 

Saad tinha sofrido uma ferida letal na batalha contra as forças de Abu Sufiane (morreria pouco mais tarde) e ordenou que as forças activas da tribo, consistindo de todos os seus homens adultos, seiscentos a setecentos, fossem executados, as suas propriedades divididas entre os fiéis, e as mulheres e crianças reduzidas à escravidão, como era tradição do tempo. Maomé aprovou a sentença considerando-a conforme a vontade de Alá. Uma vala comum foi aberta no mercado de Medina, onde os Banu Curaiza foram decapitados.

As mulheres e crianças foram vendidas como escravas em troca de cavalos e armas, excepto algumas que foram distribuídas pelos fiéis. O próprio profeta tomou para si Raiana binte Zaide, a quem propôs libertação e casamento, mas que preferiu o papel de concubina. De acordo com algumas fontes, ela aceitou sua proposta. Mais tarde, ela teria se tornado muçulmana. Comentadores argumentaram que o punimento de Banu Curaiza era conforme aos ditames da Bíblia hebraica sobre a guerra; no entanto, as fontes originais da sirah não mencionam isto.

Conquista de Meca

Por volta de 627 Maomé tinha unido Medina sob o Islão, com o desaparecimento dos seus inimigos internos. Os beduínos, após um período de batalhas e negociações, tornaram-se aliados de Maomé e aceitaram a sua religião. Depois de muito contacto com a cidade e com os muçulmanos, alguns converteram-se gradualmente. Por esta altura, as revelações que supostamente tinham visitado Maomé, chegaram ao fim. Ele regressou então a Meca para tomar posse da Caaba.

Maomé colocou os cidadãos de Meca sob pressão económica, destinada primeiramente a ganhar a adesão deles ao Islão. Em Março de 628, ele partiu para a “peregrinação” a Meca, com 1 600 militares que o acompanhavam. Os naturais de Meca no entanto, puseram travo ao avanço destas forças nos limites do seu território, em Al-Hudaybiyah.

Alguns dias depois, os de Meca fizeram um tratado com Maomé. Com negociação e o consentimento dos mais velhos Coraixitas, ele fez uma peregrinação à Caaba, desarmado. O tratado estabelecia uma trégua de dez anos, e os muçulmanos tinham permissão para fazer a peregrinação a Meca no próximo ano. O casamento de Maomé com Ramla binte Abi Sufiane, filha de seu antigo inimigo Abu Sufiane, cimentou ainda mais o tratado.

Após a assinatura da trégua, Maomé ataca o rico oásis judaico de Caibar, (em 628) onde habitavam agora a maioria dos Banu Nadir, que em 625 ele expulsara de Medina. Caibar possuía várias fortalezas, que os muçulmanos foram tomando uma a uma, até á rendição. De entre as mulheres e crianças feitas cativas, Maomé escolheu para si Safia binte Huiai, filha de um chefe judeu, que perdera nesse dia o marido, pai e irmão; em seguida libertou-a e fez dela sua oitava esposa (Sahih Bukhari, Volume 5, Livro 59, Numero 512).

De acordo com as fontes muçulmanas, alguns dos judeus vencidos foram autorizados a permanecer no oásis, continuando a praticar a sua religião, em troca dos seus bens e do pagamento do imposto de 50% sobre as suas colheitas, mas com um aviso do profetaː “Se quisermos expulsar-vos, expulsamo-vos”. Foi assim estabelecida a condição inovadora dos “dhimmi” (“povo protegido”) -gozando de alguma autonomia na sua comunidade, e protegidos de agressões exteriores, enquanto pagassem o imposto per capitaque ficaria a ser conhecido como jizia. Os judeus acabariam por ser expulsos do oásis alguns anos mais tarde pelo califa Omar. 

De acordo com as tradições e historiadores muçulmanos, em 629 Maomé teria enviado embaixadores a seis ou oito reis ou governadores para os chamar ao Islão. Estes eram al-Mucaucis, governador dos coptas no Egito, Harite Gassani, governador da Síria, o príncipe de Omã, o príncipe do Iêmem, Munzir ibne Saua al-Tamimi governador do Barém, o Negus da Abissínia, o imperador bizantino Heráclio, o xá sassânida Cosroes II.

A carta teria contido: “Em nome de Alá, o misericordioso e compassivo. (…) Eu sou o apóstolo de Alá enviado para todos vós, por aquele que possui os céus e a terra. Não há deus senão Ele que dá a vida e morte [..] ” A carta terminava com” Saudações ao que segue o caminho certo. Coloque-se ao abrigo do castigo de Alá, se você não o fizer, bem, eu já enviei a mensagem!” Contudo, outros historiadores, como Safi-ur-Rabma AI-Mubarakpuri, esclarecem que existiram várias cartas, de teor ligeiramente diferente entre elas, tantas quantas os seus destinatários; o seu sentido geral era “submeta-se e ficará a salvo” As reações ás cartas foram variadas, com algumas conversões ao Islão.

Harite Gassani, furioso, rasgou a carta, que considerou uma insolência. Mucaucis, do Egito, não se convertendo, foi no entanto bastante cortês, tendo enviado diversos presentes para Maomé, os quais incluíam duas escravas, Sirin e Mariyah . A primeira foi oferecida depois a um dos companheiros do profeta; quanto a Mariyah, tornou-se concubina de Maomé, de quem teve um filho varão, que no entanto morreu ainda criança.

Passados dois anos, o acordo com Meca foi quebrado. Em Novembro de 629, aliados de Meca atacaram um aliado de Maomé, o que levou Maomé a romper o tratado de Al-Hudaybiyah. Após planeamento secreto, Maomé marchou sobre Meca em Janeiro de 630 com 10 000 combatentes. Excepto alguns pequenos recontros, não houve derramamento de sangue. Abu Sufiane e outros líderes de Meca submeteram-se formalmente. Maomé prometeu uma amnistia geral (com algumas pessoas especificamente excluídas).

Muitos habitantes de Meca converteram-se ao islão, entre eles Abu Sufiane, que teve um diálogo com o profeta, durante o qual um dos seus companheiros lhe ordenou que se convertesse “antes que percas a cabeça. Ele assim fez”. Em Meca, Maomé destruiu todos os ídolos na Caaba e em outros pequenos santuários. De acordo com relatos coletados por Ibne Ixaque e al-Azraqi, o profeta pessoalmente poupou pinturas ou afrescos de Jesus e da Virgem Maria, mas outras tradições sugerem que todas as imagens foram apagadas. 

Unificação da Arábia 

Após a Hégira, Maomé começou a estabelecer alianças com tribos nómadas. À medida que a sua força e influência cresceu, insistiu que as tribos potencialmente aliadas se tornassem muçulmanas, e enviou grupos armados convidando à conversão.

Quando estava em Meca, Maomé foi informado de que havia uma grande concentração de tribos hostis e partiu para as defrontar, com um exército de 12 000 homens. A batalha teve lugar em Hunain, contra a tribo beduína dos Hawazin (inimigos de longa data de Meca) e os seus aliados os Tacifes, no ano de 630, com um poderoso grupo de cerca de 20 000 guerreiros, e pese embora uma retirada inicial dos muçulmanos no meio de grande confusão, os inimigos foram derrotados, muitos dos seus mortos ou aprisionados, capturadas cerca de 6.000 mulheres e crianças, gado e armas, 24 000 camelos e outros bens.

A importância da batalha verifica-se pela sua menção no Alcorão (9.25, 9.26) Como seria de esperar, a maior parte dos Hawazin converteu-se ao Islão nesta mesma ocasião, tendo Maomé ordenado, em consequência, a devolução das mulheres e crianças que tinham sido cativas. Alguns viram agora Maomé como o homem mais poderoso da Arábia e a maioria das tribos enviou delegações para Medina, em busca de uma aliança. Antes da sua morte, rebeliões ocorreram em uma ou duas partes da Arábia mas o estado islâmico tinha força suficiente para lidar com elas.

Veneração de Maomé

Usualmente, quando um muçulmano se refere a Maomé, Jesus ou outro dos profetas, imediatamente após o nome diz ou escreve “que a paz e bênção de Alá estejam sobre ele” ou expressão equivalente em outra língua (frequentemente árabe), ou ainda usa a sigla dessa expressão. Em inglês, por exemplo, é aceitável usar “pbuh” ou “peace be upon him”. A sigla tradicional em árabe é “swas”. Maomé é considerado pela comunidade muçulmana como um modelo a seguir.

A devoção à sua pessoa tem sido expressa ao longo dos séculos das mais variadas formas, como por exemplo através da escrita de poemas. Um dos poemas mais famosos, a “Burda” (ou “Poema do Manto”) foi composto no século XIII por Al-Busiri. Embora não exista registro de milagres feitos por Maomé, alguns relatos populares atribuem-lhe essa capacidade.

Em vários locais do mundo muçulmano existem santuários dedicados a um pelo da sua barba. No Palácio Topkapı, em Istambul, um relicário guarda aquilo que se acredita ter sido o seu manto, as suas espadas, bem como uma pegada que ficou registada numa superfície enlameada e alguns pelos da sua barba. A maioria dos muçulmanos celebra o nascimento de Maomé (Mulude), embora o movimento religioso ultraconservador vaabismo e algumas outras menores ramificações consideram que essa celebração é incorrecta por se tratar de uma inovação religiosa proibida pelo Islão. Estes muçulmanos são igualmente contra a veneração destas relíquias, por considerarem tratar-se de idolatria. 

Representações de Maomé

As representações visuais do profeta podem eventualmente ser proibidas e consideradas insultuosas. Geralmente os xiitas e os sufis aceitam mais a ideia da representação, que em geral o Islão rejeita, por ser, à semelhança do judaísmo e do cristianismo primitivo, uma religião da palavra e não da imagem. 

A proibição pretende-se estender a todo o mundo não muçulmano. Segundo Azzam Tamimi, ex-chefe do Instituto de Pensamento Islâmico, “é aceite por todas as autoridades islâmicas que o profeta Maomé e os demais profetas não podem ser desenhados e não podem ser reproduzidos em fotos, porque são, segundo a fé islâmica, indivíduos infalíveis, modelos de comportamento, e portanto não podem ser representados em nenhuma maneira que seja desrespeitosa.” 

Recentemente, charges de Maomé criticando o terrorismo que foram publicadas na Europa causaram muita polêmica, grande furor do mundo islâmico e protestos em todo o mundo. Como vingança, o jornal iraniano Hamshahri fez uma competição internacional de charges sobre o Holocausto.

A relação entre um e outro assunto escapa a grande parte da opinião pública ocidental, mas Mahmoud Ahmadinejad, ex-presidente iraniano, comentou em 2005 numa entrevistaː “Eles (isto é, o Ocidente em geral e Israel) fabricaram a lenda do massacre dos judeus, e erguem-na acima do próprio Deus, da religião e mesmo dos profetas. Se alguém em seu país questiona Deus, ninguém diz nada, mas se alguém nega o mito do massacre de judeus, os alto-falantes sionistas e os governos pagos pelo sionismo começarão a gritar.”A heresia, blasfémia, ateísmo são já habituais no Ocidente; resta a questão do Holocausto, visto como o último ponto sagrado. 

Veja mais:

Em 1997, o Conselho para as Relações Americano-Islâmicas (CAIR) solicitou que uma imagem de Maomé, existente num friso de mármore da fachada do Edifício da Suprema Corte dos Estados Unidos, fosse removido por meio de jacto de areia.. Embora dizendo apreciar que Maomé fosse incluído no panteão do tribunal de 18 prominentes legisladores da história, o CAIR observou que o Islã desencoraja as representações de Maomé em qualquer representação artística. O pedido foi rejeitado.

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Marie Curie https://canalfezhistoria.com/marie-curie/ https://canalfezhistoria.com/marie-curie/#respond Sun, 16 Mar 2025 23:54:05 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6149 Marie Skłodowska Curie (Varsóvia, 7 de novembro de 1867 — Passy, Sallanches, 4 de julho de 1934) foi uma cientista polonesa de naturalização francesa que conduziu pesquisas pioneiras no ramo da radioatividade. Foi a primeira mulher a ser laureada com um Prêmio Nobel e a primeira pessoa e única mulher a ganhar o prêmio duas vezes. A família Curie ganhou um total de cinco prêmios Nobel. Marie Curie foi a primeira mulher a ser admitida como professora na Universidade de Paris.

Em 1995, a cientista se tornou a primeira mulher a ser enterrada por méritos próprios no Panteão de Paris. Nascida Maria Salomea Skłodowska em Varsóvia, no então Reino da Polônia, parte do Império Russo. Estudou na Universidade Floating, em Varsóvia, onde começou seu treino científico. Em 1891, aos 24 anos, seguiu sua irmã mais velha, Bronislawa, para estudar em Paris, cidade na qual conquistou seus diplomas e desenvolveu seu futuro trabalho científico. Em 1903, Marie dividiu o Nobel de Física com o seu marido Pierre Curie e o físico Henri Becquerel. A cientista também foi laureada com o Nobel de Química em 1911. 

As conquistas de Marie incluem a teoria da radioatividade (termo que ela mesma cunhou), técnicas para isolar isótopos radioativos e a descoberta de dois elementos, o polônio e o rádio. Sob a direção dela foram conduzidos os primeiros estudos sobre o tratamento de neo plasmas com o uso de isótopos radioativos. A cientista fundou os Institutos Curie em Paris e Varsóvia, que até hoje são grandes centros de pesquisa médica. Durante a Primeira Guerra Mundial, fundou os primeiros centros militares no campo da radioatividade.

Apesar da cidadania francesa, Marie Curie nunca deixou sua identidade polonesa de lado. Ensinou suas duas filhas a falar polonês e as levou em viagens para a Polônia. Nomeou o primeiro elemento químico que descobriu de polônio, em homenagem ao seu país de origem. Marie Curie morreu aos 66 anos, em 1934, em um sanatório em Sancellemoz, na França, por conta de uma leucemia causada pela exposição a radiação ao carregar testes de rádio em seus bolsos durante a pesquisa e ao longo de seu serviço na Primeira Guerra, quando montou unidades móveis de raio-X. 

Juventude

Maria Sklodowska nasceu na atual capital da Polônia, Varsóvia, em 7 de novembro de 1867, quando essa ainda fazia parte do Império Russo e foi a quinta e mais nova filha de professores bem conhecidos da cidade. A família havia perdido suas propriedades e fortunas devido ao envolvimento em levantes patrióticos poloneses que visavam a restauração da independência da Polônia, o que condenou Maria e seus irmãos a uma vida difícil.

Educou-se em pequenas escolas da região de Varsóvia, obtendo um nível básico de formação científica com seu pai, Władysław Skłodowski, que era professor de física e matemática e havia levado instrumentos de laboratório para casa após autoridades russas proibirem este ensino em escolas polonesas. Sua mãe, que era católica, faleceu quando ela tinha dez anos e a irmã mais velha dois anos depois, o que a influenciou a abandonar o catolicismo e se tornar agnóstica. 

Após se graduar no equivalente ao ensino secundário, passou um ano no interior com seus parentes paternos possivelmente devido a uma depressão, e após retornou a viver com seu pai na Varsóvia, onde foi tutora. Impedida de prosseguir com a sua educação de nível superior devido ao fato de ser mulher, ela e a irmã Bronisława se envolveram com a Universidade Volante, uma instituição de ensino clandestina com um currículo pró-Polônia que desafiava as autoridades russas e admitia mulheres.

Após combinar com sua irmã apoiá-la financeiramente nos estudos de medicina em Paris, e posteriormente receber o mesmo favor em troca, tornou-se governanta. Primeiro na Varsóvia e depois por dois anos em Szczuki com a família dos Żorawski, que tinham parentesco com seu pai. Enquanto trabalhando para esta família se apaixonou por Kazimierz Żorawski, que viria a ser um matemático eminente, mas a família dele rejeitou a ideia do casamento com ela devido a sua condição financeira, o qual Kazimierz não conseguiu se opor.

O término do relacionamento foi ruim para ambos. Ele tornou-se doutor e seguiu carreira como matemático, vindo a se tornar professor e Reitor da Universidade da Varsóvia. Porém, ainda velho se sentava contemplativo diante da estátua de Maria diante do Instituto de Rádio que ela havia fundado em 1932. 

No início da década de 1890 Bronisława convidou Maria a morar com ela em Paris, mas ela recusou porque não tinha permissão para prosseguir com seus estudos de nível superior. Levaria ainda um ano e meio para que juntasse os recursos financeiros necessários. Durante todo este período, Maria havia continuado seus estudos de maneira independente lendo livros, trocando cartas e estudando por conta própria.

No início de 1889 voltou a morar com seu pai na Varsóvia e continuou trabalhando como governanta até 1891. Ela então começou a receber seu treinamento científico prático no laboratório de química no Museu da Indústria e Agricultura na Krakowskie Przedmieście 66, perto do centro antigo da cidade. O laboratório era dirigido pelo seu primo Józef Boguski, que havia sido auxiliar do químico russo Dimitri Mendeleev. 

Mudança para Paris

No final de 1891 mudou para Paris, indo morar com a irmã e o cunhado antes de alugar um sótão perto do Quartier Latin. Prosseguiu os estudos da física, matemática e química na Universidade de Paris, onde havia se matriculado. Na época, sobrevivia com poucos recursos chegando até a desmaiar devido a fome. Marie, nome pelo qual viria a ser conhecida na França, estudava de dia e ensinava à noite mas conseguindo o suficiente para se manter. Em 1893, concluiu uma graduação em física e começou a trabalhar no laboratório industrial do professor Gabriel Lippmann. Enquanto isso, continuou com os estudos e com a ajuda de uma bolsa de estudos conseguiu uma segunda graduação em 1894. 

Marie iniciou sua carreira científica em Paris com estudos das propriedades magnéticas de diferentes tipos de aço, estudos estes encomendados pela Sociedade de Encorajamento da Indústria Nacional (Société d’encouragement pour l’industrie nationale.) Naquele mesmo ano conheceu Pierre Curie; o interesse de ambos pelas ciências naturais os aproximou. Pierre era instrutor na Escola de Física e Química, a École supérieure de physique et de chimie industrielles de la ville de Paris (ESPCI).

Eles foram apresentados pelo fisicista polonês, professor Józef Wierusz-Kowalski, quem ouvira que Marie procurava um espaço mais amplo para seus estudos em laboratório e pensou que Pierre tinha acesso a tal. Apesar de Pierre não possuir um laboratório grande, ele foi capaz de disponibilizar espaço para que Marie pudesse trabalhar. 

Estudos

Em 1896, Henri Becquerel incentivou-a a estudar as radiações emitidas pelos sais de urânio, que por ele tinham sido descobertas. Juntamente com o seu marido, Marie começou, então, a estudar os materiais que produziam tais radiações, procurando novos elementos que, segundo a hipótese que os dois defendiam, deveriam existir em determinados minérios como a pechblenda (que tinha a curiosa característica de emitir ainda mais radiação que o urânio dela extraído). Efetivamente, em 1898 deduziram que haveria, com certeza, na pechblenda, algum componente liberando mais energia que o urânio; em 26 de dezembro do mesmo ano, Maria Skłodowska Curie anunciou a descoberta dessa nova substância à Academia de Ciências de Paris. 

Após vários anos de trabalho constante, através da concentração de várias classes de pechblenda, isolaram dois novos elementos químicos. O primeiro foi nomeado polônio, em referência a seu país nativo, e o outro rádio, devido à sua intensa radiação, do qual conseguiram obter 0,1 g em 1902. Posteriormente partindo de oito toneladas de pechblenda, obtiveram mais 1 g de sal de rádio. Propositalmente, nunca patentearam o processo que desenvolveram. Os termos radioativo e radioatividade foram inventados pelo casal para caracterizar a energia liberada espontaneamente por este novo elemento químico. 

Com Pierre Curie e Antoine Henri Becquerel, Marie recebeu o Nobel de Física de 1903, “em reconhecimento aos extraordinários resultados obtidos por suas investigações conjuntas sobre os fenômenos da radiação, descoberta por Henri Becquerel”. Foi a primeira mulher a receber tal prêmio. 

Carreira científica

Marie Curie conseguiu que seu marido, Pierre Curie, se tornasse chefe do Laboratório de Física da Sorbonne. Doutorou-se em ciências em 1903, e após a morte de Pierre Curie em 1906, em um acidente rodoviário, ela ocupou o seu lugar como professora de Física Geral na Faculdade de Ciências. Foi a primeira mulher a ocupar este cargo. Foi também nomeada Diretora do Laboratório Curie do Instituto do Radium, da Universidade de Paris, fundado em 1914. Participou da 1ª à 7ª Conferência de Solvay. 

Educadora

Marie Curie teve também um papel significativo como educadora. Já em 1885, com apenas 18 anos, exercera a profissão de professora particular para filhos de famílias ricas na Polônia. O país estava dominado pelo Império Russo, era impedido de repassar sua cultura e sua língua aos jovens, mas não para Marie, que com a ajuda de sua irmã Bronislawa Sklodowska lecionou numa universidade ilegal (por desafiar as políticas da época), frequentada principalmente por mulheres proibidas de seguirem seus cursos regularmente. 

Aos 33 anos, já na França, Marie torna-se professora secundária, sendo a primeira mulher a participar do corpo docente da Universidade de Sorbonne. Suas ex-alunas contam que ela foi inovadora pois ampliou o tempo de suas aulas, levava-as para conhecer os laboratórios de pesquisa, colocava-as diante equipamentos de experimentos (o que até então era restrito apenas aos garotos) e produzia seu próprio material didático. 

Irène Joliot-Curie, filha de Marie, também conta que sua mãe, em parceria com outros cientistas, participava de um projeto de ensino nomeado de “cooperativa de ensino” que visava ensinar ciência aos próprios filhos de forma mais prática, experimental. As próprias crianças faziam os experimentos, obviamente sempre supervisionadas, buscando sempre instigá-las a terem interesse pelo aprendizado. Jean Baptiste Perrin, Paul Langevin, Marie Henriette Mouton, Henriette Perrin, Alice Chavannes e Jean Magrou são cientistas que a ajudaram nesse projeto. 

Reconhecimento

Oito anos depois, recebeu o Nobel de Química de 1911, «em reconhecimento pelos seus serviços para o avanço da química, com o descobrimento dos elementos rádio e polônio, o isolamento do rádio e o estudo da natureza dos compostos deste elemento». Com uma atitude generosa, não patenteou o processo de isolamento do rádio, permitindo a investigação das propriedades deste elemento por toda a comunidade científica. 

O Nobel da Química foi-lhe atribuído no mesmo ano em que a Academia de Ciências de Paris a rejeitou como sócia, após uma votação ganha por Eduard Branly com diferença de apenas um voto. Foi a primeira pessoa a receber duas vezes o Prêmio Nobel. Linus Pauling repetiu o feito, ganhando o Nobel de Química, em 1954 e o Nobel da Paz em 1962 e tornou-se a única personalidade a ter recebido dois Prémios Nobel não compartilhados. Por outro lado, Marie Curie foi a única pessoa a receber duas vezes o Prémio Nobel, em áreas científicas distintas.

Em 1906 sucedeu ao seu marido na cadeira de Física Geral, na Sorbonne. Depois da morte do seu marido, Marie teve um relacionamento amoroso com o físico Paul Langevin, que era casado, fato que acabou resultando num escândalo jornalístico com referências xenófobas, devido à sua origem polaca. 

Durante a Primeira Guerra Mundial, Curie propôs o uso da radiografia móvel para o tratamento de soldados feridos. Em 1921 visitou os Estados Unidos, onde foi recebida triunfalmente. O motivo da viagem era arrecadar fundos para a pesquisa. Nos seus últimos anos foi assediada por muitos físicos e produtores de cosméticos, que faziam uso de material radioativo sem precauções. Visitou também o Brasil, em 1926, atraída pela fama das águas radioativas de Lindóia, hoje conhecida pelo nome de Águas de Lindóia. Fundou o Instituto do Rádio, em Paris. Em 1922 tornou-se membro associado livre da Academia de Medicina. 

Em 1924 foi homenageada por Alfred Schoep que nomeou um mineral então recentemente descoberto de sklodowskita. Marie Curie morreu perto de Salanches, França, em 1934, de leucemia, devido, seguramente, à exposição maciça a radiações durante o seu trabalho. Sua filha mais velha, Irène Joliot-Curie, recebeu o Nobel de Química de 1935, ano seguinte à morte de Marie. O seu livro “Radioactivité” (escrito ao longo de vários anos), publicado a título póstumo, é considerado um dos documentos fundadores dos estudos relacionados à Radioactividade clássica. Em 1995 seus restos mortais foram transladados para o Panteão de Paris, tornando-se a primeira mulher a ser sepultada neste local. 

Durante o período da hiperinflação nos anos 90, sua efígie foi impressa nas notas de banco de 20000 zloty da sua Polônia natal. A sua filha, Éve Curie, escreveu a mais famosa das biografias da cientista, traduzida em vários idiomas. Em Portugal, é editada pela editora “Livros do Brasil”. Esta obra deu origem em 1943 ao argumento do filme: “Madame Curie”, realizado por Mervyn LeRoy e com Greer Garson no papel de Marie Curie. 

Veja mais:

Foram também feitos dois telefilmes sobre a sua vida: “Marie Curie: More Than Meets the Eye” (1997) e “Marie Curie – Une certaine jeune fille” (1965), além de uma minissérie francesa, “Marie Curie, une femme honorable” (1991). O elemento 96 da tabela periódica, o Cúrio, símbolo Cm foi batizado em honra do Casal Curie.

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Martinho Lutero https://canalfezhistoria.com/martinho-lutero/ https://canalfezhistoria.com/martinho-lutero/#respond Fri, 14 Mar 2025 00:31:48 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6069 Martinho Lutero, em alemão: Martin Luther (Eisleben, 10 de novembro de 1483 — Eisleben, 18 de fevereiro de 1546), foi um monge agostiniano e professor de teologia germânico que tornou-se uma das figuras centrais da Reforma Protestante. Levantou-se veementemente contra diversos dogmas do catolicismo romano, contestando sobretudo a doutrina de que o perdão de Deus poderia ser adquirido pelo comércio das indulgências.

Essa discordância inicial resultou na publicação de suas famosas 95 Teses em 1517, em um contexto de conflito aberto contra o vendedor de indulgências Johann Tetzel. Sua recusa em retratar-se de seus escritos, a pedido do Papa Leão X em 1520 e do imperador Carlos V na Dieta de Worms em 1521, resultou em sua excomunhão da Igreja Romana e em sua condenação como um fora-da-lei pelo imperador do Sacro Império Romano Germânico. 

Lutero propôs, com base em sua interpretação das Sagradas Escrituras, especialmente da Epístola de Paulo aos Romanos, que a salvação não poderia ser alcançada pelas boas obras ou por quaisquer méritos humanos, mas tão somente pela fé em Cristo Jesus (sola fide), único salvador dos homens, sendo gratuitamente oferecida por Deus aos homens. Sua teologia desafiou a infalibilidade papal em termos doutrinários, pois defendia que apenas as Escrituras (sola scriptura) seriam fonte confiável de conhecimento da verdade revelada por Deus. Opôs-se ao sacerdotalismo romano (isto é, à consagrada divisão católica entre clérigos e leigos), por considerar todos os cristãos batizados como sacerdotes e santos. Aqueles que se identificaram com os ensinamentos de Lutero acabaram sendo chamados de luteranos.

Em seus últimos anos, Lutero mostrou-se radical em suas propostas contrárias aos judeus alemães, tendo sido inclusive considerado posteriormente um antissemita. Essas e outras de suas afirmações fizeram de Lutero uma figura bastante controversa entre muitos historiadores e estudiosos. Além disso, muito do que foi escrito a seu respeito sofre da reconhecida parcialidade resultante de paixões religiosas. 

Primeiros anos de vida

Martinho Lutero, cujo nome em alemão era Martin Luther ou Luder, era filho de Hans Luther e Margarethe Lindemann. Mudou-se para Mansfeld, onde seu pai dirigia várias minas de cobre. Tendo sido criado no campo, Hans Luther desejava que seu filho viesse a se tornar um funcionário público, melhorando, assim, as condições da família. Com esse objetivo, enviou o já velho Martinho para escolas em Mansfeld, Magdeburgo e Eisenach. 

Aos dezessete anos, em 1501, Lutero ingressou na Universidade de Erfurt, onde tocava alaúde e onde recebeu o apelido de O Filósofo. Ainda na Universidade de Erfurt, estudou a filosofia nominalista de Ockham (as palavras designam apenas coisas individuais; não atingem os “universais”, as realidades presentes em todos os indivíduos, como por exemplo a natureza humana; em consequência, nada pode ser conhecido com certeza pela razão natural, exceto as realidades concretas: esta pessoa, aquela coisa).

Esse sistema dissolvia a harmonia multissecular entre a ciência e a fé que tanto havia sido defendida pela escolástica de “São Jesus Cristo”, pois essa filosofia baseava-se unicamente na vontade de Deus. O jovem estudante graduou-se bacharel em 1502 e concluiu o mestrado em 1505, sendo o segundo entre dezessete candidatos. Seguindo os desejos maternos, inscreveu-se na escola de direito da mesma universidade.

Mas tudo mudou após uma grande tempestade com descargas elétricas, ocorrida naquele mesmo ano (1505): um raio caiu próximo de onde ele estava passando, ao voltar de uma visita à casa dos pais. Aterrorizado, teria, então, gritado: “Ajuda-me, Sant’Ana! Eu me tornarei um monge!” Tendo sobrevivido aos raios, deixou a faculdade, vendeu todos os seus livros, com exceção dos de Virgílio, e entrou para a ordem dos Agostinianos, de Frankfurt, a 17 de julho de 1505. 

Vida monástica e académica

O jovem Martinho Lutero dedicou-se por completo à vida no mosteiro, empenhando-se em realizar boas obras a fim de agradar a Deus e servir ao próximo através de orações por suas almas. Dedicou-se intensamente à meditação, às autoflagelações, às muitas horas de oração diárias, às peregrinações e à confissão. Quanto mais tentava ser agradável ao Senhor, mais se dava conta de seus pecados Johann von Stauptuioz, o superior de Lutero, concluiu que o jovem necessitava de mais trabalhos, para afastar-se de sua excessiva reflexão.

Ordenou, portanto, ao monge que iniciasse uma carreira acadêmica. Em 1507, Lutero foi ordenado sacerdote. Em 1508, começou a lecionar teologia na Universidade de Wittenberg. Lutero recebeu seu bacharelado em estudos bíblicos em 19 de março de 1508. Dois anos depois, visitou Roma, de onde regressou bastante decepcionado. 

Em 19 de outubro de 1512, Martinho Lutero graduou-se Doutor em Teologia e, em 21 de outubro do mesmo ano, foi “recebido no Senado da Faculdade Teológica” com o título de “Doutor em Bíblia”. Em 1515, foi nomeado vigário de sua ordem tendo sob sua autoridade onze monastérios. Durante esse período, estudou grego e hebraico, para aprofundar-se no significado e origem das palavras utilizadas nas Escrituras – conhecimentos que logo utilizaria para a sua própria tradução da Bíblia. 

A controvérsia acerca das indulgências

Além de suas atividades como professor, Martinho Lutero ainda colaborava como pregador e confessor na igreja de Santa Maria, na cidade. Também pregava habitualmente na Igreja do Castelo de Wittenberg (chamada de “Todos os Santos” – porque ali havia uma coleção de relíquias, estabelecidas por Frederico III da Saxônia).

Foi durante esse período que o jovem sacerdote se deu conta dos problemas que o oferecimento de indulgências aos fiéis, como se esses fossem fregueses, poderia acarretar. A indulgência é a remissão (parcial ou total) do castigo temporal imputado a alguém por conta dos seus pecados (aplicável apenas a alguém que esteja em estado de graça, ou seja, livre de pecados graves, e arrependido de todos os seus pecados veniais).

Naquele tempo, o papa havia concedido uma indulgência plenária para quem doasse qualquer quantia para a reforma da Basílica de São Pedro. O frade Johann Tetzel fora recrutado para viajar através dos territórios episcopais do arcebispo Alberto de Mogúncia, mas sua campanha tomou a linha de uma venda, pois este frade, posteriormente punido por isso, dizia que “Assim que uma moeda tilinta no cofre, uma alma sai do Purgatório”. 

Lutero viu este tráfico de indulgências como um abuso que poderia confundir as pessoas e levá-las a confiar apenas nas indulgências, deixando de lado a confissão e o arrependimento verdadeiros. Proferiu, então, três sermões contra as indulgências em 1516 e 1517. Segundo a tradição, em 31 de outubro de 1517 foram afixadas as 95 Teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, com um convite aberto a uma disputa escolástica sobre elas.

Essas teses condenavam o que Lutero acreditava ser a avareza e o paganismo na Igreja como um abuso e pediam um debate teológico sobre o que as Indulgências significavam. Para todos os efeitos, contudo, nelas Lutero não questionava diretamente a autoridade do Papa para conceder as tais indulgências.

As 95 Teses foram logo traduzidas para o alemão e amplamente copiadas e impressas. Ao cabo de duas semanas se haviam espalhado por toda a Alemanha e, em dois meses, por toda a Europa. Este foi o primeiro episódio da História em que a imprensa teve papel fundamental, pois facilitou a distribuição simples e ampla do documento. 

A resposta do Papado

Depois de fazer pouco caso de Lutero, dizendo que ele seria um “alemão bêbado que escrevera as teses”, e afirmando que “quando estiver sóbrio mudará de opinião”[9] o Papa Leão X ordenou, em 1518, ao professor de teologia dominicano Silvestro Mazzolini que investigasse o assunto. Este denunciou que Lutero se opunha de maneira implícita à autoridade do Sumo Pontífice, quando discordava de uma de suas bulas. Declarou ser Lutero um herege e escreveu uma refutação acadêmica às suas teses. Nela, mantinha a autoridade papal sobre a Igreja e condenava as teorias de Lutero como um desvio e uma apostasia. Lutero replicou de igual forma (academicamente), dando assim início à controvérsia. 

Enquanto isso, Lutero tomava parte da convenção dos agostinianos em Heidelberg, onde apresentou uma tese sobre a escravidão do homem ao pecado e a graça divina. No decorrer da controvérsia sobre as indulgências, o debate se elevou até o ponto de duvidar do poder absoluto e autoridade do Papa, pois as doutrinas de “Tesouraria da Igreja” e “Tesouraria dos Merecimentos”, que serviam para reforçar a doutrina e venda e das indulgências, haviam se baseado na bula papal “Unigenitus”, de 1343, do Papa Clemente VI.

Por causa de sua oposição a esta doutrina, Lutero foi qualificado como heresiarca e o Papa, decidido a suprimir por completo os seus pontos de vista, ordenou que ele fosse chamado a Roma, viagem que deixou de ser realizada por motivos políticos.

Lutero, que anteriormente professava a obediência implícita à Igreja, negava agora abertamente a autoridade papal e apelava para que fosse realizado um Concílio. Também declarava que o papado não formava parte da essência imutável da Igreja original. 

Desejando manter relações amistosas com o protetor de Lutero, Frederico, o Sábio, o Papa engendrou uma tentativa final de alcançar uma solução pacífica para o conflito. Uma conferência com o representante papal Karl von Miltitz em Altenburg, em janeiro de 1519, levou Lutero a decidir guardar silêncio, tal qual seus opositores. Também escreveu uma humilde carta ao Papa e compôs um tratado demonstrando suas opiniões sobre a Igreja Católica.

A carta nunca chegou a ser enviada, pois não continha nenhuma retratação; e no tratado que compôs mais tarde, negou qualquer efeito das indulgências no Purgatório. Quando Johann Ecko desafiou um colega de Lutero, Andreas Carlstadt, para um debate em Leipzig, Lutero juntou-se à discussão (27 de junho-18 de julho de 1519), no curso do qual negou o direito divino do solidéu papal e da autoridade de possuir o as chaves do Céu que, segundo ele, haviam sido outorgadas apenas ao próprio Apóstolo Pedro, não passando para seus sucessores.

Negou que a salvação pertencesse à Igreja Católica ocidental sob a autoridade do Papa, mas que esta se mantinha na Igreja Ortodoxa, do Oriente. Depois do debate, Ecko afirmou que forçara Lutero a admitir a semelhança de sua própria doutrina com a de João Huss, que havia sido queimado na fogueira da Inquisição.

Lutero durante os acontecimentos

Não parecia haver esperanças de entendimento. Os escritos de Lutero circulavam amplamente, alcançando França, Inglaterra e Itália, em 1519, e os estudantes dirigiam-se a Wittenberg para escutar Lutero que, naquele momento, publicava seus comentários sobre a Epístola aos Gálatas e suas “Operationes in Psalmos” (Trabalho nos Salmos). 

As controvérsias geradas por seus escritos levaram Lutero a desenvolver suas doutrinas mais a fundo, e o seu “Sermão sobre o Sacramento Abençoado do Verdadeiro e Santo Corpo de Cristo, e suas Irmandades”, ampliou o significado da Eucaristia para incluir também o perdão dos pecados e ao fortalecimento da fé naqueles que a recebem. Além disso, ele ainda apoiava a realização de um concílio a fim de restituir a comunhão. 

O conceito luterano de “igreja” foi desenvolvido em seu “Von dem Papsttum zu Rom” (Sobre o Papado de Roma), uma resposta ao ataque do franciscano Augustin von Alveld, em Leipzig (junho de 1520). Enquanto o seu “Sermon von guten Werken” (Sermão das Boas Obras), publicado na primavera de 1520, era contrário à doutrina católica das boas obras e dos atos como meio de perdão, mantendo que as obras do crente são verdadeiramente boas, quer para o secular como para o clérigo, se ordenadas por Deus.

A Nobreza alemã

A disputa havida em Leipzig, em 1519, fez com que Lutero travasse contato com os humanistas, especialmente Melanchthon, Reuchlin e Erasmo de Roterdã, que por sua vez também influenciara o nobre Franz von Sickingen. Von Sickingen e Silvestre de Schauenbur queriam manter Lutero sob sua proteção, convidando-o para seus castelos na eventualidade de não ser-lhe seguro permanecer na Saxônia, em virtude da proscrição papal. 

Sob essas circunstâncias de crise, e confrontando aos nobres alemães, Lutero escreveu “À Nobreza Cristã da Nação Alemã” (agosto de 1520), onde recomendava ao laicado, como um sacerdote espiritual, que fizesse a reforma requerida por Deus, mas abandonada pelo Papa e pelo clero. Pela primeira vez Lutero referiu-se ao Papa como o Anticristo. As reformas que Lutero propunha não se referiam apenas a questões doutrinárias, mas também aos abusos eclesiásticos:

• a diminuição do número de cardeais e outras exigências da corte papal;
• a abolição das rendas do Papa;
• o reconhecimento do governo secular;
• a renúncia da exigência papal pelo poder temporal;
• a abolição dos Interditos e abusos relacionados com a excomunhão;
• a abolição das peregrinações nocivas;
• a eliminação dos excessivos dias santos;
• a supressão dos conventos para monjas, da mendicidade e da suntuosidade; a reforma das universidades;
• a ab-rogação do celibato do clero;
• e, finalmente, uma reforma geral na moralidade pública.

Muitas destas propostas refletiam os interesses da nobreza alemã, revoltada com sua submissão ao Papa e, principalmente, com o fato de terem que enviar riquezas a Roma. 

O cativeiro babilônico

Lutero gerou muitas polêmicas doutrinárias com seu “Prelúdio no Cativeiro Babilônico da Igreja”, em especial no que diz respeito aos sacramentos. 

• Eucaristia – apoiava que fosse devolvido o “cálice” ao laicado; na chamada questão do dogma da transubstanciação, afirmava que era real a presença do corpo e do sangue do Cristo na eucaristia, mas refutava o ensinamento de que a eucaristia era o sacrifício oferecido por Deus.
• Batismo – ensinava que trazia a justificação apenas se combinado com a fé salvadora em o receber; de fato, mantinha o princípio da salvação inclusive para aqueles que mais tarde se convertessem.
• Penitência – afirmou que sua essência consiste na palavra de promessa de desculpas recebidas com fé.

Para ele, apenas estes três sacramentos podiam assim ser considerados, pois sua instituição era divina e a promessa da salvação de Deus estava conexa a eles. Contudo, em sentido estrito, apenas o batismo e a eucaristia seriam verdadeiros sacramentos, pois apenas eles tinham o “sinal visível da instituição divina”: a água no batismo e o pão e vinho da eucaristia. Lutero negou, em seu documento, que a confirmação (Crisma), o matrimônio, a ordenação sacerdotal e a extrema-unção fossem sacramentos.

Liberdade de um Cristão

Da mesma forma, o completo desenvolvimento da doutrina de Lutero sobre a salvação e a vida cristã foi exposto em “A Liberdade de um Cristão” (publicado em 20 de novembro de 1520, onde exigia uma completa união com Cristo mediante a palavra através da fé, e a inteira liberdade do cristão como sacerdote e rei sobre todas as coisas exteriores, e um perfeito amor ao próximo). As duas teses que Lutero desenvolve nesse tratado são aparentemente contraditórias, mas, em verdade, são complementares: 

  • “O cristão é um senhor libérrimo sobre tudo, a ninguém sujeito”;
  • “O cristão é um servo oficiosíssimo de tudo, a todos sujeito”.
    A primeira tese é válida “na fé”; a segunda, “no amor”. 

A excomunhão

A 15 de junho de 1520, o Papa advertiu Lutero, com a bula “Exsurge Domine”, onde o ameaçava com a excomunhão, a menos que, num prazo de setenta dias, repudiasse 41 pontos de sua doutrina, destacados pela Igreja.. 

Em outubro de 1520, Lutero enviou seu escrito “A Liberdade de um Cristão” ao Papa, acrescentando a frase significativa: 

“Eu não me submeto a leis ao interpretar a palavra de Deus”. Enquanto isso, um rumor chegara de que Johan Ech saíra de Meissem com uma proibição papal, enquanto este se pronunciara realmente a 21 de setembro. O último esforço de paz de Lutero foi seguido, em 12 de dezembro, da queima da bula, que já tinha expirado há 120 dias, e o decreto papa de Wittenberg, defendendo-se com seus “Warum des Papstes und seiner Jünger Bücher verbrannt sind” e “Assertio omnium articulorum”. O Papa Leão X excomungou Lutero a 3 de janeiro de 1521, na bula “Decet Romanum Pontificem”. 

A execução da proibição, com efeito, foi evitada pela relação do Papa com Frederico III da Saxônia, e pelo novo imperador, Carlos I de Espanha (Carlos V de Habsburgo), que julgou inoportuno apoiar as medidas contra Lutero, diante de sua posição face à Dieta. 

A Dieta de Worms

O Imperador Carlos V inaugurou a Dieta real a 22 de janeiro de 1521. Lutero foi chamado a renunciar ou confirmar seus ditos e foi-lhe outorgado um salvo-conduto para garantir-lhe o seguro deslocamento. A 16 de abril, Lutero apresentou-se diante da Dieta. Johann Eck, assistente do Arcebispo de Trier, mostrou a Lutero uma mesa cheia de cópias de seus escritos.

Perguntou-lhe, então, se os livros eram seus e se ele acreditava naquilo que as obras diziam. Lutero pediu um tempo para pensar em sua resposta, o que lhe foi concedido. Este, então, isolou-se em oração e depois consultou seus aliados e amigos, apresentando-se à Dieta no dia seguinte. Quando a Dieta veio a tratar do assunto, o conselheiro Eck pediu a Lutero que respondesse explicitamente à seguinte questão: 

“Lutero, repeles seus livros e os erros que eles contêm?”
Lutero, então, respondeu: 

“Que se me convençam mediante testemunho das Escrituras e claros argumentos da razão – porque não acredito nem no Papa nem nos concílios já que está provado amiúde que estão errados, contradizendo-se a si mesmos – pelos textos da Sagrada Escritura que citei, estou submetido a minha consciência e unido à palavra de Deus. Por isto, não posso nem quero retratar-me de nada, porque fazer algo contra a consciência não é seguro nem saudável.”

De acordo com a tradição, Lutero, então, proferiu as seguintes palavras: 

“Não posso fazer outra coisa, esta é a minha posição. Que Deus me ajude! Nos dias seguintes, seguiram-se muitas conferências privadas para determinar qual o destino de Lutero. Antes que a decisão fosse tomada, Lutero abandonou Worms. Durante seu regresso a Wittenberg, desapareceu.

O Imperador redigiu o Édito de Worms a 25 de maio de 1521, declarando Martinho Lutero fugitivo e herege, e proscrevendo suas obras. 

Processo Romano

Em Junho de 1518, foi aberto o processo contra Lutero, com base na publicação das suas 95 Teses. Alegava-se, com o exame do processo, que ele incorria em heresia. Nas aulas que ministrava na Universidade de Wittenberg, espiões registravam seus comentários negativos sobre a excomunhão. Depois disso, em agosto de 1518, o processo foi alterado para heresia notória. Lutero foi convidado a ir a Roma, onde teria que desmentir sua doutrina. 

Lutero recusou-se a fazê-lo, alegando razões de saúde; e pretendeu uma audiência em território alemão. O seu pedido baseava-se no argumento (Gravamina) da Nação Alemã. Seu pedido foi aceito, ele foi convidado para uma audiência com o cardeal Caetano de Vio (Tomás Caetano), durante a reunião das cortes (Reichstag) imperiais de Augsburg. Entre 12 e 14 de outubro de 1518, Lutero falou a Caetano. Este pediu-lhe que revogasse sua doutrina. Lutero recusou-se a fazê-lo. 

Do lado romano, o caso pareceu terminado. Por causa da morte de Imperador Maximiliano I (janeiro de 1519), houve uma pausa de dois anos no andamento do processo. O Imperador tinha decidido que o seu sucessor seria Carlos (futuro Carlos V). Por causa das pertenças de Carlos em Itália, o papa renascentista Leão X receava o cerco do Estado da Igreja e procurava evitar que os príncipes-eleitores alemães (Kurfürsten) renunciassem a Carlos. 

O papel de protetor de Lutero assumido por Frederico, o sábio, levou a que Roma pedisse que Karl von Miltiz intercedesse junto ao príncipe por uma solução razoável. Após a escolha de Carlos V como imperador (26 de junho de 1519), o processo de Lutero voltaria a ser alvo de preocupações e trabalhos. Em junho de 1520, reapareceu a ameaça no escrito “Exsurge Domini” e, em janeiro de 1521, a bula “Decet Romanum Pontificem” excomungou Lutero.

Seguiu-se, então, a ameaça oficial do imperador (Reichsacht). Notável é, no entanto, que Lutero foi, mais uma vez, recebido em audiência, o que também deixou claras as diferenças entre o papado e o império. Carlos foi o último rei (após uma reconciliação) a ser coroado imperador pelo papa. Nos dias 17 e 18 de abril de 1521 Lutero foi ouvido na Dieta de Worms (conferência governativa) e, após ter negado a revogação da sua doutrina, foi publicado o Édito de Worms, banindo Lutero. 

Exílio no Castelo de Wartburg

O seqüestro de Lutero durante a sua viagem de regresso da Dieta de Worms foi arranjado. Frederico, o sábio ordenou que Lutero fosse capturado por um grupo de homens mascarados a cavalo, que o levaram para o Castelo de Wartburg, em Eisenach, onde ele permaneceu por cerca de um ano. Deixou crescer a barba e tomou as vestes de um cavaleiro, assumindo o pseudônimo de Jörg. Durante esse período de retiro forçado, Lutero trabalhou na sua célebre tradução da Bíblia para o alemão. 

Com o início da estadia de Lutero em Wartburg, começou um período muito construtivo de sua carreira como reformista. Em seu “Deserto” ou “Patmos” (como ele mesmo chamava, em suas cartas) de Wartburg, começou a tradução da Bíblia, da qual foi impresso o Novo Testamento, em setembro de 1522.

Em Wartburg, ele produziu outros escritos, preparou a primeira parte de seu Guia para Párocos e “Von der Beichte” (Sobre a Confissão), em que nega a obrigatoriedade da confissão, e admite como saudável a confissão privada voluntária. Também escreveu contra o Arcebispo Albrecht, a quem obrigou, com isso, a desistir de retomar a venda das indulgências.

Em seus ataques a Jacobus Latomus, avançou em sua visão sobre a relação entre a graça e a lei, assim como sobre a natureza revelada pelo Cristo, distinguindo o objetivo da graça de Deus para o pecador que, por acreditar, é justificado por Deus devido à justiça de Cristo, pois a graça salvadora reside dentro do homem pecador. Ainda mostrou que o “princípio da justificação” é insuficiente, ante a persistência do pecado depois do batismo – pela inerência do pecado em cada boa obra.

Lutero, amiúde, escrevia cartas a seus amigos e aliados, respondendo-lhes ou perguntando-lhes por seus pontos de vista e respondendo-lhes aos pedidos de conselhos. Por exemplo, Felipe Melanchthon lhe escreveu perguntando como responder à acusação de que os reformistas renegavam a peregrinação e outras formas tradicionais de piedade. Lutero respondeu-lhe em 1 de agosto de 1521: 

“Se és um pregador da misericórdia, não pregues uma misericórdia imaginária, mas sim uma verdadeira. Se a misericórdia é verdadeira, deve penitenciar ao pecado verdadeiro, não imaginário. Deus não salva apenas aqueles que são pecadores imaginários. Conheça o pecador, e veja se os seus pecados são fortes, mas deixai que tua confiança em Cristo seja ainda mais forte, e que se alegre em Cristo que é o vencedor sobre o pecado, a morte e o mundo. Cometeremos pecados enquanto estivermos aqui, porque nesta vida não há um só lugar onde resida a justiça. Nós todos, sem embargo, disse Pedro (2ª Pedro 3:13), estamos buscando mais além um novo céu e uma nova terra onde a justiça reinará”.

Enquanto isso, alguns sacerdotes saxônicos haviam renunciado ao voto de castidade, ao mesmo tempo em que outros tantos atacavam os votos monásticos. Lutero, em seu De votis monasticis (Sobre os votos monásticos), aconselhava-os a ter mais cautela, aceitando, no fundo, que os votos eram geralmente tomados “com a intenção da salvação ou à busca de justificação”. Com a aprovação de Lutero em seu “De abroganda missa privata (Sobre a abrogação da missa privada), mas contra a firme oposição de seu prior, os agostinianos de Wittenberg realizaram a troca das formas de adoração e terminaram com as missas.

Sua violência e intolerância certamente desagradaram Lutero que, em princípios de dezembro, passou alguns dias entre eles. Ao retornar para Wartburg, escreveu “Eine treue Vermahnung … vor Aufruhr und Empörung” (Uma sincera admoestação por Martinho Lutero a todos os cristãos para que se resguardem da insurreição e rebelião). Apesar disso, em Wittengerg, Carlstadt e o ex-agostiniano Gabriel Zwilling reclamavam a abolição da missa privada e da comunhão em duas espécies, assim como a eliminação das imagens nas igrejas e a ab-rogação do celibato. 

Regresso a Wittenberg e os Sermões Invocavit

No final do ano de 1521, os anabatistas de Zwickau se entregam à anarquia. Contrário a tais concepções radicais e temendo seus resultados, Lutero regressou em segredo a Wittenberg, em 6 de março de 1522. Durante oito dias, a partir de 9 de março (domingo de Invocavit) e concluindo no domingo seguinte, Lutero pregou outros tantos sermões que tornaram-se conhecidos como os “Sermões de Invocavit”.

Nessas pregações, Lutero aconselhou uma reforma cuidadosa, que leve em consideração a consciência daqueles que ainda não estivessem persuadidos a acolher a Reforma. A consagração do pão foi restaurada por um tempo e o cálice sagrado foi ministrado somente àqueles do laicado que o desejaram. O cânon das missas, devido ao seu caráter imolatório, foi suprimido. Devido ao sacramento da confissão ter sido abolido, verificou-se a necessidade que muitas pessoas ainda tinham de confessar-se em busca do perdão. Esta nova forma de serviço foi dada a Lutero em “Formula missæ et communionis” (Fórmula da missa e Comunhão), de 1523.

Em 1524 surgiu o primeiro hinário de Wittenberg, com quatro hinos. Como aquela parte da Saxônia era governada pelo Duque Jorge, que proibira seus escritos, Lutero declarou que a autoridade civil não podia promulgar leis para a alma. Fez isso em sua obra: “Über die weltliche Gewalt, wie weit man ihr Gehorsam schuldig sei” (Autoridade Temporal: em que medida deve ser obedecida). 

Matrimônio e família

Em abril de 1523, Lutero ajudou 12 freiras a escaparem do cativeiro no Convento de Nimbschen. Entre essas freiras encontrava-se Catarina von Bora, filha de nobre família, com quem veio a se casar, em 13 de junho de 1525. Desta união nasceram seis filhos: Johannes, Elisabeth, Magdalena, Martin, Paul e Margaretha. Dos seis filhos, Margaretha foi a única que manteve a linhagem até os dias de hoje. Um descendente ilustre da família Lutero é o ex-presidente alemão Paul von Hindenburg. O casamento de Lutero com a ex-freira cisterciense incentivou o casamento de outros padres e freiras que haviam adotado a Reforma. Foi um rompimento definitivo com a Igreja Romana. 

Antissemitismo

Martinho Lutero foi antissemita: 

“A Alemanha deve ficar livre de judeus, aos quais após serem expulsos, devem ser despojados de todo dinheiro e joias, prata e ouro, e que fossem incendiadas suas sinagogas e escolas, suas casas derrubadas e destruídas (…), postos sob um telheiro ou estábulo como os ciganos (…), na miséria e no cativeiro assim que estes vermes venenosos se lamentassem de nós e se queixassem incessantemente a Deus”. – “Sobre os judeus e suas mentiras” de Martinho Lutero. 

O historiador Robert Michael escreve que Lutero estava preocupado com a questão judaica toda a sua vida, apesar de dedicar apenas uma pequena parte de seu trabalho para ela. Seus principais trabalhos sobre os judeus são Von den Juden und Ihren lügen (“Sobre os judeus e suas mentiras”), e Vom Schem Hamphoras und vom Geschlecht Christi (“Do Inefável Nome e da Santa linhagem de Cristo”) – reimpressas cinco vezes dentro de sua vida – ambas escritas em 1543, três anos antes de sua morte.

Nesses trabalhos Lutero afirmou que os judeus já não eram o povo eleito, mas o “povo do diabo”. A sinagoga era como “uma prostituta incorrigível e uma devassa maléfica” e os judeus estavam “cheios das fezes do demónio,… nas quais se rebolam como porcos” Lutero aconselhou as pessoas a incendiarem as sinagogas, destruindo os livros judaicos, proibir os rabinos de pregar, e apreender os bens e dinheiro dos Judeus e também expulsá-los ou fazê-los trabalhar forçosamente. Lutero também parecia aconselhar seus assassinatos, escrevendo “É nossa a culpa em não matar eles.” 

A campanha contra os judeus de Lutero foi bem sucedida na Saxónia, Brandemburgo, e Silésia. Josel de Rosheim (1480-1554), que tentou ajudar os judeus na Saxónia, escreveu em seu livro de memórias a situação de intolerância foi causada por “(…) esse sacerdote cujo nome é Martinho Lutero – (…) seu corpo e alma vinculada até no inferno!! – que escreveu e publicou muitos livros heréticos no qual disse que quem ajudasse judeus seriam condenados à perdição.”

Josel teria pedido a cidade de Estrasburgo para proibir a venda das obras antijudaicas de Lutero; porém seu pedido foi-lhe negado quando um pastor luterano de Hochfelden argumentou em um sermão que os seus paroquianos deviam assassinar judeus. O antissemitismo de Lutero persistiu após a sua morte, ao longo de todo o ano 1580, motins expulsaram judeus de vários estados luteranos alemães. 

A opinião predominante entre os historiadores é que a sua retórica antijudaica contribuiu significativamente para o desenvolvimento do antissemitismo na Alemanha, e na década de 1930 e 1940 auxiliou na fundamentação do ideal do nazismo de ataques a judeus. O próprio Adolf Hitler em sua autobiografia Mein Kampf considerou Lutero uma das três maiores figuras da Alemanha, juntamente com Frederico, o Grande, e Richard Wagner.

Em 5 de outubro de 1933, o Pastor Wilhelm Rehm de Reutlingen declarou publicamente que “Hitler não teria sido possível, sem Martinho Lutero”. Julius Streicher, o editor do jornal Nazista Der Stürmer, argumentou durante sua defesa no julgamento de Nuremberg “que nunca havia dito nada sobre os judeus que Martinho Lutero não tivesse dito 400 anos antes”. Em novembro de 1933, uma manifestação protestante que reuniu um recorde de 20.000 pessoas, aprovou três resoluções: 

• Adolf Hitler é a conclusão da Reforma; 
• Judeus Batizados devem ser retirados da Igreja; 
• O Antigo Testamento deve ser excluído da Sagrada Escritura. 

Diversos historiadores (entre os quais se destacam William L. Shirer e Michael H. Hart) sugerem que a influência de Lutero tenha auxiliado a aceitação do nazismo na Alemanha pelos protestantes no século XX. Shirer fez a seguinte observação em Ascensão e queda do Terceiro Reich: 

“É difícil compreender a conduta da maioria dos protestantes nos primeiros anos do nazismo, salvo se estivermos prevenidos de dois fatos: sua história e a influência de Martinho Lutero (para evitar qualquer confusão, devo explicar aqui que o autor é protestante). O grande fundador do protestantismo não foi só antissemita apaixonado como feroz defensor da obediência absoluta à autoridade política. Desejava a Alemanha livre de judeus (…) – conselho que foi literalmente seguido quatro séculos mais tarde por Hitler, Göring e Himmler. 

Por outro lado, especialmente Shirer recebeu críticas por essa sua observação, sendo acusado de não conhecer suficientemente a história alemã e por ter interpretado incorretamente certos acontecimentos ou mesclado suas opiniões pessoais em seu livro. Também os cristãos luteranos afirmam que a Igreja Luterana tem esse nome em homenagem ao seu mais famoso líder, porém não acata todos os escritos teológicos de Lutero, principalmente os escritos que atacam os judeus.

Desde os anos 1980, alguns órgãos da Igreja Luterana formalmente denunciaram e dissociaram-se dos escritos de Lutero sobre os judeus. Em novembro de 1998, no 60º aniversário de Kristallnacht, a Igreja Luterana da Baviera emitiu uma afirmação: “é imperativo para a Igreja Luterana, que sabe que é endividada ao trabalho e a tradição de Martinho Lutero, de levar a sério também as suas declarações antijudaicas, reconhece a sua função teológica, e reflete nas suas conseqüências. Temos que nos distanciar de cada [expressão de] antissemitismo na teologia Luterana.” 

A Guerra dos Camponeses

A Guerra dos Camponeses (1524-1525) foi, de muitas maneiras, uma resposta aos discursos de Lutero e de outros reformadores. Revoltas de camponeses já tinham existido em pequena escala em Flandres (1321-1323), na França (1358), na Inglaterra (1381-1388), durante as guerras hussitas do século XV, e muitas outras até o século XVIII. Mas muitos camponeses julgaram que os ataques verbais de Lutero à Igreja e sua hierarquia significavam que os reformadores iriam igualmente apoiar um ataque armado à hierarquia social. Por causa dos fortes laços entre a nobreza hereditária e os líderes da Igreja que Lutero condenava, isso não seria surpreendente. 

Já em 1522, enquanto Lutero estava em Wartburg, seu seguidor Thomas Münzer, comandou massas camponesas contra a nobreza imperial, pois propunha uma sociedade sem diferenças entre ricos e pobres e sem propriedade privada, Lutero por sua vez defendia que a existência de “senhores e servos” era vontade divina, motivo pelo qual eles romperam. Lutero, desde cedo, argumentou com a nobreza e os próprios camponeses sobre uma possível revolta e também sobre Müntzer, classificando-o como um dos “profetas do assassínio” e colocando-o como um dos mentores do movimento camponês. Lutero escreveu a “Terrível História e Juízo de Deus sobre Tomas Müntzer”, inaugurando essa linha de pensamento. 

Na iminência da revolta (1524), Lutero escreveu a “Carta aos Príncipes da Saxônia sobre o Espírito Revoltoso”, mostrando a tirania dos nobres que oprimiam o povo e a loucura dos camponeses em reagir através da força e a confiar em Müntzer como pregador. Houve pouca repercussão sobre esse escrito. Ainda em 1524, Müntzer mudou-se para a cidade imperial de Mühlhausen, oferecendo-se como pregador. Lutero escreveu a “Carta Aberta aos Burgomestres, Conselho e toda a Comunidade da Cidade de Mühlhausen”, com o propósito de alertar sobre as intenções de Müntzer. Também esse escrito não teve repercussão, pois o conselho da cidade se limitou a pedir informações sobre Müntzer na cidade imperial de Weimar. 

O principal escrito dos camponeses eram os “Doze Artigos”, onde suas reivindicações eram expostas. Neles havia artigos de fundo teológico (direito de ouvir o Evangelho através de pregadores chamados por eles próprios) e artigos que tratavam dos maus tratos (exploração nos impostos, etc.) impostos a eles pelos nobres. Os artigos eram fundamentados com passagens bíblicas e dizia-se que se alguém pudesse provar pelas Escrituras que aquelas reivindicações eram injustas, eles as abandonariam. Entre aqueles que se consideravam dignos de fazer tal coisa estava o nome de Martinho Lutero. 

De fato, Lutero escreveu sobre os “Doze artigos” em seu livro “Exortação à Paz: Resposta aos Doze artigos do Campesinato da Suábia”, de 1525. Nele, Lutero ataca os príncipes e senhores por cometerem injustiças contra os camponeses e ataca os camponeses pela rebelião e desrespeito à autoridade.

Também esse escrito não teve repercussão e, durante uma viagem pela região da Turíngia, Lutero pôde testemunhar as revoltas camponesas, o que o motivou a escrever o “Adendo: Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses”, onde disse: “Contras as hordas de camponeses (…), quem puder que bata, mate ou fira, secreta ou abertamente, relembrando que não há nada mais peçonhento, prejudicial e demoníaco que um rebelde”.

Tratava-se de um apêndice de “Exortação à Paz …”, mas que, rapidamente, tornou-se um livro separado. O Adendo foi publicado quando a revolta camponesa já estava no final e os príncipes cometiam atrocidades contra os camponeses derrotados, de modo que o escrito causou grande revolta da opinião pública contra Lutero. Nele, Lutero encorajava os príncipes a castigarem os camponeses até mesmo com a morte. 

Essa repercussão negativa obrigou Lutero a pregar um sermão no dia de pentecostes, em 1525, que se tornou o livro “Posicionamento do Dr. Martinho Lutero Sobre o Livrinho Contra os Camponeses Assaltantes e Assassinos”, onde o reformador contesta os críticos e reafirma sua posição anterior. Como ainda havia repercussão negativa, Lutero novamente se posicionou sobre a questão no seu “Carta Aberta a Respeito do Rigoroso Livrinho Contra os Camponeses”, onde lamenta e exorta contra a crueldade que estava sendo praticada pelos príncipes, mas reafirma sua posição anterior. 

Por fim, a pedido de um amigo, o cavaleiro Assa von Kram, Lutero redigiu “Acerca da Questão, Se Também Militares Ocupam uma Função Bem-Aventurada”, em 1526, com o propósito de esclarecer questões sobre consciência do cristão em caso de guerra e sua função como militar. 

A discordância com João Calvino

No movimento reformista (também chamado de Reforma), Lutero não concordou com o “estilo” de reforma de João Calvino. Martinho Lutero queria reformar a Igreja Católica, enquanto João Calvino, acreditava que a Igreja estava tão degenerada, que não havia como reformá-la. Calvino se propunha a organizar uma nova Igreja que, na sua doutrina (e também em alguns costumes), seria idêntica à Igreja Primitiva.

Já Lutero decidiu reformá-la, mas afastou-se desse objetivo, fundando, então, o Protestantismo, que não seguia tradições, mas apenas a doutrina registrada na Bíblia, e cujos usos e costumes não ficariam presos a convenções ou épocas. A doutrina luterana está explicitada no “Livro de Concórdia”, e não muda, embora os costumes e formas variem de acordo com a localidade e a época. 

Morte

O ex-monge agostiniano Martinho Lutero teve morte natural, embora não haja um consenso entre os seus biógrafos acerca da sua causa de morte. O historiador Frantz Funck-Brentano, por exemplo, escreveu em sua obra “Martim Lutero”: 

“Os dois médicos, que o tinham tratado nos últimos momentos, não puderam chegar a um acordo sobre a causa de sua morte, opinando um por um ataque de apoplexia, outro por uma angina pulmonar.”

A propósito, em 1521, por ocasião da Dieta de Worms (uma espécie de audiência imperial), foi publicado pelo Imperador Carlos V o Edito de Worms, pelo qual qualquer pessoa, ao menos teoricamente, estaria livre para matar Lutero sem correr o risco de sofrer qualquer sanção penal, já que, pelo referido Edito do Imperador, Lutero foi banido do Império como um fora-da-lei. Por receio de que algo de mal pudesse acontecer a Lutero durante viagem de regresso de Worms, Frederico III (ou Frederico, o Sábio), Príncipe-Eleitor da Saxônia, ordenou que Lutero fosse capturado e levado para o Castelo de Wartburg, onde estaria a salvo. 

Provavelmente, foi por causa desse risco de morte que Lutero passou a correr que seu amigo disse que “tentaram matá-lo”. Encontra-se sepultado na Igreja de Wittenberg em Wittenberg. 

Obras importantes

Foi o autor de uma das primeiras traduções da Bíblia para alemão, algo que não era permitido até então sem especial autorização eclesiástica. Lutero, contudo, não foi o primeiro tradutor da Bíblia para alemão. Já havia várias traduções mais antigas. A tradução de Lutero, no entanto, suplantou as anteriores porque foi uma forma unificada do Hochdeutsch (dialetos alemães da região central e sul) e foi amplamente divulgada em decorrência da sua difusão por meio da imprensa, desenvolvida por Gutenberg, em 1453. 

Lutero introduziu a palavra alleyn, que não aparece no texto grego original no capítulo 3:28 da Epístola aos Romanos. O que gerou controvérsia. Lutero justificou a manutenção do advérbio como sendo uma necessidade idiomática do alemão como por ser a intenção de Paulo. 

O latim, língua do extinto Império Romano, permanecia a lingua franca européia, imediatamente conotada com o passado romano unificado, sendo também a língua da Vulgata traduzida por São Jerônimo no século V, tal como tinham sido transmitidos às províncias do Império.

Por mais longínquas que fossem, nos menos de cem anos que separam a oficialização da religião cristã pelo Imperador Romano Teodósio I em 380 d.C. e a deposição do último imperador de Roma pelo Germânico Odoacro, em 476 d.C. (data avançada por Edward Gibbon e convencionalmente aceita como ano da queda do Império Romano do Ocidente), toda a região do antigo Império, ao longo dos seguintes 500 anos, e de forma mais ou menos homogênea, se cristianizou. O fim da perseguição à religião cristã pelo império romano se deu em 313 d.C. com o [Édito de Milão]]. 

No entanto, o domínio do latim era, no século XVI, no fim da Idade Média (terminada oficialmente em 1453, com a tomada de Constantinopla pelos Otomanos) e princípio da chamada Idade Moderna, apenas o privilégio de uma percentagem ínfima de população instruída, entre os quais os elementos da própria Igreja.

A tradução de Lutero para o alemão foi simultaneamente um ato de desobediência e um pilar da sistematização do que viria a ser a língua alemã, até aí vista como uma língua inferior, dos servos e ignorantes. É preciso adicionar que Lutero não se opunha ao latim, e chegou mesmo a publicar uma edição revisada da tradução latina da Bíblia (Vulgata). Lutero escrevia tanto em latim como em alemão. A tradução da Bíblia para o alemão não significou, portanto, rejeição do latim como língua acadêmica.

Foi também autor da polêmica obra “Sobre os judeus e suas mentiras” (Von den Juden und ihren Lügen). Pouco conhecida, mas muito apreciada pelo próprio Lutero, foi sua resposta a “Diatribe” de Erasmo de Roterdã intitulada De servo arbitrio (Título da publicação em português: Da vontade cativa). Martinho Lutero defendia o princípio da mortalidade da alma contrastando com a crença de João Calvino, que chamou à crença de Lutero “sono da alma”. 

Reabilitação de Lutero?

Segundo a Revista editada em conjunto pela Igreja Evangélica Metodista Portuguesa e a Igreja Evangélica Presbiteriana de Portugal, Portugal Evangélico, em sua edição nº 932[55], de 2008, o Papa Bento XVI, poderia vir a reabilitar Lutero. Segundo o texto, “Vozes autorizadas do Vaticano adiantavam que o Papa reabilitaria Martinho Lutero argumentando que nunca teria sido sua intenção dividir a Igreja mas sim lutar contra os abusos e práticas de corrupção da mesma”.

E complementa dizendo que “O Cardeal Walter Kasper, Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, antecipava que estas declarações dariam nova coragem ao diálogo ecuménico e contradiriam, até certo ponto, as afirmações feitas em Julho do ano anterior denegrindo a fé, a ortodoxa e protestante, ao não considerar estes dois ramos do cristianismo como verdadeiras Igrejas”.

Porém, nesse mesmo ano, o site Agência Ecclesia, agência de notícias da Igreja Católica em Portugal, desmentiu essa notícia citando uma declaração do diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, padre Federico Lombardi dada ao jornal britânico Financial Times. Segundo o religioso, essa afirmação “não tem nenhum fundamento” e que o termo “reabilitação” nunca seria o correto neste caso. Depois dessas notícias não houve mais informações até o momento sobre uma possível reabilitação de Lutero pela Igreja Católica. 

Veja mais:

Declaração conjunta sobre a doutrina da Justificação pela Fé 

Em 31 de outubro de 1999, foi assinada uma Declaração Conjunta Sobre a Doutrina da Justificação pela Fé, redigida e aprovada pela Federação Luterana Mundial e pela Igreja Católica Apostólica Romana. O preâmbulo do documento diz que a declaração “quer mostrar que, com base no diálogo, as Igrejas luteranas signatárias e a Igreja católica romana estão agora em condições de articular uma compreensão comum de nossa justificação pela graça de Deus na fé em Cristo.

Esta Declaração Comum (DC) não contém tudo o que é ensinado sobre justificação em cada uma das Igrejas, mas abarca um consenso em verdades básicas da doutrina da justificação e mostra que os desdobramentos distintos ainda existentes não constituem mais motivo de condenações doutrinais”. A declaração pode ser resumida neste trecho: 

“Confessamos juntos que o pecador é justificado pela fé na acção salvífica de Deus em Cristo; essa salvação lhe é presenteada pelo Espírito Santo no baptismo como fundamento de toda a sua vida cristã. Na fé justificadora o ser humano confia na promessa graciosa de Deus; nessa fé estão compreendidos a esperança em Deus e o amor a Ele”.

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Max Planck https://canalfezhistoria.com/max-planck/ https://canalfezhistoria.com/max-planck/#respond Fri, 14 Mar 2025 00:19:47 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6066 Max Karl Ernst Ludwig Planck (Kiel, 23 de abril de 1858 — Göttingen, 4 de outubro de 1947) foi um físico alemão. É considerado o pai da física quântica e um dos físicos mais importantes do século XX. Planck foi laureado com o Nobel de Física de 1918, por suas contribuições na área da física quântica.

Biografia de Max Planck

“Não é a posse da verdade, mas o sucesso que vem após a pesquisa, onde a busca é enriquecida por ela!”
Max Planck 

Planck nasceu em Kiel, capital de Schleswig-Holstein, um condado no norte da Alemanha. Pertenceu a uma família de grande tradição acadêmica (seu avô e bisavô foram professores de teologia em Göttingen).

Era filho de Johann Julius Wilhelm Planck, professor de direito Constitucional na Universidade de Kiel, com sua segunda esposa, Emma Patzig, e foi batizado com o nome de Karl Ernst Ludwig Marx Planck (em relação aos nomes que lhe foram dados, Marx [uma variante hoje obsoleta de Markus ou talvez simplesmente um erro para Max, que é hoje a abreviação para Maximilian] foi usado como primeiro nome). No entanto, por volta dos dez anos de idade, assinou com o nome Max e usou-o assim para o resto de sua vida. 

Ele era o sexto filho, embora dois de seus irmãos fossem do primeiro casamento de seu pai. Entre suas primeiras lembranças estava a marcha das tropas prussianas e austríacas em Kiel durante a guerra dinamarquês-prussiana de 1864. Em 1867 a família se mudou para Munique, e Planck foi matriculado na escola ginasial Maximilians, onde ele ficou sob a tutela de Hermann Müller, um matemático muito interessado pela juventude, que lhe ensinou astronomia, mecânica e matemática.

Foi com Müller que Planck primeiro aprendeu o princípio da conservação da energia. Não à toa, seus primeiros trabalhos foram sobre termodinâmica. Também publicou trabalhos sobre a entropia, termoeletricidade e na teoria das soluções diluídas. Excelente aluno, Planck obteve o grau de doutor com apenas 21 anos de idade. Planck tinha talento para a música. Teve aulas de canto e tocou piano, órgão e violoncelo, e compôs músicas e óperas. No entanto, em vez da música, escolheu estudar física. 

O professor de física em Munique, Philipp von Jolly, aconselhou Planck a não estudar física, pois, segundo ele, “neste campo, quase tudo já está descoberto, e tudo o que resta é preencher alguns buracos”. Planck respondeu que não queria descobrir coisas novas, apenas compreender os fundamentos conhecidos do assunto. Assim, começou seus estudos nesta área em 1874 na Universidade de Munique. Sob a supervisão de Jolly, Planck realizou os únicos experimentos de sua carreira científica, estudando a difusão de hidrogênio através de platina aquecida, antes de transferir-se para a física teórica.

Em 1877 foi para Berlim para um ano de estudo com os físicos Hermann von Helmholtz e Gustav Kirchhoff e o matemático Karl Weierstrass. Lá, ele relatou que Helmholtz nunca estava completamente preparado, falava lentamente, calculava muito mal e entediava seus ouvintes, enquanto Kirchhoff proferia palestras cuidadosamente preparadas que eram secas e monótonas. Logo se tornou amigo íntimo de Helmholtz. Lá, empreendeu um programa basicamente de autoestudo sobre os trabalhos de Clausius que o levou a escolher a teoria do calor como o seu campo de estudo. 

Em outubro de 1878 Planck passou nos exames de qualificação e em fevereiro de 1879 defendeu sua dissertação, Über den zweiten Hauptsatz der mechanischen Wärmetheorie (Sobre o segundo teorema fundamental da teoria mecânica do calor). Por curto período ensinou matemática e física na sua antiga escola em Munique.

Em junho de 1880, apresentou a sua tese de habilitação, Gleichgewichtszustände isotroper Körper in verschiedenen Temperaturen (Estados de equilíbrio de corpos isotrópicos em diferentes temperaturas). Tornou-se então professor em Munique, esperando até que lhe fosse oferecida uma posição acadêmica. Embora tenha sido inicialmente ignorado pela comunidade acadêmica, promoveu seu trabalho no campo da teoria do calor e descobriu em seguida o formalismo termodinâmico assim como Gibbs sem percebê-lo. As ideias de Clausius sobre entropia ocuparam um papel central em seu trabalho. Seguiu para sua cidade natal, Kiel, em 1885, onde casou com Marie Merck em 1886. Em 1889, Planck seguiu para a Universidade de Berlim e após dois anos foi nomeado professor de Física Teórica, substituindo Gustav Kirchhoff. 

Em fins do século XIX, uma das dificuldades da física consistia na interpretação das leis que governam a emissão de radiação por parte dos corpos negros. Tais corpos são dotados de alto coeficiente de absorção de radiações; por isso, parecem negros para a visão humana. Em 1899, após pesquisar as radiações eletromagnéticas, descobriu uma nova constante fundamental, batizada posteriormente em sua homenagem como Constante de Planck, e que é usada, por exemplo, para calcular a energia do fóton.

Um ano depois, descobriu a lei da radiação térmica, chamada Lei de Planck da Radiação. Essa foi a base da teoria quântica, que surgiu dez anos depois com a colaboração de Albert Einstein e Niels Bohr. De 1905 a 1909, Planck atuou como diretor-chefe da Deutsche Physikalische Gesellschaft (Sociedade Alemã de Física). Sua mulher morreu em 1909, e, um ano depois, Planck casou-se novamente com Marga von Hoesslin.

Em 1913 foi nomeado reitor da Universidade de Berlim. Como consequência do nascimento da física quântica, foi laureado em 1918 com o Nobel de Física. De 1930 a 1937, Planck foi presidente da Kaiser-Wilhelm-Gesellschaft zur Förderung der Wissenschaften (KWG, Sociedade para o Avanço das Ciências do Imperador Guilherme). Avesso aos ideais nazistas, Planck tentou convencer Hitler a dar liberdade aos cientistas judeus. Planck argumentou que haveria diversos tipos de judeus, alguns valiosos e outros inúteis para a Alemanha. O Führer então lhe respondeu: “Se a ciência não pode passar sem judeus, teremos de nos haver sem a ciência!” 

Este fato desagradou a Hitler. Mais tarde, seu filho Erwin foi executado em 20 de julho de 1944, acusado de traição relacionada a um atentado para matar Hitler. Foi senador da Sociedade Kaiser Wilhelm, de 1916 a 1947. Participou da 1ª e da 5ª Conferência de Solvay. 

Morte

“Para os crentes, Deus está no princípio das coisas. Para os cientistas, no final de toda reflexão!” 
Max Planck 

A morte trágica de seu filho Erwin o abalou psicologicamente. Este fato fez com que Planck perdesse a vontade de viver. Assim, após o término da Segunda Guerra Mundial, ele e sua segunda esposa mudaram-se para Göttingen, onde, em 4 de outubro de 1947, aos 89 anos, Planck morreu em consequência de uma queda e de diversos derrames, morte esta que, segundo James Franck, veio a ele “como uma redenção.” Logo após sua morte, a Sociedade KWG foi renomeada como Max-Planck-Gesellschaft zur Förderung der Wissenschaften (MPG, Sociedade Max Planck para o Progresso das Ciências). Seu corpo encontra-se sepultado no Stadtfriedhof de Göttingen, na Alemanha. 

Legado

“Um homem a quem foi dada a oportunidade de abençoar o mundo com uma grande idéia criativa não precisa do louvor da posteridade. Sua própria façanha já lhe conferiu uma dádiva maior!”

Albert Einstein, sobre Max Planck 

As descobertas de Planck, que mais tarde viriam a ser verificadas por outros cientistas, resultaram no nascimento de um campo totalmente novo na física moderna, conhecido como mecânica quântica; e que forneceram a base para a investigação de áreas pouco exploradas até então, como a energia nuclear. O próprio Planck sabe de sua importância. Tanto que em 1922 fez a seguinte afirmação: “É verdade, antes a física era mais simples, harmônica e, portanto, mais satisfatória!” 

Veja mais:

Homenagens e honrarias

“O mundo externo é algo independente do homem, algo absoluto, e a procura pelas leis que se aplicam a este absoluto mostram-se como a mais sublime busca científica na vida!” 
Max Planck

  • “Pour le Mérite” – Science and Arts 1915 (em 1930 ele se tornou o chanceler desta condecoração)
  • Nobel de Física 1918 (premiado em 1919)
  • Medalha Lorentz 1927
  • Medalha Franklin (1927)
  • Adlerschild des Deutschen Reiches (1928), premiado pelo Presidente Alemão
  • Uma medalha com seu nome (Medalha Max Planck) foi criada em 1929 para feitos extraordinários em física teórica. 
  • Medalha Copley (1929) 
  • Em 1938, um asteróide (1069 Planckia) foi batizado em sua homenagem pela União Astronómica Internacional
  • Em 24 de Dezembro de 2002, após Portaria do MEC de Nº 3.844, foi fundada no Brasil, na cidade de Indaiatuba, Estado de São Paulo, a Faculdade Max Planck. – http://www.faculdademax.edu.br/
  • Em 2009 a Agência Espacial Europeia batizou uma sonda (Planck (sonda espacial)), como parte de seu programa científico Horizon 2000.
  • Uma cratera na lua foi batizada em sua homenagem (Cratera Planck).
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Mêncio https://canalfezhistoria.com/mencio/ https://canalfezhistoria.com/mencio/#respond Fri, 14 Mar 2025 00:16:34 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6059 Mêncio (chinês tradicional: 孟子; pinyin: Mèngzǐ; Wade-Giles: Meng Tzŭ; literalmente “Mestre Meng”), pseudônimo de Ji Mèngkē (chinês tradicional: 姬孟軻; 370 a.C. – 289 a.C.), foi um filósofo chinês, o mais eminente seguidor do confucionismo depois de Confúcio e verdadeiro sábio. O termo também pode ser uma referência ao livro que reúne seus pensamentos. 

Biografia

Mêncio nasceu na cidade-estado de Zoucheng (鄒城; originalmente Zouxian), na atual província de Shandong. Acredita-se que tenha sido discípulo do neto de Confúcio, Zisi. Tornou-se filósofo itinerante e livre e foi um dos principais intérpretes do confucionismo. Assim como o mestre Confúcio, segundo a lenda, ele viajou pela China durante quarenta anos oferecendo seus conselhos e orientando reformas. Só depois dos quarenta anos de idade, Mêncio se tornou conhecido, após uma vida meditativa e envolta em estudos sobre os problemas sociais e morais. 

Entre os anos de 319 e 312 a.C., durante o Período dos Estados Combatentes (403 a.C. a 221 a.C.), foi um acadêmico da Academia Jixia, no estado de Qi. Durante três anos, afastou-se dos seus deveres oficiais para com o estado de Qi para lamentar a morte de sua mãe, em respeito ao princípio confucionista da piedade filial. Depois, desapontado com o fracasso para operar as mudanças em seu mundo contemporâneo, aposentou-se da vida pública. 

Sua interpretação do confucionismo foi, em geral, considerada como a versão ortodoxa pelos filósofos chineses subsequentes, especialmente os neoconfucionistas da Dinastia Song. O Mengzi, livro que leva seu nome e reúne seus diálogos com os reis de seu tempo, constitui-se numa das quatro obras que formam o cerne do confucionismo ortodoxo. Em contraste com o estilo de Confúcio, que escrevera de forma sintética, Mêncio oferece longos diálogos, com extensa prosa. 

Dentro da filosofia confucionista, a importância de Mêncio é superada apenas pela de Confúcio. Mêncio está enterrado no “Cemitério de Mêncio” (孟子林, Mengzi Lin, também conhecido como 亚圣林, Yasheng Lin), localizado doze quilômetros a nordeste da área central de Zoucheng. Uma estela carregada por uma gigantesca tartaruga de pedra e coroada por dragões permanece em frente a seu túmulo. Simbolizando a harmonia entre os dois lados. 

A mãe de Mêncio

A mãe de Mêncio é tida como uma figura feminina exemplar na cultura chinesa. Uma das mais tradicionais expressões idiomáticas chinesas éː “mãe de Mêncio, três mudanças”. A expressão se refere à lenda de que a mãe da Mêncio mudou três vezes de endereço antes de escolher o lugar onde iria criar Mêncio. A expressão simboliza a importância de se escolher bem o lugar onde se vai criar uma criança. 

O pai de Mêncio morreu quando Mêncio ainda era bem jovem. Sua mãe Zhǎng (仉) criou o filho sozinha. Eles eram muito pobres. A princípio, eles moraram perto de um cemitério. A mãe de Mêncio o flagrou imitando os choradores profissionais das procissões dos funerais. Então, a mãe de Mêncio decidiu que eles deveriam se mudar. A residência seguinte da família foi ao lado de um mercado. Lá, Mêncio começou a imitar os gritos dos comerciantes (os comerciantes eram desprezados na China antiga).

Então eles se mudaram para uma casa ao lado de uma escola. Inspirado pelos alunos e professores, Mêncio começou a estudar. A mãe de Mêncio decidiu, então, permanecer no local, e Mêncio acabou se tornando um sábio. Outra história também enfatiza a importância da mãe de Mêncio em sua trajetória. Certa época, Mêncio estava displicente em relação a seus estudos. Sua mãe, então, cortou, com tesouras, na frente de Mêncio, um tecido que ela estava costurando. O gesto simbolizava que não se pode parar uma tarefa pela metade. Mêncio entendeu e voltou a se aplicar nos estudos.

Outra lenda envolve a mãe e a esposa de Mêncio. Mêncio notou que sua esposa não estava sentada de modo correto, o que era contra os ritos, e decidiu pedir o divórcio. A mãe de Mêncio argumentou que estava escrito no Livro dos Ritos que, antes que uma pessoa entrasse num aposento, ela deveria avisar em voz alta sobre sua chegada, de modo a que as pessoas dentro do aposento se preparassem para sua chegada.

Mêncio não havia realizado tal procedimento antes de entrar no aposento onde sua esposa estava sentada de modo inapropriado, portanto havia sido Mêncio quem violara os ritos. Mêncio admitiu sua culpa. A mãe de Mêncio é uma das 125 mulheres cujas biografias estão incluídas no Lienü zhuan (“Biografias de mulheres exemplares”), de Liu Xiang. 

Ideologia

Em sua obra conhecida por Mengzi, defende que o homem é bom por natureza e deve desenvolver uma conduta razoável e reta. Um homem, vendo uma criança à beira de um poço fundo, iria resgatar esta criança, mesmo arriscando a vida; até mesmo os mais moralmente degenerados fariam isso, sem pensar se isto traria recompensas dos pais ou se seria admirado por isso – isso seria feito por causa de sua natureza boa. 

Segundo este pensador, no coração de todo ser humano há quatro sentimentos naturais ou tendências que lhe orientam para o bom caminho: 

1. O sentimento de compaixão ou empatia;
2. O sentimento de vergonha ou arrependimento;
3. O sentimento de respeito e modéstia, e
4. O sentimento que difere o bem do mal (“bem” e “mal” no sentido socialmente determinado).

Esses sentimentos são uma espécie de raiz que, cultivada, desenvolve as virtudes da benevolência, retidão, urbanidade e sabedoria. Mêncio intentou influir nos governantes de seu tempo para que criassem as condições mais favoráveis para o desenvolvimento das pessoas. Em seu escritos, deixou dito que o governante sábio é aquele que se preocupa com o bem-estar de seu povo:

O soberano inteligente organiza a produção de seus súditos de forma que possam sustentar a seu pai e a sua mãe, a seus filhos e esposas, que nos anos bons possam comer à vontade, e nos maus não morrer de fome. Uma vez alcançado isto, os dirigirá até a prática do bem e o povo o seguirá. (Mengzi, 1 a 7). Visando a proteger os desfavorecidos e idosos, Mêncio defendia o livre-comércio, baixas alíquotas tributárias e uma carga tributária mais igualitária. 

Comparação com contemporâneos 

Acredita-se que Mêncio tenha sido contemporâneo de Xun Zi, Zhuangzi, Gaozi e Platão. 

Xun Zi

Xun Zi foi um confuciano que acreditava que a natureza humana se baseava no orgulho e no interesse próprio, e que o propósito da moral era combater essa tendência e encaminhar o ser humano para a bondade. Essa visão contrastava com a visão de Mêncio. Posteriormente, Zhu Xi considerou que a visão de Xun Zi era não ortodoxa, e apoiou a visão de Mêncio. 

Platão

A opinião de Mêncio de que governantes injustos devem ser depostos se assemelha à opinião de Sócrates no Livro I de A República. 

Influência

A interpretação de Mêncio sobre o confucionismo foi geralmente considerada a visão ortodoxa pelos filósofos chineses posteriores a Mêncio, especialmente os neoconfucionistas da dinastia Song. Vários senhores feudais se tornaram seguidores de Mêncio, e alguns dizem que Mêncio se tornou mais influente do que o próprio Confúcio. 

“Mêncio”, o livro das conversas de Mêncio com os reis do seu tempo, é um dos Quatro Livros que Zhu Xi considerou o coração do pensamento neoconfuciano ortodoxo. Em contraste com os aforismas de Confúcio, que são curtos e autoexplicativos, o “Mêncio” consiste de longos diálogos, com extensa prosa.

O livro foi geralmente negligenciado pelos jesuítas que primeiro traduziram os Quatro Livros e os Cinco clássicos para o latim e outras línguas europeias, pois eles consideravam que o neoconfucionismo era basicamente uma contaminação budista e taoista do confucionismo. Matteo Ricci não gostava especialmente da severa condenação de Mêncio ao celibato, que era visto como contrário à piedade filial.

O missionário François Noël, que achava que as ideias de Zhu Xi eram uma continuação natural das ideias de Confúcio, foi o primeiro a publicar uma edição integral de “Mêncio” em Praga em 1711; no entanto, com a controvérsia dos ritos na China e a decisão final contra os jesuítas, o livro alcançou pouca popularidade fora da Europa Central e do Leste. 

Veja mais:

Em 1978, um livro indicou as cem mais influentes personalidades da história até aquele momentoː Mêncio foi listado na posição 92.

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Menés https://canalfezhistoria.com/menes/ https://canalfezhistoria.com/menes/#respond Fri, 14 Mar 2025 00:13:39 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6056 Menés foi um faraó do Antigo Egito da Época Tinita, creditado pela tradição clássica como o unificador do Alto e Baixo Egito, e como o fundador da primeira dinastia. 

A identidade de Menés é um tema de debate em curso, embora o consenso geral dos egiptólogos identifica Menés como o faraó protodinástico Narmer (também creditado como unificador do Egito) como o primeiro faraó, evidenciado por diferentes titulaturas reais nos registros históricos e arqueológicos, respectivamente. 

Nome e identidade

O comumente usado Menés deriva de Manetão, um historiador egípcio e sacerdote que viveu durante o período ptolomaico. Manetão usou o nome na forma Μήνης (transliterado: Mênês). Na forma grega alternativa, Μιν (transliterado: Min) foi citado pelo historiador Heródoto no século V a.C., uma variante não muito considerada em resultado da contaminação a partir do nome do deus Mim. Eusébio de Cesareia identifica o Mim de Heródoto com o Menés de Manetão. A forma egípcia, Meni, é tomado pela listas reais de Turim e Abidos (datadas da XIX dinastia). 

O nome, Menés, significa “Aquele que persevera”, que, Edwards (1971) sugere, pode ter sido cunhado como “um mero epíteto descritivo denotando um semi-legendário herói […] cujo nome havia sido perdido”. Em vez de uma pessoa em particular, o nome pode ocultar coletivamente os faraós protodinásticos Ka, Escorpião II e Narmer. 

Menés e Narmer

A quase completa ausência de qualquer menção de Menés no registro arqueológico, e a comparável riqueza de evidências de Narmer, uma figura protodinástica creditada por descendentes e no registro arqueológico como um firme reivindicador da unificação do Alto e Baixo Egito, tendo dado origem para a teoria de que identifica Menés como Narmer. 

A principal referência arqueológica de Menés é uma placa de marfim de Nacada que mostra o nome Hórus real Aha (o faraó Atótis) próximo a um edifício, dentro do qual está o nome nebty real mn, geralmente tomado como sendo Menés. Disto, várias teorias sobre a natureza do edifício (uma cabine funerária ou um santuário), o significado da palavra mn (um nome ou um verbo perdura) e a relação entre Atótis e Menés (como uma pessoa ou um faraó sucessor) tem surgido.

As listas reais de Turim e Abidos, geralmente aceitas como sendo corretas, listam os nomes nebty dos faraós, não seus nomes de Hórus, e são vitais para a reconciliação de vários registros: os nomes nebty na listas reais, os nomes de Hórus nos registros arqueológicos e o número de faraós da I dinastia de acordo com Manetão e outras fontes históricas. 

Petrie fez a primeira tentativa para esta tarefa, associando Iti com Quenquenés como o terceiro faraó da I dinastia, Teti (Turim) (ou outro Iti [Abidos]) com Atótis como segundo faraó, e Menés (um nome nebti) com Narmer (um nome Hórus) como primeiro faraó da I dinastia. Lloyd (1994) achou esta sucessão “extremamente provável”, e Cervelló-Autuori (2003), categoricamente afirma que “Menés é Narmer e a Primeira Dinastia começou com ele”. 

História

A antiga tradição atribui a Menés a honra de ter unido o Alto e Baixo Egito em um único reino e tornando-se o primeiro faraó da I dinastia. No entanto, seu nome não aparece existentes peças dos Anais Reais (Pedra do Cairo e Pedra de Palermo), que é uma lista real fragmentada que foi esculpida numa estela da V dinastia. Ele tipicamente aparece fontes mais tardias como o primeiro humano a governar o Egito, diretamente herdando o trono do deus Hórus. Ele também aparece em outra, muito mais tardia, lista real, sempre como o primeiro faraó humano do Egito. Menés também aparece em romances demóticos do período greco-romano, demonstrando que, mesmo que tardiamente, ele foi considerado uma figura importante. 

Menés foi visto como uma figura fundadora por grande parte da história do Antigo Egito, similar a Rômulo na Roma Antiga. Manetão registra que Menés reinou por 30 (ou 60) anos, levou o exército transversalmente na fronteira e ganhou grande glória, e foi morto por um hipopótamo. Ele foi sucedido por seu filho Atótis, que construiu o palácio de Mênfis. 

Capital

Manetão associou a cidade de Tinis com as primeiras dinastias (Dinastia I e II) e, em particular, Menés, um “tinita” ou nativo de Tinis. Heródoto contradiz Manetão ao afirmar que Menés fundou a cidade de Mênfis como sua capital após desviar o curso do rio Nilo através da construção de um dique. Manetão atribui a construção de Mênfis para o filho de Menés, Atótis, e chama os faraós da III dinastia como “menfitas”.

No entanto é pouco provável que apenas durante o reinado do sucessor de Menés, a capital tenha sido transferida para Mênfis, pois, sua localização possibilitaria um mais eficiente controle sobre o recém-incorporado Baixo Egito assim como das rotas comerciais com o Oriente Próximo. Eusébio de Cesareia, ao comentar a cronologia de Manetão, observa que a duração total dos reinos egípcios é muito longa, e sugere que as várias dinastias de Manetão poderiam ter reinado ao mesmo tempo, em diversas partes do Egito, com reis em Tinis, Mênfis, Saís e na Etiópia. Locais como Hieracômpolis e Nacada, por sua importância durante o período pré-dinástico, receberam templos. Da mesma forma, Abidos foi mantida como necrópole da I dinastia.

Influência cultural

Diodoro Sículo afirma que Menés introduziu a adoração dos deuses e a prática de sacrifícios tão bem quanto um mais elegante e luxuoso estilo de vida. Por esta última invenção, a memória de Menés foi desonrada pelo faraó da XXIV Dinastia Tefnacte, e Plutarco menciona um pilar de Tebas sob o qual foi inscrito uma maldição contra Menés como o introdutor da ostentação. 

Episódio do crocodilo

Diodoro Sículo recorda uma história de Menés, relatada pelos sacerdotes do deus crocodilo Suco de Crocodilópolis, em que o faraó Menés, atacado por seus próprios enquanto caçava, fugiu atravessando o lago Moéris nas costas de um crocodilo e, em agradecimento, fundou a cidade de Crocodilópolis.

Edwards (1974) afirma que “a lenda, que está, obviamente, cheia de anacronismos, é manifestamente desprovida de valor histórico”, mas Mastepo (1910), embora reconhecendo a possibilidade de que as tradições relativas a outros reis podem ter-se misturado com essa história, rejeita a sugestão de alguns comentadores de que a história deve ser transferida para o faraó Amenemés III} da XII dinastia e não vê nenhuma razão para duvidar de que Diodoro não registrou corretamente uma tradição de Menés.

Joseph (2004) interpreta a história como uma alegoria para a vitória de Menés e seus aliados em sua guerra de unificação, e em que os inimigos de Menés são simbolizados insultuosamente como os cães. Faber (1816), tendo a palavra campsa o significado tanto de crocodilo como arca e preferindo este último, identifica Menés como Noé e toda a história como um mito do dilúvio. 

Morte

Segundo Manetão, Menés reinou por 30 (ou 60 anos) e foi morto por um hipopótamo. 

Outros usos

Alguns estudiosos afirmam que o nome do rei Minos quem governou a Antiga Creta é derivado de Menés assim como os nomes Tsar, Cáisere “Czar” são derivados de César. Como não há nenhuma menção de Menés nos registros arqueológicos egípcios, é também possível que seu nome foi derivado de Minos. 

Veja mais:

Alexander Dow (1735/6-1779), um dramaturgo e orientalista escocês, escreveu a tragédia Sethona, situada no Antigo Egito, em que o personagem principal, Menés, é descrito na dramatis personæ como “próximo herdeiro masculino para a coroa” agora usada por Serápis, e foi interpretado por Samuel Reddish em uma produção de 1774 por David Garrick no Teatro Drury Lane.

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Michael Faraday https://canalfezhistoria.com/michael-faraday/ https://canalfezhistoria.com/michael-faraday/#respond Fri, 14 Mar 2025 00:10:54 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6051 Michael Faraday (Newington, Surrey, 22 de setembro de 1791 — Hampton Court, 25 de agosto de 1867) foi um físico e químico britânico. É considerado um dos cientistas mais influentes de todos os tempos. As suas contribuições mais importantes e os seus trabalhos mais conhecidos tratam dos fenômenos da eletricidade, da eletroquímica e do magnetismo, mas Faraday fez também diversas outras contribuições muito importantes na física e na química. 

Faraday foi principalmente um experimentalista, tendo sido descrito como o “melhor experimentalista na história da ciência”, mesmo não conhecendo matemática avançada, como cálculo infinitesimal. Suas grandes contribuições para a ciência tiveram grande impacto sobre o entendimento do mundo natural. As descobertas de Faraday cobrem áreas significativas das modernas física e química, e a tecnologia desenvolvida baseada no seu trabalho está ainda mais presente. Suas descobertas em eletromagnetismo forneceram a base para os trabalhos de engenharia no fim do século XIX para que Edison, Siemens, Tesla e Westinghouse tornassem possível a eletrificação das sociedades industrializadas. Seus trabalhos em eletroquímica são amplamente usados em química industrial.

Na física, foi um dos primeiros a estudar as relações entre eletricidade e magnetismo. Em 1821, logo após Oersted descobrir que a eletricidade e o magnetismo eram associados entre si, Faraday publicou um trabalho que chamou de “rotação eletromagnética”, elaborando os princípios de funcionamento do motor elétrico.

Em 1831, Faraday descobriu a indução eletromagnética, o princípio por trás do gerador elétrico e do transformador elétrico. Suas ideias sobre os campos elétricos e os magnéticos, e a natureza dos campos em geral, inspiraram trabalhos posteriores fundamentais nessa área, como as equações de Maxwell. Seus estudos sobre campos eletromagnéticos são conceitos-chave da física atual. Na química também teve grande importância. Descobriu o benzeno, produziu os primeiros cloretos de carbono conhecidos (C2Cl6 e C2Cl4) e ajudou a expandir os fundamentos da metalurgia e da metalografia.

As suas experiências garantiram o sucesso na liquefação de gases nunca antes liquefeitos (dióxido de carbono e cloro entre outros). Isso tornou possíveis novos métodos de refrigeração cujos princípios continuam a ser utilizados nos modernos refrigeradores domésticos. 

Talvez a sua maior contribuição tenha sido virtualmente fundar a eletroquímica. Faraday criou termos como eletrólito, ânodo, catodo, eletrodo, e íon.

Em 1853 Faraday publicou os resultados dos seus estudos sobre as mesas girantes. Ele verificou experimentalmente que as mesas se moviam devido ao efeito ideomotor. O experimento e sua divulgação no jornal The Times estão relacionados à preocupação de Faraday com as falhas na educação que levaram as pessoas a acreditarem no mesmerismo, nas mesas girantes e nas sessões espíritas. Em 1854 ele tratou do assunto em uma de suas palestras. 

Biografia

Michael Faraday nasceu em Newington Butts, ao sul de Londres. Sua família era pobre. Seu pai, James Faraday, era ferreiro. Junto com mãe de Faraday, Margaret Hastwell, migrou no começo de 1791 do norte da Inglaterra para Newington Butts em busca de trabalho. Eles já tinham dois filhos antes de se mudarem, um menino e uma menina. Faraday nasceu poucos meses depois dessa mudança. A família logo se mudou de novo, agora para Londres.

Lá nasceu uma menina após Faraday e foi onde o jovem Michael Faraday recebeu os rudimentos de uma educação, aprendendo a ler, escrever, e aritmética. Faraday começou a trabalhar aos 13 anos de idade, como menino de recados de um encadernador e comerciante de livros, George Riebau, um imigrante francês que foi para Londres devido à Revolução Francesa. Em 1805, aos 14 anos, Faraday tornou-se aprendiz de Riebau e leu vários dos livros que encadernou durante seus sete anos de aprendizado. 

Um livro que chamou sua atenção foi Palestras sobre química de Jane Marcet, escrito em 1805. A obra A melhoria da mente, de Isaac Watts, fez com que ele meditasse a respeito. Leu um exemplar que estava encadernando da Enciclopédia Britânica e interessou-se muito por um artigo sobre eletricidade. Como resultado de suas leituras realizou experiências químicas simples. Certa vez teve acesso a um livro chamado Experiências químicas. Com o pouco dinheiro que tinha comprou instrumentos simples para fazer as experiências que estavam no livro. Assim foi modelando sua inteligência e desenvolvendo sua técnica. Conforme ele progredia, aumentava o seu interesse e a sua curiosidade. Lia todos os livros de ciência que encontrava.

Desde 1810 Faraday assistiu aulas de John Tatum (fundador de uma sociedade filosófica), sobre diversos assuntos. Em 1810, com vinte anos de idade, Faraday foi convidado para assistir a quatro conferências de sir Humphry Davy, químico inglês e presidente da Royal Society entre 1820 e 1827. Faraday tomou notas destas conferências e, mais tarde, redigiu-as em formato mais completo. Então, em 1812, escreveu para Humphry Davy (que admirava muito desde que assistiu as aulas de química), mandando cópias destas notas. Davy respondeu para Faraday quase imediatamente, e muito favoravelmente, além de marcar um encontro. 

Em março de 1813, foi nomeado ajudante de laboratório da Royal Institution, por recomendação de Humphry Davy. 

Davy precisava fazer uma lâmpada de segurança para ser usada nas minas e Faraday pode mostrar seu potencial, dando-lhe sugestões, pois tinha grande capacidade analítica. Suas sugestões foram aceitas. Davy o reconheceu e lhe deu a oportunidade de participar ativamente de suas experiências. Seis meses depois, Davy o convidou para acompanhá-lo como seu “assessor filosófico” em uma série de conferências. No dia 13 de outubro de 1813, partiram para a Europa. “Esta manhã marca uma época em minha vida”, escreveu em seu diário. Como o criado de Davy desistiu de viajar, Faraday assumiu este papel.

A viagem foi cheia de surpresas para Faraday: conheceu o mar, as montanhas, o Vesúvio; em Paris, viu Napoleão; conheceu Alessandro Volta, André-Marie Ampère, Joseph Gay-Lussac e outros cientistas. Em 1815, de volta à Inglaterra, Faraday passa a integrar o Royal Institution, onde foi conferencista de várias Royal Institution Christmas Lectures. Ele e Davy concluem a lâmpada de segurança, que começou a ser usada no ano seguinte. Faraday declara que a lâmpada não era perfeitamente segura, o que desagrada ao ego de Davy. Ingressou na Sociedade Filosófica, onde realizava conferências sobre química, utilizando-se do que ouvia de Davy. 

Em 12 de junho de 1821, Faraday casou-se com Sarah Barnard (1800-1879), e não tiveram filhos. Em 1820, Hans Christian Ørsted provou os efeitos magnéticos da corrente elétrica: um fio metálico conduzindo corrente elétrica provoca o desvio de uma agulha metálica. 

Em 1821, William Hyde Wollaston concluiu que ao aproximar um ímã de um fio onde está passando corrente elétrica o fio deveria girar em torno do ímã. No dia 3 de setembro deste ano, Faraday mostrou que uma barra de ímã girava em torno de um fio eletrizado e que um fio suspenso eletrizado girava em torno de um ímã fixo, comprovando a teoria de Wollaston. Em outubro, publicou no “Quarterly Journal”.

No natal do mesmo ano, fez com que o fio se movesse pela influência do magnetismo terrestre. Com uma sugestão de Davy, Faraday consegue obter cloro líquido. Escreveu, então, um comunicado para a Royal Society. Mas Davy o lê, antes de ser enviado, e redige uma nota sobre sua participação. Foi eleito membro da Royal Society em 1824.

Recebeu a nomeação para diretor do laboratório em fevereiro de 1825. Neste mesmo ano, isolou o benzeno do óleo de baleia. Trabalhou como perito em tribunais, tendo ganho, num só ano, cinco mil dólares. Em 1827, foi convidado para trabalhar na Universidade de Londres, mas rejeitou o convite. Trabalhou por quatro anos em vidros para óptica. Obteve várias qualidades de vidro, conseguindo aperfeiçoar o telescópio. 

Em 17 de outubro de 1831 demonstrou que era possível converter energia mecânica em energia elétrica. Foi a primeira demonstração de um dínamo, que veio a ser o principal meio de fornecimento de corrente elétrica. No dia 29 desse mês, pegou um disco de cobre preso a um cabo e um ímã em formato de ferradura. Entre os polos do ímã fez girar o disco, que estava ligado a um galvanômetro, a agulha se moveu com o girar do disco. Em 1832, fundou a eletroquímica e desenvolveu as leis da eletrólise. Neste mesmo ano, recebeu o Diploma Honorário da Universidade de Oxford, sendo homenageado com a medalha Copley da Royal Society, a maior honraria já concedida por ela. 

Em 1833 tornou-se Professor Fulleriano de Química na Royal Institution. Faraday teve importância na química como descobridor de dois cloretos de carbono, investigador de ligas de aço e produtor de vários tipos novos de vidros. Um desses vidros tornou-se historicamente importante por ser a substância em que Faraday identificou a rotação do plano de polarização da luz quando ela passa por um campo magnético e também por ser a primeira substância a ser repelida pelos polos de um ímã. Particularmente, ele acreditava nas linhas de campo elétrico e magnético como entidades físicas reais e não abstrações matemáticas. Porém, suas descobertas no campo da electricidade ofuscaram quase que por completo sua carreira química. 

A mais importante das contribuições de Faraday foi a descoberta da indução electromagnética, em 1831. Em 1857, o físico John Tyndall lhe ofereceu a presidência da Royal Society, mas Michael recusou: “quero ser simplesmente Michael Faraday até o fim”. Ele queria continuar com suas experiências, se fosse presidente não teria tempo para isso. Faraday morreu na sua casa em Hampton Court, aos 75 anos, e não foi enterrado na Abadia de Westminster, mas no Cemitério de Highgate. 

Visão Religiosa

Faraday foi um cristão que participou de uma denominação não-conformista chamada Sandemanismo; do qual chegou a servir como diácono. É um consenso entre seus biógrafos que sua fé modelou sua visão do processo cientifico e o endossava. Isso não significa que aceitasse a Escritura como fonte de informação cientifica propriamente; mas sendo a Escritura, o Livro da palavra de Deus, indicando a salvação; e o Livro da Mundo de Deus, a natureza, seria somente suficiente para apontar a existência e poder de Deus.

Como outros cientistas cristãos, ele compartilhava a crença de a natureza esta debaixo de leis que podem ser discernidas por nós. Pelo motivo da natureza ter sua origem e controle num Criador Legislador. Em um memorândum(1844) ele argumentou: 

“Deus tem o prazer de trabalhar em sua criação material por leis.” e “O Criador governa seu trabalho material por leis definitivas resultando das forças impressas na matéria” 

The Faraday Institute for Science and Religion 

Há em Cambrige o “The Faraday Institute for Science and Religion” instituição formada por cientistas, teólogos e filósofos, criada para: 

1. Pesquisa acadêmica e publicação sobre ciência e religião, incluindo a organização de grupos de experts convidados para escrever publicações conjuntas.
2. Providenciar cursos curtos sobre ciência e religião.
3. Organizar seminários e palestras sobre ciência e religião.
4. Providenciar informação apurada sobre ciência e religião para o público mais amplo.

Veja mais:

A história com a rainha

Há relatos de um evento supostamente ocorrido com Faraday que é usado para satirizar aqueles que não conseguem encontrar relevância em trabalhos de pesquisa básica como os desenvolvidos por ele. Certa vez Faraday recebeu uma visita da Rainha Vitória da Inglaterra em seu laboratório. Quando a rainha lá chegou, Faraday logo se pôs a mostrar-lhe todas as suas invenções e descobertas. Ao terminar a demonstração a rainha perguntou: 
– Mas para que servem todas essas coisas? 
Ao que o sábio físico respondeu: 
– E para que serve um bebê?

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Michelangelo https://canalfezhistoria.com/michelangelo/ https://canalfezhistoria.com/michelangelo/#respond Fri, 14 Mar 2025 00:07:55 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6047 Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni (Caprese, 6 de março de 1475 — Roma, 18 de fevereiro de 1564), mais conhecido simplesmente como Michelangelo ou Miguel Ângelo, foi um pintor, escultor, poeta e arquiteto italiano, considerado um dos maiores criadores da história da arte do ocidente. 

Ele desenvolveu o seu trabalho artístico por mais de setenta anos entre Florença e Roma, onde viveram seus grandes mecenas, a família Medici de Florença, e vários papas romanos. Iniciou-se como aprendiz dos irmãos Davide e Domenico Ghirlandaio em Florença. Tendo o seu talento logo reconhecido, tornou-se um protegido dos Medici, para quem realizou várias obras. Depois fixou-se em Roma, onde deixou a maior parte de suas obras mais representativas.

Sua carreira se desenvolveu na transição do Renascimento para o Maneirismo, e seu estilo sintetizou influências da arte da Antiguidade clássica, do primeiro Renascimento, dos ideais do Humanismo e do Neoplatonismo, centrado na representação da figura humana e em especial no nu masculino, que retratou com enorme pujança.

Várias de suas criações estão entre as mais célebres da arte do ocidente, destacando-se na escultura o Baco, a Pietà, o David, as duas tumbas Medici e o Moisés; na pintura o vasto ciclo do teto da Capela Sistina e o Juízo Final no mesmo local, e dois afrescos na Capela Paulina; serviu como arquiteto da Basílica de São Pedro implementando grandes reformas em sua estrutura e desenhando a cúpula, remodelou a praça do Capitólio romano e projetou diversos edifícios, e escreveu grande número de poesias.

Ainda em vida foi considerado o maior artista de seu tempo; chamavam-no de o Divino, e ao longo dos séculos, até os dias de hoje, vem sendo tido na mais alta conta, parte do reduzido grupo dos artistas de fama universal, de fato como um dos maiores que já viveram e como o protótipo do gênio. Foi um dos primeiros artistas ocidentais a ter sua biografia publicada ainda em vida.

Sua fama era tamanha que, como nenhum artista anterior ou contemporâneo seu, sobrevivem registros numerosos sobre sua carreira e personalidade, e objetos que ele usara ou simples esboços para suas obras eram guardados como relíquias por uma legião de admiradores. Para a posteridade Michelangelo permanece como um dos poucos artistas que foram capazes de expressar a experiência do belo, do trágico e do sublime numa dimensão cósmica e universal.

Primeiros anos

Michelangelo foi o segundo filho de Lodovico di Lionardo Buonarroti Simoni e Francesca di Neri Buonarroti. Em sua certidão de batismo seu nome consta de duas formas, Michelagnelo e Michelagnolo Buonaroti; aparece na biografia de Vasari como Michelagnolo Bonarroti e na de Condivi como Michelagnolo Buonarroti; quando jovem assinava como Michelagniolo. Essas primeiras biografias foram escritas quando ele ainda vivia e sua fama estava no auge, e seus admiradores, não contentes em estabelecer uma alta estirpe para sua família — cuja genealogia aparece hoje como duvidosa —, trataram de engrandecer eventos relacionados ao seu nascimento e infância, alegadamente proféticos de sua futura glória.

Por exemplo, dizia-se que sua mãe caíra de um cavalo enquanto o carregava nos braços mas teriam saído ilesos do acidente; ainda bebê, dormindo no mesmo berço de um irmão, este contraiu grave doença contagiosa, da qual faleceu, mas Michelangelo milagrosamente não foi contaminado. Também diziam que seu mapa astral preconizava um futuro brilhante, por causa de uma conjunção de Vênus, Marte e Júpiter no Ascendente. Condivi disse que sua família era antiga e pertencia à nobreza, o que era aceito como um fato na época em que viveu.

Seria descendente dos condes de Canossa, da região de Reggio Emilia, tendo entre seus ancestrais a célebre Matilde de Canossa, e ligados pelo sangue a imperadores. Um membro da família, Simone da Canossa, teria se radicado em Florença em 1250 e sido feito cidadão da República, encarregado da administração de uma das seis divisões florentinas. Ali mais tarde mudara seu sobrenome de Canossa para Buonarroti, em função do prestígio que vários indivíduos da família chamados Buonarroto adquiriram como magistrados, passando este ramo da Casa de Canossa a ser conhecido como Casa de’ Buonarroti Simoni. 

Lodovico na época do nascimento de Michelangelo era administrador das vilas de Caprese e Castello di Chiusi, subordinadas a Florença. Um mês depois, contudo, expirando o seu mandato, a família se transferiu definitivamente para Florença, mas o bebê, como era um hábito, foi entregue a uma ama para ser criado em Settignano, outra vila florentina, numa propriedade familiar. Com três anos voltou a viver na casa paterna, e com seis perdeu a mãe. Teve como irmãos Lionardo, o primogênito, e mais Buonarroto, Giovansimone e Gismondo.

O pai, mesmo possuindo algum prestígio, não era rico. Sua família era numerosa e suas rendas, baseadas principalmente na propriedade rural em Settignano, eram insuficientes para manter um elevado padrão de vida. O salário que recebia da República era baixo, 500 liras a cada seis meses, e ficava obrigado a pagar com ele mais dois notários, três servos e um cavalariço. A antiga fortuna da família, adquirida no comércio e no câmbio, começara a se dissipar com seu próprio pai, que teve de prover dotes para suas filhas, pagar dívidas vultosas e não obteve cargos lucrativos, e a situação piorou na geração seguinte, a ponto de estarem perto de perder seu estatuto de patrícios e decair para a plebe.

Reconhecendo que Michelangelo era especialmente dotado, assim que atingiu a idade adequada Lodovico o enviou para ser educado por Francesco da Urbino, esperando que seguisse uma carreira prestigiada. Para a sua frustração, o filho fez pouco progresso na gramática, no latim e na matemática, e roubava tempo dos estudos para procurar a companhia de artistas e desenhar. Tornou-se amigo de Francesco Granacci, discípulo de Domenico Ghirlandaio, que o incentivou nas artes e o levava para frequentar o atelier de seu mestre, com o resultado de ele abandonar o interesse pela instrução regular, e por isso receber repetidas punições de seu pai e irmãos, para quem a carreira artística era indigna da nobreza de sua linhagem.

Mesmo assim, conseguiu finalmente vencer a oposição paterna e ser admitido como discípulo de pintura dos irmãos Davide e Domenico Ghirlandaio, através de um contrato com duração estipulada de três anos, assinado em 1 de abril de 1489, ganhando um salário de 24 florins de ouro, o que não era uma prática costumeira naquele tempo. Disse Condivi que a primeira obra acabada de Michelangelo foi a pintura Santo Antônio Abade atormentado por demônios a partir de uma gravura de Martin Schongauer, tão bem feita que teria suscitado a inveja de Domenico.

As relações entre ambos já deviam estar tensas, pois Michelangelo tinha o hábito de jactar-se como superior a Domenico e certa vez ousara corrigir os seus desenhos, humilhando-o, o que não foi pouca coisa, dado que era então um dos pintores mais importantes de Florença, e a insolência deve ter repercutido fundo no espírito do mestre. Outra peça que produziu na época, uma cópia de uma cabeça antiga, teria resultado tão bem que o proprietário do original, recebendo em vez a cópia, não conseguiu perceber a troca. Somente pela indiscrição de um companheiro de Michelangelo a artimanha foi descoberta, e comparando-se ambos os trabalhos, o talento de Michelangelo se tornou reconhecido.

Mas é provável que esses relatos tenham sido muito magnificados — Vasari, na segunda versão de sua biografia, disse que a obra de Condivi tinha muitas inverdades —, pois considerando o reduzido tempo que permaneceu ali, e sabendo-se hoje dos rigorosos hábitos disciplinares do aprendizado artístico da época, que iniciava com as tarefas mais humildes, ele dificilmente teria tido condições de desenvolver tão cedo uma técnica capaz de produzir obras de qualidade tão alta como é declarado.

Ainda seria apenas um serviçal, como todos os principiantes, mantendo os materiais e ferramentas dos mestres e dos discípulos mais graduados em ordem e em condições de uso, limpando o espaço, e ficando à disposição dos mestres para atender quaisquer outras demandas para o bom funcionamento da oficina. No pouco tempo que lhes restava era-lhes permitido exercitar o desenho através da cópia de modelos consagrados, mas isso nessa primeira fase era raro, pois além do trabalho servil ser exaustivo o papel era caríssimo e não podia ser gasto à toa com alunos ainda despreparados.

Somente quando os alunos dominavam essa parte instrumental e já conheciam em profundidade as propriedades dos materiais da arte era-lhes dado acesso ao conhecimento dos rudimentos mais básicos da criação, servindo então como assistentes diretos dos mestres, mas ainda apenas esticando as telas e preparando os painéis em madeira, dando-lhes as camadas de base, pintando alguns detalhes menos importantes da composição e se aprofundando no estudo do desenho.

Entretanto, parece certo que quando ingressou na oficina de Ghirlandaio Michelangelo já havia praticado muito desenho, e assim é difícil determinar com exatidão até onde vai a verdade das biografias primitivas, até porque elas constantemente tendem a exaltar o seu sujeito, mesmo que seja reconhecido que seu talento foi precoce e seu desenvolvimento, muito rápido. 

Juventude

Michelangelo não terminou seu aprendizado com os Ghirlandaio. Um ano depois deixou o atelier e entrou na proteção de Lourenço II de Médici. Os autores divergem sobre as circunstâncias desse evento.

Talvez por seu temperamento rebelde ele tenha se tornado uma presença irritante para os seus mestres, também ele aparentemente não apreciava tanto a pintura como a escultura; Barbara Somervill disse que seu pai, confiando na força de um parentesco distante com os Médici e na disposição de Lourenço em ajudar seus familiares pobres, apelou para que ele o aceitasse como aprendiz; Vasari e Condivi alegam que foi por solicitação direta de Lourenço a Lodovico. Seja como for, com quinze anos de fato ele passou a viver no palácio dos Medici.

Lourenço era o chefe de sua ilustre família, então a mais rica da Itália, governava de facto Florença embora não tivesse cargo oficial, e reunira em torno de si uma brilhante corte de humanistas e artistas, sendo ele próprio um poeta e intelectual. Foi uma circunstância afortunada para Michelangelo, pois recebia o atraente salário de cinco ducados por semana, e pôde desfrutar da amizade pessoal com o mecenas, comendo em sua mesa, e da atmosfera erudita do seu círculo, do qual participavam Angelo Poliziano, Pico della Mirandola e Marsilio Ficino, reforçando sua educação precária e entrando em contato com o Neoplatonismo.

Fez amigos também entre os filhos da casa, que mais tarde se tornaram seus patronos, e mais importante para sua carreira foi poder frequentar o célebre Jardim de Esculturas que Lourenço organizara com uma importante coleção de fragmentos da Antiguidade clássica, de cujo estudo retirou substancial informação para desenvolver seu estilo pessoal na escultura. 

Para administrar esse jardim, Lourenço contratara o escultor Bertoldo di Giovanni, que havia sido aluno de Donatello, e com ele Michelangelo teve algo que se aproximou de um professor de escultura, embora aparentemente não tenha seguido seus métodos. Sua primeira obra para Lourenço parece ter sido uma cabeça de fauno, que não sobreviveu, mas segundo consta foi tão bem realizada que com ela Lourenço definitivamente se rendeu ao talento do jovem.

Outras obras dessa fase foram um crucifixo para o prior do Hospital do Santo Espírito, que lhe permitia dissecar cadáveres para estudar sua anatomia, um baixo-relevo hoje conhecido como a Madonna da Escada, à maneira de Donatello, e o alto-relevo da Centauromaquia, criado sob o conselho de Poliziano e possivelmente inspirado em um motivo encontrado em um sarcófago romano, que despertou a admiração, até das gerações seguintes, como uma obra já madura, ainda que tenha sido deixado inconcluso.

Pouco depois, em 8 de abril de 1492, Lourenço faleceu, deixando o governo para seu filho Pedro de Médici (Piero), de apenas vinte e um anos de idade. Segundo Condivi, para Michelangelo a morte de seu patrono foi um grande choque, tendo permanecido dias em funda tristeza, incapaz de qualquer ação. Retirou-se para a casa de seu pai, onde esculpiu um Hércules de grandes dimensões, que foi vendido para Francisco I da França, mas do qual não se conhece o paradeiro. Sucedeu então que caísse uma grande nevasca sobre Florença, e então Pedro lembrou-se do amigo.

Intimou que ele acorresse ao seu palácio para fazer um boneco de neve, e renovou o convite para que o artista vivesse no palácio Medici a fim de que as coisas continuassem da maneira que eram antes da morte de Lourenço. O convite foi aceito e Michelangelo novamente se tornou um favorito, mas Pedro carecia de toda a sabedoria política de seu pai, era tirânico e completamente inepto para a sua função. Tanto que atraiu a condenação de Savonarola e o descontentamento popular cresceu rápido.

Percebendo o rumo fatal que os acontecimentos tomavam, e por causa de sua íntima associação com Pedro, Michelangelo fugiu secretamente primeiro para Bolonha, e depois seguindo para Veneza, poucas semanas antes de Florença ser invadida por Carlos VIII de França e Pedro ser derrubado e expulso de lá junto com toda a sua família. 

Não conseguindo trabalho em Veneza, voltou para Bolonha, onde encontrou um novo patrono em Gianfrancesco Aldovrandi, em cuja casa permaneceu por um ano. Por sua sugestão produziu figuras para a tumba inacabada de São Domingos, um Anjo segurando um candelabro, um São Proclo e um São Petrônio, além de entreter seu mecenas com leituras de Dante, Petrarca e Boccaccio, apreciadas por seu dialeto toscano ser o mesmo em que haviam sido escritas.

Entretanto, conheceu obras classicistas de Jacopo della Quercia, que exerceram significativa influência em seu estilo. No inverno de 1495 voltou brevemente a Florença. Condivi e Vasari relataram que Michelangelo encontrou-se com Lorenzo di Pierfrancesco de’ Medici, que o encorajou a esculpir um São João, e depois um Cupido adormecido, induzindo o artista a patiná-lo para que pudesse ser vendido como uma antiguidade por um bom preço no mercado romano. Michelangelo o teria enviado para Roma em 1496 e sido adquirido pelo Cardeal Raffaele Riario, mas Clacment alega que a história é muito duvidosa. 

Maturidade

De qualquer forma ele viajou para Roma em seguida e hospedou-se por um ano com Riario, mas para ele aparentemente não produziu nada. Sua obra seguinte, um Baco embriagado de grandes dimensões e traços claramente clássicos, foi feita a pedido do banqueiro Jacopo Galli, que solicitou ainda um Cupido em pé, e através de quem Michelangelo conheceu o Cardeal Jean de la Grolaye de Villiers, embaixador da França junto ao Papa, que encomendou a célebre Pietà, um tema raro na Itália mas comum na França, que foi imediatamente aclamada como uma obra-prima, alçando-o à fama.

Logo recebeu outras comissões, incluindo quinze estatuetas de santos para o Cardeal Francesco Piccolomini, mas realizou destas apenas quatro, interrompendo o trabalho em 1501 para atender um chamado da Catedral de Florença. 

A encomenda foi de um David, a ser instalado nos contrafortes da Catedral. Michelangelo escolheu para a obra um enorme bloco de mármore que havia sido trabalhado parcialmente por outros escultores mas permanecia abandonado há quarenta anos, com mais de 5 metros de altura. Talhar uma obra desse vulto ainda hoje é um desafio técnico enorme, e quando pronta em 1504 o resultado foi considerado tão brilhante e magnificente que foi formada uma comissão de notáveis para decidir onde colocá-la, pois se julgou merecer uma posição mais destacada do que a prevista anteriormente.

Assim, foi instalada diante do Palácio dos Priores, a sede administrativa da República, como um símbolo das virtudes cívicas florentinas. Durante esses anos envolvido com o David, Michelangelo ainda achou tempo para criar várias Madonnas para patronos privados, uma em forma de estátua, duas em relevo e uma pintura, esta sendo especialmente significativa como um exemplo precursor do Maneirismo florentino. Condivi mencionou mais duas obras, em bronze, um David e uma Madonna, que não são conhecidas.

Depois do sucesso absoluto de seu David, Michelangelo foi atraído para projetos monumentais, mas raramente aceitava ajudantes diretos, de forma que muitos deles não foram acabados. Foi o caso da outra empreitada com que os magistrados florentinos o incumbiram, um grande afresco para a Sala do Conselho, representando a Batalha de Cascina, um evento da guerra em que Florença conquistou Pisa. Leonardo da Vinci foi convidado no mesmo momento para fazer outra grande pintura na parede oposta da sala. Nem uma das duas foi terminada, e a de Michelangelo sequer saiu do estudo preparatório.

Em 1505, Michelangelo aceitou um pedido de doze grandes Apóstolos em mármore para a Catedral, mas somente um, Mateus, foi começado, e mesmo este foi abandonado antes de acabar, pois o Papa Júlio II o chamara para Roma. Júlio era tão fascinado pelo grandioso quanto Michelangelo, e era voluntarioso; seus atritos com o artista, cujo temperamento também era forte, se tornaram lendários. Planejara erguer uma portentosa tumba para si mesmo, com quarenta estátuas. Definido o desenho, Michelangelo viajou para as minas de mármore em Carrara para selecionar as pedras, passando lá oito meses.

Quando o material chegou a Roma ocupou boa parte da Praça de São Pedro. Mas estando Júlio engajado ao mesmo tempo na reconstrução da vasta Basílica de São Pedro, os fundos para o trabalho logo secaram. Michelangelo supôs que o arquiteto de São Pedro, Bramante, havia envenenado o papa contra ele, e deixou Roma, voltando para Florença. O papa fez pressão sobre as autoridades florentinas exigindo o seu retorno, e em vez de continuar as obras da sua tumba mandou-o criar uma colossal estátua sua em bronze para instalar em Bolonha, que recém havia conquistado em suas expedições militares.

Depois de pronta o fez aceitar, a contragosto, o encargo de pintar o enorme teto da Capela Sistina, completado em apenas quatro anos, entre 1508 e 1511. O resultado foi muito além das expectativas papais, e mesmo que Michelangelo não estivesse muito à vontade com a técnica da pintura, preferindo sempre a escultura, deu provas de possuir um gênio pictórico comparável ao que produziu o David e a Pietà. 

Assim que terminou o teto, Júlio mandou que ele voltasse a trabalhar em sua tumba, que jamais foi acabada segundo o plano original. Júlio morreu em 1513 e o projeto então foi revisado várias vezes e sucessivamente reduzido pelos outros papas, transformando-se em uma obra muito mais modesta do que a pretendida. Das quarenta estátuas do plano o monumento atual possui apenas sete, e destas somente o Moisés (1513–15) tem real valor, sendo uma contrapartida escultórica das grandes figuras do teto da Sistina.

Seis outras, inacabadas mas também de grande interesse, representando escravos e prisioneiros, originalmente pretendidas como parte do conjunto, foram dispersas e estão hoje no Museu do Louvre em Paris e na Galleria dell’Accademia de Florença. Outra peça importante do período foi um Cristo Redentor nu para a Igreja de Santa Maria sobre Minerva. 

O sucessor de Júlio foi um amigo de juventude de Michelangelo, o segundo filho de Lourenço de Médici, Giovanni, que foi sagrado papa com o nome de Leão X. O governante de Florença então era o Cardeal Giulio de’ Medici, mais tarde também papa com o nome de Clemente VII. Ambos empregaram o artista principalmente em Florença em obras de glorificação de sua família.

Para eles Michelangelo penetrou no terreno da arquitetura, elaborando um plano para a remodelação da fachada da Basílica de São Lourenço, nunca concretizado, mas os seus esforços deram melhores frutos em um projeto menor, a construção e decoração da Sacristia Nova, ligada à Basílica. As obras mais significativas na Sacristia são as originais tumbas de Juliano II de Médici e Lourenço II de Médici, que compreendem cada uma uma estátua idealizada do morto e duas figuras decorativas reclinadas sobre o caixão, nem todas inteiramente acabadas mas de grande pujança, já em um estilo claramente maneirista.

No mesmo período Michelangelo projetou outro edifício anexo à Basílica, a Biblioteca Laurenciana, para receber o acervo legado pelo papa Leão X após sua morte. A estrutura é marcante pela sua livre interpretação dos cânones arquitetônicos clássicos, tornando-a o primeiro e um dos mais importantes exemplos do Maneirismo arquitetural. 

Em 1527 Roma foi invadida e violentamente saqueada por tropas rebeldes de Carlos V, imperador do Sacro Império. O papa fugiu, e Florença se revoltou novamente contra os Medici, banindo-os. Em seguida a cidade foi assediada, e nesse período Michelangelo foi empregado pelo governo local em obras de engenharia, projetando fortificações. Esta década e a seguinte foram especialmente difíceis para ele. Seu pai morrera em 1521 e em seguida seu irmão favorito.

Michelangelo se preocupava com o avanço dos anos e temia a morte, e ainda se envolveu em assuntos familiares para assegurar a perpetuação do nome Buonarroti. Em sua vida afetiva se ligou fortemente a homens jovens, em especial a Tommaso dei Cavalieri, trocando calorosa correspondência e escrevendo-lhes poesias de grande qualidade, tratando do tema do amor na tradição de Petrarca e expressando ideias neoplatônicas. Essas ligações e esses testemunhos materiais têm sido considerados por grande número de estudiosos como evidências de homossexualidade, mas para uma minoria influente, da qual participa Gilbert Creighton, editor da Britannica, é provável que ele estivesse mais preocupado em encontrar um filho adotivo e que seu transbordamento emocional não passasse de retórica literária.

Em 1530 os Medici conseguiram impor definitivamente seu governo em Florença, Michelangelo voltou ao projeto das tumbas da família e produziu duas esculturas, um Gênio da Vitória, que se tornou um protótipo para os escultores maneiristas, e um David, às vezes identificado também como Apolo. Em 1534 deixou a cidade pela última vez, a chamado do novo papa, Paulo III, passando a residir em Roma, embora tenha sempre alimentado a esperança de poder voltar e terminar seus projetos inacabados. 

Últimas décadas

Nessa fase Michelangelo deixou um pouco de lado a escultura e se voltou para a arquitetura, a poesia e a pintura. Paulo III o chamara para pintar a cena do Juízo Final na parede atrás do altar da Capela Sistina. A composição foi outra obra-prima, mas em um estilo muito diverso daquele do teto, e reflete o impacto da Contra-Reforma na cultura da época. A concepção é poderosa e as figuras ainda são grandiosas, mas sua descrição anatômica é menos clara. Por outro lado, a intensidade psicológica e dramática é muito mais impressionante.

Uma cena prevista para a parede oposta, mostrando a Queda de Lúcifer, foi desenhada em cartão mas não realizada. Entretanto, de acordo com Vasari o desenho foi aproveitado por um artista menor na Catedral de Todi, com uma execução pobre. Imediatamente depois foi convocado para pintar mais dois grandes painéis na Capela Paulina, ilustrando a Crucificação de São Pedro e a Conversão de Saulo.

Nesse período desenvolveu uma profunda ligação afetiva com a patrícia romana Vittoria Colonna, que perdurou até a morte dela em 1547, compartilhando um interesse pela poesia e pela religião. Desenhou a remodelação da Praça do Capitólio, um dos projetos urbanísticos mais notáveis da cidade, e na sua condição de novo arquiteto de São Pedro, cargo aceito também com grande relutância, elaborou os planos para a reforma de sua estrutura a partir das ideias deixadas por Bramante, descartando acréscimos de outros colaboradores e revertendo a planta para cruz grega.

Também desenhou a cúpula, uma grande obra de arquitetura, embora construída somente depois que morreu, com ligeiras modificações. Enquanto trabalhava em São Pedro se envolveu em projetos arquitetônicos menores, completando o inacabado Palácio Farnese, dando aconselhamento nas obras da Villa Giulia, da Igreja de São Pedro em Montorio e do Belvedere do Vaticano, além de fornecer um projeto, não utilizado, para a remodelação da Basílica de São João dos Florentinos. 

Em 1555 Paulo IV ascendeu o papado e de imediato abriu um conflito com o governo espanhol em Nápoles, ao mesmo tempo em que intensificou os procedimentos da Contra-Reforma e apoiou a Inquisição. Cancelou a chancelaria de Rimini que Paulo III havia outorgado a Michelangelo, uma boa fonte de renda para ele, e quis destruir o Juízo Final da Sistina, considerado indecente, o que só não ocorreu graças à firme oposição de vários cardeais; mesmo assim vários nus foram cobertos.

O clima em Roma se tornou tenso, tropas francesas entraram nos Estados Papais e Michelangelo, em 1557, buscou refúgio temporário em um mosteiro em Spoleto, deixando as obras na Basílica a cargo de auxiliares. Voltando a Roma pouco depois, passou a se dedicar ao projeto de um túmulo para si mesmo, nunca executado, mas para ele esculpiu a Pietà de Florença, onde se acredita que ele tenha deixado seu auto-retrato na figura de José de Arimateia.

Então voltou às obras de São Pedro, mas suas decisões eram continuamente desacatadas pelos assistentes, criando uma situação estressante. Em 1559 o papa morreu. Era tão odiado que o povo romano deu grandes manifestações de júbilo ao saber da notícia, e Duppa diz que deve ter sido um alívio também para o artista.

Pio IV manteve Michelangelo como arquiteto de São Pedro — desta época é o projeto da cúpula — e lhe restituiu parte das rendas de Rimini. Desenhou um monumento em honra ao irmão do papa a ser instalado na Catedral de Milão, executado por outros, construiu a Porta Pia, reformou as Termas de Diocleciano, transformando-as na Basílica de Santa Maria dos Anjos e dos Mártires, e projetou uma capela na Basílica de Santa Maria Maior, terminada postumamente.

A nomeação de Michelangelo como arquiteto-chefe de São Pedro nunca agradara aos diretores da obra e aos arquitetos assistentes, as pressões por fim acabaram por triunfar, e em 1562 ele foi removido do cargo. Mas logo a situação reverteu a seu favor, pois Michelangelo solicitou uma entrevista com o papa e lhe expôs as intrigas que haviam levado à situação. O papa mandou examinar o caso, confirmou as alegações de Michelangelo e o reconduziu à chefia das obras, e mais, ordenou que suas diretrizes fossem seguidas à risca. 

Em 1563 foi eleito primus inter pares da Accademia del Disegno de Florença, recém fundada por Cosimo I de’ Medici e Vasari, e somente depois disso, às portas dos noventa anos de idade, sua saúde e vigor começaram a declinar rápida e visivelmente. Pouco tempo lhe restava, e na passagem de 1563 para 1564 se tornou claro que já não poderia sair à rua a qualquer hora e sob qualquer tempo como costumava, e nem podia mais recusar a ajuda de outros como fora seu hábito perene.

Em 14 de fevereiro de 1564 sofreu uma espécie de ataque, e espalhou-se a notícia de que ele estava doente. Não obstante, seu amigo Tiberio Calcagni, que correu visitá-lo, o encontrou na rua debaixo da chuva, dizendo que não encontrava sossego de forma alguma. De acordo com o relato, sua face estava com uma péssima aparência e sua fala era hesitante.

Entrando em casa, recolheu-se para descansar. Outros amigos vieram para atendê-lo, no dia seguinte pressentiu a morte e mandou chamar seu sobrinho Lionardo, mas este não chegou a tempo de vê-lo vivo. Faleceu pacificamente pouco antes das cinco da tarde do dia 18, na companhia de Tiberio Calcagni, Diomede Leoni, Tommaso dei Cavalieri e Daniele da Volterra, além dos médicos Federigo Donati e Gherardo Fidelissimi. 

Por ordem do governador de Roma o corpo foi depositado com grandes honras na Basílica dos Doze Santos Apóstolos, mas Lionardo desejava que ele repousasse em Florença, e teve de roubar o cadáver e despachá-lo para a outra cidade disfarçado como mercadoria, sendo entregue na alfândega local em 11 de março. Dali foi removido para um oratório, e no dia seguinte em segredo foi levado para a Basílica da Santa Cruz, mas o movimento foi percebido por populares e logo uma grande multidão se formou para acompanhar o cortejo, prestando-lhe sua última homenagem.

O grupo entrou na Basílica, que ficou completamente lotada, e o lugar-tenente da Accademia ordenou que o caixão fosse aberto. Segundo os registros, após vinte e cinco dias de seu falecimento, o corpo ainda estava intacto e sem qualquer odor. Então foi enterrado atrás do altar dos Cavalcanti. Em 14 de julho uma grande cerimônia pública homenageou sua memória. Os poemas e panegíricos escritos para o dia encheram um volume, que foi publicado em seguida. Sua tumba definitiva foi desenhada por Giorgio Vasari e está na Basílica da Santa Cruz. Mais tarde diversas cidades ergueram-lhe monumentos. 

Personalidade

Quando adulto Michelangelo tinha uma estatura mediana e possuía ombros largos e braços fortes, resultado de suas infindáveis horas trabalhando com a pedra. Seu cabelo era escuro e seus olhos pequenos e castanhos, usava a barba dividida em duas, tinha os lábios finos, o nariz quebrado de uma luta na juventude com Pietro Torrigiano, e sua testa era saliente. Não dava a mínima atenção à sua aparência física, vestia-se com roupas velhas, às vezes até esfarrapadas, que estavam invariavelmente sujas.

Mesmo assim não raro dormia com elas e com seus sapatos. Da mesma forma, era indiferente quanto à comida, comia pouco e irregularmente, tinha má digestão; ficava tão satisfeito com um pedaço de queijo como com uma refeição de vários pratos, como as que comia quando convidado pelos poderosos. Não fazia caso de onde ia dormir e tinha um sono curto, sofria de dores de cabeça e com o avançar dos anos teve problemas de vesícula e reumatismo nas pernas, mas em geral gozou de boa saúde até seu último ano de vida.

Trabalhava incansavelmente, pôde adquirir uma educação geral bastante larga mesmo sem instrução regular, e poucas coisas o interessavam além de sua arte. Entre elas, como se depreende de suas cartas, ele tinha preocupações quanto à perpetuação e dignificação do nome familiar. Em várias, dirigidas a seu sobrinho Lionardo, urgiu que ele se casasse com uma jovem da nobreza, digna dos Buonarroti, e encareceu que ele deixasse o campo e morasse em um palacete urbano, o sinal mais evidente do status de um patrício. Em outras expressa sua ambição de “ressuscitar a sua Casa”, e seu desejo de glória tanto pessoal como familiar é documentado por outros testemunhos. 

Enquanto viveu se formou um folclore a respeito de sua personalidade, descrevendo-o como terribile, ou seja, passional e violento. Também era considerado desconfiado, irritável, antissocial, excêntrico e melancólico, tímido e avarento, e muitos o chamavam de louco. Vasari e Condivi consideraram necessário enfatizar que essas descrições eram caluniosas, mas isso prova que elas eram correntes, mesmo que possam não ter correspondido à toda a verdade.

Eles em vez o descreveram como uma pessoa profundamente religiosa, em quem a pregação de Savonarola sobre o despojamento dos bens mundanos exercera duradouro impacto. Lera suas obras até o fim de seus dias e dizia que recordava claramente da sua voz. Disseram ainda que era liberal e generoso, dando obras valiosas de presente para seus amigos e sendo gentil com seus servos. Como professor não escondia seu conhecimento dos discípulos, mas não gostava que fosse divulgado que ele ensinava. Vários de seus alunos o chamavam de pai. Não era desprovido de senso de humor, e às vezes buscava a companhia de pessoas capazes de fazê-lo rir.

Entre elas apreciava especialmente os pintores Jacopo Torni, Sebastiano del Piombo e o próprio Vasari, com quem se divertia. Era sensível ao trabalho alheio qualificado, e louvava até o de antigos rivais como Rafael, mas várias vezes expressou seu desprezo pela mediocridade e pela pretensão de outros. Era admirador entre outros de Donatello, Ticiano, Ghiberti e Bramante, e mesmo de artistas pouco conhecidos como Antonio Begarelli e Alessandro Cesari, em quem encontrava qualidades invisíveis para outros.

Sobrevivem documentos que atestam sua natureza generosa e benevolente, mas outros em parte confirmam aquele folclore, incluindo sua própria correspondência. Mas é de lembrar em se tratando de um artista tão diferenciado em relação aos seus contemporâneos, uma pessoa submetida a pressões internas e externas desconhecidas pela maioria, obviamente não possuía a mesma natureza que um homem comum e ele por consequência não poderia se comportar como tal.

Sem entrar numa apologia do gênio, seu enorme talento, suas ideias artísticas visionárias e de amplitude titânica, sua insatisfação com a conquista ordinária e a sua infatigável capacidade de realização, dons que se por um lado foram reconhecidos universalmente e atraíram a admiração e o assombro gerais e lhe valeram o epíteto de divino, por outro com toda a probabilidade o separaram psicologicamente do resto dos humanos, nem se pode esperar que universos tão distintos pudessem se compreender ou conviver sem tensões importantes. É muito difícil fazer uma ideia da evolução de sua riqueza pessoal.

Herdou terras em Settignano e foi capaz de torná-las bem mais produtivas do que no tempo de seu pai, e até expandiu sua área. Possuía uma casa-atelier em Roma, duas casas e um atelier em Florença, e se diz que tinha terras em vários locais da Toscana. Suas maiores obras foram pagas regiamente, mas muitas vezes os custos do material, que não eram baixos, estavam incluídos. Além disso, muitas vezes seus patronos lhe pagaram irregularmente, em diversas ocasiões não recebeu o pagamento completo e obras como a tumba de Júlio II representaram despesa e não ganho para ele.

Por outro lado, com seus hábitos espartanos de vida fez uma boa economia, e numa carta disse que Paulo III o cumulara de benefícios. Doou altas somas para caridade e sustentou seus familiares quando pôde, e várias vezes ajudou artistas pobres, inclusive seus dois biógrafos. Não confiava em bancos e guardava seu dinheiro em um baú embaixo da cama. Quando morreu este baú continha dez mil ducados de ouro, uma quantia, segundo Forcellino, suficiente para comprar o Palácio Pitti. 

Vida amorosa

Michelangelo nunca se casou e hoje é praticamente um consenso que tenha sido homossexual, a despeito da negação de seus primeiros biógrafos. Tem sido aventado que o artista teve casos amorosos concretos com vários jovens, como Cecchino dei Bracci, para quem desenhou o túmulo, e Giovanni da Pistoia, que conheceu enquanto trabalhava no teto da Capela Sistina, e para quem escreveu alguns sonetos.

Mas nenhuma prova concludente se encontrou nessa direção, e é bastante possível que o próprio Michelangelo, refreando seus sentimentos e necessidades, tenha fugido de uma consumação carnal. Vários fatores podem ser considerados para tornar a hipótese plausível. Em sua juventude em Florença ficara profundamente impressionado com a pregação de renúncia ao mundo de Girolamo Savonarola, e expressou sua admiração por ele ao longo de toda a vida.

Em segundo lugar se considere a influência da visão humanista-neoplatônica de sua época sobre o amor, outro elemento relevante em seu universo pessoal, que falava do corpo como o cárcere terreno, e ainda que aceitasse o amor entre homens e até o estimulasse, não aprovava o contato físico, lançando a vivência do sentimento num plano espiritual.

Além disso, a opinião pública sobre a homossexualidade no século XVI era bastante negativa; em Florença os homossexuais podiam ser castrados ou condenados à morte. O que transparece fortemente de suas poesias é o perene conflito entre o impulso ao amor terreno e ao amor divino, que, como ele mesmo disse, “o mantinha dividido em duas metades”, e segundo Harmon, pelo que se sabe sobre sua vida, não há como excluir nenhum dos opostos no estudo de sua personalidade e de sua forma de amar.

Ao mesmo tempo em que reiteradas vezes falou do amor dirigido a pessoas como a força dinâmica que o capacitava à transcendência — “o amor nos urge e desperta, dá penas às nossas asas, e a partir daquele primeiro estágio, com o qual a alma não se satisfaz, ela pode voar e subir ao seu Criador” — em outros momentos declarava seu desejo de intimidade física, querendo “abraçar meu tão desejado, meu tão doce senhor, com meus braços indignos”, ou imaginando ser um bicho-da-seda para tecer uma túnica preciosa “envolvendo seu belo peito com prazer”.

Condivi registrou que “muitas vezes ouvi Michelangelo discursar a respeito do amor, mas jamais o ouvi falar qualquer coisa diferente do amor platônico”. Dizem Ryan e Ellis, invocando mais outros autores, que a maioria dos historiadores modernos reconhece a inclinação homoerótica de Michelangelo, mas a questão de se isso o levou a uma vida sexualmente ativa permanece uma incógnita. 
Entre os homens quem ocupou o maior lugar em seus pensamentos foi Tommaso dei Cavalieri, um patrício amante das artes.

Na época Cavalieri era um jovem de 17 anos de idade, e Varchi, que também o conheceu, disse que ele que tinha um temperamento calmo e despretensioso, uma fina inteligência e educação, e uma beleza incomparável, e por tais qualidades merecia o amor de quantos o conhecessem. Logo após seu primeiro contato Michelangelo enviou-lhe duas breves cartas.

Numa delas disse: “Percebo agora que não posso esquecer vosso nome assim como não posso esquecer a comida com a qual vivo — não! antes eu poderia esquecer a comida com que vivo, que infelizmente alimenta apenas o corpo, mas não vosso nome, que nutre minha alma e meu corpo, enchendo ambos de tamanho deleite que me torno imune à tristeza e ao medo da morte, isso enquanto vossa memória dura em mim. Imaginai se o meu olho estivesse também fazendo sua parte (uma referência à distância física entre eles) o estado em que eu me encontraria!”. 

Em outra carta, para seu amigo Sebastiano del Piombo, disse: 
“Se o vires, imploro-te que me recomendes a ele mil vezes, e quando tu me escreveres diz-me algo a seu respeito para eu ter o que colocar na mente, pois se eu esquecê-lo creio que no mesmo instante cairei morto”.

Para ele Michelangelo escreveu cerca de quarenta poemas, presenteou-o com desenhos, e foi o único de quem pintou um retrato, uma obra infelizmente perdida. Entre os desenhos que deu a Tommaso estão um Rapto de Ganimedes, a Queda de Phaeton, a Punição de Tytus, e um Bacanal de crianças, cujos temas são sugestivos.

Ainda que Cavalieri tenha retribuído o amor do artista em grande medida e o tenha expressado várias vezes, inclusive em cartas, não parece ter sido apaixonado, e o teria cultivado dentro da esfera da amizade, o que segundo Ryan foi fonte de muita angústia e desapontamento para Michelangelo.

Entretanto, em uma das cartas que Tommaso enviou a Michelangelo se encontra uma passagem ambígua que reza: “…che Vostra Signoria torni presto, perché tornando liberarete me di prigione: perché io fuggo le male pratiche, e volendo fugirle non posso praticare altri che con voi”. Uma tradução direta é “…que Vossa Senhoria volte logo, porque voltando me libertareis da prisão: porque eu fujo das más práticas, e querendo fugir delas não posso praticar com ninguém mais senão convosco”.

Frederick Hartt traduziu praticare como fazer amor, mas vários dicionários consultados não fazem qualquer associação de praticare com fazer amor, e a traduzem no sentido de fazer amizade, frequentar, visitar com frequência e conhecer, de modo que a interpretação desta passagem permanece duvidosa. O que é certo é que sua relação se transformou em uma sólida lealdade, sobrevivendo a alguns atritos e à transformação do jovem em um pai de família, perdurando até a morte de Michelangelo. Segue um dos sonetos que lhe dedicou: 

S’un casto amor, s’una pietà superna Se um casto amor, se uma piedade sublime (tradução livre) 
“S’un casto amor, s’una pietà superna, 
s’una fortuna infra dua amanti equale, 
s’un’aspra sorte all’un dell’altro cale, 
s’un spirto, s’un voler duo cor governa; 
s’un’anima in duo corpi è fatta etterna, 
ambo levando al cielo e con pari ale; 
s’Amor d’un colpo e d’un dorato strale 
le viscer di duo petti arda e discerna; 
s’amar l’un l’altro e nessun se medesmo, 
d’un gusto e d’un diletto, a tal mercede 

c’a un fin voglia l’uno e l’altro porre: 
se mille e mille, non sarien centesmo 
a tal nodo d’amore, a tanta fede; 
e sol l’isdegno il può rompere e sciorre.” “Se um casto amor, se uma piedade sublime,
se uma mesma fortuna une um par que se ama, 
se a má sorte a ambos afeta, 
se um só espírito, um só querer, governa dois corações; 
se uma alma em dois corpos se torna eterna, 
com as mesmas asas levando-os ao céu; 

se Amor com um só golpe e só uma flecha dourada 
fizer arder e testar dois peitos; 
se cada um amar ao outro e não a si mesmo, 
um só gosto e uma só delícia, a esta meta 
se cada um dirigir sua vontade: 
se tudo isso por mil se multiplicar, não faria ainda um centésimo 
de tamanho laço de amor, de tanta fé; 
e somente o desdém o pode quebrar e dissolver.” 

A outra figura de grande importância em sua vida pessoal foi Vittoria Colonna. Descendente de uma família nobre, foi uma das mulheres mais notáveis da Itália quinhentista. Ainda jovem casou-se com Fernando de Ávalos, Marquês de Pescara. Tornou-se autora de poesias louvadas como impecáveis, das mais importantes continuadoras da tradição de Petrarca em sua geração, uma mediadora política, reformadora religiosa, e seus méritos próprios foram amplamente reconhecidos ainda em sua vida, mas a historiografia posterior a retratou indevidamente mais como uma figura passiva, à sombra de grandes homens que conheceu, entre eles Michelangelo.

É possível que tenham se encontrado em torno de 1537, mas sua relação só se estreitou em torno de 1542 quando Michelangelo já era idoso e ela, viúva há dezessete anos. Discutiam arte e religião. Para ela Michelangelo escreveu várias poesias e produziu desenhos, e ela por sua vez dedicou-lhe também uma série de poemas. O afeto de Michelangelo tornou-se intenso, e em seus sonetos meditava se esta não seria mais uma paixão infrutífera, talvez a mais infeliz de todas.

Apesar de suas dúvidas, o tom geral de suas poesias sobre ela é calmo e doce, e busca a sublimação de forma mais consistente através da fé. Walter Pater comparou a relação de ambos com a de Dante e Beatriz. 

A fé em que Michelangelo se apoiou para enfrentar os dilemas de seus sentimentos foi a da Contra-Reforma, que depositava a responsabilidade pela solução dos problemas espirituais mais na força interior de cada um do que em santos, padres, indulgências e outros auxiliares externos comuns às gerações anteriores.

Da parte de Vittoria, Abigail Brundin disse que as poesias que ela dedicou ao seu amigo revelam o mesmo esforço de lidar com essa responsabilidade e de compartilhar os frutos do labor no espírito de uma comunhão evangélica com alguém que passava pelas mesmas dúvidas e agitações de alma. Michelangelo esteve presente em sua agonia, e ela faleceu em seus braços, enquanto ele em lágrimas beijava suas mãos sem cessar.

Mais tarde arrependeu-se de não ter ousado beijar-lhe a testa e a face. Condivi registrou que após a morte de Vittoria Michelangelo passou um período transtornado, como se tivesse perdido a razão. Em um soneto expressou sua tristeza e revolta, e disse que jamais a natureza fizera face tão bela.

Contexto, estilo e ideias sobre arte

Michelangelo viveu ao longo da última fase do Renascimento e na transição para o Maneirismo, uma época de intensos conflitos sociais e profundas mudanças na vida cultural. Quando jovem absorveu as lições do primeiro Renascimento, que estabelecera uma série de cânones técnicos e estéticos para a representação artística.

Esses cânones haviam sido estabelecidos sobre uma forte tendência de recuperação na arte e na cultura da tradição clássica da Antiguidade, que se desenvolvia desde séculos antes a partir de uma série de descobertas de textos de filósofos e outros escritores antigos, especialmente neoplatônicos helenistas e oradores, poetas, políticos e historiadores romanos, e de peças de arqueologia. Com essa quantidade de novas informações, no século XV se consolidou o que se chamou de Humanismo, uma síntese eclética dessas fontes pagãs com o pensamento cristão, incorporando ainda elementos das tradições árabes, orientais e egípcias, bem como outros oriundos da magia, das tradições religiosas esotéricas, da mitologia clássica e da astrologia.

O resultado foi a colocação do ser humano novamente no centro do universo, enfatizando sua nobreza, sua beleza, sua liberdade, os poderes de seu intelecto e sua natureza divina. Na arte foi criado um sistema de proporções ideais para a arquitetura e para a representação do corpo e se cristalizou o sistema da perspectiva para a definição da representação bidimensional.

O Renascimento associou ainda o idealismo clássico com um intenso interesse pelo estudo científico do mundo natural, produzindo uma arte que era uma generalização universal mas capaz de se deter no particular para descrever caracteres individuais. Ao mesmo tempo, era uma arte de índole ética, pois se considerava possuir uma função social da qual não podia escapar, e almejava sobretudo a cura das almas e a instrução do público para a condução da vida pelos caminhos da virtude. 

Michelangelo passou sua juventude em Florença quando ela estava no auge de seu prestígio político, econômico e principalmente cultural, sendo uma referência não só para a Itália mas para boa parte da Europa. Pouco depois, em torno de 1500, Roma tomou-lhe a dianteira em todos esses aspectos, onde os papas fortaleceram seu poder temporal enfraquecido, invocaram para Roma a posição de cabeça do mundo e herdeira do Império Romano, e proclamaram a universalidade de sua autoridade religiosa.

Foi a fase chamada de Alta Renascença, quando as ideias artísticas clássicas a respeito de harmonia, equilíbrio, moderação, dignidade, proporção e fidelidade à natureza se tornaram especialmente influentes. Nesta mesma altura, Michelangelo atingia sua primeira maturidade artística e já trabalhava para os papas em Roma, produzindo obras que espelham perfeitamente essas concepções. Entretanto, a Itália já estava sob a mira de grandes potências estrangeiras, e começou a ser invadida em vários pontos.

Em 1527 Florença foi posta sob sítio e Roma foi vítima de um terrível saque por tropas do Sacro Império, enquanto na mesma época no norte da Europa os Protestantes conseguiam a sua separação da Igreja romana com severas críticas à doutrina e aos abusos e corrupção do clero. A autoridade papal sofreu sério abalo, o poder político italiano no panorama internacional caiu de imediato, e na Itália se instaurou um clima sociocultural de incerteza, tensão e medo.

A reação da Igreja foi lançar nos anos seguintes a Contra-Reforma, estabelecendo uma nova formulação para a doutrina e novas regras para a arte sacra, onde se tornou uma praxe a censura prévia com uma orientação claramente propagandística.

Como descreveu Argan, nesse período a religião já não era uma revelação inconteste de verdades eternas, mas uma busca individual; a ciência já não se estabelecia sobre a autoridade dos antigos, mas sobre a livre pesquisa; a política mudava sua base de uma noção de hierarquia emanada de Deus para se lançar na procura de um equilíbrio sempre provisório entre forças contrastantes; a História, como experiência já vivida, perdera seu valor determinante, o que contava então era a experiência de cada um no presente, e a arte deixava para trás os cânones abstratos e coletivos para mergulhar no mundo do julgamento individual, da investigação do próprio processo criativo e da materialidade da obra.

Desta forma, os seus cerca de quarenta ou cinquenta últimos anos, a maior parte da carreira de Michelangelo, transcorreram nesse ambiente agitado, e seu estilo dessa fase deve ser caracterizado como maneirista, exibindo traços típicos desta escola que ele mesmo ajudou a fundar, quais sejam:

uma marcada reação ao equilíbrio e harmonia do classicismo e à idealização da Alta Renascença, a distorção das proporções do corpo, uma tendência à estilização de feições, ao exagero e ao drama, o uso de uma paleta de cores pouco naturais, a anulação da perspectiva de ponto central com a criação de uma sensação de vários planos simultâneos, arbitrários e irracionais de espaço, e a preferência por formas espiraladas, contorcidas e bizarras, e por composições apinhadas de personagens. 

Michelangelo se distinguiu da estética renascentista abandonando a crença de que a Beleza é produzida por uma relação matemática de proporções entre as partes do todo, e confiava antes nos sentidos. Dizia que é mais necessário ter um compasso no olho do que nas mãos, pois as mãos produzem a obra, mas quem a julga é o olho. Não se sentia obrigado a seguir leis estéticas apriorísticas dizendo que o artista não devia ser guiado senão pela ideia que concebera, e considerava possível definir outras proporções igualmente aceitáveis e belas.

Sua insistência na sua própria autonomia criativa e na expressão de sua visão pessoal o tornou o primeiro artista do ocidente a ter príncipes e papas a seus pés, decretando por si mesmo como a obra deveria ser realizada, ao contrário da prática anterior à sua geração, quando o artista era um simples artesão obediente à vontade de seus patronos. Isso era tanto um reconhecimento de sua própria capacidade como uma resposta à cultura da época que glorificava a fama pessoal.

Compartilhava com os renascentistas e com seus outros contemporâneos o amor pela arte da Antiguidade, mas na sua época os modelos disponíveis eram em sua grande maioria produto do Helenismo ou da era romana, que não são propriamente idealistas e trabalham mais o lado dramático, dinâmico e emotivo da representação. Também foi estimulado nessa direção pela descoberta de uma importante obra helenista, o Grupo de Laocoonte, que causou uma sensação em toda a intelectualidade romana em sua exibição pública no Vaticano em 1508. 

Apesar de sua inclinação para os modelos romanos e helenistas, Michelangelo aparece como um grande idealista, um herdeiro direto do universalismo da arte do Alto Classicismo grego. O artista não estava mais interessado na observação da natureza além do necessário para criar um protótipo de forma que ignorava o particular e era aplicável indiscriminadamente para todos os sujeitos. Nada em sua arte é específico além da forma geral do corpo humano, e o transformou em algo cuja potência vem causando admiração desde quando o plasmou em imagem.

Na mesma tradição alto-clássica, procurou expressar as virtudes heróicas da alma através de corpos poderosos cuja beleza é apoteótica e ideal, e não humana, porém inevitavelmente filtrando o idealismo antigo através da sua eclética interpretação pelo Humanismo renascentista, onde o trágico e o patético também tinham um lugar. Como observou Weinberger, não representou a sua geração, mas uma geração de gigantes vivendo fora do tempo, e os edifícios que ergueu parecem ter-se destinado a esta raça. Mesmo suas obras pequenas têm uma feição monumental.

Não caracterizou trajes ou fisionomias de sua época, não produziu retratos além de uns poucos desenhos, suas figuras não estão engajadas em atividades comuns, não aparecem utensílios do cotidiano, nem móveis, nem arquiteturas da época; não parecem afetadas pelas estações, pela paisagem em torno. Quando há alguma paisagem, é surpreendentemente desértica, é apenas um espaço convencional e abstrato onde distribuiu seus personagens sobre-humanos. Não teve outros alicerces para sua arte senão o corpo humano, o amor pela sua beleza e uma ideia de sublime magnificada ao extremo — certa vez buscando mármores em Carrara desejou transformar uma montanha inteira em uma estátua de um gigante. 

Até mesmo suas descrições de gênero sexual são ambíguas, em várias de suas pinturas e esculturas as mulheres são quase tão musculosas quanto os seus homens e a única diferença visível é a presença de seios e ausência de um pênis. Por outro lado, algumas de suas figuras masculinas têm uma languidez e afetação postural só encontradas na representação feminina de seu tempo. Mesmo que em várias imagens seja aparente um androginismo, é amplamente reconhecida sua preferência pelo corpo masculino, especialmente nu, que é fio condutor de toda a sua produção artística, e abunda mesmo em suas composições sacras.

O nu masculino aparece desde a sua primeira escultura autenticada, a Centauromaquia, numa de suas primeiras pinturas, o Tondo Doni, continua pela sua carreira afora, no Baco, no David, no Cristo Redentor, nos Escravos e nos Cativos, no Gênio da Vitória, no Jovem ajoelhado e várias outras esculturas, toma a vasta maioria de seus desenhos, é tema de suas poesias e se multiplica nas pinturas A Batalha de Cascina, no teto e no Juízo Final da Sistina.

Tal frequência desde aquele tempo tem provocado reações negativas em setores da Igreja, a ponto de o Papa Paulo IV mandar cobrir as genitálias expostas de várias figuras nos afrescos da Sistina, e o Cristo Redentor em mármore sofrer o mesmo destino, recebendo um manto de bronze. 

Seu estilo e iconografia nos últimos dois séculos têm sido objeto do mais acalorado debate entre os críticos e historiadores, a ponto de Barolsky ter dito ironicamente que a copiosa bibliografia produzida sobre ele é ela mesma “michelangelesca”, e embora Michelangelo seja em geral contado na mais alta estima, pouco consenso sobre pontos específicos pôde ser conseguido.

Entretanto, em sua poesia ele deixou muitas pistas sobre suas ideias artísticas e sobre a vida, e nela, conforme foi sugerido por escritores como Erwin Panofsky e Carlo Argan, parece transpirar o Neoplatonismo como uma influência preponderante, da forma como ele foi interpretado pelos humanistas e poetas cristãos italianos como Marsilio Ficino, Pico della Mirandola, Dante Alighieri e Petrarca.

Martin Weinberger, de inclinação formalista, rejeitou a explicação transcendental e assinalou que não se pode atribuir com certeza a uma escola definida de pensamento ideias que pertenciam à cultura renascentista como um todo e estiveram sujeitas a uma multiplicidade de correntes. Também disse que Michelangelo dificilmente teria colocado sua arte acima da natureza, e que sua obra requer um estudo mais dentro do domínio da arte pura — seu tratamento dos materiais, a evolução de suas formas e de sua linguagem plástica.

É possível que uma síntese de ambas as visões seja o caminho mais adequado para se compreender melhor sua produção. De fato a interpretação de uma peça específica muito dificilmente pode ser circunscrita a qualquer fonte individual, mas em linhas gerais a explicação transcendental parece permanecer a tendência mais forte entre a crítica para interpretar seu estilo e motivações como um todo. Parece bastante claro que para Michelangelo a busca da transcendência foi uma força propulsora em todo o seu trabalho, como foi documentada de várias maneiras, mas estava firmemente inspirada na beleza que ele via no mundo físico, transformada pelo poder do Amor residente na alma em algo, então sim, divino. Num poema escreveu: 

“Vejo em tua bela face, meu Senhor, 
aquilo que não posso expressar nesta vida.
A alma, ainda vestida de carne, 
com aquilo tantas vezes é transportada para Deus.” 

Em outro, disse: 
“Meus olhos, buscando coisas belas,
e minha alma, buscando a salvação
não têm outro poder de ascender ao céu
senão contemplando tudo que é belo”. 

Por outro lado, não se pode atribuir um peso por demais determinante ao que ele disse de si mesmo e de sua arte, ainda que seu testemunho jamais possa ser descartado. Como lembrou Barolsky, na cultura da época o artificialismo e a estilização eram onipresentes. Mesmo a arte era considerada uma ilusão deliciosa, conforme disse Vasari, e estava sujeita a uma série de convenções, de domínio público.

Os textos do século XVI são carregados de recursos puramente retóricos, e o relacionamento social em altas esferas era algo muito próximo de um teatro. Da mesma forma as biografias eram peças laudatórias enganosas, e os escritos poéticos de Michelangelo devem ser analisados levando-se em conta o contexto desse universo de convenções e artifícios, num processo de construção consciente da sua imagem pública e do seu próprio mito que ele levou a um grau hiperbólico, modelando a si mesmo à feição de um colosso, assim como fazia com suas obras.

Sua correspondência tampouco é uma fonte exatamente fiel de informação sobre sua vida; em muitos momentos é evasiva, ambígua, exagerada, contraditória e às vezes claramente mentirosa, o que não era, de resto, uma característica exclusiva sua, mas espelhava um comportamento coletivo. Epitomizando esses costumes, em 1532 foi publicado O Príncipe, de Machiavelli, cujas ideias tiveram larga difusão, sacramentando a necessidade do governante de usar o engano e a dissimulação pelo bem da manutenção da ordem pública. 

Outro aspecto que tem intrigado os historiadores é o estado inacabado de muitas de suas obras. Frequentemente fatores externos, que foram documentados, o levaram a isso, sendo constantemente chamado de um lado para outro pelos papas e príncipes, mas em outros casos não houve qualquer imperativo conhecido que pudesse justificá-lo, e se especula hoje que as tensões entre suas ideias grandiosas e a dificuldade prática de transportá-las satisfatoriamente para uma forma concreta e limitada pela matéria física podem ter sido um elemento importante nesse fenômeno. A seguir são abordadas em mais detalhe as várias técnicas a que se dedicou, mas dada a quantidade de suas obras, apenas as mais importantes serão citadas. 

Escultura

Michelangelo via a si mesmo acima de tudo como um escultor. Participou do debate teórico da época sobre qual das artes seria a mais nobre, a chamada questão do paragone, e se posicionou do lado dos escultores. Em uma carta escrita para Benedetto Varchi disse: 

“Creio que a pintura só atinge sua excelência na medida em que se aproxima dos efeitos do relevo, enquanto que um relevo é considerado pobre quando se aproxima do caráter da pintura. Costumo pensar que a escultura é o farol da pintura, e que entre ambas existe a mesma diferença que há entre o sol e a lua.

Contudo, também considero ambas em essência a mesma coisa, na medida em que ambas procedem da mesma faculdade, e daí que é fácil estabelecer entre elas a harmonia e encerrar as disputas, que gastam mais de nosso tempo do que produzir as figuras em si. Sobre aquele homem (Leonardo da Vinci) que escreveu dizendo que a pintura é mais nobre que a escultura, acho que minha empregada sabe mais do que ele. 

Para Michelangelo o processo escultórico era uma sucessiva remoção do supérfluo para expor a ideia — o concetto — projetada na matéria. Em um de seus poemas comparou o processo com o ato de Deus tirando o homem do barro. Às vezes fazia modelos em argila ou cera como estudos preliminares. Suas influências imediatas foram a escultura romana, Giovanni Pisano, Niccolò dell’Arca, Jacopo della Quercia, Donatello e também Leonardo da Vinci, mas desde o início eximiu-se de uma fidelidade estrita a esses modelos, buscando uma abordagem individual, o que é visível já na Centauromaquia que criou para Lorenzo de’ Medici, uma das composições mais avançadas tecnicamente de sua época.

Ali o mito é apenas um pretexto, conforme analisou Argan, para uma pesquisa em torno do movimento puro. Sua primeira obra importante foi o Baco, fortemente inspirada em modelos helenistas. A solução formal é criativa, uma figura desequilibrada e sensual que anula a solenidade clássica e a transforma numa figura quase burlesca, em uma contínua interpenetração de curvas e superfícies polidas que captam habilmente a luz. O contraste é provido pela pequena figura do fauno atrás dele, que serve como suporte estrutural e ao mesmo tempo é tratado com outras texturas e construído a partir de blocos básicos bem distintos.

Em seguida, com apenas vinte e três anos, esculpiu sua afamada Pietà, que tem sido louvada desde a origem pelo seu finíssimo acabamento de superfície e pela sua brilhante composição em pirâmide, uma forma de grande estabilidade e perfeita para veicular o pathos melancólico, resignado e meditativo da cena. O Cristo aparece no regaço de sua mãe, com uma face tranquila sem sinal de sofrimento, como se dormisse; suas chagas mal são perceptíveis, o que enfatiza a beleza do seu corpo.

A Virgem é uma jovem, e mais parece uma irmã de Cristo e não sua mãe, o que foi criticado pelos seus contemporâneos. Sua resposta foi de que sua castidade tão perfeita teria preservado sua beleza e juventude. A composição é interessante também porque a figura da Virgem, se estivesse de pé, seria bem maior do que a de seu filho, um recurso técnico-ilusionístico que não é notado sem uma medição, mas provê com o seu corpo e o largo manto cheio de dobras um amplo receptáculo para o descanso do mártir, e empresta ao conjunto uma impressão de tranquilidade. O sucesso da obra foi enorme, e foi a única que Michelangelo assinou.

Entre 1501 e 1504 criou sua maior escultura, o colossal David para Florença. Usando um bloco único de mármore já parcialmente trabalhado, mandou erguer uma cerca em torno e o escavou sozinho, sem permitir visitas. Quando foi inaugurado causou uma sensação entre os florentinos. Inteiramente nu, é uma imagem de triunfo, na tradição dos nus heroicos do classicismo, mas por pudor foi-lhe aplicada uma guirlanda de bronze sobre o sexo.

Apesar do seu tamanho descomunal, o David é ainda um adolescente, e foi representado nos momentos preparatórios do combate com Golias. Sua expressão é tensa, sua mão direita se crispa sobre a coxa, mas não há ação, tudo se resume na concentração da energia antecipando o momento mortal. É tanto um símbolo do civismo republicano de Florença, como foi reconhecido de imediato, como da condição gloriosa do homem no pensamento renascentista. 

A tumba de Júlio II deveria ter sido sua maior obra de escultura, uma grande estrutura livre dentro da Basílica de São Pedro no estilo de um mausoléu, com 10 x 15m de área e adornado com 40 estátuas em tamanho natural representando profetas e personificações das artes liberais, com uma grande estátua de Júlio de 3 metros de altura coroando o conjunto. Michelangelo deveria receber pela obra um salário anual de 1 200 ducados — dez vezes mais do que outro artista receberia — e mais um pagamento final de 10 mil ducados, uma quantia bastante expressiva. O mármore foi trazido de Carrara e ocupou noventa carros.

Para que o mausoléu pudesse ser instalado na Basílica, esta teve de ser reformada, destruindo-se a veneranda construção anterior erguida por Constantino I entre 326 e 333 d.C., ampliando-se sua planta consideravelmente, e desviando a maior parte dos recursos de Júlio para lá. Desta forma, as obras da tumba se paralisaram, Michelangelo teve de pagar o transporte do mármore por conta própria, reclamou com o papa e foi expulso do Vaticano. Ultrajado, partiu para Florença.

O papa mandou cavaleiros em sua perseguição mas só o alcançaram perto de Florença. A despeito das ameaças, recusou-se a voltar e enviou ao papa uma carta protestando contra os maus tratos. Alguns meses depois ocorreu a reconciliação em Roma, e Júlio solicitou que ele esculpisse uma enorme estátua sua em bronze para a cidade de Bolonha, e para lá foi enviado, morando em alojamento precário, tendo de dividir a cama com mais dois ajudantes, que além disso ele considerava incompetentes.

A primeira fundição da estátua falhou, e teve de ser refundida, agora com sucesso. Tinha 4 metros de altura e pesava 4,5 toneladas, uma das maiores obras em bronze desde a Antiguidade, sendo instalada em 1508. Quando Bolonha readquiriu sua independência a estátua foi destruída. 

Com a morte de Júlio em 1513 a sua tumba se tornou mais do que nunca uma necessidade, mas seus herdeiros não se dispunham a prosseguir na escala que ele pretendera. Um dos primeiros esboços de Michelangelo foi revivido e o monumento foi muito reduzido, a câmara mortuária foi substituída por um simples sarcófago e o monumento deslocado para junto de uma parede lateral, mas ainda haveria diversas estátuas e relevos.

Apesar da dedicação com que Michelangelo se voltou para o trabalho, nos três anos seguintes só três estátuas haviam sido iniciadas, o Moisés, e duas outras, de escravos, mas permaneciam inconclusas. Entre 1519 e 1520 fez um belo Cristo Redentor inteiramente nu para a Igreja de Santa Maria sobre Minerva, inspirado no modelo do nu heroico da Antiguidade clássica. Havia sido encomendado em 1514 pelo patrício romano Metello Vari, e o trabalho iniciara em seguida, mas a meio caminho Michelangelo descobriu um veio negro no mármore e abandonou a peça. Uma segunda versão foi criada rapidamente para cumprir o contrato, e o polimento final foi entregue a seus discípulos. Anos depois sua nudez foi oculta. 

Quando iniciou o pontificado de Leão X o artista foi requisitado para trabalhar em Florença. Lá, entre vários projetos arquitetônicos, esculpiu a partir de 1521 um importante par de tumbas para dois duques Medici na Sacristia Nova. Como já se tornava uma experiência comum para ele, houve várias interrupções e não pôde terminá-las, foi chamado para Roma em 1526.

As estátuas dos mortos são belas e nobres, os retratam idealizadamente vestidos como antigos generais romanos, mas são especialmente notáveis as que se reclinam sobre os sarcófagos. Na tumba de Juliano, as alegorias do Dia e da Noite, e na de Lorenzo, a Aurora e o Ocaso, com uma possante descrição anatômica e intenso pathos. Deveriam ter sido esculpidas ainda quatro estátuas de deidades fluviais, mas não foram sequer iniciadas. Quando Michelangelo partiu os monumentos ainda não estavam montados, e sua forma final se deveu ao concurso de alguns de seus discípulos, que finalmente arranjaram as tumbas no ano de 1545, na forma como se as vê hoje. 

Provavelmente Michelangelo voltou a trabalhar na tumba de Júlio em 1526, produzindo quatro Cativos, maiores do que os dois Escravos, que também não foram acabados mas modernamente são muito apreciados por sua concepção poderosa e por parecerem estar lutando em desespero para se libertar da prisão da matéria amorfa que os rodeia, e Hartt chegou a dizer que dificilmente seu impacto emocional poderia ser mais forte se tivessem sido finalizados.

Um quarto projeto para a tumba de Júlio II foi desenhado em 1532, e formalizado em contrato com a família, em dimensões ainda menores, e toda a iconografia foi revista. Criou nesta época mais uma estátua, o Gênio da Vitória, uma das mais originais composições de Michelangelo com sua figura fortemente contorcida, a subjugar um prisioneiro, embora não seja garantido que se destinasse ao túmulo. Também esta não foi finalizada. O trabalho só foi terminado em 1545 após o papa intervir para liberar o artista das obrigações com a família de Júlio. E em vez de se localizar na Basílica, foi montado na Basílica de São Pedro Acorrentado.

O Moisés, a única peça que ele completou inteiramente, e que deveria ser apenas uma figura secundária no projeto original, foi instalado no centro da composição, rodeado de estátuas muito menos expressivas esculpidas às pressas e completadas por escultores menores, junto com mais duas, obra integral de outros artistas. De interesse ainda restam suas obras finais, duas pietàs. A primeira ele iniciou antes de 1555 como parte de um projeto para uma tumba própria, que não se concretizou.

A meio do trabalho exasperou-se com a “indocilidade da pedra” e destruiu parcialmente o que havia conseguido. Seus discípulos tentaram recompô-la e acabar algumas partes, mas sem grande sucesso, e uma das pernas de Cristo foi perdida. O que hoje permanece é um esboço, ainda assim pungente, da morte de Jesus, estruturado de forma a parecer que o peso de seu corpo sem vida é grande demais para ser sustentado pelas figuras de José de Arimateia, Maria Madalena e a Virgem Maria, emprestando à peça uma atmosfera de trágico desalento.

Outra das pietàs, a chamada Pietà Rondanini, foi iniciada pouco antes de ele falecer, e permanece apenas com suas formas sugeridas, mas novamente seu aspecto inacabado, junto com a sensível concepção do conjunto, tem grande apelo para o público moderno. 

Pintura

A primeira pintura que se pode atribuir com segurança a Michelangelo é o Tondo Doni (c. 1504), uma imagem da Sagrada Família. Seu tratamento de espaços e volumes é claramente escultórico, com linhas exatas a delimitar as formas, e sua iconografia foi interpretada por Charles de Tolnay como um sumário da evolução da fé.

A Virgem e São José pertencem ao mundo do Antigo Testamento, regido pela Lei; Cristo é a Boa Nova, o mundo da Graça; São João Batista é a ponte de ligação entre ambos, e a galeria de nus ao fundo representaria o mundo pagão. O grupo é organizado a partir da forma da pirâmide combinada à espiral, a figura serpentinata que se tornou tão cara aos maneiristas, e o tratamento dos planos cromáticos estabelece limites nítidos entre eles, sem sfumato.

Sua obra seguinte de importância teria sido a jamais realizada Batalha de Cascina, mas da qual sobrevive uma cópia do desenho preparatório. A cena escolhida para representação foi a do aviso da chegada das forças pisanas, colhendo os florentinos de surpresa. Michelangelo usou novamente um pretexto temático para realizar um notável estudo de anatomia de corpos humanos, colocando um grande grupo de soldados a se aprontarem para a batalha numa multiplicidade de posições. 

Na sequência veio a encomenda do teto da Capela Sistina, um espaço de grande significado simbólico no Vaticano por ser onde se realizam as eleições papais. A Capela já era decorada com uma série de afrescos importantes nas paredes, e a tarefa de Michelangelo foi a de decorar o teto, pintado apenas de um azul pontilhado de estrelas. A ideia inicial de Júlio II era de apenas doze grandes figuras dos Apóstolos, mas Michelangelo concebeu um conjunto de sete Apóstolos e mais as cinco sibilas da mitologia grecorromana, uma escolha bastante incomum mas não inteiramente inédita para um teto de capela.

Acrescentou ainda quarenta ancestrais de Cristo, uma longa série de cenas do Genesis, vários nus e outras figuras acessórias, compondo um grupo de trezentas figuras dividido em três grupos: a Criação da Terra por Deus, a Criação da Humanidade e sua queda e, por fim, a Humanidade representada por Noé. As figuras exibem uma força e majestade sem precedentes na pintura ocidental. Todo o tom da obra é monumental, é grandiloquente sem ser puramente retórico, mas possuindo alta poesia, inaugurando uma forma inteiramente nova de representar o trágico, o heroico e o sublime, e também o movimento e o corpo humano.

Sua interpretação temática tem sido objeto de intenso debate desde o momento de sua apresentação pública, e muitos a tem comparado com um grande panorama da evolução humana dentro de um escopo cósmico, num entendimento do Antigo Testamento como uma preparação para a vinda de Cristo, ou como uma interpretação neoplatônica dos eventos bíblicos sob uma óptica de relacionamento Deus-Homem particularmente dramática. Michelangelo anos mais tarde disse que a concepção da iconografia se devia a ele, mas para quem não tinha uma grande erudição nem sabia latim, a complexidade simbólica das cenas parece estar além de sua capacidade de conceituação.

Hartt disse que tem sido sugerido que ele teve um conselheiro teológico na elaboração do programa temático do teto na pessoa de Marco Vigerio della Rovere, um franciscano parente do papa. As cenas são compostas sem relação espacial umas com as outras ou com as figuras laterais, e o painel não pode ser observado a partir de um único ponto de vista.

É interessante também porque permanece como um documento da evolução do autor na pintura de afresco em escala monumental, técnica com a qual ele estava pouco familiarizado no início da obra. Ele partiu da figura de Noé sobre a entrada, e foi seguindo em direção ao altar. As primeiras figuras revelam sua inexperiência e usam modelos formais mais ou menos padronizados e pouco dinâmicos, e as cenas guardam uma escala relativamente modesta.

Mas em pouco tempo, como é visível, adquiriu confiança e desenvoltura, e estudos recentes têm afirmado que à medida que o trabalho avançava prescindia mais e mais de esboços preparatórios na escala definitiva, até descartá-los por completo, pintando diretamente. A mesma confiança fica patente no tratamento cada vez mais livre das pinceladas e no crescente dinamismo e expressividade das figuras, chegando a dimensões de tragédia em alguns personagens, o que ilustra com clareza a passagem do equilíbrio clássico do Alto Renascimento para o mundo agitado do Maneirismo.

O trabalho foi interrompido na metade por cerca de um ano, quando não houve fundos para pagá-lo, e quando foi retomado, curiosamente o mesmo processo evolutivo se observa da segunda metade, na cena da criação de Adão, para o final na figura de Jonas. Existe porém um diferencial na segunda metade, enfatizando as atmosferas reflexivas antes do que as anatomias vitais e exuberantes. 

Recentemente uma restauração patrocinada por uma companhia de televisão japonesa e levada a cabo por uma grande equipe de especialistas removeu camadas de fuligem de velas, sujeiras diversas e possíveis restauros anteriores. A opção do responsável pelo trabalho foi remover tudo o que havia acima da camada realizada em buon fresco, o afresco puro, pintado quando a camada de base ainda está úmida, fazendo com que ao secar as cores se fixem permanentemente incorporadas ao reboco.

O resultado foi surpreendente, mostrando uma paleta de cores brilhante e variada, muito diferente daquela que por séculos foi associada com a pintura de Michelangelo. Mas o restauro levantou uma turbulenta controvérsia no mundo da arte. Enquanto que um grupo de críticos louvou o resultado como uma revelação, dizendo que obrigava à reformulação de todas as avaliações prévias sobre sua estética, muitos outros peritos igualmente respeitados consideraram a intervenção uma calamidade que destruiu a sua pintura para sempre, acusando os restauradores de remover, além dos detritos acumulados ao longo dos anos, também acréscimos do próprio Michelangelo que teriam sido pintados a seco depois do buon fresco secar, o que realmente era uma prática bastante comum no seu tempo.

Comparando-se fotografias dos estados anterior e posterior, parece claro que a adoção de uma solução técnica unificada para todo o painel foi de fato uma atitude temerária, e que o restauro tenha sido radical demais pelo menos em alguns pontos, pois é difícil crer que o artista tivesse, por exemplo, pintado figuras sem olhos, como estão agora algumas delas. Diversos outros detalhes desapareceram, como ornamentações na arquitetura ilusionística que emoldura as cenas, pregas nos mantos e o modelado sutil dos corpos e das sombras, resultando em planos mais achatados e anulando parte do efeito escultórico da pintura.

Entretanto, em termos de cores a paleta luminosa que surgiu na Capela Sistina teve uma confirmação quando se restaurou o Tondo Doni, que traz o mesmo espectro de cores. 

Outra composição de grande importância foi realizada na mesma Capela Sistina, a cena do Juízo Final sobre a parede do altar, pintada entre 1536 e 1541, encomendada por Paulo III, um tema perfeitamente afinado a um momento em que a Contra-Reforma exercia com força a censura e perseguia visões heterodoxas do Cristianismo. A composição é estruturada em torno da figura monumental de Cristo Juiz, que separa os bons dos maus. Ao contrário da tradição anterior, que estabelecia esta cena em níveis e hierarquias rigidamente compartimentalizados, Michelangelo dissolveu boa parte desses limites, tornando o conjunto muito mais dinâmico e unificado.

A própria distinção entre os condenados e o salvos é minimizada, e os próprios santos são em sua maioria despojados de vestimentas e atributos conspícuos, numa massa de corpos nus que se espalha em movimento por toda a superfície. Toda essa nudez imediatamente despertou severas críticas de parte do alto clero, e por pouco o painel não foi destruído. Para explicar como uma profusão de nus pôde ser pintada na Capela Sistina, um dos espaços mais importantes do Vaticano, Crompton disse que os dois papas mais fortemente associados a ela eram alvo de rumores.

O construtor da Capela, Sisto IV, foi mais de uma vez acusado de sodomia, e sua inclinação era confirmada pelo seu próprio camareiro. Júlio II, que mandou pintar o teto, havia sido condenado pelo Concílio de Pisa como outro “sodomita, coberto de úlceras vergonhosas”. O concílio em verdade serviu a fins políticos de seus adversários, mas outros relatos falam de sua atração por homens jovens. 

Suas últimas pinturas dignas de nota foram dois grandes afrescos na Capela Paulina do Vaticano. Depois da grande liberdade mostrada no Juízo, ambos foram concebidos com mais rigor e menos dinamismo, ainda que estejam entre suas obras mais expressivas pela poderosa compactação dos grupos e pela intensidade dramática da caracterização dos personagens. O primeiro representa a Conversão de Saulo, realizado entre 1542 e 1545, organizado em torno da eficiente diagonal entre Cristo no céu e Saulo arrojado ao solo, cego pela luz divina, com uma grande figura de cavalo ao centro funcionando como o eixo estrutural que equilibra toda a cena.

O segundo afresco retrata a Crucificação de Pedro, e foi terminado em 1550, a mais compacta de todas as pinturas de Michelangelo, organizada também sobre a diagonal formada pela cruz sendo erguida. Todo o senso de perspectiva foi ignorado e Michelangelo reverteu ao uso medieval de representar o que está mais longe numa posição superior, com pouca distinção de proporções entre o primeiro plano e os planos em recuo. A cena é essencialmente estática, com pouca ação, mas possui uma pungente qualidade ritualística. 

Arquitetura

Vasari disse que os arquitetos do século XV haviam levado a arquitetura a um alto nível, mas careciam de um elemento que os impediu de atingirem a perfeição — a liberdade. Descrevendo a arquitetura como um sistema de regras definidas, declarou que os edifícios novos deviam seguir o exemplo dos antigos mestres clássicos, mantendo o conjunto em boa ordem e evitando mistura de elementos díspares.

Nessa linha de ideias, ele acrescentou que a liberdade criativa, apesar de cair fora de algumas regras, não era incompatível com a ordem e a correção, e tinha a vantagem de ser guiada pelo juízo do próprio criador. Michelangelo foi considerado por Vasari o único dos mestres da sua geração a conquistar essa desejada liberdade, e cujo engajamento pessoal e individualista em todas as suas atividades, incomum numa época em que o trabalho coletivo era a regra, abriu caminho para outros arquitetos produzirem obras cada vez mais personalistas, buscando solucionar os problemas da construção dentro da esfera da própria arquitetura sem a antiga tutela dos literatos, dos tratadistas e dos intelectuais, e com um novo senso de profissionalismo.

Isso não impediu, contudo, que elementos clássicos continuassem a ser empregados, mas numa abordagem eclética e experimental, e se adequando a novos conceitos de habitabilidade, função e conforto. 

Seu primeiro trabalho arquitetônico foi o desenho de uma nova fachada para a Basílica de São Lourenço, em Florença, executado a pedido de Leão X em 1515. O plano possui dois pisos de igual importância, estruturados em dois blocos laterais dispostos simetricamente em torno de um bloco central coroado por um frontão, dentro do esquema clássico. O projeto foi abandonado sem ser realizado. Seu projeto seguinte foi a Sacristia Nova da Basílica, concebida na tradição de Brunelleschi, instalando uma cúpula apoiada em cúpula pendentes sobre um volume cúbico, com paredes revestidas de estuque intercalado com seções em pedra.

A decoração interna também foi sua, criando tumbas para dois Medici de feição arquitetural nas laterais e aplicando elementos arquiteturais simplesmente decorativos que subvertem as suas funções primitivas, como tabernáculos vazios sobre as portas, janelas cegas e pilastras sem capitéis. A Biblioteca Laurenciana, também anexa à Basílica, é da mesma forma inovadora, especialmente o espaço do vestíbulo, cuja verticalidade é de todo incomum. Também faz uso de elementos arquiteturais desvinculados de sua função, como as janelas cegas e pilastras sem base, apoiadas apenas sobre consoles, além de agrupar os elementos de forma muito compacta.

A peça mas notável no vestíbulo é a escadaria, tratada de maneira escultórica como um volume de grande independência em relação à estrutura do edifício. As salas para a guarda dos livros e para a leitura são convencionais, amplas e espaçosas na tradição das bibliotecas conventuais medievais, demonstrando um entendimento das necessidades funcionais do espaço. 

Em 1534, com esses projetos ainda em andamento, Michelangelo mudou-se para Roma. Ali seu primeiro projeto foi a remodelação da praça na colina do Capitólio, que desde o Saque de Roma em 1527 estava em ruínas. O papa Paulo III havia recentemente instalado no centro da praça uma importante relíquia romana, a estátua equestre de Marco Aurélio, e Michelangelo foi incumbido de prover um cenário urbanístico para ela, numa obra que tinha grande importância cívica. Michelangelo encontrou a área já ocupada por dois palácios arruinados dispostos em um ângulo arbitrário, com um outro no fundo da praça.

Aproveitou a disposição original dos palácios e criou um espaço intermédio trapezoidal, em cujo centro foi colocada a estátua, organizando os volumes e vazios de forma simétrica. Os palácios foram restaurados e suas fachadas redesenhadas, com um projeto diferenciado para o do fundo e fachadas gêmeas para os laterais. Para a entrada da praça Michelangelo concebeu uma rampa-escadaria monumental, interligando o topo da colina com o nível da cidade. O resultado do conjunto foi brilhante. Ele não chegou a ver o projeto concluído mas seus continuadores seguiram o desenho que deixou. 

Sua obra mais ambiciosa na arquitetura foi sua participação na reforma da Basílica de São Pedro. Usou como base o projeto desenvolvido por Bramante, que considerava de alto nível, e como ele preferia a planta em cruz grega como a mais adequada para uma igreja. Mesmo nesse terreno sua obsessão pela forma humana se torna evidente; pensava que o edifício era comparável a um corpo humano, significando organizar suas partes em torno de um eixo central, assim como os membros se organizam em torno do tronco. Dizia que quem não dominava a forma do corpo não seria capaz de compreender a arquitetura.

Suas modificações no desenho bramantino foram a compactação do conjunto, eliminando o esquema de várias cruzes interligadas e estruturando a planta sobre uma única grande cruz, com uma entrada de colunata dupla sustentando um frontão clássico. A configuração atual da Basílica, todavia, é em cruz latina, tendo sido reformada em anos posteriores. Seu tratamento das fachadas também revela sua tendência de dar mais unidade e coerência ao conjunto, estabelecendo uma série de pilastras externas na ordem colossal, que atravessa dois pisos e os interliga poderosamente sem interromper a fluência do desenvolvimento horizontal.

Essa ideia havia sido esboçada por Leon Battista Alberti numa igreja de Mântua, mas Michelangelo levou-a à sua conclusão lógica e em uma escala monumental, tornando-se um modelo para os arquitetos do Maneirismo e do Barroco. Outra contribuição importante para o edifício foi o desenho de sua cúpula. Planejou de início uma cúpula ogival, como a da Catedral de Florença, mas depois o reformulou de forma hemisférica para compensar a verticalidade do bloco inferior e para criar um diálogo entre elementos estáticos e dinâmicos.

Contudo, ele não viu a cúpula ser construída, e quando o foi seu segundo desenho foi descartado e Giacomo della Porta reverteu o projeto para sua concepção primitiva, julgando-o, com boas razões, mais estável e fácil de construir. Mesmo assim ainda é uma criação de Michelangelo, e uma das mais importantes em seu gênero em todo o mundo, sendo também ela um modelo para gerações futuras. 

Desenho

A maior parte dos desenhos de Michelangelo que sobrevivem são esboços preparatórios para suas obras em escultura e pintura. Não obstante, possuem qualidades que os tornam obras de arte por si mesmos, e demonstram uma habilidade consumada no tratamento da forma, nos efeitos de luz e na descrição da anatomia e do movimento. Era capaz de obter efeitos de volume muitas vezes com o simples controle da espessura do traço.

O estudo dos seus desenhos lança luzes valiosas sobre o seu processo criativo e sobre as mudanças na concepção de uma obra, e existem vários deles que jamais foram transportados para outros formatos, permanecendo como testemunhos únicos de uma dada ideia. Mas nem todos foram concebidos como estudos, presenteou seus amigos várias vezes com obras acabadas, e realizou alguns retratos, o que indica que ele considerava esta técnica como um território autônomo da arte. Dava-lhes grande valor, e os guardava ciosamente.

O domínio do desenho era enfatizado quando ensinou seus poucos alunos, recomendando que eles o praticassem sem cessar, muitas vezes provendo desenhos seus para que copiassem. O desenho também lhe serviu como meio de divulgação de suas ideias, e após 1550 realizou vários para serem transportados para a pintura por outros artistas.

Vasari disse que pouco antes de morrer Michelangelo queimou grande quantidade de seus desenhos e esboços, a fim de que ninguém pudesse ver o modo como ele desenvolveu seu trabalho e testou o seu gênio, para que sua imagem pública não parecesse menos do que perfeita. Com isso o acervo remanescente é relativamente reduzido, e as peças que escaparam da destruição foram altamente cobiçadas pelos colecionadores.

Seu próprio sobrinho Lionardo teve de desembolsar uma elevada quantia quando quis adquirir alguns no mercado de arte romano. A maior parte deles, cerca de duzentos, está preservada na Casa Buonarroti em Florença, como um legado de seus descendentes. Devido à superexposição à luz e a más condições ambientais ao longo dos séculos, grande parte da coleção sofreu grave prejuízo, mas foram restaurados na década de 1970. 

Poesia

Na opinião de Alma Altizer, Michelangelo foi um poeta extraordinário, e em seus melhores momentos foi capaz de expressar uma poderosa unidade de visão que os torna ao mesmo tempo rústicos e sofisticados, arcaicos e contemporâneos, obscuros e cristalinamente claros. Buscava com eles poder expressar “os movimentos internos de sua alma”. Para a pesquisadora sua força deriva de sua capacidade de condensar nos poucos versos de suas formas favoritas, o soneto e o madrigal, uma vasta gama de significados e uma rica pletora de imagens poéticas, penetrando fundo na dialética inerente à vida humana.

Nos cerca de trezentos poemas e fragmentos que chegaram aos dias de hoje é recorrente a exploração de antíteses — imaginação e realidade, criação e destruição, sujeito o objeto, espírito e matéria, amante e amado, dor e prazer, vida interior e exterior, beleza e feiura, vida e morte. Suas primeiras obras são muitas vezes inacabadas, convencionais e derivativas de Dante Alighieri e Petrarca, e também da filosofia escolástica em sua maneira de lidar com os paradoxos morais e religiosos, mas com o passar dos anos desenvolveu uma técnica sintética original que lhe possibilitou manejar as antíteses em vários planos simultâneos.

Girardi apontou como outras características de sua poesia uma tendência a abstrair e interiorizar as imagens e expressões formais que herdou de seus modelos, uma recusa a usar conceitos de maneira simplesmente ornamental como um fim em si mesmos, e uma capacidade de evitar circunlóquios e ir diretamente ao ponto desejado, o que lhes empresta uma grande força persuasiva e os anima como imagens de uma experiência verdadeira. A seguir um madrigal composto para Vittoria Colonna: 

Non pur d’argento o d’oro Nem só de prata ou ouro (tradução livre) 
“Non pur d’argento o d’oro 
vinto dal foco esser po’ piena aspetta,
vota d’opra prefetta,
la forma, che sol fratta il tragge fora;
tal io, col foco ancora
d’amor dentro ristoro
il desir voto di beltà infinita,
di coste’ ch’i’ adoro,
anima e cor della mie fragil vita.

Alta donna gradita
in me discende per sì brevi spazi,
c’a trarla fuor convien mi rompa e strazzi.” Nem só de prata ou ouro
fusos no fogo, ainda espera ser cheia,
oca da obra feita,
a fôrma, que só a revela ao quebrar;
eu também, a queimar
de amor, por dentro eu forro
o anelo oco pela beleza infinda
daquela que eu adoro,
alma e coração desta frágil vida.
Nobre dama, e bem-vinda,
em mim desce por tão finos espaços,
que a extraí-la me rompo em pedaços. 

Para Altizer este poema exemplifica o melhor da produção de Michelangelo. O uso de palavras em sua forma toscana arcaica, como fora, foco, volta, opra, fratta, tragge, reforça a atemporalidade do conceito de que o amor é uma força ao mesmo tempo criativa e destrutiva, e que a produção de uma obra de arte de prata ou ouro, significando sua alta qualidade, muitas vezes exige o sacrifício do artista, que se rompe em pedaços para trazê-la à luz.

Também condensa em poucas linhas a relação da arte com o amor e o desejo insaciável pela beleza infinita, e a noção de que a alma do artista é incompleta sem a presença da sua musa. Essa condensação é possível graças ao uso de formas sintáticas compactas, invertidas ou interpoladas e pela escolha de poucas palavras-chave que por si trazem junto uma série de conceitos associados. Apesar de suas altas qualidades, a maior parte de sua obra poética não foi escrita senão para ele mesmo e para um reduzido círculo de amigos.

Vários poemas foram registrados em fragmentos de papel, ou em meio a outros escritos, como se fossem pensamentos paralelos que ele captou de passagem. Uma vez pensou em publicar cerca de uma centena deles, mas seu editor faleceu antes de terminar o trabalho e ele não retornou ao projeto, mas alguns apareceram a público sem seu consentimento, e foram considerados obras preciosas. Berni o elogiou com um terzetto onde dizia: 

“Calai todos vós, pálidas violetas, 
e líquidos cristais, e bestas pétreas:
ele fala coisas, e vós dizei só palavras.” 

Benedetto Varchi nas homenagens fúnebres a Michelangelo igualou sua poesia às suas realizações nos outros campos da arte. Mesmo assim, essa apreciação não era generalizada, e somente em 1623 surgiu uma coletânea, obra de seu sobrinho-neto Michelangelo, o Jovem, mas largamente corrigida, atualizando a linguagem e expurgando-a de alusões homoeróticas e de declarações consideradas inaceitáveis para a moral e a religião. Esta edição foi a única disponível até o século XIX, quando as adulterações do editor foram em boa parte removidas e as poesias restauradas a uma forma bastante próxima da original.

O interesse nesse momento era já significativo, mas sua tradução para outras línguas era considerada extremamente difícil. Uma edição completa só foi conseguida por Cesare Guasti em 1863, mas padecia de problemas editoriais sérios. Em 1897 Carl Frey ofereceu o primeiro trabalho realmente erudito de edição, catapultando a produção poética de Michelangelo para um patamar muito mais elevado de atenção do público, tornando-se canônico por cerca de sessenta anos, embora ainda apresentasse algumas deficiências.

Em 1960 Enzo Girardi publicou outra edição completa, muito superior, oferecendo uma versão em italiano moderno ao lado de uma versão restaurada que se tornou referencial, e provendo uma ordenação cronológica baseado na evolução da caligrafia de Michelangelo, o que possibilitou estudar o tema em relação à sua evolução artística como um todo e com os acontecimentos de sua vida pessoal.

O quadro formado a partir disso é que ele só começou a escrever depois de 1503, produzindo quatorze poemas até 1520.

Desta data até 1531, mais trinta ou quarenta, e entre 1532 e 1547, cerca de duzentos, divididos em três grupos: o primeiro dirigido a Tommaso dei Cavalieri, expressando uma intensidade de amor que tornava seu destinatário o epítome de tudo o que de bom poderia haver no mundo, unindo de maneira sem igual a beleza do corpo e do espírito; o segundo, dirigido a Vittoria Colonna, igualmente intenso afetivamente mas mais inclinado à religiosidade; e um grupo para uma destinatária desconhecida, a dama bela e cruel, possivelmente uma figura simbólica e não uma pessoa real, tratando de temas variados não relacionados ao amor.

A última fase é a mais eclética, e só pode ser agrupada pela cronologia, mas um tema comum é a religião, expressando seu desejo de paz e perdão por seus pecados. Depois da contribuição de Girardi as edições e traduções se multiplicaram, e até o fim do século XX somente em inglês apareceram cinco edições completas.

Entretanto, na própria Itália ele está longe de ser uma unanimidade entre os críticos, e nomes importantes como Benedetto Croce e Giuseppe Toffanin consideraram sua poesia pobre, pouco original e seriamente defeituosa. Curiosamente o próprio autor escreveu comentários ao lado de vários poemas denegrindo seu mérito, mas ele não estendia essa opinião ao conjunto de sua obra poética, e escreveu a Jacob Arcadelt agradecendo-lhe ter musicado um deles, e a Varchi por uma palestra altamente laudatória que proferira em Florença sobre esta faceta de sua carreira; além disso, como se disse antes, ele pelo menos uma vez tencionou publicar uma coletânea substancial.

Seus poemas foram musicados várias vezes ao longo da história, por compositores como Costanzo Festa, Bartolomeo Tromboncino, Jacob Arcadelt Dmitri Shostakovitch, Hugo Wolf, Richard Strauss, Luigi Dallapiccola e Benjamin Britten. 

Correspondência

Michelangelo era um assíduo correspondente; sobrevivem quase quinhentas das incontáveis cartas que escreveu para os mais diferentes destinatários, embora estes tenham sido principalmente seus familiares, amigos, agentes e patronos. Elas são uma fonte da maior relevância para se formar uma ideia mais completa de sua vida, personalidade e obra.

Em várias delas se encontram exemplos de sua poesia, e em sua prosa exibem, segundo George Bull, um dialeto toscano robusto e fluente, capaz de transitar entre uma linguagem rica e florida e asserções diretas e objetivas, muitas vezes de dura crítica, expressando uma imaginação viva e complexa, uma posição ambivalente sobre várias coisas e uma sensibilidade refinada e passional, muitas vezes coloridas por um fino senso de humor, mas que às vezes chegava ao grotesco.

Não raro abordou temas centrais da vida humana — a morte, a religião, o amor e a ambição. Usava muitas metáforas de grande vivacidade e sua habilidade com os jogos de palavras era grande. Segue uma carta dirigida a Tommaso dei Cavalieri em dezembro de 1532: 

“Impulsivamente, senhor Tommaso, meu senhor caríssimo, sou impelido a escrever a Vossa Senhoria, não em resposta a alguma (carta) vossa que houvesse recebido, mas antes por andar como as plantas meio secas à beira de um magro regato, que por pouca água sofrem manifestamente. Mas depois que parti da praia não encontrei pequenos córregos, mas o oceano profundo onde aparecestes, tanto que, se pudesse, para não submergir de todo, à praia de onde parti primeiro voluntariamente retornaria.

Mas como estou aqui, faremos pedra do coração e seguiremos; e se não tenho a arte de navegar pelas ondas do mar de vosso valoroso gênio, me desculpareis, nem desdenhareis o que vos digo, nem querereis dar-me o que não possuo: pois quem é sempre solitário, nunca pode ter companhia. Mas Vossa Senhoria, única luz de nosso século, não pode satisfazer-se com a obra alheia, não tendo semelhantes nem alguém igual a si.

Mas se entre as minhas coisas, que espero e prometo fazer, alguma vos agradar, a direi muito mais afortunada do que boa; e quando estiver certo de agradar, como disse, em alguma coisa a Vossa Senhoria, o tempo presente, com tudo o que surgir através de mim, nela porei, e pesa-me demais não poder reaver o passado, pois então poderia servi-lo muito mais longamente do que só possuindo o futuro, que será breve, pois já sou muito velho.

Não tendes que dizer-me nada. Lede o coração e não a palavra, porque a pena não é fiel à boa vontade. Oh, desculpai-me que antes tenha-me mostrado estupefato com vosso peregrino gênio, pois sei quanto agi mal; pois natural é maravilhar-se que Deus faça milagres, assim como maravilha que Roma produza homens divinos. E disso o universo é testemunha.” 

Outra carta, escrita para seu irmão Lionardo em agosto de 1541: 

“Lionardo, me escreves que vens a Roma neste setembro com o Guicciardino. Digo-te que não é uma boa hora, pois não farias senão aumentar as minhas preocupações, além das que já tenho. E digo isso também para Michele, porque estou tão ocupado que não tenho tempo a perder convosco, e todas as outras coisinhas me aborrecem demais: só por isso te escrevo. É preciso preparar a quaresma, te mandarei dinheiro para que te ajeites bem, para que não chegues aqui como uma besta.

Escrevi também a Michele, e aconselha-o que também ele se apronte para fazer uma boa quaresma, pois ficarei aliviado; mas talvez haja qualquer coisa que ele precise fazer em Roma em setembro. Isso não sei, mas se não for o caso, de novo aconselho que não venham antes desta quaresma, porque em setembro não terei tempo de qualquer forma para falar convosco, ainda mais que o Urbino que está comigo vai em setembro a Urbino e me deixa aqui sozinho com tanto a fazer.

Mas não me faltará alguém que me providencie a comida! Lê esta carta para Michele e pede-lhe que se prepare para esta quaresma como eu disse. E anda a treinar a escrita!, que me parece que tu pioras a cada dia.” 

Legado e fortuna crítica

Michelangelo foi repetidas vezes disputado por várias cidades, que tentaram seduzí-lo com pensões vultosas para que se estabelecesse entre eles. Até mesmo o sultão da Turquia desejou tê-lo em sua corte. Os banqueiros Gondi de Florença puseram à sua disposição quaisquer quantias que ele desejasse. O rei da França, Francisco I, lhe ofereceu 3 mil coroas para lá se radicar, e a Signoria de Veneza, uma pensão vitalícia de 600 coroas e liberdade completa de ação.

Foi estimadíssimo por todos os seus patronos; mesmo o turbulento Júlio II, com quem brigou inúmeras vezes, lhe mostrava caloroso afeto. Júlio III, embora não o tenha empregado para nenhuma tarefa definida em consideração à sua idade avançada, constantemente solicitava seu conselho e se mostrava tão atencioso a ponto de dizer que daria seu sangue e anos de sua vida para prolongar a de Michelangelo, queria sempre que ele sentasse ao seu lado e abria caminho quando ele passava. 

Para seus contemporâneos e sucessores imediatos, a influência visual de sua arte foi relativamente pequena e não pode ser comparada à influência de sua personalidade como um grande criador, nem guarda uma relação direta com a fama alcançada por suas maiores obras, possivelmente porque o seu modelo formal era considerado grandioso e sublime demais e, por isso, inibidor para a formação de uma verdadeira escola.

Os casos em que se assinalou uma influência direta foram poucos e revelam uma dependência quase completa ao mestre, como foi o de Daniele da Volterra, o mais talentoso entre seus discípulos. Entretanto, em aspectos limitados ele continuou por muito tempo sendo considerado um modelo, especialmente no terreno do desenho anatômico. Na escultura ele contribuiu para cristalizar a forma da figura serpentinata, que teve uma grande penetração entre os maneiristas, e artistas importantes do Barroco como Rubens, Borromini, Ticiano, Tintoretto e Bernini devem algo às suas concepções.

No século XIX Rodin também se mostrou sensível ao seu tratamento de volumes e superfícies. Na arquitetura sua obra também teve um impacto fertilizador sobre os criadores da geração seguinte, abrindo um caminho para experimentações livres e individuais a partir dos padrões clássicos ortodoxos.

Michelangelo foi o primeiro artista ocidental a reivindicar consistentemente sua independência criativa, e o prestígio de que desfrutou em vida, tornando-o um iluminado, um ser tocado pelo divino, desencadeou um processo de inversão das hierarquias do sistema de produção e consumo de arte que culminou na visão romântica do artista como um gênio isolado, incompreendido, semilouco, preocupado apenas com a expressão de si mesmo, atormentado por anelos insatisfeitos pelo infinito, à frente de seu tempo, perseguido por filisteus insensíveis e absolutamente livre de obrigações sociais ou morais para com seu público. 

As primeiras análises substanciais da obra de Michelangelo apareceram nas duas biografias que foram escritas sobre ele enquanto ainda estava vivo, embora não se possa a rigor dizer que fossem críticas; são antes elogios efusivos ao seu talento e caráter pessoal. A primeira foi incluída no compêndio biográfico de Giorgio Vasari, As vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos (1550). O texto inicia dizendo que “o benigno Regente dos Céus, vendo quão infrutiferamente os artistas se esforçavam para aperfeiçoar a arte, decidiu enviar à Terra um gênio capaz de, sozinho, levá-las todas à perfeição consumada”.

Mesmo com todo o elogio, Michelangelo, ao ler o trabalho, não ficou inteiramente satisfeito. Assim, seu discípulo Ascanio Condivi em 1553 escreveu sua Vida de Michelangelo Buonarroti, que contém dados fornecidos pelo próprio artista, mas mesmo esta versão de sua história não foi considerada de todo fiel, e contém muitos erros factuais importantes. Mas o tom da narrativa é o mesmo de Vasari. Por exemplo, ao descrever os afrescos da Capela Sistina, disse que ali estava tudo o que era possível fazer com a forma humana.

Por outro lado, possui muita informação valiosa, e foi usada como uma das fontes de Vasari para sua segunda edição das Vidas, de 1568, que se tornou um texto canônico sobre ele, mas não deixou de criticar vários aspectos do trabalho de seu colega. Esses estudos se esforçaram por criar uma imagem pública de Michelangelo sob uma perspectiva heroica, divinizada e exemplar, apagam defeitos de caráter que eram notórios para os outros contemporâneos do artista, e inclusive negam peremptoriamente os boatos que diziam ele ser homossexual; Condivi chegou ao ponto de assegurar que ele era tão casto quanto um monge.

Os elogios a ele em seu tempo foram incontáveis, e além do que Vasari e Condivi disseram, acrescentem-se mais alguns a título de ilustração: Benedetto Varchi disse que seu talento incomparável seria reconhecido até entre os bárbaros; Perino del Vaga o chamou de o deus do desenho; Ariosto disse que ele estava além dos mortais, e até Rafael Sanzio, que fora seu rival, falou que dava graças a Deus por ter nascido no tempo de Michelangelo. 

Expressões semelhantes foram encontradas amiúde nos séculos seguintes. Goethe, depois de ver a Capela Sistina, disse que já não tinha prazer em observar a natureza, pois não mais encontrava nela a grandeza com que Michelangelo a retratara; foi uma influência sobre Winckelmann na sua conceitualização do Neoclassicismo, considerando-o um dos poucos artistas modernos a igualarem as realizações dos antigos gregos; foi um paradigma para todos os artistas românticos pelo caráter autobiográfico de sua obra, pela sua paixão e ambição;

Yeats louvou a sua capacidade de imitar a natureza e viu sua obra como uma confirmação de suas próprias inclinações a valorizar a vida física; Freud disse que nenhuma outra obra de arte o impressionara tanto como o Moisés, deu uma interpretação psicológica para ele relacionando-o a figuras de autoridade e à força da justa indignação, e viu em seu idealismo patriarcal uma expressão concreta da mais alta conquista intelectual possível para a humanidade. Foi admirado até por artistas das vanguardas iconoclastas do século XX, como Henry Moore, que o chamou de sobre-humano. 

A despeito da tendência moderna de se estudar a arte dentro de uma óptica acadêmica que tem muito do racionalismo e objetividade da ciência, ainda em tempos recentes são comuns expressões bombásticas para descrever sua vida e obra. Como exemplo, Sir Kenneth Clark disse que Michelangelo foi um dos maiores eventos na história do homem ocidental, e André Malraux o chamou de o inventor do Herói.

Antonio Paolucci considerou esse fenômeno como virtualmente impossível de ser evitado, dada a enorme pressão nesse sentido exercida pela reiteração continuada de um processo de deificação acrítica e incondicional ao longo de séculos, em uma dimensão tal que nenhum outro artista experimentou. De uma forma bastante clara, ele foi o primeiro grande artista moderno, e permanece como o protótipo do conceito de gênio até os dias de hoje. 

Veja mais:

Na cultura

Michelangelo foi um dos poucos artistas do mundo erudito que puderam penetrar na cultura popular e criar um folclore a seu respeito. Ele deu o nome a uma quantidade de pessoas, estabelecimentos de ensino, empresas e produtos comerciais de vários tipos, incluindo uma mão biônica. É nome de um vírus de computador, de um grande transatlântico, de um asteroide, de uma cratera no planeta Mercúrio, de uma das Tartarugas Ninjas, e sua figura foi retratada no cinema, sendo considerado um clássico o filme The Agony and the Ecstasy (1965), dirigido por Carol Reed e com Charlton Heston no papel do artista.

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Mikhail Gorbatchov https://canalfezhistoria.com/mikhail-gorbatchov/ https://canalfezhistoria.com/mikhail-gorbatchov/#respond Thu, 13 Mar 2025 23:42:15 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6041 Mikhail Sergeyevich Gorbatchov ou Gorbachev (em russo: Михаи́л Серге́евич Горбачёв) GLC (Stavropol, 2 de março de 1931) é um estadista e político russo. Oitavo e último líder da União Soviética, foi Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) de 1985 a 1991. Foi chefe de Estado do país de 1988 a 1991, na posição de Presidente do Presidium do Soviete Supremo de 1988 a 1989, Presidente do Soviete Supremo de 1989 a 1990 e Presidente da União Soviética de 1990 a 1991. Ideologicamente, sua identificação inicial era com os ideais marxistas-leninistas, tendo, entretanto, no início da década de 1990, se inclinado à social democracia. 

De origens russas e ucranianas, Gorbatchov nasceu em Privolnoye, Krai de Stavropol em uma família pobre camponesa. Nascido e criado durante o governo de Josef Stalin, operava colheitadeiras em uma fazenda coletiva durante sua juventude, antes de filiar-se ao Partido Comunista, que, à época, governava a União Soviética sob um regime unipartidário de orientação marxista-leninista.

Durante seus estudos na Universidade Estatal de Moscou, casou-se com sua colega de faculdade Raíssa Titarenko em 1953, dois anos antes de graduar-se em direito. Ao mudar-se para Stavropol, trabalhou para a Komsomol, organização juvenil do PCUS e, após a morte de Stalin, tornou-se um forte apoiador das reformas desestalinizadoras do líder soviético Nikita Khrushchov.

Foi nomeado Primeiro Secretário do Comitê Regional de Stavropol do PCUS em 1970, posição na qual supervisionou a construção do Grande Canal de Stavropol. Em 1978, retornou a Moscou para tornar-se Secretário do Comitê Central do PCUS e, em 1979, entrou para o Politburo. Após os três anos que se seguiram desde a morte do líder soviético Leonid Brezhnev, após os breves governos de Yuri Andropov e Konstantin Chernenko, o Politburo elegeu Gorbatchov Secretário-Geral, tornando-o chefe de governo de facto, em 1985.

Apesar de seu compromisso de preservar o estado soviético e seus ideais socialistas, Gorbatchov acreditava que reformas políticas significativas eram necessárias, especialmente após o acidente nuclear de Chernobyl de 1986. Ordenou a retirada soviética da Guerra do Afeganistão e participou de diversos encontros com o presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan para limitar a proliferação de armas nucleares e acabar com a Guerra Fria.

No que diz respeito à política interna, implementou a glasnost (“publicidade”), política que aumentava as liberdades de expressão e imprensa, e a perestroika (“reestruturação”), política que objetivava descentralizar a tomada de decisões no âmbito econômico, com o propósito de aumentar a eficiência econômica. Suas medidas democratizantes e a formação do Congresso dos Deputados do Povo enfraqueceram o sistema estatal unipartidário.

Gorbatchov recusou-se a intervir militarmente nos vários países do Bloco do Leste que abandonaram suas orientações marxistas-leninistas nos anos de 1989 e 1990. Um sentimento nacionalista crescente ameaçava o colapso da União Soviética, levando partidários marxistas-leninistas a tentarem um golpe de Estado contra o governo de Gorbatchov em agosto de 1991. Subsequentemente, houve a dissolução da União Soviética contra os desejos de Gorbatchov, levando-o a renunciar em dezembro. Após deixar o cargo, criou a Fundação Gorbatchov, tornou-se crítico dos governos dos presidentes russos Boris Yeltsin e Vladimir Putin, e fez campanha pelo movimento social-democrata russo. 

Considerado uma das figuras mais importantes da segunda metade do século XX, Gorbatchov continua uma figura controversa. Galardoado com um grande número de prémios, incluindo o Prêmio Nobel da Paz, foi amplamente elogiado por seu papel pelo fim da Guerra Fria, pela redução dos abusos de direitos humanos na União Soviética e por sua tolerância tanto à queda dos governos socialistas do leste europeu quanto à reunificação da Alemanha. Por outro lado, na Rússia, é constantemente escarnecido por não ter impedido o colapso soviético, evento que resultou em um declínio da influência russa no mundo e precedeu uma crise econômica. 

Infância e juventude

Mikhail Sergueievitch Gorbatchov nasceu em 2 de março de 1931, no território de Stavropol. Filho de cristãos, seu pai, Serguei Gorbatchov (1909-1976), era russo, e sua mãe, Maria Gopkalo (1911-1993), era ucraniana. 

Durante a guerra, quando o jovem Gorbatchov ainda tinha dez anos, o território onde sua família morava foi ocupado por tropas alemãs, e seu pai partiu à frente de batalha. Após a libertação da cidade, chegou à família a notícia de que o pai havia perecido entre os heróis.

Aos 13 anos, passou a dividir a escola com o trabalho de campesino, em um kolkhoz. A partir dos 15, começou a trabalhar de auxiliar de eletricista em uma maquinaria. Em 1948, foi laureado com a Ordem do Estandarte Vermelho do Trabalho, como eletricista exemplar. Aos 19 anos, candidatou-se a uma vaga no PCUS, mas seria aceito somente dois anos mais tarde, com recomendações do diretor e dos professores de sua escola.

Ainda em 1950, ingressou na faculdade de Direito da Universidade Federal de Moscou, onde graduou-se em 1955. Em setembro de 1953, casou-se com Raíssa Titarenko, que conhecera na universidade. Já licenciado, trabalhou na promotoria de Stavropol, enquanto na vida política ficou encarregado da direção do departamento de agitação e propaganda do Komsomol da região, até 1962. 

Carreira

Em 1961, Gorbatchov foi um dos delegados do XXII Congresso do Partido Comunista que, entre outros assuntos, definiu a ruptura sino-soviética. Em 1966, então com 35 anos, completou os estudos no Instituto Agrícola como economista-agrónomo. Começou, então, a progredir rapidamente na sua carreira política.

Em 1970, foi nomeado ministro da Agricultura e, no ano seguinte, membro do Comitê Central. Em 1972, dirigiu uma delegação soviética à Bélgica e, dois anos mais tarde, em 1974, tornou-se representante do Soviete Supremo. Passou a fazer parte do Politburo em 1979. Lá recebeu a protecção de Iuri Andropov, chefe do KGB, também natural de Stavropol, e foi promovido durante o breve período em que Andropov fora líder da União Soviética, antes da sua morte, em 1984. 

As posições que tomou no partido deram-lhe a oportunidade de realizar viagens a diversas partes do mundo, o que terá influenciado o seu ponto de vista político e social, como líder do seu país. Em 1975, dirige uma delegação à República Federal da Alemanha e em 1983 lidera outra ao Canadá, onde se encontra com o primeiro-ministro Pierre Trudeau, com os membros da Câmara dos Comuns e do Senado.

Governo

Com a morte de Konstantin Chernenko, Mikhail Gorbatchov é eleito pelo Politburo como líder da União Soviética, a 11 de março de 1985. No posto, inaugura diversas reformas e campanhas, que a longo prazo conduziriam o país a uma economia de mercado, ao fim do monopólio do poder central do PCUS e, posteriormente, à desintegração da União Soviética. 

“ Mais socialismo significa mais democracia, transparência e coletivismo na vida cotidiana. ”

Uma de suas primeiras atividades políticas foi a contraditória campanha contra o alcoolismo, criada em 1985, que levou a um aumento de 45% nos preços das bebidas alcoólicas, e consequentemente a uma redução na produção de álcool e vinhos e à escassez de açúcar nos mercados por conta da produção clandestina de bebidas alcoólicas. Por outro lado, a sociedade percebeu um aumento na expectativa de vida e uma considerável redução no número de crimes cometido sob efeito do álcool. Em 1986, Gorbatchov teria de lidar com o acidente nuclear de Chernobil, após a explosão do reator da usina da cidade, localizada na Ucrânia, que provocou uma onda de radiação por toda a Europa.

Economia

A máxima econômica do governo de Gorbatchov era a aceleração, frequentemente associada ao aumento da produção industrial e consequente melhora no bem-estar da população em um rápido período. A campanha acabou contribuindo para as primeiras cooperativas e iniciativas de reforma.

A transformação das companhias financiadas pelo estado em companhias autossuficientes, junto da retirada das restrições ao mercado externo, representou a introdução dos primeiros elementos de uma economia de mercado dentro da União Soviética, até então um país socialista. A introdução de sistemas de cartão de crédito para o comércio de alimentos culminaria na hiperinflação, resultando no baixo poder de compra e posterior desaparecimento de produtos alimentícios dos estoques. Sob Gorbatchov, a dívida externa da União Soviética só crescia. Em 1985, a dívida externa era de 31,3 bilhões, enquanto em 1991, o valor era de 70,3 bilhões.

Política

As reformas políticas de Gorbatchov introduziram eleições para o Soviete Supremo e comitês regionais, a anistia ao cientista e crítico Andrei Sakharov, seguida do término da perseguição a dissidentes, a remoção da censura na mídia e em trabalhos culturais e a supressão de conflitos locais, com destaque à manifestação dos jovens em Alma-Ata, à intervenção no Azerbaijão e à repressão aos movimentos nacionalistas das repúblicas do Báltico. Eventos importantes marcaram o modelo político de Gorbatchov, incluindo: 

• A reforma interna no PCUS, resultando na formação de diversas plataformas políticas e na consequente abolição do sistema unipartidário, com a remoção constitucional do artigo que definia o Partido como a força motriz e guia da nação.
• A reabilitação das vítimas do regime de Stálin, após décadas de silêncio.
• O fim da Guerra do Afeganistão e a retirada das tropas soviéticas.

• A intervenção do exército em Baku, na madrugada de 20 de janeiro de 1990, contra a Frente Popular do Azerbaijão. Mais de 130 pessoas morreram, incluindo mulheres e crianças.

A política da Glasnost foi um dos pontos principais do governo de Gorbatchov. Apresentado em 1986, em meio a conflitos nacionalistas e à insatisfação social, o projeto consistia na abertura política, que tinha por objetivo trazer ao país a transparência e a liberdade de expressão. 

Política externa

Em 1985, Gorbatchov viajou ao Reino Unido, onde encontrou-se com Margaret Thatcher, após um período de tensas relações entre a primeira-ministra britânica e os antecessores de Gorbatchov no Kremlin. Em 1988, o presidente soviético anuncia que a o país abandonava oficialmente a Doutrina da Soberania Limitada, ao admitir que a Europa de Leste tinham o direito de adotar regimes democráticos, se desejassem.

Seu porta-voz, Guennadi Guerassimov, em tom cômico, denominou esta disposição como Doutrina Sinatra. Isto levou à corrente de revoluções ocorridas nos países do Pacto de Varsóvia, através das quais o socialismo entrou em colapso. Essas revoluções ocorreram de forma pacífica e diplomática, como na Alemanha, com a queda do muro de Berlim, sendo a única exceção a Romênia, cujo recém-instalado governo revolucionário julgou e executou o ditador Nicolae Ceausescu. Terminava assim a Guerra Fria, o que justificou a atribuição do Nobel da Paz a Gorbatchov, em 15 de Outubro de 1990.

A crise

A gradual democratização da União Soviética levou à perda de poder por parte do Partido Comunista, resultando na divisão do Partido entre as alas liberal, moderada e conservadora. A ala liberal, chefiada por Boris Iéltsin e Anatoli Sobtchak, defendia uma abertura completa do país para o capitalismo e a independência de todas as repúblicas que estavam sob domínio soviético.

A ala moderada, liderada pelo próprio Gorbatchov, defendia a manutenção do Estado soviético e a continuação das reformas políticas e econômicas, enquanto a ala conservadora, liderada por Egor Ligatchov e Guennadi Ianaiev e composta dos políticos conhecidos como linhas-duras, era partidária da instalação de um novo regime que desse fim às reformas neoliberais e iniciassem um novo período político e econômico para a URSS. Em poucos dias, um impasse político se instauraria na União Soviética. 

Em agosto de 1991, os conservadores se aliaram ao KGB para derrubar Gorbatchov e dar fim às suas reformas. Os liberais, porém, com o comando de Boris Iéltsin, enfrentaram os golpistas para manter Gorbatchov no poder. Entre 19 e 21 de agosto, o presidente soviético foi encarcerado em uma dacha na Crimeia. Enquanto isso, em Moscou, os liberais detinham os golpistas, e passados os três dias, Gorbatchov retornou ao poder. 

Os planos de Iéltsin, contudo, não eram favoráveis a Gorbatchov. Conforme o líder liberal ganhava cada vez mais partidários, a popularidade de Gorbatchov abaixava constantemente. O presidente demitiu e encomendou a prisão dos membros do Politburo que tomaram a iniciativa do golpe e que mais tarde ficariam conhecidos como a Gangue dos Oito. 

Boris Iéltsin, que antes defendera Gorbatchov, agora tomava o poder de suas mãos. Declarando a Rússia uma república independente da União Soviética, Iéltsin proíbe a atividade do PCUS em solo russo, e em 8 de dezembro alia-se aos presidentes de Ucrânia e Bielorrússia para apresentar a soberania destes países sobre o poder central soviético.

Neste momento, os dois poderes se conflitavam. Sem qualquer domínio ou autoridade, Gorbatchov, representando a URSS, reconhece a vitória de Iéltsin e a independência das ex-repúblicas soviéticas, e então resigna ao cargo, sem antes declarar a União Soviética oficialmente extinta. Toda a estrutura governamental soviética tornava-se nula, bem como o posto de Gorbatchov. Na noite de 25 de dezembro de 1991, a bandeira soviética foi retirada do mastro do Kremlin, o mais alto símbolo de poder na Rússia. 

Vida pós-soviética

Em termos gerais, Gorbatchov é bem visto no mundo Ocidental graças à sua contribuição para o fim da Guerra Fria. Contudo, na Rússia, a sua reputação não é tão favorável devido à crise económica e social que se instalou logo após a queda da URSS. Criou a Fundação Gorbatchov em 1992. Em 1993, fundou também a Cruz Verde Internacional. Foi um dos principais promotores da Carta da Terra, em 1994. Tornou-se, igualmente, membro do Clube de Roma. A 17 de Junho de 1995 foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade de Portugal. Obteve menos de um por cento dos votos na eleição presidencial de 1996. 

Em 1997, Gorbatchov entrou num anúncio da Pizza Hut, que passou na televisão norte-americana. A 26 de Novembro de 2001, Gorbatchov fundou, igualmente, o Partido Social Democrata Russo, como resultado da união de vários partidos que partilhavam esta ideologia. Demitiu-se como líder partidário em Maio de 2004 em consequência de desacordos com o presidente do partido em relação às opções tomadas durante as eleições de Dezembro de 2003. 

No início de 2004, Gorbatchov registrou a sua marca de nascença, na testa, devido à sua utilização por uma marca de vodka que lhe fazia referência. O caso é tanto mais curioso quanto Gorbatchov implementou algumas leis de combate ao alcoolismo enquanto líder da União Soviética. A referida marca de vodka entretanto mudou de rótulo. 

Em 8 de Fevereiro de 2004, foi galardoado com um Grammy, juntamente com Bill Clinton e Sophia Loren pela narração conjunta do disco Prokofiev: Peter and the Wolf/Beintus: Wolf Tracks sobre Pedro e o lobo, de Prokofiev, uma versão moderna da história, com intuitos ecológicos – o que vai ao encontro das preocupações ambientais que têm marcado os últimos anos. 

Veja mais:

É considerado crítico do presidente Vladimir Putin. Em 2011, vinte anos após sua renúncia, Gorbatchov aconselhou que Putin deixasse a presidência, por conta da onda de protestos em massa que tomaram conta do país após as eleições legislativas daquele ano, afirmando que para salvar tudo o que o presidente já fez de positivo, ele teria de renunciar. Putin respondeu às críticas de Gorbatchov através de seu porta-voz, enfatizando que um ex-líder que conseguiu quebrar o país hoje pede a renúncia de outro líder que salvou a Rússia do mesmo destino.

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Moisés https://canalfezhistoria.com/moises/ https://canalfezhistoria.com/moises/#respond Thu, 13 Mar 2025 22:37:01 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6036 Moisés, tradicionalmente traduzido como “tirado das águas”, embora um estudo linguístico aponte que o nome tenha origem egípcia e signifique simplesmente “filho”, já que o fonema “séis” é a representação de “filho de” em egípcio, assim como Ramessés; é tido como um líder religioso, o segundo juíz de Israel, legislador e profeta, a quem a autoria da Torá é tradicionalmente atribuída.

É um dos profetas mais importantes do Judaísmo e do cristianismo, e igualmente reconhecido pelo Islamismo, assim como em outras religiões. Foi o grande instrumento de Deus para libertar os Hebreus, tido por eles como seu principal legislador e um dos mais importantes lideres religiosos. A Bíblia o denomina o «mais humilde do que todos os homens que havia sobre a face da terra» (Números 12:3). 

De acordo com a Bíblia e a tradição judaico-cristã, Deus realizou diversos milagres através de Moisés pós uma Teofania. Libertou o povo de Israel da escravidão no Antigo Egito, tendo instituído a Páscoa Judaica. Depois guiou o seu povo através de um êxodo pelo deserto durante quarenta anos, que se iniciou através da famosa passagem em que Deus abre o Mar Vermelho, através de seu servo Moisés para possibilitar a travessia segura dos filhos de Israel.

Ainda segundo a Bíblia, recebeu no alto do Monte Sinai as Tábuas da Lei de Deus, contendo os Dez Mandamentos. Moisés era filho de Anrão e Joquebede, da Tribo de Levi. O seu irmão mais velho era Aarão e a sua irmã chamava-se Miriam conforme a Bíblia. 

Relato Bíblico

Segundo a Bíblia Sagrada, a filha de faraó adotou o menino já grande, entregue pela mãe, que era hebreia, e o chamou Moisés: «Sendo o menino já grande, ela o trouxe à filha de Faraó, a qual o adotou por filho, e lhe chamou Moisés, dizendo: Porque das águas o tirei» (Êxodo 2:10). Para os judeus, o nome Moisés, em hebr. Móshe (מֹשֶׁה), é associado homofonicamente ao verbo hebr. mashah, que têm o significado de “tirar”. Na etimologia judaica popular, têm o significado de “retirado [isto é, salvo]” da água. 

Alguns historiadores acreditam que o período que Moisés passou entre os Egípcios serviu para que ele aprendesse o conceito do “monoteísmo”, criado pelo Faraó Aquenáton (r. 1352-1338 a.C.), o faraó revolucionário que reinou antes do tempo de Moisés, levando tal conceito ao povo hebreu. Segundo o Livro do Êxodo, Moisés foi adotado pela filha do faraó, que o encontrou dentro de um cesto, enquanto se banhava no rio Nilo e o educou na corte como o príncipe do Egito.

Aos quarenta anos (1552 a.C.), após ter matado um feitor egípcio levado pela justa cólera, é obrigado a partir para exílio, a fim de escapar à pena de morte. Fixa-se na região montanhosa de Midiã, situada a leste do Golfo de Acaba. Por lá acabou casando-se com Zípora e com ela teve dois filhos, Gérson e Eliézer. Quarenta anos depois (1512 a.C.), no Monte de Horebe, ele depara-se com uma sarça ardente que queimava mas não se consumia e assim é finalmente “comissionado pelo Deus de Abraão” como o “Libertador de Israel”.

Ele conduziu o povo de Israel até ao limiar de Canaã, a Terra Prometida a Abraão. No início da jornada, encurralados pelo Faraó, que se arrependera de tê-los deixado partir, ocorre um dos fatos mais conhecidos da Bíblia: A divisão das águas do Mar Vermelho, para que o povo, por terra seca, fugisse dos egípcios, que tentando o mesmo, se afogaram.

Logo no início da jornada, no Monte de Horebe, na Península do Sinai, Moisés recebeu as Tábuas dos Dez Mandamentos do Deus de Abraão, escritos “pelo dedo de Deus”. As tábuas eram guardadas na Arca do Concerto. Depois, o código de leis é ampliado para cerca de seiscentas leis. É comumente chamado de Lei Mosaica. Os judeus, porém, a consideram como a Lei (em hebr. Toráh) de Deus dada a Israel por intermédio de Moisés. Em seguida, os israelitas vaguearam pelo deserto durante quarenta anos até chegarem a Canaã. 

Durante quarenta anos (segundo a maioria dos historiadores, no período entre 1550 a.C. e 1510 a.C.), conduz o povo de Israel na peregrinação pelo deserto. Moisés morre aos 120 anos, após contemplar a terra de Canaã no alto do Monte Nebo, na Planície de Moabe. Josué, o ajudante, sucede-lhe como líder, chefiando a conquista de territórios na Transjordânia e de Canaã. No Cristianismo, Moisés prefigura o “Moisés Maior”, o prometido Messias (em grego, o Cristo).

O relato do Êxodo de Israel, sob a liderança por Moisés, prefigura a libertação da escravidão do pecado, passando os cristãos a usufruir a liberdade gloriosa pertencente aos filhos de Deus. Na Igreja Católica e Igreja Ortodoxa, é venerado como santo, sendo a festa celebrada a 4 de setembro. Segundo a Edição Pastoral da Bíblia seu nome é citado 894 vezes na Bíblia. 

Morte (Relato Bíblico)

De acordo com os relatos bíblicos em Deuteronômio 32:51-52 e Números 20:12, Moisés foi avisado por Deus de que não lhe seria permitido levar os israelitas através do rio Jordão, por causa da sua transgressão nas águas de Meribá, e que morreria no Monte Nebo, de onde contemplaria toda a terra de Canaã. Desta forma, ele reuniu as tribos e entregou a eles uma mensagem de despedida, que é usada para formar o livro de Deuteronômio. 

Quando Moisés terminou, entoou um cântico e pronunciou uma bênção sobre o povo. Subiu ao monte Nebo, para o cume de Pisga, olhou para a Terra prometida de Israel espalhada diante dele, e morreu, segundo a lenda talmúdica, em 7 de Adar, exatamente no seu aniversário dos 120 anos. O próprio Deus o sepultou em um túmulo desconhecido em um vale na terra de Moabe, defronte de Baal-Peor (Deuteronômio 34:6).

Moisés foi, assim, o instrumento humano na criação da nação de Israel, comunicando-lhe a Torá. Tratado nas escrituras como o «mais humilde do que todos os homens que havia sobre a face da terra» (Números 12:3), ele gozava de privilégios únicos, pois «não se levantou mais em Israel profeta algum como Moisés, com quem Jeová tratasse face a face» (Deuteronômio 34:10). 

Moisés Histórico

Para os historiadores Moisés estava ligado ao reinado do faraó Aquenáton e não foram encontradas até o momento nenhuma prova arqueológica de sua existência como relatada na Bíblia. 

Nome Egípcio

A origem do nome entre alguns eruditos apontam para a origem egípcia, sem o elemento teofórico, més ou na forma grega, mais divulgada, mósis, deriva da raiz substantiva ms criança ou filho, correlata da forma verbal msy, que significa “gerar”. Note-se que na língua egípcia, à semelhança de outras do Oriente Próximo, a escrita renunciava ao uso das vogais. Més significa assim “gerado”, “nascido” ou “filho”. Tome-se como exemplo os nomes dos faraós Amósis, que significa “filho de [deus] Amon-Rá”, Tutemés, significando “filho de deus Tote, ou ainda Ramessés, que seria “Filho de Rá”. 

Descendência Egípcia 

A maioria das leis que Moisés impôs ao Judeus, são de completa conformidade com as leis Egípcias, parecendo apenas uma transmutação de informação. Há também registros de um sacerdote do faraó Aquenáton ter saído do Egito. Provavelmente formado outra religião. 

Base Escravagista

Dados indicam é que o Egito não teve uma base escravagista minimamente sólida pois os escravos eram de menor número, e tinham direitos como a propriedade privada, indo de desencontro até o momento com a Bíblia, isso reforça por inferência que Moisés nasceu de família egípcia. 

Leis imitadas

Pelos indícios históricos e arqueológico, as leis referenciadas como autoria de Moisés, já era conhecida dos egípcios. E também o salmo 104 é equivalente ao Grande Hino a Aton.

Visão de Moisés pelas religiões 

Judaísmo

Há uma riqueza de histórias e informações adicionais sobre Moisés nos livros apócrifos judaicos e no gênero da exegese rabínica conhecida como Midrash, bem como nos trabalhos antigos da lei oral judaica, a Mishná e o Talmud. 

Historiadores judeus que viviam em Alexandria, como Eupolemus, atribuíram a Moisés a proeza de ter ensinado aos fenícios o seu alfabeto, semelhante a lendas de Toth. Artapanus de Alexandria explicitamente identificou Moisés não só com Toth / Hermes, mas também com a figura grega Musaeus (a quem ele chama de “o professor de Orfeu”), e atribuiu a ele a divisão do Egito em 36 distritos, cada um com sua própria liturgia. Ele nomeia a princesa que adotou Moisés como Merris, esposa do faraó Chenefres. 

As fontes antigas mencionam uma Assunção de Moisés e um Testemunho de Moisés. Um texto em latim foi encontrado em Milão no século XIX por Antonio Ceriani, que o chamou de Assunção de Moisés, embora não se refira a uma assunção de Moisés ou contenha partes da assunção que são citadas por autores antigos, e parece que é realmente o testemunho. O incidente que os autores antigos citam também é mencionado na Epístola de Judas. 

Para os judeus ortodoxos, Moisés é realmente Moshe Rabbenu, `Eved HaShem, Avi haNeviim zya”a. É chamado de “Nosso Líder Moshe”, “Servo de Deus”, e “Pai de todos os Profetas”. Na sua opinião, Moisés não só recebeu a Torá, mas também o revelado (de forma escrita e oral) e o oculto (os ensinamentos `hokhmat nistar, que deram ao judaísmo o Zohar de Rashbi, a Torá de Ari haQadosh e tudo o que é discutido na Yeshivá Celestial entre Ramhal e seus mestres).

Ele também é considerado o maior profeta. Decorrente em parte da sua idade, mas também porque 120 está em outro lugar indicado como a idade máxima para os descendentes de Noé (uma interpretação de Gênesis 6:3), “que você viva até os 120” tornou-se uma bênção comum entre os judeus. 

Veja mais:

Cristianismo

Em Mateus 17:1-9, Marcos 9:2-8 e Lucas 9:28-36, acontece o episódio conhecido como a Transfiguração de Jesus. Nele, Jesus e seus discípulos Simão Pedro, João e Tiago vão para o alto de uma montanha, conhecida como o Monte da Transfiguração. Lá, Jesus começa a brilhar e Moisés e o profeta Elias aparecem ao seu lado, conversando com ele. Jesus é então chamado de “Filho” por uma voz no céu – presumivelmente Deus Pai – como já ocorrera antes no seu batismo. 

Para os cristãos, Moisés – mencionado mais vezes no Novo Testamento do que qualquer outro personagem do Antigo Testamento – muitas vezes é um símbolo da lei de Deus, como reforçado e exposto nos ensinamentos de Jesus. Escritores do Novo Testamento muitas vezes compararam as palavras e feitos de Jesus com os de Moisés para explicar a missão de Jesus, como o Profeta semelhante a Moisés, de Deuteronômio 18,15. Em At 7,39-43, 51-53, por exemplo, a rejeição de Moisés pelos judeus que adoravam o bezerro de ouro é comparada à rejeição de Jesus pelos judeus que continuavam no judaísmo tradicional.

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Napoleão Bonaparte https://canalfezhistoria.com/napoleao-bonaparte/ https://canalfezhistoria.com/napoleao-bonaparte/#respond Thu, 13 Mar 2025 22:31:48 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6024 Napoleão Bonaparte (em francês: Napoléon Bonaparte; Ajaccio, 15 de agosto de 1769 – Santa Helena, 5 de maio de 1821) foi um líder político e militar durante os últimos estágios da Revolução Francesa. Adotando o nome de Napoleão I, foi Imperador dos Franceses de 18 de maio de 1804 a 6 de abril de 1814, posição que voltou a ocupar por poucos meses em 1815 (20 de março a 22 de junho). Sua reforma legal, o Código Napoleônico, teve uma grande influência na legislação de vários países.

Através das guerras napoleônicas, ele foi responsável por estabelecer a hegemonia francesa sobre maior parte da Europa. Napoleão nasceu na Córsega, filho de pais com ascendência da nobreza italiana e foi treinado como oficial de artilharia na França continental. Em 2011, um exame de DNA de costeletas de Napoleão que eram guardadas em relicário confirmou a origem caucasiana de Napoleão desmentindo uma possível ascendência árabe do imperador. 

Bonaparte ganhou destaque no âmbito da Primeira República Francesa e liderou com sucesso campanhas contra a Primeira Coligação e a Segunda Coligação. Em 1799, liderou um golpe de Estado e instalou-se como primeiro cônsul. Cinco anos depois, o senado francês o proclamou imperador. Na primeira década do século XIX, o império francês sob comando de Napoleão se envolveu em uma série de conflitos com todas as grandes potências europeias, as Guerras Napoleônicas.

Após uma sequência de vitórias, a França garantiu uma posição dominante na Europa continental, e Napoleão manteve a esfera de influência da França, através da formação de amplas alianças e a nomeação de amigos e familiares para governar os outros países europeus como dependentes da França. As campanhas de Napoleão são até hoje estudadas nas academias militares de quase todo o mundo.

A Campanha da Rússia em 1812 marcou uma virada na sorte de Napoleão. Seu Grande Armée foi seriamente danificado na campanha e nunca se recuperou totalmente. Em 1813, a Sexta Coligação derrotou suas forças em Leipzig. No ano seguinte, a coligação invadiu a França, forçou Napoleão a abdicar e o exilou na ilha de Elba. Menos de um ano depois, ele fugiu de Elba e retornou ao poder, mas foi derrotado na Batalha de Waterloo, em junho de 1815. Napoleão passou os últimos seis anos de sua vida confinado pelos britânicos na ilha de Santa Helena. Uma autópsia concluiu que ele morreu de câncer no estômago, embora haja suspeitas de envenenamento por arsênio. 

Origens e educação

Napoleão Bonaparte nasceu na Rue Saint-Carles, 18 em 15 de agosto de 1769 em Ajaccio, Córsega, um ano após a ilha ser transferida para a França pela República de Gênova, e foi o segundo de oito filhos do advogado Carlo Maria Bonaparte e de Maria Letícia Ramolino, uma família descendente da pequena nobreza da Itália, que chegou à Córsega vinda da Ligúria ainda no século XVI. Foi batizado Napoleone di Buonaparte, provavelmente adquirindo seu primeiro nome de um tio (apesar de um irmão mais velho, que não sobreviveu à infância, também ter se chamado Napoleone), e anos depois mudou seu nome para Napoléon Bonaparte.

Carlo Maria Bonaparte, pai de Napoleão, foi nomeado representante da Córsega na corte de Luís XVI de França em 1777. A influência dominante na educação de Napoleão foi sua mãe, que criou com pulso firme o indisciplinado filho. Teve os irmãos José, Lucien, Elisa, Louis, Pauline, Carolina e Jerônimo. Havia também outras duas crianças, um menino e uma menina, que nasceram antes de José, mas morreram ainda na infância. Napoleão foi batizado pouco antes de seu segundo aniversário, em 21 de julho de 1771, na Catedral de Ajaccio. 

Seu passado de relativa nobreza e suas conexões familiares permitiram que ele tivesse boas oportunidades de educação, acima da média da época para a região. Em janeiro de 1779, Napoleão estava matriculado em uma escola religiosa em Autun, para aprender francês, e em maio entrou na academia militar em Brienne-le-Château. Falava com um sotaque corso e nunca aprendeu a soletrar corretamente. Foi provocado por outros estudantes por causa de seu sotaque e começou a se dedicar à prática da leitura. Ele era notavelmente dedicado em matemática, e também muito familiarizado a história e geografia. 

Ao completar seus estudos em Brienne, em 1784, Napoleão entrou para a Escola Militar de Paris, e ainda que sempre tenha se interessado, a princípio, em uma formação naval, acabou estudando para se tornar oficial de artilharia, e quando a morte de seu pai reduziu sua renda, foi forçado a terminar o curso de dois anos em apenas um. 

Início da carreira

Ao se formar, em setembro de 1785, Bonaparte se tornou segundo tenente do regimento de artilharia de La Fère, e serviu em Valence e Auxonne, até a eclosão da Revolução Francesa em 1789. Napoleão passou os primeiros anos da revolução em Córsega, atuando em uma complexa luta entre realistas, revolucionários e nacionalistas corsos. Apoiou os jacobinos revolucionários, foi promovido a tenente-coronel e comandou um batalhão de voluntários.

Então, em julho de 1792 conseguiu convencer as autoridades de Paris a promovê-lo a capitão. Voltou para a Córsega e entrou em conflito com o líder local Pasquale Paoli, que sabotou uma investida francesa na ilha italiana de La Maddalena, onde Bonaparte era um dos líderes da expedição, e por causa disso Bonaparte e sua família tiveram de fugir para a França continental em junho de 1793. 

Cerco de Toulon

Em julho de 1792, Napoleão publicou um panfleto pró-republicano, Le Souper de Beaucaire, o que fez com que ele ganhasse a admiração e o apoio de Augustin Robespierre, irmão mais novo do líder revolucionário Maximilien Robespierre. Com a ajuda do companheiro corso Antoine Christophe Saliceti, Bonaparte foi nomeado comandante da artilharia das forças republicanas no cerco de Toulon. A cidade havia se sublevado contra o governo republicano e foi ocupada por tropas britânicas. Ele usou um plano para capturar um monte que permitiria que dominassem o porto da cidade e forçassem os navios ingleses a evacuar.

A ofensiva, durante a qual Napoleão foi ferido na coxa, levou à captura da cidade e à promoção dele a general de brigada. Suas ações chamaram a atenção do Comitê de Salvação Pública, e ele foi encarregado da artilharia do exército francês na Itália. Enquanto esperava pela confirmação do cargo, Napoleão passou um tempo como inspetor de fortificações costeiras na costa do Mediterrâneo, perto de Marselha. Arquitetou planos para atacar o Piemonte como parte da campanha contra a Primeira Coligação e então foi mandado em missão, por Augustin, à República de Gênova, para entender as intenções do país em relação à França. 

13 Vendémiaire

Após a queda dos irmãos Robespierre no 9 Termidor, em julho de 1794, Bonaparte foi colocado sob prisão domiciliar em Nice por sua associação com eles. Foi libertado após duas semanas e devido a sua habilidade técnica foi convidado a elaborar planos para atacar as posições italianas na guerra da França com a Áustria. Ele também participou de uma expedição para retomar a Córsega dos britânicos, mas os franceses foram expulsos pela marinha britânica. 

Bonaparte ficou noivo de Desidéria Clary, irmã de Júlia Clary, esposa de José, o irmão mais velho de Napoleão; os Clary eram uma família de comerciantes ricos de Marselha. Em abril de 1795, ele foi designado para o exército do Oeste, que estava envolvido na Guerra da Vendeia. Para ocupar o comando de artilharia, ele seria rebaixado do cargo de general de artilharia – cargo em que o contingente estava lotado – e declarou saúde precária para evitar o destacamento.

Ele foi movido para o Departamento de Topografia do Comitê de Salvação Pública e tentou, sem sucesso, ser transferido para Constantinopla, a fim de oferecer seus serviços ao Sultão. Durante este período, ele escreveu uma novela romântica, Clisson et Eugénie, sobre um soldado e sua amante, em um claro paralelo à própria relação de Bonaparte com Desidéria. Em 15 de setembro, Bonaparte foi removido da lista de generais em serviço regular por sua recusa em servir na campanha de Vendeia. Ele enfrentou então uma difícil situação financeira e a redução nas perspectivas de carreira.

Em 3 de outubro, monarquistas em Paris declararam uma rebelião contra a Convenção Nacional depois que eles foram excluídos de um novo governo, o Diretório. Um dos líderes da Reação Termidoriana, Paul Barras, soube das façanhas militares de Bonaparte em Toulon e lhe deu o comando das forças improvisadas em defesa da Convenção no Palácio das Tulherias.

Bonaparte havia testemunhado o massacre da Guarda Suíça naquele mesmo lugar, anos antes, e percebeu que a artilharia seria a chave para a defesa. Ele ordenou que um jovem oficial de cavalaria, Joaquim Murat, aproveitasse os grandes canhões e os usou para repelir os agressores em 5 de outubro de 1795 (13 Vendémiaire An IV no calendário republicano francês). Mil e quatrocentos realistas morreram, e o resto fugiu. 

A derrota da insurreição pró-monarquia extinguiu a ameaça à convenção e deu a Bonaparte fama repentina, riqueza, e o apoio do novo diretório. Murat se tornaria seu cunhado e um de seus generais, e Napoleão logo foi promovido a comandante do exército do interior e recebeu o comando das forças francesas na Itália (o chamado Armée d’Italie). Em março de 1796, após romper com Desidéria, Bonaparte se casou com Josefina de Beauharnais, ex-amante de Barras. 

Primeira campanha na Itália

Dois dias depois do casamento, Bonaparte deixou Paris para assumir o comando do exército francês na península Itálica e o liderou em uma invasão bem-sucedida. Na Batalha de Lodi, derrotou as forças austríacas e os expulsou de Lombardia. Foi derrotado em Caldiero por forças de reforço austríacas, lideradas por Joseph Alvinczy, e recuperou a iniciativa na crucial Batalha da ponte de Arcole e pôde subjugar os Estados Pontifícios.

Bonaparte se posicionou contra a vontade dos ateus do diretório de marchar para Roma e destronar o papa, argumentando que isso iria criar um vazio de poder, que seria explorado pelo Reino de Nápoles. Em vez disso, em março de 1797, Bonaparte levou seu exército para a Áustria, forçando o país a negociar a paz. O Tratado de Leoben deu à França o controle da maior parte do norte da Itália e os Países Baixos, e uma cláusula secreta prometeu a República de Veneza para a Áustria.

Bonaparte marchou para Veneza e forçou a sua rendição, pondo fim em 1100 anos de independência; ele também autorizou os franceses a saquearem tesouros como os Cavalos de São Marcos. Sua aplicação de ideias convencionais militares para situações do mundo real possibilitaram seus triunfos militares, assim como o uso criativo da artilharia como uma força móvel para apoiar a sua infantaria.

Ele se refere à sua tática assim: “Eu lutei sessenta batalhas e não aprendi nada que não sabia no começo. Olhe para Júlio César; ele lutou a primeira como a última.” Nesta campanha italiana, o exército de Napoleão capturou 150.000 prisioneiros, 540 canhões e 170 bandeiras. O exército francês lutou em 67 ações e venceu 18 batalhas através da tecnologia superior de artilharia e táticas de Bonaparte. 

Durante a campanha, Bonaparte tornou-se cada vez mais influente na política francesa; ele fundou dois jornais, ambos para as tropas do seu exército e também para circulação na França. Os realistas atacaram Bonaparte por saques na península Itálica e alertaram que ele poderia se tornar um ditador. Bonaparte enviou o general Pierre Augereau para Paris para liderar um golpe de Estado em 4 de setembro, o chamado Coup d’État du 18 fructidor.

Isto levou Barras e seus aliados republicanos novamente ao poder, mas dependentes de Bonaparte, que dava continuidade às negociações de paz com a Áustria. Estas negociações resultaram no Tratado de Campoformio, e Napoleão retornou a Paris em dezembro como um herói. Ele se encontrou com Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord, novo ministro do exterior francês (que mais tarde serviria no mesmo cargo ao imperador Napoleão) e começaram a preparar uma invasão da Inglaterra. 

Campanha do Egito

Após dois meses de planejamento, Bonaparte decidiu que o poder naval da França não era ainda suficientemente forte para enfrentar a Marinha Real Britânica no canal da Mancha e propôs uma expedição militar para tomar o Egito e, assim, prejudicar o acesso da Inglaterra a seus interesses comerciais na Índia. Bonaparte desejava estabelecer presença francesa no Oriente Médio, com a intenção de se ligar ao Sultão Tipu, inimigo da Inglaterra na Índia.

Napoleão garantiu ao diretório que “logo que conquistasse o Egito, iria estabelecer relações com os príncipes indianos e, juntamente com eles, atacar os ingleses em suas posses.” Um relatório de Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord de fevereiro de 1798 dizia: “Tendo ocupado e fortificado o Egito, vamos enviar uma força de 15.000 homens de Suez para a Índia, para se juntar às forças de Tipu Sahib e afastar os ingleses.” O diretório concordou, a fim de garantir uma rota de comércio segura para a Índia. 

Em maio de 1798, Napoleão foi eleito membro da Academia Francesa de Ciências, sua expedição incluía um grupo de 167 cientistas: matemáticos, naturalistas, químicos e geodésicos entre eles; suas descobertas incluíram encontrar a Pedra de Rosetta, seu trabalho foi publicado na Description de l’Égypte in 1809. Rumo ao Egito, Bonaparte chegou a Malta em 9 de junho de 1798, à época controlada pelos Cavaleiros Hospitalários (a Ordem Soberana e Militar de Malta.

Os 200 cavaleiros de origem francesa não apoiavam o grão-mestre, o prussiano Ferdinand von Hompesch zu Bolheim, que sucedera um francês, deixando claro que não lutariam contra seus compatriotas. Hompesch rendeu-se após fraca resistência e Bonaparte assim capturou uma base naval muito importante com a perda de apenas três homens.

O general Bonaparte e sua expedição evadiram-se à perseguição da Marinha Real Britânica e em 1 de julho chegaram a Alexandria. Em seguida, ele lutou na Batalha de Chobrakit contra os Mamelucos, um antigo poder no Oriente Médio e isto ajudou os franceses a praticarem sua tática defensiva para a Batalha das Pirâmides, ocorrida em 21 de julho, a 24 km das pirâmides. As forças lideradas por Bonaparte, totalizando 25 000 homens, equivaliam aproximadamente às forças da cavalaria mameluca, mas ele ordenou a formação de quadrados ocos com a parte interior com os suprimentos, mantidos com segurança. Morreram 29 franceses e aproximadamente 2 000 egípcios: a vitória elevou o moral do exército francês. 

Em 1 de agosto, a frota britânica, liderada pelo almirante Horatio Nelson, capturou ou destruiu todas as embarcações francesas, com exceção de duas, na Batalha do Nilo, e com isso o objetivo de Bonaparte de fortalecer a posição francesa no Mediterrâneo foi frustrado. Seu exército obteve sucesso em um aumento temporário do poder francês no Egito, ainda que tenha tido de enfrentar sucessivos levantes. No início de 1799, ele mandou um exército para a província otomana de Damasco (Síria e Galileia).

Bonaparte liderou 13 000 soldados franceses na conquista das cidades costeiras de Arish, Gaza, Jafa e Haifa. O cerco a Jafa foi particularmente brutal: Bonaparte, ao descobrir que muitos dos defensores eram ex-prisioneiros de guerra sob condicional, ordenou que os 1 400 prisioneiros fossem executados a baionetadas ou afogados para economizar balas. Homens, mulheres e crianças foram atacados, roubados e assassinados ao longo de três dias. 

Com seu exército enfraquecido pelas doenças – dentre elas, a peste bubônica – e pela falta de suprimentos, Bonaparte não foi capaz de vencer a resistência na fortaleza de Acre e retornou ao Egito em maio. Para acelerar a retirada, ele ordenou o envenenamento dos militares tomados pela peste. (Entretanto, relatos de testemunhas britânicas mais tarde mostraram que muitos dos homens ainda estavam vivos e não haviam sido envenenados.) Seus apoiadores alegam que isto foi necessário, dado o assédio contínuo das forças otomanas, e assim os que foram deixados para trás foram torturados e decapitados pelos otomanos. De volta ao Egito, em 25 de julho, Bonaparte derrotou uma invasão anfíbia na Primeira Batalha de Abukir. 

Era napoleônica

A sociedade francesa estava passando por um momento tenso com os processos revolucionários ocorridos no país, de um lado com a burguesia insatisfeita com os jacobinos, formados por revolucionários radicais, e do outro lado as tradicionais monarquias europeias, que temiam que os ideais revolucionários franceses se difundissem por seus reinos. 

O fim do processo revolucionário na França, com o Golpe 18 de Brumário, marcou o início de um novo período na história francesa e, consequentemente, da Europa: a Era Napoleônica. Pode-se dividir seu governo em três partes: 

• Consulado (1799-1804)
• Império (1804-1815)
• Governo dos Cem Dias (1815)

O governo do diretório foi derrubado na França sob o comando de Napoleão Bonaparte, que, junto com os girondinos (alta burguesia), instituiu o consulado, primeira fase do governo de Napoleão. Este golpe ficou conhecido como Golpe 18 de Brumário (data que corresponde ao calendário estabelecido pela Revolução Francesa e equivale a 9 de novembro do calendário gregoriano) em 1799. Muitos historiadores alegam que Napoleão fez questão de evitar que camadas inferiores da população subissem ao poder.

Consulado

Instalou-se o governo do consulado de Napoleão após a queda do diretório. O consulado possuía características republicanas, além de ser centralizado e dominado por militares. No poder executivo, três pessoas eram responsáveis: os cônsules Roger Ducos, Emmanuel Sieyès e o próprio Napoleão. Apesar da presença de outros dois cônsules, quem mais tinha influência e poder no executivo era Napoleão, que foi eleito primeiro-cônsul da república. 

Criavam-se instituições novas, com cunho democrático, para disfarçar o seu centralismo no poder. As instituições criadas foram o senado, o tribunal, o corpo legislativo e o conselho de Estado. Mas o responsável pelo comando do exército, pela política externa, pela autoria das leis e quem nomeava os membros da administração era o primeiro-cônsul.

Quem estava no centro do poder na época do consulado era a burguesia (os industriais, os financistas, comerciantes), e consolidaram-se como o grupo dirigente na França. Abandonaram-se os ideais “liberdade, igualdade, fraternidade” da época da Revolução Francesa, e mediante forte censura à imprensa e ação violenta dos órgãos policiais, desmanchou-se a oposição ao governo. 

Projeção da figura de Napoleão

Napoleão Bonaparte teve sua figura projetada na história francesa, quando recebeu o poder através do consulado, juntamente com os dois cônsules citados acima. 

Reforma dos setores do governo francês 

Durante o período do consulado, ocorreu uma recuperação econômica, jurídica e administrativa na França: 

  • Economia – criou-se o Banco da França, em 1800, regulando-se a emissão de moedas, reduzindo-se a inflação. As tarifas impostas eram protecionistas (ou seja, com aumento de impostos para a importação de produtos estrangeiros); o resultado geral foi uma França com comércio e indústria fortalecidos, principalmente com os estímulos à produção e ao consumo interno.
  • Religião – com o objetivo de usar a religião como instrumento de poder político, Napoleão assinou um acordo, a Concordata de 1801, entre a Igreja Católica e o Estado. O acordo, sob aprovação do Papa Pio VII, dava direito ao governo francês de confiscar as propriedades da Igreja e, em troca, o governo teria de amparar o clero. Napoleão reconhecia o catolicismo como religião da maioria dos franceses, mas se arrogava o direito de escolher bispos, que mais tarde seriam aprovados pelo papa.
  • Direito – estabeleceu-se o Código Napoleônico, um Código Civil, em 1804, representando em grande parte os interesses da população e burguesia, como casamento civil (separado do religioso), respeito à propriedade privada, direito à liberdade individual e igualdade de todos ante a lei. Está em vigor até hoje, embora com consideráveis alterações legislativas posteriores. Napoleão também instituiu em 1809 um código penal, que vigorou até 1994, quando a Assembleia Nacional aprovou o novo código.
  • Educação – reorganizou-se o ensino, que antrem era organizado e regido pela igreja e o clero, com base maior nos ideiais iluministas. Também Reconheceu-se a educação pública como meio importante de formação das pessoas, principalmente nos aspectos do comportamento moral, político e social.
  • Administração – Indicavam-se pessoas da confiança de Napoleão para cargos administrativos. Após uma década de conflitos gerais no país, com a Revolução Francesa, as medidas aplicadas deram para o povo francês a esperança de uma estabilização do governo. Os resultados obtidos neste período do governo de Napoleão agradaram à classe dominante francesa. Com o apoio desta, elevou-se Napoleão ao nível de cônsul vitalício em 1802, podendo indicar seu sucessor. Aproximando -se cada vez mais de um regime monárquico.

Venda da Luisiana para os Estados Unidos

Em 1803, durante o governo de Napoleão, a França vendeu seus territórios na América para os recém-fundados Estados Unidos. Isso permitiu a expansão das fronteiras dos Estados Unidos para o oeste. 

A maior parte do dinheiro obtido na venda foi direcionada ao fortalecimento do exército francês para sua expansão territorial no continente europeu. 

Império

A opinião pública foi mobilizada pelos apoiadores de Napoleão, que levou à aprovação para a implantação definitiva do governo do Império. Em plebiscito realizado em 1804, aprovou-se a nova fase da era napoleônica com quase 60% dos votos, reinstituiu-se o regime monárquico na França e indicou-se Napoleão para ocupar o trono. 

Realizou-se uma festa em 2 de dezembro de 1804 para se formalizar a coroação do agora Napoleão I na catedral de Notre-Dame. Um dos momentos mais notórios da História ocorreu nesta noite, onde, com um ato surpreendente, Napoleão I retirou a coroa das mãos do Papa Pio VII, que viajara especialmente para a cerimônia, e ele mesmo se coroou, numa postura para deixar claro que não toleraria autoridade alguma superior à dele. Logo após também coroou sua esposa, a imperatriz Josefina.

Concederam-se títulos nobiliárquicos aos familiares de Napoleão, por ele mesmo. Além disso, colocou-os em altos cargos públicos. Formou-se uma nova corte com membros da elite militar, da alta burguesia e da antiga nobreza. Para celebrar os triunfos de seu governo, Napoleão I construiu monumentos grandiosos, como o Arco do Triunfo que, como outras grandes obras da época, por sua grandiosidade e por criar empregos, melhorava a imagem de Napoleão ante o povo.

O Império Francês atingiu sua extensão máxima neste período, em torno de 1812, com quase toda a Europa Ocidental e grande parte da Oriental ocupadas, possuindo 150 departamentos, com 50 milhões de habitantes, quase um terço da população européia da época. 

Expansão territorial militar

Neste período, Napoleão realizou uma série de batalhas para a conquista de novos territórios para a França. O exército francês (chamado agora de Grande Armée, ou “Grande Exército”) aumentou o número de armas e de combatentes, e tornou-se o mais poderoso de toda a Europa. Pensando que a expansão e crescimento econômico-militar da França era uma ameaça à Inglaterra, os diplomatas ingleses formaram coligações internacionais para se opor ao novo governo francês e a seu expansionismo. Também acreditavam que o governo francês poderia influir em países que estavam sob doutrina absolutista e assim causar uma rebelião. A primeira coligação formada para deter os franceses era formada pela Inglaterra, Áustria, Rússia e Prússia. 

Em outubro de 1805, os franceses usaram a marinha para atacar a Inglaterra, mas não obtiveram êxito, derrotados pela marinha inglesa, comandada pelo almirante Nelson, batalha que ficou conhecida como Batalha de Trafalgar, firmando-se o poderio naval britânico. Ao contrário do malogro com os ingleses, os franceses venceram seus outros inimigos da coligação, como a Áustria, em 1805, na Batalha de Austerlitz, além da Prússia em 1806 e Rússia em 1807. 

Bloqueio Continental

Na busca de outras maneiras para derrotar ou debilitar os ingleses, o Império Francês decretou o Bloqueio Continental em 1806, em que Napoleão determinava que todos os países europeus deveriam fechar os portos para o comércio com a Inglaterra, debilitando as exportações do país e causando uma crise industrial. 

Um problema que afetou muitos países participantes do bloqueio era que a Inglaterra, que já passara pela Revolução Industrial, estava com uma consolidada produção de produtos industriais, e muitos países europeus ainda não tinham produção industrial própria, dependendo da Inglaterra para importar este tipo de produto, em troca de produtos agrícolas. Napoleão pretendia, dessa forma, enfraquecer a economia britânica, que precisava de mercado consumidor para os seus produtos manufaturados e, assim, impor a superioridade francesa em toda a Europa.

O decreto, datado de 21 de novembro de 1806, dependia, para seu real vigor, de que todos os países da Europa aderissem à idéia. O Acordo de Tilsit, firmado com o czar Alexandre I da Rússia, em julho de 1807, garantiu a Napoleão o fechamento do extremo leste da Europa. A França procurou beneficiar-se do bloqueio com o aumento da venda dos produtos produzidos pelos franceses, ampliando as exportações dentro da Europa e no mundo. A fraca quantidade de produtos manufaturados deixou alguns países sem recursos industriais. 

O governo de Portugal relutava em concordar ao Bloqueio Continental devido à sua aliança com a Inglaterra, da qual era extremamente dependente. O príncipe D. João, que assumira a regência em 1792, devido ao enlouquecimento de sua mãe, a rainha D. Maria I, estava indeciso quanto à alternativa menos arriscada para a monarquia portuguesa. 

Fuga da família real portuguesa para o Brasil

O governo português possuía relações privilegiadas com a Inglaterra, depois da assinatura do Tratado de Methuen, em 1703, e ainda graças à velha Aliança que vinha dos tempos da dinastia de Avis. Portugal tinha então a Inglaterra como principal parceira para seus negócios. Pressionados por Napoleão, os portugueses não tiveram escolha: como não podiam abdicar dos negócios com a Inglaterra, não participaram do Bloqueio Continental. 

Insatisfeito com a decisão portuguesa, o exército francês começou a dirigir-se a Portugal. Napoleão forçara uma aliança, sob a forma do Tratado de Fontainebleau com a casa real espanhola (onde veio a forçar a abdicação do trono de Carlos IV para o seu irmão, José Bonaparte) para a Invasão de Portugal, apesar de se saber que havia já planos anteriormente delineados para conquistar tanto Portugal, como Espanha. A ideia era a de dividir Portugal em três reinos distintos: 

• Lusitânia Setentrional, a ser governado pela filha de Carlos IV, Maria Luísa;
• Algarves, a ser governado por Manuel de Godoy com o título de rei;
• O resto do país, a ser administrado diretamente pela França Imperial até ao fim da guerra.

Nesse sentido, realizaram-se três expedições militares a Portugal, conhecidas em Portugal pelo nome de Invasões Francesas. 

Numa jogada de antecipação estratégica, pensada e planeada para evitar que a família real portuguesa fosse aprisionada e obrigada a abdicar, como virá a acontecer com Fernando VII e Carlos IV de Espanha, e sabendo-se que o Brasil era considerado, na época, a pérola da coroa portuguesa, toda a corte portuguesa, incluindo o príncipe-regente D. João VI, saiu para o Brasil, instalando o governo português no Rio de Janeiro em 1808, tornando-a capital do que vem a ser um sonhado Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (1816-1826), que o rei acalentou e para o qual institui um nova bandeira com a esfera armilar. 

A saída foi precipitada, com as tropas francesas já em solo português, mas conseguiu-se que cerca de 15 mil pessoas saíssem para o Brasil, transferindo praticamente todo o quadro do aparelho estatal. Além de pessoas do governo, saíram muitos nobres, comerciantes ricos, juízes de tribunais superiores, entre outros. 

Os sectores afrancesados em Portugal chamaram a esta retirada estratégica “a fuga para o Brasil”, frustrados pelas tropas de Napoleão não terem conseguido aprisionar e depor a família real portuguesa. Com a corte e a capital de Portugal no Brasil, passaram a considerar-se sem rei nem lei, pedindo de imediato ao General Junot que Napoleão lhes desse um novo rei e uma nova constituição.

Este episódio da saída da família real portuguesa para o Brasil, assim como a dificuldade encontrada por Napoleão em, por um lado, invadir Portugal e por outro, dominar Espanha, pode ser visto como uma das maiores falhas estratégicas de Napoleão que, aliás, referiu-se a ele, nas Memoires de Ste. Hélène como: c’est ça qui m’a perdu (tradução: foi isso que me fez perder). 

A saída da família real para o Brasil marcou também o início do processo de Independência do Brasil. Na sequência da Revolução de 1820 em Portugal, a corte voltou a Portugal, restabelecendo-se em Lisboa a capital, voltando o Rio de Janeiro a ser de novo uma cidade colonial. 

Derrota francesa na Rússia

Em 1812, a aliança franco-russa é quebrada pelo tzar Alexandre I da Rússia, que rompe o bloqueio contra os ingleses. Napoleão empreende então a campanha contra a Rússia, à frente de mais de 600 000 soldados oriundos dos mais diferentes recantos da Europa. Sem saída, a Rússia usa uma tática de guerra chamada terra queimada, que consistia em destruir cidades inteiras para criar um campo de batalha favorável aos defensores.

Aliada com o inverno rigoroso, a Rússia consegue vencer o exército napoleônico que sai com apenas 120 000 homens (o restante ou morreu ou se dispersou pelo continente). Enquanto isso, na França, o general Malet, apoiado por setores descontentes da burguesia e da antiga nobreza francesa, arma uma conspiração para dar um golpe de Estado contra o imperador. Napoleão retorna imediatamente a Paris e domina a situação. 

Invasão dos aliados e derrota de Napoleão 

Tem início então a luta da coligação europeia contra a França na Batalha das Nações (Confederação do Reno) que acabou com a derrota de Napoleão. Com a capitulação de Paris, o imperador é obrigado a abdicar. 

Governo dos Cem Dias

Exílio em Elba

O Tratado de Fontainebleau, de 1814, exila Napoleão na Ilha de Elba, mas lhe dá o direito a uma pensão de 2 000 francos e o de poder levar uma escolta com 400 militares; além disso, o seu título de imperador é mantido. Quando chega na ilha, em 4 de maio de 1814, ele acaba por passar dificuldades lá, pois a sua pensão não é paga. Separado da esposa e do filho e sabendo de rumores de que ele iria ser banido para uma ilha remota no meio do oceano Atlântico, Napoleão escapa de Elba em 26 de fevereiro de 1815.

Ele aportou em Golfe-Juan, na França, dois dias depois. O 5º Regimento foi enviado para interceptá-lo. Napoleão encarou toda a tropa sozinho, desmontou de seu cavalo e, quando encontrou-se sob a linha de fogo, gritou, “Aqui estou eu! Matem seu imperador, se assim o quiserem!” Os soldados responderam com “Vive L’Empereur! (Viva o Imperador!)” e marcharam com Napoleão até Paris, de onde Luís XVIII fugiu. Assim, Napoleão reconquista o poder. 

A volta ao poder

Inicia-se então o “Governo dos Cem Dias”. Napoleão então tenta fazer uma constituição baseada no liberalismo, contrariando as expectativas dos republicanos, que queriam a volta da revolução e a perseguição aos nobres. A Europa coligada retoma sua luta contra o Exército francês. Napoleão entra na Bélgica em junho de 1815, mas é derrotado por uma coligação anglo-prussiana na Batalha de Waterloo e abdica pela segunda vez, pondo fim ao império napoleônico. Mas a expansão dos ideais iluministas continuou. 

Exílio em Santa Helena

Napoleão foi preso e então exilado pelos britânicos na ilha de Santa Helena, na costa da África, em 15 de outubro de 1815. Lá, com um pequeno legado de seguidores, contava suas memórias e criticava aqueles que o capturaram. 

Morte

Até hoje, não há certezas sobre a causa da morte de Napoleão. Na década de 1960, pesquisadores investigaram a sua casa na ilha de Santa Helena e identificaram restos de arsênio (veneno letal) sobre as suas roupas, cabelo, nos móveis, pratos e talheres. Então, deduziu-se que o seu organismo fora danificado aos poucos por esta substância, até sua morte. 

Porém, hoje em dia, já se sabe que Napoleão tinha câncer no estômago e, provavelmente, foi tratado com um remédio da época que, possuía, na sua constituição, arsênio e solventes. Como ingeriu esse remédio por um período grande e constantemente, acredita-se que o arsênio se acumulou no seu organismo. Ele está sepultado no Hôtel des Invalides em Paris. 

Suspeitas depois da morte

Em 1955, surgiram documentos em que Napoleão era descrito meses antes de sua morte, pensando muitos que Napoleão fora morto por envenenamento com arsênio. O arsênio era usado antigamente como um veneno indetectável se aplicado a longo prazo. 

Em 2001, um estudo de Pascal Kintz, do Instituto Forense de Estrasburgo, na França, adicionou crença a esta possibilidade com um estudo de um pedaço de cabelo preservado de Napoleão após sua morte: os níveis de arsênio encontrados em seu pedaço de cabelo eram de 7 a 38 vezes maiores do que o normal.

Cortar pedaços do cabelo em pequenos segmentos e analisar cada segmento oferece um histograma da concentração de arsênio no corpo. A análise do cabelo de Napoleão sugere que doses altas mas não letais foram absorvidas em intervalos aleatórios. O arsênio enfraqueceu Napoleão e permaneceu em seu sistema. Lá, poderia ter reagido com mercúrio e outros elementos comuns em remédios da época, sendo a causa imediata de sua morte. 

Outros estudos também revelaram altas quantidades de arsênio presentes em outras amostras de cabelo de Napoleão tiradas em 1805, 1814 e 1821. Ivan Ricordel (chefe de toxicologia da Polícia de Paris), declarou que se arsênio tivesse sido a causa da morte, ele teria morrido anos antes.

Arsênio também era usado na época em papel de parede, como um pigmento verde, e até mesmo em alguns remédios, e os pesquisadores sugeriram que a fonte mais provável de todo este arsênio seja um tônico para cabelo. Antes da descoberta dos antibióticos, o arsênio fazia parte de um composto químico usado sem muito efeito no tratamento da sífilis, levando à especulação de que Napoleão poderia estar sofrendo de sífilis, uma doença venérea muito comum naquela época. 

Em 2005 pesquisadores da Universidade de Zurique, na Suiça e do Hospital Universitário da Basileia divulgaram um estudo que indica uma perda de peso acentuada de Napoleão em seu último ano de vida (1821), após a análise de doze calças usadas por ele, antes e durante o exílio na Ilha de Santa Helena, e também a usada no momento de sua morte. As estimativas apontam perda de ao menos onze quilos, o que seria compatível com a situação de quem sofre com câncer gástrico. 

Veja mais:

Legado

Napoleão Bonaparte tornou-se uma figura histórica ambígua. Na França, tornou-se um símbolo de orgulho nacional, frequentemente revivido na cultura popular. Contudo, nos últimos anos, tem-se assistido a um incómodo crescente relativo aos efeitos que da política napoleónica sobre outros países europeus. Na verdade, embora não seja detestada como a de Hitler, existe hoje um desconforto relativo a esta memória na maior parte da Europa.

Embora com algumas exceções, como é o caso da Polónia (onde Napoleão significou um breve regresso da liberdade depois da repartição do país entre a Prússia, a Rússia e a Áustria), na maior parte dos estados europeus Napoleão foi sinónimo de agressão, ocupação e destruição. No caso de Portugal, as três invasões não causaram apenas a retirada da corte para o Brasil, mas destruíram também o desenvolvimento industrial deixado pelo Marquês de Pombal, contribuindo de forma decisiva para o atraso económico do País no século XIX. 

Casamentos e descendência

Napoleão casou-se duas vezes: 

• 9 de março de 1796 com Josefina de Beauharnais.
• 11 de março de 1810 por procuração com Maria Luísa de Áustria e depois numa cerimónia em 1 de Abril. Tiveram um filho: 

o Napoleão II de França

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Nicolau Copérnico https://canalfezhistoria.com/nicolau-copernico/ https://canalfezhistoria.com/nicolau-copernico/#respond Thu, 13 Mar 2025 21:49:41 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6020 Nicolau Copérnico (Toruń, 19 de fevereiro de 1473 — Frauenburgo, 24 de maio de 1543) foi um astrônomo e matemático polonês que desenvolveu a teoria heliocêntrica do Sistema Solar. Foi também cónego da Igreja Católica, governador e administrador, jurista, astrônomo e médico. 

Sua teoria do Heliocentrismo, que colocou o Sol como o centro do Sistema Solar, contrariando a então vigente Teoria Geocêntrica (que considerava a Terra como o centro), é considerada como uma das mais importantes hipóteses científicas de todos os tempos, tendo constituído o ponto de partida da astronomia. 

Biografia de Nicolau Copérnico

Nicolau Copérnico, em polonês Mikołaj Kopernik, nasceu quando sua cidade natal, Toruń, fazia parte da província da Prússia Real, no Reino da Polônia (1385–1569). Seu pai era um comerciante de Cracóvia e sua mãe era filha de um abastado comerciante de Toruń. Nicolau era o mais jovem de quatro filhos. Seu irmão André tornou-se um cônego da Ordem dos Agostinianos em Frombork (Frauenburgo).

Sua irmã Bárbara, mesmo nome de sua mãe, tornou-se uma religiosa da Ordem dos Beneditinos e, em seus últimos anos, priora de um convento em Chełmno (Kulm); tendo morrido após 1517. Sua irmã Catarina casou-se com Barthel Gertner, também importante comerciante e edil da cidade de Toruń, com quem teve cinco filhos, cuidados por Copérnico até o fim de seus dias, não tendo ele próprio se casado ou tido filhos. 

A origem da teoria heliocêntrica

Na teoria de Copérnico, a Terra move-se em torno do Sol. Mas, seus dados foram corrigidos pelas observações de Tycho Brahe. Com base nelas e em seus próprios cálculos, Johannes Kepler reformou radicalmente o modelo copernicano e chegou a uma descrição realista do Sistema Solar. Esse fenômeno já havia sido estudado e defendido pelo bispo de Lisieux, Nicole d’Oresme, no século XIV. O movimento da Terra era negado pelos partidários de Aristóteles e Ptolomeu.

Eles argumentavam que, caso a Terra se movesse, as nuvens, os pássaros no ar ou os objetos em queda livre seriam deixados para trás. Galileu combateu essa ideia, afirmando que, se uma pedra fosse abandonada do alto do mastro de um navio, um observador a bordo sempre a veria cair em linha reta, na vertical. E, baseado nisso, nunca poderia dizer se a embarcação estava em movimento ou não.

Caso o barco se movesse, porém, um observador situado na margem veria a pedra descrever uma curva descendente – porque, enquanto cai, ela acompanha o deslocamento horizontal do navio. Tanto um observador quanto o outro constataria que a pedra chega ao convés exatamente no mesmo lugar: O pé do mastro. Pois ela não é deixada para trás quando o barco se desloca. Da mesma forma, se fosse abandonada do alto de uma torre, a pedra cairia sempre ao pé da mesma – quer a Terra se mova ou não. 

O cardeal São Roberto Belarmino presidiu o tribunal que proibiu a teoria copernicana. Culto e moderado, ele conseguiu poupar Galileu. Estimulado pelo novo papa Urbano VIII, seu grande admirador, o cientista voltou à carga. Mas o Papa sentiu-se ridicularizado num livro de Galileu. E isso motivou sua condenação. 

A teoria heliocêntrica

A teoria do modelo heliocêntrico, a maior teoria de Copérnico, foi publicada em seu livro, De revolutionibus orbium coelestium (“Da revolução de esferas celestes”), durante o ano de sua morte, 1543. Apesar disso, ele já havia desenvolvido sua teoria algumas décadas antes. O livro marcou o começo de uma mudança de um universo geocêntrico, ou antropocêntrico, com a Terra em seu centro. Copérnico acreditava que a Terra era apenas mais um planeta que concluía uma órbita em torno de um sol fixo todo ano e que girava em torno de seu eixo todo dia.

Ele chegou a essa correta explicação do conhecimento de outros planetas e explicou a origem dos equinócios corretamente, através da vagarosa mudança da posição do eixo rotacional da Terra. Ele também deu uma clara explicação da causa das estações: O eixo de rotação da terra não é perpendicular ao plano de sua órbita. Em sua teoria, Copérnico descrevia mais círculos, os quais tinham os mesmos centros, do que a teoria de Ptolomeu (modelo geocêntrico). Apesar de Copérnico colocar o Sol como centro das esferas celestiais, ele não fez do Sol o centro do universo, mas perto dele. 

Do ponto de vista experimental, o sistema de Copérnico não era melhor do que o de Ptolomeu. E Copérnico sabia disso, e não apresentou nenhuma prova observacional em seu manuscrito, fundamentando-se em argumentos sobre qual seria o sistema mais completo e elegante. Da sua publicação, até aproximadamente 1700, poucos astrônomos foram convencidos pelo sistema de Copérnico, apesar da grande circulação de seu livro (aproximadamente 500 cópias da primeira e segunda edições, o que é uma quantidade grande para os padrões científicos da época).

Entretanto, muitos astrônomos aceitaram partes de sua teoria, e seu modelo influenciou muitos cientistas renomados que viriam a fazer parte da história, como Galileu e Kepler, que conseguiram assimilar a teoria de Copérnico e melhorá-la. As observações de Galileu das fases de Vênus produziram a primeira evidência observacional da teoria de Copérnico. Além disso, as observações de Galileu das luas de Júpiter provaram que o sistema solar contém corpos que não orbitavam a Terra. 

O sistema de Copérnico pode ser resumido em algumas proposições, assim como foi o próprio Copérnico a listá-las em uma síntese de sua obra mestra, que foi encontrada e publicada em 1878. As principais partes da teoria de Copérnico são: 

• Os movimentos dos astros são uniformes, eternos, circulares ou uma composição de vários círculos (epiciclos).
• O centro do universo é perto do Sol.
• Perto do Sol, em ordem, estão Mercúrio, Vênus, Terra, Lua, Marte, Júpiter, Saturno, e as estrelas fixas.
• A Terra tem três movimentos: rotação diária, volta anual, e inclinação anual de seu eixo.
• O movimento retrógrado dos planetas é explicado pelo movimento da Terra.
• A distância da Terra ao Sol é pequena se comparada à distância às estrelas.

Se essas proposições eram revolucionárias ou conservadoras era um tópico muito discutido durante o vigésimo século. Thomas Kuhn argumentou que Copérnico apenas transferiu algumas propriedades, antes atribuídas a Terra, para as funções astronômicas do Sol. Outros historiadores, por outro lado, argumentaram a Kuhn, que ele subestimou quão revolucionárias eram as teorias de Copérnico, e enfatizaram a dificuldade que Copérnico deveria ter em modificar a teoria astronômica da época, utilizando apenas uma geometria simples, sendo que ele não tinha nenhuma evidência experimental.

O modelo heliocêntrico

Os filósofos do século XV aceitavam o geocentrismo como fora estruturado por Aristóteles e Ptolomeu. Esse sistema cosmológico afirmava (corretamente) que a Terra era esférica, mas também afirmava (erradamente) que a Terra estaria parada no centro do Universo enquanto os corpos celestes orbitavam em círculos concêntricos ao seu redor.

Essa visão geocêntrica tradicional foi abalada por Copérnico em 1537, quando este começou a divulgar um modelo cosmológico em que os corpos celestes giravam ao redor do Sol, e não da Terra. Essa era uma teoria de tal forma revolucionária que Copérnico escreveu no seu De revolutionibus orbium coelestium (do latim: “Das revoluções das esferas celestes”): “quando dediquei algum tempo à ideia, o meu receio de ser desprezado pela sua novidade e o aparente contra-senso quase me fez largar a obra feita”. 

Naquele tempo a Igreja Católica aceitava essencialmente o geocentrismo aristotélico, embora a esfericidade da Terra estivesse em aparente contradição com interpretações literais de algumas passagens bíblicas. Ao contrário do que se poderia imaginar, durante a vida de Copérnico não se encontram críticas sistemáticas ao modelo heliocêntrico por parte do clero católico. De fato, membros importantes da cúpula da Igreja ficaram positivamente impressionados pela nova proposta e insistiram para que essas ideias fossem mais desenvolvidas. Contudo, a defesa, quase um século depois, por Galileu Galilei da teoria heliocêntrica vai deparar-se com grandes resistências no seio da mesma Igreja Católica.

Como Copérnico tinha por base apenas suas observações dos astros a olho nu e não tinha possibilidade de demonstração da sua hipótese, muitos homens de ciência acolheram com cepticismo as suas ideias. Apesar disso, o trabalho de Copérnico marcou o início de duas grandes mudanças de perspectiva. A primeira diz respeito à escala de grandeza do Universo: avanços subsequentes na astronomia demonstraram que o universo era muito mais vasto do que supunham quer a cosmologia aristotélica quer o próprio modelo copernicano; a segunda diz respeito à queda dos graves.

A explicação aristotélica dizia que a Terra era o centro do universo e portanto, o lugar natural de todas as coisas. Na teoria heliocêntrica, contudo, a Terra perdia esse estatuto, o que exigiu uma revisão das leis que governavam a queda dos corpos, e mais tarde, conduziu Isaac Newton a formular a lei da gravitação universal. Ainda que imperfeita, pois indicava que as órbitas dos planetas seriam circulares e não elípticas como se veio a descobrir, a teoria de Copérnico abriu caminho para as grandes descobertas astronômicas.

Veja mais:

Cronologia

  • 1473 – 19 de Fevereiro – nasce Nicolau Copérnico, em Thorn, Prússia Real uma província da Polónia.
  • 1483 – Morre o pai de Copérnico, que vai ser criado pelo tio materno, Lucas Watzenrode.
  • 1489 – Lucas Watzenrode, tio de Copérnico é eleito Bispo de Warmia.
  • 1491 – Copérnico vai para a Universidade de Cracóvia.
  • 1497 – Copérnico vai para a Itália, estudar Direito Canónico na Universidade de Bolonha.
  • 1497 – 9 de Março – Copérnico registra sua primeira observação astronómica: uma ocultação da estrela Aldebarã.
  • 1499 – Copérnico viaja para Roma.
  • 1503 – Copérnico recebe seu diploma em Direito Canônico, em Ferrara.
  • 1503 – Copérnico retorna para a Prússia Real.
  • 1504 – É eleito Cônego em Frauenburgo.
  • 1512 – Morre o tio de Copérnico, o bispo Lucas Watzenrode, que o educou.
  • 1517 – 31 de Outubro – Martinho Lutero publica as 95 teses de sua Reforma.
  • 1534 – Alessandro Farnese é eleito papa sob o nome de Paulo III.
  • 1539 – Rheticus torna-se discípulo de Copérnico, em Frauenburgo.
  • 1542 – O Papa Paulo III restabelece a Inquisição.
  • 1543 – Rheticus, em nome de Copérnico, publica a obra “De Revolutionibus Orbium Coelestium” em Nuremberga.
  • 1543 – Em 24 de maio morre Copérnico, em Frauenburgo, no mesmo dia da publicação de sua obra “Da revolução de esferas celestes”.
  • 1545 – O Papa Paulo III convoca o Concílio de Trento.
  • 2010 – Os restos mortais de Copérnico são enterrados novamente na catedral de Frombork, 467 anos após sua morte.
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Oliver Cromwell https://canalfezhistoria.com/oliver-cromwell/ https://canalfezhistoria.com/oliver-cromwell/#respond Thu, 13 Mar 2025 21:44:32 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6016 Oliver Cromwell (Huntingdon, 25 de abril de 1599 — Palácio de Whitehall, 3 de setembro de 1658), foi um militar e líder político inglês e, mais tarde, Lord Protector do Protectorado. Nascido no seio da nobreza rural, os primeiros quarenta anos da sua vida são pouco conhecidos. Após passar por uma conversão religiosa na década de 1630, Cromwell tornou-se um puritano independente, assumindo uma posição, no geral, tolerante, face aos protestantes do seu tempo. Um homem intensamente religioso – auto-denominado de Moisés puritano — ele acreditava profundamente que Deus era o seu guia nas suas vitórias. 

Cromwell foi eleito membro do parlamento pelo círculo eleitoral de Huntingdon em 1628, e por Cambridge, no Pequeno (1640) e Longo Parlamentos (1640–49). Participou na Guerra civil inglesa, ao lado dos Parlamentaristas. Chamado de “Old Ironsides”, foi rapidamente promovido da liderança de uma simples tropa de cavalaria para um dos comandantes principais do New Model Army, onde desempenhou um papel de destaque na derrota das forças realistas. Foi um dos signatários da sentença de morte do rei Carlos I em 1649, e, como membro do Rump Parliament (1649–53), dominou a Comunidade da Inglaterra.

Foi escolhido para assumir o comando da campanha inglesa na Irlanda durante 1649–50. As suas forças derrotaram a coligação entre os Confederados e os Realistas, e ocuparam o país – terminando, assim, com as Guerras confederadas irlandesas. Durante este período, foram redigidas uma série de Leis Penais contra os católicos romanos (uma minoria significativa na Inglaterra e na Escócia, mas uma grande maioria na Irlanda), e grande parte das suas terras foram confiscadas.

Cromwell também liderou uma campanha contra o exército escocês entre 1650 e 1651, liderando os ”Roundheads” contra os Cavalheiros (Cavaliers), saindo vitorioso principalmente pelo fato do seu exército ter um modelo chamado ”New Model Army” que tinha uma hierarquia baseada na meritocracia,ou seja, as altas patentes só eram alcançadas por merecimento. 

A 20 de abril de 1653, dissolveu o Rump Parliament pela força, instituindo uma assembleia, de curta duração, conhecida como Parlamento Barebones, antes de ser convidado pelos seus pares para liderar como ‘Lorde Protetor’ da Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda, a partir de 16 de dezembro de 1653. Como governante, esteve à frente de uma política exterior muito agressiva e eficaz. Depois da sua morte (por malária) em 1658, foi sepultado na Abadia de Westminster mas, após a tomada do poder pelos monarquistas, em 1660, o seu corpo foi retirado da sepultura, pendurado por correntes e decapitado. 

Família e infância

Oliver Cromwell descendia de Catherine Cromwell (nascida por cerca de 1483), uma irmã mais velha do estadista Tudor Thomas Cromwell. Apesar de ter casado, manteve o seu nome, possivelmente para manter a ligação com o seu tio famoso. Das suas crianças, Richard Cromwell (1500-1544) foi o pai de Henry Cromwell (1524 – 6 de janeiro de 1603). As tendências extravagantes de Henry deixaram os seus herdeiros, incluindo o seu filho Robert Cromwell, Escudeiro (1560-1617) com uma herança que incluía terra mas nenhum dinheiro. Oliver nasceu do casamento de Robert Cromwell com Elizabeth Steward ou Stewart (1564 – 1654) a 25 de abril de 1599. 

Oliver nasceu em Huntingdon, no distrito de Huntingdonshire, condado de Cambridgeshire, em Ânglia Oriental. Ele foi um fazendeiro fidalgo, mas teve de vender a sua quinta e terras para pagar as dívidas acumuladas. 

No parlamento

Consta que Cromwell estava a ponto de emigrar para junto de seu tio na Virgínia, como fizeram muitos puritanos, mas que desistiu pouco antes de fazê-lo. Decidiu então, em 1628, concorrer por Huntingdon a uma vaga no parlamento – que seria posto em recesso pelo rei no ano seguinte. O seu discurso inaugural foi a defesa de um democrata radical que tinha argumentado a favor do voto universal num panfleto não autorizado. 

Cromwell criou o Ato de navegação. Esta lei obrigou que todo navio que entrasse ou saísse da Inglaterra teria de ser inglês; em consequência desse ato a burguesia enriqueceu. 

Comandante militar

A influência de Cromwell como comandante militar e político durante a Guerra Civil Inglesa alterou dramaticamente o panorama político das ilhas britânicas. 

Tendo aderido ao exército sem qualquer experiência militar com a idade de 43 anos, ele recrutou uma unidade de cavalaria e ganhou experiência e vitórias numa sucessão de batalhas na Ânglia Oriental. Promovido a General em comando da cavalaria no exército New Model Army (Exército de Novo Tipo, assim chamado porque não se compunha de mercenários mas de pessoas que acreditavam firmemente em sua causa), ele treinou os seus homens para rapidamente se reagruparem após um ataque, tática usada inicialmente com grande sucesso na batalha de Naseby.

Dessa maneira, acabou substituindo o comandante anterior do Exército, o conde de Essex, que certa vez afirmou, durante a Guerra Civil: “Se vencermos o rei cem vezes, ele ainda será o rei; mas, se ele nos derrotar uma única vez, seremos enforcados”. Para Cromwell, essa frase tornava inútil todo o trabalho de luta pelos ideais parlamentares e puritanos. Com o sucesso militar veio o poder político, até que se tornou o líder político do seu tempo. 

Regicídio

A chamada Segunda Guerra Civil Inglesa, que teve início em 1648 após a fuga de Carlos I da prisão, sugeriu a Cromwell que não seria possível obter um compromisso com o rei. Houve tentativas nesse sentido, inclusive com Cromwell se opondo aos que primeiro defenderam a deposição ou execução de Carlos I. Finalmente, o rei foi julgado, condenado à morte e decapitado, em janeiro de 1649.

Costuma-se atribuir a Cromwell a principal responsabilidade pela condenação e morte do monarca, embora ele tenha sido julgado pelo parlamento – ou pelo que restava deste – e houvesse 59 signatários no mandado de execução. Note-se que neste se determinava a execução do “rei de Inglaterra”, ao contrário do que aconteceria no julgamento de Luís XVI, rei de França, em 1793, quando o ex-monarca será sempre referido como “Luís Capeto”. Conforme observou Cromwell na ocasião, “executaremos o rei com a coroa na cabeça”. 

Escócia e Irlanda

As ações de Cromwell tornaram-no muito impopular na Escócia e na Irlanda – que, embora nominalmente independentes, eram efetivamente dominadas por forças inglesas. Em particular, a supressão dos monarquistas na Irlanda em 1649 ainda é recordada entre os irlandeses. Suas medidas contra os católicos irlandeses são consideradas por alguns historiadores como genocidas ou muito próximas disso. Ver: 

  • Breton Albert (ed). 1995, Nationalism and Rationality, Cambridge University Press, Chapter Regulating nations and ethnic communities, por Brendam O’Leary and John McGarry p 248. “Oliver Cromwell ofereceu aos católicos irlandeses uma escolha entre o genocídio e a transferência forçada, em massa. Eles podiam ir para o inferno ou para Connaught!'”
  • Coogan Tim-Pat, . 2002. The Troubles: Ireland’s Ordeal and the Search for Peace. ISBN 978-0-312-29418-2. P. 6: “Os massacres de protestantes por católicos, ocorridos durante as guerras religiosas da década de 1640, foram amplificados, para fins de propaganda, de modo a justificar o subsequente genocídio promovido por Cromwell.”
  • Ellis, Peter Berresford. 2002. Eyewitness to Irish History. John Wiley & Sons Inc. ISBN 978-0-471-26633-4. P. 108:: “Foram a justificação para a campanha genocida e a colonização [por ingleses e escoceses protestantes, mediante o confisco de terras dos irlandeses católicos] de Cromwell.”
  • Levene Mark, 2005, Genocide in the Age of the Nation-State, I.B.Tauris: London: “A redução da população irlandesa de 1,5 milhão (ou possivelmente 2 milhões) de habitantes, à época do início das Rebelião irlandesa de 1641, para não mais que 850.000, onze anos depois, representa uma catástrofe absolutamente devastadora. Não há dúvida de que a maior parte dessa mortandade ocorreu não pelo massacre direto da população mas pela fome e depois, pela peste bubônica, especialmente pelo surto verificado entre 1649 e 1652. Na Irlanda, Cromwell é profundamente odiado.

Em Drogheda, após a tomada da cidade, o massacre de 3500 pessoas, incluindo 2700 soldados monarquistas e todos os cidadãos que portassem armas – incluindo civis, prisioneiros e padres católicos – é uma memória histórica que tem alimentado o conflito entre católicos e protestantes e entre irlandeses e ingleses nos últimos séculos. Cromwell justificou o massacre alegando que os defensores da cidade continuaram a lutar, violando as normas de combate, mesmo depois que as muralhas da cidade foram penetradas. 

Domínio político

Na sequência da vitória, a monarquia foi abolida e, entre 1649 e 1653, o país tornou-se uma república (denominada “Commonwealth of England”), mais de cem anos antes da Revolução Francesa. Muitas das ações de Cromwell que se seguiram ao fim da guerra civil parecem-nos hoje pouco sábias ou hipócritas. Ele foi cruel no controle das revoltas que ocorreram dentro do próprio exército no final da guerra (ligadas a falhanços no pagamento das tropas) e mostrou pouca simpatia pelos Niveladores, um movimento igualitário que contribuiu fortemente para a causa do parlamento. 

Uma vez que o rei estava morto, deixou de existir uma causa comum, a unanimidade dissolveu-se e as diferentes facções do parlamento retomaram o combate político. Numa repetição das ações do rei deposto que haviam contribuído para a guerra civil, Cromwell dissolveu o Parlamento Republicano em 1653 e tomou o controle do Estado, como Lorde Protetor perpétuo. 

Política Externa

A sua política externa levou a um conflito com a República dos Sete Países Baixos, em 1652 – a Primeira Guerra Anglo-Holandesa, que acabou por ser vencida pelo almirante Robert Blake, em 1654, com Cromwell já na função de Lorde Protetor. Em 1655 conquistou o território da Jamaica dos espanhóis, transformando-o no principal espaço colonial inglês no Caribe. 

Restabelecimento da comunidade judaica 

Em 1290, os judeus haviam sido expulsos da Inglaterra, por Eduardo I. Cromwell autorizou o restabelecimento da comunidade judaica, acedendo aos pedidos de Menasseh ben Israel (ou Manuel Dias Soeiro) rabino de origem portuguesa, estabelecido em Amesterdão. 

Morte

Em 1658, Cromwell faleceu, não se sabe o motivo exato, podendo ser por envenenamento ou de febre, causada pela malária. Seu corpo foi enterrado na capela de Westminster. Ricardo, seu filho, foi seu sucessor, mas não tinha o mesmo carisma do pai. 

Exumação e execução

Em janeiro de 1661, dois anos após sua morte, o corpo de Cromwell, por ordem da Câmara dos Comuns, foi desenterrado, exumado e enforcado. O cadáver passou todo o dia do 12º aniversário da morte do rei Carlos I pendurado em uma forca em praça pública. Em seguida, sua cabeça foi decapitada e exposta espetada num piquê, enquanto seu corpo decapitado era enterrado sob a forca, em Tyburn (hoje Marble Arch), em Londres. 

A cabeça do ex-Lorde Protetor passou o dia em exposição até ser retirada e levada para casa por um soldado da guarda, que desapareceu com ela. A cabeça embalsamada passou de mãos em mãos por séculos, sendo inclusive vendida em 1814 como objeto, até ser finalmente enterrada nos jardins do Sidney Sussex College, em Cambridge, em 1960 o que poderia ser mentira, foi somente uma máscara. 

Cromwell na historiografia

Cromwell é uma das figuras mais controversas na história das ilhas britânicas, considerado como ditador regicida por historiadores como David Hume, tal como citado por David Sharp, mas um herói da liberdade por outros, como Thomas Carlyle e Samuel Rawson Gardiner. Em 2002, numa escolha feita pela BBC no Reino Unido, Cromwell foi eleito um dos dez britânicos mais importantes de todos os tempos. Contudo, as suas medidas contra os católicos na Escócia e Irlanda foram caracterizadas como genocídio ou quase-genocídio, e na Irlanda, o seu histórico é profundamente criticado. 

Veja mais:

Títulos nobiliárquicos e tratamentos

• 1599 – 1617: Oliver Cromwell 
• 1617 – 1643: Sr. Oliver Cromwell
• 1643 – 1649: (Tratado como militar – pelo posto)
• 1649 – 1658: Sua Alteza, o Lord Protector Oliver Cromwell

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Omar https://canalfezhistoria.com/omar/ https://canalfezhistoria.com/omar/#respond Wed, 12 Mar 2025 18:31:06 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6005 Omar ibne Alcatabe, Meca, ca. 586 — Medina, 3 de novembro de 644, conhecido em português simplesmente como Omar ou Umar, foi o segundo dos califas muçulmanos (634-644), o mais poderoso dos califas bem guiados e um dos mais poderosos e influentes governantes muçulmanos. 

Omar pertencia ao clã menor Banu ‘Adiy, integrado na tribo dos Coraixitas (Quraysh), à qual também pertencia o profeta Maomé. Pelo lado materno estava ligado ao clã dos Makhzum, um dos mais poderosos de Meca. Sabia ler e escrever, algo raro na sociedade de Meca nessa época.

Inicialmente um opositor de Maomé e da sua mensagem religiosa, teria sido convertido pela sua irmã Fátima e pelo seu cunhado Saíde ibne Zaide por volta do ano de 615. Em 622, partiu com Maomé para Iatrebe (Medina), quando a comunidade dos primeiros muçulmanos teve que abandonar Meca. Após participou da Batalha de Badr, onde teve uma grande vitória contra o numeroso exército de Meca, que o superava em número de combatentes na proporção de três para um. 

Deu uma das suas filhas, Hafsa, em casamento a Maomé. 

Quando Maomé faleceu em 632, Omar apoiou Abacar como novo líder da comunidade dos crentes, tendo se tornado um dos seus conselheiros. Antes de morrer Abacar nomeou Omar como seu sucessor. Durante o seu califado, o Islão conheceu uma grande expansão, tendo sido conquistada a Síria (Batalha de Jarmuque, 635), a Mesopotâmia e uma parte da Pérsia (Batalha de Cadésia e Batalha de Nemavande em 642, ambas contra o Império Sassânida) e o Egito (conquista de Alexandria, 642).

Omar promoveu uma grande obra administrativa, que seria mais tarde aproveitada pelos Omíadas. Foi ele o responsável pela introdução de uma nova cronologia no mundo islâmico, estabelecida a partir da emigração de Meca para Medina em 622 (a Hégira). 

Morreu assassinado por Pirouz Nahauandi (também chamado Abu Lu’lu’Ah) um escravo persa, em 644. Foi sepultado junto a Maomé e Abacar no recinto da Mesquita do Profeta em Medina (Masjid al-Nabawi). 

Primeiros anos

Omar nasceu em Meca, no clã Banu Adi, que era responsável por arbitragens entre as tribos. Seu pai era Khattab ibn Nufayl e sua mãe era Hatmah bint Hasham, da tribo de Banu Makhzum. Diz-se ter pertencido a uma família de classe média. Em sua juventude, costumava tomar conta dos camelos de seu pai nas planícies perto de Meca. Seu pai era famoso por sua inteligência entre sua tribo.

Era um comerciante de classe média e acredita-se ter sido um homem cruel e politeísta emotivo, que muitas vezes maltratava Omar. Isso fica evidente por uma declaração do próprio Omar a respeito de seu pai durante o seu posterior governo, quando Omar disse: “Meu pai Al-Khittab era um homem cruel. Ele costumava me fazer trabalhar duro; se eu não trabalhasse ele costumava me bater e ele me fazia trabalhar até a exaustão”. 

Apesar da alfabetização ser incomum na Arábia pré-islâmica, Omar aprendeu a ler e escrever em sua juventude. Apesar dele mesmo não ser um poeta, desenvolveu um grande amor pela poesia e literatura. De acordo com o tradição dos coraixitas, ainda na sua adolescência aprendeu artes marciais, equitação e lutas. Ele era alto e fisicamente forte e assim logo se tornou um lutador de renome. Omar foi também um talentoso orador e devido à sua inteligência e personalidade avassaladora, sucedeu seu pai como um árbitro dos conflitos entre as tribos. 

Além disso, Omar seguiu a profissão tradicional dos coraixitas. Tornou-se um comerciante e fez várias viagens pelo Império Bizantino e pela Pérsia, onde se diz ter encontrado vários estudiosos e ter analisado as sociedades romana e persa de perto. No entanto, acredita-se que não tenha sido bem sucedido como mercador. Beber álcool era muito comum entre os coraixitas e Omar também gostava de beber em sua época pré-islâmica. 

Durante a época de Maomé

A hostilidade de Omar ao Islã

Em 610, Maomé começou a pregar a mensagem do Islã. Como outras pessoas de Meca, Omar opôs-se frontalmente ao Islã. Ele resolveu defender a religião tradicional politeísta da Arábia. Era o mais inflexível e cruel na oposição a Maomé e muito proeminente em perseguir os muçulmanos. Omar foi o primeiro homem que decidiu que Maomé tinha de ser assassinado para pôr fim ao Islã. Acreditava firmemente na unidade dos coraixitas e viu a nova fé do Islã como uma causa de divisão e discórdia entre os coraixitas. 

Devido à perseguição por parte dos coraixitas, Maomé ordenou aos seus seguidores que migrassem para a Abissínia. Um pequeno grupo de muçulmanos migrou e isso fez Omar ficar preocupado com a unidade e o futuro dos coraixitas. Decidiu assim assassinar Maomé para se livrar da divisão que foi criada pelo Islã entre o povo de Meca. 

Conversão ao Islã

Omar se converteu ao islamismo em 616, um ano após a migração para a Abissínia. Segundo o relato mais popular da história, contada em Sirah, de Ibn Ishaq, a caminho para assassinar Maomé, Omar encontrou um politeísta que lhe disse para pôr a sua própria casa em ordem, visto que sua irmã e seu marido haviam se convertido ao Islã. Ao chegar na casa dela, Omar encontrou sua irmã e seu cunhado, Saeed bin Zaid (primo de Omar), recitando os versos do Alcorão.

Ele começou a bater o seu cunhado selvagemente. Quando sua irmã veio para resgatar o marido, ele também bateu nela até que ela começasse a sangrar. Vendo sua irmã assim, ele se acalmou e pediu a ela que lhe desse o que ela estava recitando. Ela deu-lhe o papel no qual estavam escritos os versos do capítulo Ta-Ha. Ele ficou tão impressionado com a beleza dos versos que aceitou o Islã naquele dia. Dirigiu-se então a Maomé com a mesma espada que pretendia matá-lo e aceitou o Islã em frente dele e de seus companheiros. 

Omar tinha 27 anos quando aceitou o Islã. Após sua conversão, Omar foi informar ao chefe dos coraixitas, Amir ibne Hixam sobre a sua aceitação do Islão. Segundo um relato, Omar depois rezou abertamente na Caaba quando os chefes coraixitas, Amir ibne Hixam e Abu Sufiane ibne Harbe, alegadamente assistiram furiosos. De acordo com o mesmo relato esse fato mais tarde ajudou os muçulmanos a adquirirem confiança em praticar abertamente o Islã. Nesta fase, Omar ainda desafiou qualquer pessoa que se atrevesse a interromper as orações dos muçulmanos, embora ninguém se atrevesse a importunar Omar quando ele estivesse rezando. 

A conversão de Omar ao Islã deu poder aos muçulmanos e à sua fé em Meca. Foi depois disso que os muçulmanos ofereceram orações abertamente em Grande Mesquita pela primeira vez. Abdalá ibne Maçude disse, 

“O abraço de Omar ao Islã foi a nossa vitória, a sua migração para Medina foi o nosso sucesso e o seu reinado, uma bênção de Alá, nós não oferecíamos orações na Grande Mesquita até Omar aceitar o Islã, quando ele aceitou o Islã, os coraixitas foram obrigados a deixar-nos rezar na mesquita.”

Veja mais:

Por todas essas coisas que Omar ganhou o título de Faruque, que significa aquele que faz a diferença.

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Papa Urbano II https://canalfezhistoria.com/papa-urbano-ii/ https://canalfezhistoria.com/papa-urbano-ii/#respond Wed, 12 Mar 2025 18:26:25 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=6002 Papa Urbano II, nascido Oto de Chantillon, (Châtillon-sur-Marne, 1042 — Roma, 29 de julho de 1099) foi o 159º Papa da Igreja Católica e o seu pontificado decorreu entre 1088 e 1099. Era monge beneditino da Abadia de Cluny. 

É conhecido por predicar a Primeira Cruzada no Oriente Próximo, embora tenha morrido antes da culminação desta com a tomada de Jerusalém. Também estabeleceu a Cúria Romana na sua forma atual. 

Primeiros anos do Papa Urbano II

Destacou-se como um dos mais firmes defensores da reforma gregoriana, tendo entrado em conflito com Henrique IV, Sacro Imperador Romano-Germânico, que o mandou encarcerar durante um breve período de tempo. 

Destacado para a Saxónia em 1085, encarregou-se de que a maioria das sedes fosse ocupada por clérigos partidários do Papa Gregório VII. 

Já nessa altura começou a ser considerado como um dos possíveis sucessores de Gregório VII, embora à morte deste, em 1086, o eleito para lhe suceder tenha sido Desidério, abade de Montecassino, que dirigiu a Igreja de Roma sob o nome de Vítor III durante dois anos e com quem Oto de Lagery se tinha confrontado a princípio. Finalmente, Oto foi eleito Papa por unanimidade em 1088, depois de um pequeno concílio celebrado em Terracina, uma região montanhosa situada a pouca distância de Roma. Diz-se que tanto Gregório VII como Vítor III, com quem se tinha reconciliado, o propuseram como sucessor antes de morrerem. Na sua proclamação tomou o nome de Urbano II. 

As cruzadas

No Concílio de Clermont-Ferrand (1095) Urbano II convocou os cristãos a uma guerra contra os muçulmanos, a fim de reconquistar Jerusalém. Iniciaram-se assim as cruzadas, expedições militares que partiam da Europa cristã a fim de combater os muçulmanos no Oriente. 

Os participantes consideravam-se “marcados pelo sinal da cruz” e bordavam a cruz na roupa. Essas expedições ocorreram por vários motivos: 

  • Libertar os cristãos sob o poder dos turcos seljúcidas.
  • Liberar o caminho para peregrinações a Terra Santa que havia sido bloqueado pelos referidos turcos.
  • Fazer frente aos planos dos turcos os quais planejavam conquistar a Europa (esta conquista iniciou-se com a queda de Constantinopla em 1453).
  • A indulgência plenária, concedida pelo Papa;
  • O desejo de melhorar a vida. Na Europa a população crescia, e a produção de alimentos não atendia a necessidade de todo povo;
  • Obter riqueza no Oriente. Havia muitos nobres sem terras, pois na época a herança cabia somente ao irmão mais velho (ou ao mais novo em algumas regiões);
  • Os mercadores europeus queriam aumentar o comércio com o Oriente e obter privilégios nas cidades conquistadas pelos cruzados;
  • O Papado e seus aliados na Reforma gregoriana, esperavam unir de novo todos os cristãos, pois a Cristandade, desde o Grande Cisma do Oriente, tinha passado a estar dividida em igreja do ocidente e igrejas do oriente.
  • O Papa esperava socorrer os maronitas, que eram católicos e que estavam a ser brutalmente perseguidos onde estavam isolados, no monte Maron, no Líbano, desde a invasão turca.

A cristianização da Sicília e da Campânia

Quase tão ambiciosa como a proclamação da Primeira Cruzada a Oriente foi a política de Urbano II de cristianizar o sul da Península Itálica e da Sicília. Esta cristianização não foi precisamente tal na realidade, já que a maioria dos habitantes destas regiões já eram cristãos, se bem que não reconhecessem o Patriarca de Roma mas o Patriarca de Constantinopla e seguiam o rito grego em vez do latino. Na Sicília, depois de vários séculos de domínio muçulmano até à conquista pelos normandos em 1061, existia também uma pequena comunidade islâmica. 

Veja mais:

O processo consistiu sobretudo numa substituição da influência da Igreja Ortodoxa na zona pela Igreja Romana, objetivo que Urbano II conseguiu graças às suas boas relações com os normandos que administravam essas terras.

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Paulo de Tarso https://canalfezhistoria.com/paulo-de-tarso/ https://canalfezhistoria.com/paulo-de-tarso/#respond Wed, 12 Mar 2025 10:58:58 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5996 Paulo de Tarso, também chamado de Apóstolo Paulo, Saulo de Tarso, São Paulo Apóstolo, Apóstolo dos gentios e São Paulo, (Tarso, Cilícia, c. 5 – Roma, 67) foi um dos mais influentes escritores do cristianismo primitivo, cujas obras compõem parte significativa do Novo Testamento. A influência que exerceu no pensamento cristão, chamada de “paulinismo”, foi fundamental por causa do seu papel como preeminente apóstolo do Cristianismo durante a propagação inicial do Evangelho pelo Império Romano.

Conhecido também como Saulo, se dedicava à perseguição dos primeiros discípulos de Jesus na região de Jerusalém. De acordo com o relato na Bíblia, durante uma viagem entre Jerusalém e Damasco, numa missão para que, encontrando fiéis por lá, “os levasse presos a Jerusalém”, Saulo teve uma visão de Jesus envolto numa grande luz, ficou cego, mas teve a visão recuperada após três dias por Ananias, que também o batizou.

Começou então a pregar o Cristianismo. Juntamente com Simão Pedro e Tiago, o Justo, ele foi um dos mais proeminentes líderes do nascente cristianismo. Era também cidadão romano, o que lhe conferia uma situação legal privilegiada. A questão de sua cidadania romana gera certa curiosidade. Paulo afirma em Atos 22, 28 ser romano “de nascimento”. Tal declaração parece indicar que o apóstolo herdou essa posição de seu pai. 

Treze epístolas no Novo Testamento são atribuídas a Paulo, mas a sua autoria em sete delas é contestada por estudiosos modernos. Agostinho desenvolveu a ideia de Paulo que a salvação é baseada na fé e não nas “obras da Lei”.A interpretação de Martinho Lutero das obras de Paulo influenciou fortemente sua doutrina de sola fide.

A conversão de Paulo mudou radicalmente o curso de sua vida. Com suas atividades missionárias e obras, Paulo acabou transformando as crenças religiosas e a filosofia de toda a região da bacia do Mediterrâneo. Sua liderança, influência e legado levaram à formação de comunidades dominadas por grupos gentios que adoravam o Deus de Israel, aderiam ao código moral judaico, mas que abandonaram o ritual e as obrigações alimentares da Lei Mosaica por causa dos ensinamentos de Paulo sobre a vida e obra de Jesus e seu “Novo Testamento”, fundamentados na morte de Jesus e na sua ressurreição. 

Fontes de informação

A principal fonte para informações históricas sobre a vida de Paulo são as pistas encontradas em suas epístolas e nos Atos dos Apóstolos. Os Atos recontam a carreira de Paulo, mas deixam de fora diversas partes de sua vida, como a sua alegada execução em Roma. 

Estudiosos como Hans Conzelmann e o teólogo John Knox (não deve ser confundido com John Knox do século XVI), disputam a confiabilidade histórica dos Atos dos Apóstolos. O relato do próprio Paulo sobre seu passado está principalmente na Epístola aos Gálatas. De acordo com alguns acadêmicos, o relato da visita de Paulo a Jerusalém em Atos 11 contradiz o relato nas epístolas paulinas. Outros consideram o relato de Paulo nas epístolas como sendo mais confiável do que os encontrados nos “Atos”. 

Nomes

O nome original de Paulo era “Saulo” (em hebraico: שָׁאוּל- Sha’ul; tiberiano: Šāʼûl – “o que se pediu, o que se orou por” e traduzido em grego antigo: Σαούλ – Saul – ou Σαῦλος – Saulos), nome que divide com o bíblico Rei Saul, um outro benjaminita e primeiro rei de Israel, que foi sucedido pelo Rei Davi, da tribo de Judá. Segundo suas próprias palavras, era um fariseu.

O uso de “Paulo” (em grego: Παῦλος – Paulos; em latim: Paulus ou Paullus – “baixo”; “curto”) aparece nos “Atos” pela primeira vez quando ele começou sua primeira jornada missionária em território desconhecido. Em Atos 13:6-13, Paulo aparece, juntamente com Barnabé e João Marcos, conversando com Sérgio Paulo, um oficial romano em Chipre que será convertido por ele.

Paulus era um sobrenome romano e alguns argumentam que Paulo o adotou como seu primeiro nome. Outra teoria, apontada pelo Vaticano, afirma que era costume para os judeus romanizados da época adotarem um nome romano e o pai de Paulo provavelmente quis agradar à família dos Pauli. Por fim, há ainda os que consideram possível a homenagem a Sérgio Paulo e mais provável que a mudança esteja mais relacionada a um desejo do apóstolo em se distanciar da história do Rei Saul, que perseguiu Davi. 

Antes da conversão

Em “Atos dos Apóstolos”, Paulo afirma ter nascido em Tarso (na província de Mersin, na parte meridional da Turquia central) e faz breves menções à sua família. Um sobrinho é mencionado em Atos 23, 16 e sua mãe é citada entre os que moram em Roma em Romanos 16:13. É ali também que o apóstolo confessa que «Saulo assolava a igreja, entrando pelas casas e, arrastando homens e mulheres, os entregava à prisão.» (Atos 8:3). 

Mesmo tendo nascido em Tarso, foi criado em Jerusalém, “aos pés de Gamaliel”, que é considerado um dos maiores professores nos anais do judaísmo” e cujo equilibrado conselho (Atos 5:34-39), pedindo que os judeus contivessem a fúria contra os discípulos, contrasta com a temeridade de seu estudante que, após a morte de Estevão, saiu num rompante perseguindo os “santos”. 

Conversão e a sua missão

A conversão de Paulo pode ser datada entre os anos de 31 e 36 pela referência que ele fez em uma de suas epístolas. De acordo com os “Atos dos Apóstolos”, sua conversão (metanoia) ocorreu na “estrada para Damasco”, onde ele afirmou ter tido uma visão de Jesus ressuscitado que o deixou temporariamente cego. 

Testemunho pós-conversão

Nos versículos iniciais da Epístola aos Romanos, Paulo nos dá uma litania de sua própria alegação apostólica e de suas convicções pós-conversão sobre a ressurreição de Cristo. Os seus próprios textos nos dão alguma ideia sobre o que ele pensava de sua relação com o Judaísmo. Se por um lado se mostrava crítico, tanto teologicamente quanto empiricamente, das alegações de superioridade moral ou de linhagem dos judeus, por outro defendia fortemente a noção de um lugar especial reservado aos filhos de Israel.

Ele ainda afirmou que recebeu as “boas novas” não de qualquer um, mas por uma revelação pessoal de Jesus Cristo. Por isso, ele se entendia independente da comunidade de Jerusalém (possivelmente no Cenáculo), embora alegasse sua concordância com ela no que tangia ao conteúdo do Evangelho.

O que é mais impressionante nessa conversão é a mudança na forma de pensar que ocorreu. Ele teve que mudar seu conceito sobre quem o Messias era e, particularmente, aceitar a ideia, então absurda, de um Messias crucificado. Ou talvez o mais difícil tenha sido a mudança de seus conceitos sobre a superioridade dos judeus. Ainda há debates sobre se Paulo já se considerou como o veículo de evangelização dos gentios no momento de sua conversão ou se isto se deu mais tarde. 

Primeiros anos de ministério

Após a sua conversão, Paulo foi para Damasco, onde os “Atos” afirmam que foi curado de sua cegueira e batizado por Ananias de Damasco. Paulo afirma em 2 Coríntios 11:32 que foi em Damasco que ele escapou por pouco da morte, indo em seguida primeiro para a Arábia e depois de volta para Damasco. Esta viagem de Paulo para a Arábia não é mencionada em nenhum outro lugar no Novo Testamento e alguns autores acreditam que ele tenha na realidade viajado até o Monte Sinai para meditar no deserto. Ele descreve em Gálatas como, três anos após a sua conversão, ele viajou para Jerusalém, onde se encontrou com Tiago, o Justo, e ficou com Simão Pedro por 15 dias.

A narrativa em Gálatas continua afirmando que, quatorze anos após a sua conversão, ele foi de novo a Jerusalém. Não se sabe exatamente o que aconteceu neste período, conhecido como “anos desconhecidos”, mas tanto os Atos quanto os Gálatas nos dão algumas pistas. Ao final deste período, Barnabé foi ao encontro de Paulo e o trouxe de volta para Antioquia. O autor F. F. Bruce sugeriu que os quatorze anos podem ser contados a partir da conversão de Paulo ao invés de sua primeira visita a Jerusalém.

Quando uma grande fome ocorreu na Judeia, Paulo e Barnabé viajaram para Jerusalém para entregar a ajuda financeira da igreja de Antioquia. De acordo com os Atos, Antioquia já tinha se tornado um centro importante para os fiéis após a dispersão dos crentes que se seguiu ao martírio de Estêvão e foi lá que os seguidores de Jesus foram, pela primeira vez, chamados de cristãos. 

Primeira viagem missionária

Nos Atos, relatam-se três viagens de Paulo: a primeira, liderada primeiro por Barnabé, levou Paulo de Antioquia até Chipre, passando depois pela Ásia Menor (Anatólia) e de volta a Antioquia. Em Chipre, Paulo enfrenta e cega Elimas, o mago, que estava criticando seus ensinamentos ao procônsul Sérgio Paulo. Deste ponto em diante, passa a ser chamado de Paulo e aparece como o líder do grupo. Quando chegaram em Perge, João Marcos, que acompanhava o grupo, voltou para Jerusalém e os dois foram para Antioquia na Pisídia, Paulo profere um longo discurso e converte muitos, mas o grupo acaba expulso da cidade (Atos 13).

Em Icônio, foram novamente expulsos e seguiram para Listra, onde foram confundidos com os deuses romanos Júpiter e Mercúrio depois que Paulo curou um coxo. Por conta da intriga dos judeus, Paulo foi preso e apedrejado, mas sobreviveu e, com Barnabé, seguiu para Derbe. De lá, retornaram passando novamente pelas mesmas cidades para reforçar as comunidades recém-fundadas e terminaram a viagem em Antioquia (Atos 14). 

Segunda viagem missionária

Concílio de Jerusalém

Paulo partiu para sua segunda viagem de Jerusalém, onde estava sendo realizado o concílio com os outros apóstolos no qual a obrigatoriedade da circuncisão foi retirada. A maior parte dos acadêmicos concorda que houve uma reunião vital entre Paulo e a igreja de Jerusalém em algum momento entre os anos de 48 e 50, descrita em Atos 15:2 e geralmente entendido como o mesmo evento mencionado por Paulo em Gálatas 2:1. A principal questão discutida ali foi se os gentios convertidos precisavam ou não ser circuncidados, conforme o relato nos Atos e em Gálatas. Paulo alega em sua epístola que terá sido neste encontro que Pedro, Tiago e João aceitaram a missão de Paulo aos gentios. 

Com o objetivo de levar a Antioquia o resultado do concílio, os fiéis realizaram uma eleição para escolher dois mensageiros que acompanhariam Paulo e Barnabé nessa missão. Os eleitos então foram Silas e Judas, “chamado Barsabá”.

Paulo, Barnabé, Judas e Silas partiram então de Jerusalém levando os decretos dos apóstolos aos fiéis em Antioquia e nas províncias romanas da Síria e Cilícia. Chegando a Antioquia, eles cumprem a missão que lhes foi dada, sendo que Judas retorna para Jerusalém e desaparece da história, enquanto Silas permanece na cidade. 

Paulo e Silas

Em Antioquia, Paulo e Barnabé tiveram uma dura discussão sobre se deveriam levar João Marcos com eles. Em Atos 13, é mencionado que o menino já os tinha deixado em uma viagem anterior para retornar para casa. Paulo acreditava que ele ainda não estava pronto para este tipo de evangelização e, por isso, ele e Barnabé decidiram se separar. Barnabé acabou levando João Marcos consigo para Chipre e Silas se juntou a Paulo.

Paulo e Silas viajaram para diversas cidades diferentes, como Tarso, Derbe e Listra (todas na Ásia Menor). Nesta última, eles encontraram Timóteo, um discípulo que tinha uma boa reputação, e decidiram levá-lo com eles. Em Filipos (na Grécia), uma multidão incitada por homens insatisfeitos com o exorcismo de uma escrava que dava muitos lucros aos seus patrões com suas adivinhações, se insurgiu contra os missionários, açoitando e prendendo Paulo e Silas.

Após um milagroso terremoto, os portões da prisão se abriram e os dois puderam escapar, o que levou por sua vez à conversão do carcereiro. Eles seguem então para Bereia, de onde Paulo segue para Atenas, deixando ali Silas e Timóteo. Na capital grega, Paulo prega no Areópago contra os muitos ídolos que encontra, converte Dionísio, o Areopagita e parte.

Por volta de 50 a 52, Paulo passou 18 meses em Corinto, onde reencontrou Timóteo e Silas. A referência nos Atos ao procônsul Gálio permite inferir a data (vide Inscrição de Gálio). Lá ele trabalhou com Silas e Timóteo e conheceu Priscila e Áquila, que se tornaram fiéis crentes e ajudaram Paulo em suas viagens missionárias. A dupla seguiu Paulo e seus companheiros até Éfeso e o grupo permaneceu ali para iniciar aquela que seria a mais forte e fiel igreja cristã daquele tempo, um importante centro da cristandade a partir do ano 50. Em 52, Partiu para Cesareia Marítima, passou por Jerusalém e finalmente chegou em Antioquia. 

Terceira viagem missionária

Paulo iniciou sua terceira viagem missionária passando por toda a região da Galácia e da Frígia para reforçar a fé e ensinar para os fiéis, além de repreender os que estavam em erro. Quando chegou em Éfeso, ficou ali por pouco menos de três meses e realizou uma série de milagres, como curas e exorcismos. Depois de provocar uma revolta na cidade, o apóstolo seguiu para a Macedônia, passando novamente por Corinto, onde permaneceu por três meses.

Quando ele estava pronto para retornar para a Síria, mudou de ideia por conta de um plano que os judeus tinham feito contra sua vida, voltando então para a Macedônia e dali seguiu para a Trôade, onde ressuscitou o jovem Êutico depois de ele ter caído três andares e ter sido «levantado morto» (Atos 20:9).

A viagem de Paulo, que pretendia chegar em Jerusalém para celebrar o Pentecostes (entre maio e junho), continuou passando por Assos, Mitilene, Quios, Samos e Mileto (Atos 20). A dura jornada passou ainda por Cós, Rodes e Pátara, onde Paulo embarca num navio com destino à Tiro, na Fenícia. Depois de sete dias na cidade, o grupo de Paulo segue para Ptolemaida, Cesareia, onde visitaram Filipe, o Evangelista, e finalmente Jerusalém (Atos 21). 

Embora Paulo tenha escrito sobre uma visita que fez a Ilíria, ele estava se referindo ao que hoje chamamos de Ilíria Grega, parte da província romana da Macedônia, onde hoje está atualmente a Albânia.

Viagem a Roma

Paulo e seus companheiros seguiram então para Roma, naquela que foi provavelmente a última das viagens missionárias, em 60. A viagem começou em Jerusalém, onde os irmãos foram recebidos em festa. Lá, Paulo foi espancado e quase morto, preso e enviado para Cesareia Marítima, onde esteve detido durante aproximadamente um ano e meio. Foi transferido para Roma depois de apelar a César, um direito que tinha por ser cidadão romano, ao perceber que não receberia julgamento justo de seu povo. Paulo passou então a pregar na capital imperial. 

O Incidente em Antioquia

Apesar do acordo encontrado no Concílio de Jerusalém, como tinha entendido Paulo, o apóstolo relata como ele depois confrontou publicamente Pedro, no que ficou conhecido como “Incidente em Antioquia”, por causa da relutância dele em realizar suas refeições com os cristãos gentios em Antioquia. Escrevendo depois sobre o incidente, relata ter dito a Pedro e os demais presentes «Se tu, sendo judeu, vives como gentio, e não como judeu, como obrigas os gentios a viver como os judeus?» (Gálatas 2:11-14). Paulo também menciona que até mesmo Barnabé, seu companheiro de viagem até aquele momento, ficou do lado de Pedro. 

O resultado final do incidente permanece incerto. A Enciclopédia Católica afirma que “o relato de Paulo sobre o incidente não deixa dúvidas de que Pedro viu justiça na reprimenda”. Em contraste, a obra “From Jesus to Christianity”, de L. Michael White, alega que “o confronto com Pedro foi uma falha completa, uma bravata política, e Paulo logo deixou Antioquia como persona non grata para nunca mais voltar”. 

Prisão e morte

Paulo chegou em Jerusalém em 57 com uma coleta de dinheiro que tinha feito para a comunidade local e, segundo Atos, ele foi recebido calorosamente. Porém, o relato continua afirmando que ele foi interrogado por Tiago por ensinar a «…todos os judeus que estão entre os gentios a apostatarem de Moisés, dizendo-lhes que não circuncidem seus filhos nem andem segundo os nossos ritos» (Atos 21:22). Paulo então realizou um ritual de purificação para não dar aos judeus nenhum motivo para acusá-lo por não seguir os mandamentos da Lei. 

Paulo porém continuava a pregar contra a circuncisão, contra as restrições alimentares e contra os requerimentos da Torá e isto provocou o rompimento final com os judeus. Paulo causou um alvoroço ao aparecer no Templo e somente escapou da morte por ter sido preso. Ele foi então mantido prisioneiro por dois anos em Cesareia até que um novo governador reabrisse seu caso em 59. Quando Paulo foi acusado de traição apelou ao César, alegando seu direito, como cidadão romano, de ser levado a um tribunal apropriado e de se defender das acusações.

Atos 28:1 relata que no caminho para Roma, Paulo sofreu um naufrágio em “Melite” (Malta), onde ele se encontrou com Públio e foi recebido pelos habitantes da ilha com “muita humanidade”. Ele chegou a Roma por volta do ano 60 e passou mais dois anos em prisão domiciliar. Contando esta vez, Paulo passou entre cinco e seis anos preso em celas ou prisioneiro em casa. 

Ireneu de Lyon acreditava que Pedro e Paulo tinham sido os fundadores da Igreja de Roma, sendo eles a nominarem São Lino como bispo e sucessor: 

“…Igreja fundada e organizada em Roma pelos dois mais gloriosos apóstolos, Pedro e Paulo; também [ensinando] a fé pregada aos homens, que chegou aos nossos dias através da sucessão dos bispos….Os abençoados apóstolos, então, tendo fundado e abençoado a Igreja, entregaram nas mãos de Lino o episcopado.” 
— Adversus Haereses 3.2-3, Ireneu de Lyon.

Paulo, porém, não foi bispo de Roma e nem levou o cristianismo para lá, pois já havia cristãos em Roma quando ele chegou lá. É evidente também que Paulo já tinha escrito uma epístola para a Igreja de Roma antes de ter visitado a cidade. Porém, Paulo pode ter tido um importante papel na formação da Igreja na capital romana. 

Tradição sobre a morte de Paulo

Nem a Bíblia e nem outra história qualquer conta explicitamente como ou quando Paulo morreu. De acordo com a tradição cristã, Paulo foi decapitado em Roma durante o reino do imperador Nero em meados dos anos 60 na Abadia das Três Fontes (em italiano: Tre Fontane). O tratamento mais “humano” dado a Paulo, em contraste com a crucificação invertida de São Pedro, foi graças à sua cidadania romana. Vários autores cristãos da Antiguidade já propuseram mais detalhes sobre a morte de Paulo. I Clemente, uma carta escrita pelo bispo de Roma, Clemente, por volta do ano 90 relata o seguinte sobre Paulo: 

“Por causa de inveja e brigas, Paulo, pelo exemplo, mostrou a recompensa da resistência paciente. Após ele ter sido preso por sete vezes, ter sido exilado, apedrejado e ter pregado no ocidente e no oriente, ele recebeu o reconhecimento que era o prêmio da sua fé, tendo ensinado a retidão para o mundo inteiro e tendo chegado aos confins do ocidente. E quando ele já tinha dado seu testemunho perante os governantes, partiu deste mundo e foi para um lugar sagrado, tendo encontrado um notável padrão de resistência paciente.” 
— I Clemente, Clemente de Roma.

Comentando sobre esta passagem, Raymond Brown escreve que, ainda que ela não afirme categoricamente que Paulo foi martirizado em Roma, “…algo assim é a mais provável interpretação”. Eusébio de Cesareia, que escreveu no século IV, afirma que Paulo foi decapitado durante o reino do imperador romano Nero. Este evento tem sido datado ou no ano de 64, quando Roma foi devastada por um incêndio, ou alguns anos depois, em 67 A festa de São Pedro e São Paulo, da Igreja Católica, é comemorada em 29 de junho, o que pode refletir uma data tradicional para o seu martírio. Outras fontes também apontaram uma tradição de que Pedro e Paulo teriam morrido no mesmo dia (e, possivelmente, no mesmo ano). 

O apócrifo Atos de Pedro sugere que Paulo sobreviveu a Roma e viajou para o oeste, para a Hispânia. Alguns mantém o ponto de vista que ele poderia ter visitado a Grécia e a Ásia Menor após a sua viagem à Hispânia e que ele pode ter sido finalmente preso em Troas e enviado a Roma para ser executado (veja-se a discussão acima sobre as epístolas a Timóteo). 

Túmulo e relíquias

A tradição cristã mantém que Paulo foi enterrado com São Pedro “Próximo as Catacumbas” (ad Catacumbas) na Via Ápia e lá permaneceu até seu corpo ser levado para a Basílica de São Paulo Extra-Muros, em Roma. O venerável Beda, em sua História Eclesiástica do Povo Inglês, escreveu que o papa Vitaliano, em 665, deu algumas relíquias de Paulo (incluindo a cruz feita com as correntes que o prenderam) ao rei Osvio da Nortúmbria, no norte da Inglaterra. 

Ainda segundo a tradição, o túmulo de Paulo estaria localizado na Basílica de São Paulo Extra-Muros, em Roma. Escavações foram realizadas conforme o relato feito em um comunicado da Agência Católica Internacional de Imprensa (APIC – Agence de Presse Internationale Catholique), de 17 de fevereiro de 2005: “Um sarcófago que pode conter as relíquias do apóstolo Paulo foi identificado na Basílica de São Paulo Extra-Muros, de acordo com Giorgio Filippi, chefe do departamento epigráfico do Museu do Vaticano.

Sob o altar elevado, está uma laje de mármore do século IV, que sempre esteve visível, contém uma inscrição PAULO APOSTOLO MART (Paulo Apóstolo Mártir). A placa tem três furos e provavelmente está relacionada com o culto funerário de São Paulo. De acordo com Giorgio Filippi, esses buracos foram usados para a “criação de relíquias” por meio de simples contato com o túmulo do apóstolo.

Ao longo da Via Ostiense, um santuário foi erguido sobre o túmulo do apóstolo Paulo ainda no século I Como já fizera com São Pedro, o imperador romano Constantino, começou, no início do século IV, a construir uma basílica para abrigar o túmulo. Então, em 386, meio século após a do imperador e por conta do afluxo de peregrinos, uma basílica ainda maior foi construída por ordem dos imperadores Valentiniano II, Teodósio I e Arcádio.” 
— Agência Católica Internacional de Imprensa.

Em junho de 2009 o papa Bento XVI anunciou os resultados das escavações ali realizadas. O sarcófago em si não foi aberto, mas foi examinado por meio de uma sonda e revelou pedaços de incenso e de linho, azul e púrpura, assim como pequenos fragmentos de osso, que foram datados por radiocarbono como sendo do século I ou II. De acordo com o Vaticano, isto é uma evidência a favor da tradição de que ali está efetivamente o túmulo de Paulo. 

Obras

Quatorze epístolas do Novo Testamento são atribuídas a Paulo, das quais sete têm a autoria quase que universalmente aceita, enquanto que as outras sete são disputadas: Efésios, Colossenses, 2 Tessalonicenses, 1 Timóteo, Tito e Hebreus. Destas, quatro são consideradas como sendo de outro autor que não Paulo por razões textuais e gramaticais, enquanto que as outras três são disputadas por alguns acadêmicos. Paulo aparentemente ditou todas as suas epístolas (exceto Gálatas) através de um secretário (ou amanuense), que geralmente parafraseava o tom de sua mensagem, como era a prática entre os escribas do século I. 

Estas epístolas circularam entre as comunidades cristãs e eram lidas em público por membros da igreja, juntamente com outras obras. Elas foram citadas ainda no século I, por volta de 96, por Clemente de Roma em sua epístola Clemente aos Coríntios. 

Atribuição de suas obras

As epístolas paulinas foram na sua maioria escritas para igrejas que Paulo visitou e o apóstolo era um grande viajante. Ele passou por Chipre, por toda a Ásia Menor, pela Grécia, Creta e Roma. Elas estão repletas de exposições sobre o que os cristãos deveriam acreditar e como deveriam viver, ao passo que ele não relata ao destinatário (e aos leitores modernos) muito sobre a vida de Jesus. Suas mais explícitas referências são passagens sobre a Última Ceia e a crucificação e ressurreição.

As referências aos ensinamentos de Jesus são também esparsos, levantando a questão, ainda em disputa, sobre o quão consistente é seu relato sobre a fé com o que está nos quatro evangelhos canônicos, os Atos e a Epístola de Tiago. O ponto de vista de que o Cristo de Paulo é diferente do Jesus histórico foi proposta pelo teólogo Adolf Harnack. De toda maneira, ele nos dá o primeiro relato escrito do que é ser cristão e da espiritualidade cristã. 

Das catorze cartas atribuídas a Paulo e incluídas no cânone do Novo Testamento, há pouca ou nenhuma disputa de que Paulo tenha escrito pelo menos sete: 

• Epístola aos Romanos
• Primeira Epístola aos Coríntios
• Segunda Epístola aos Coríntios
• Epístola aos Gálatas
• Epístola aos Filipenses
• Primeira Epístola aos Tessalonicenses
• Epístola a Filêmon

A Epístola aos Hebreus, que foi atribuída a ele ainda na antiguidade, já era questionada na época, e atualmente não é considerada como tendo sido escrita por ele pela maior parte dos especialistas (veja Antilegomena). Há variados graus de disputa a respeito da autoria das demais epístolas.

A autenticidade da Epístola aos Colossenses tem sido questionada por conter uma descrição de Jesus não encontrada em nenhuma outra de Paulo, descrevendo-o como a “imagem do Deus invisível”, uma cristologia que só tem paralelo no Evangelho de João. Evidências internas demonstram uma conexão próxima com a Epístola aos Efésios, que é muito similar a Colossenses (dos 155 versículos, 78 são idênticos), mas quase sem referências pessoais. O estilo de Colossenses é único entre as epístolas paulinas, não se encontrando a ênfase na cruz que se vê nas demais e nem referência à Segunda vinda de Cristo, além de uma exaltação do casamento que contrasta com a encontrada em 1 Coríntios 7:8-9.

Finalmente, segundo R.E. Brown, ela exalta a Igreja de uma forma que só se tornaria comum numa segunda geração de cristãos, “construída sobre a fundação deixada pelos apóstolos e profetas”, já passada. Os defensores da autoria paulina argumentam que ela foi escrita para ser lida uma quantidade grande de igrejas (daí a similaridade com Efésios) e marca um estágio final do desenvolvimento de Paulo de Tarso.

Deve ser lembrado também que a porção moral da epístola, que é composta dos dois últimos capítulos, tem uma afinidade muito maior com os trechos equivalentes em outras epístolas enquanto que o restante casa perfeitamente com os detalhes que conhecemos sobre a vida de Paulo, dando-nos ainda mais pistas sobre ela. Ela confirma, por exemplo, que ele estava preso quando a escreveu.

As epístolas pastorais, 1 Timóteo, 2 Timóteo e Epístola a Tito também já tiveram a autoria questionada. As três principais razões são: 

  • As diferenças em vocabulário, estilo e teologia em relação às demais obras de Paulo. Os defensores da autenticidade afirma que elas foram provavelmente escritas em nome do apóstolo sob sua autoridade por algum de seus discípulos, a quem ele teria explicado claramente o que deveria ser escrito, ou a quem ele havia passado um sumário por escrito dos pontos a serem desenvolvidos, e que, uma vez escritas, Paulo as teria lido, aprovado e assinado. 
  • A dificuldade de alinhá-las com a biografia conhecida de Paulo. Estas epístolas, assim como as dirigidas aos Colossenses e aos Efésios, foram escritas no período em que Paulo estava preso, mas ao contrário delas, afirmam que o apóstolo foi solto e viajou depois disso. Os defensores argumentam que Paulo foi preso pela primeira vez não por algum crime contra os romanos, mas para salvá-lo da prisão. Em Filêmom, ele parece ter a esperança de ser libertado logo e haveria bastante tempo para ele ter visitado Creta e escrever as epístolas a Timóteo antes de sua segunda – e final – prisão pelos romanos. 
  • Finalmente, foram levantadas diversas objeções sobre o estado avançado da Igreja que a epístola deixa transparecer. Novamente, os defensores alegam que a epístola usa termos como “bispo”, “diácono” e “padres” como sinônimos para indicar os que foram legados pelos apóstolos com a missão evangélica e não no sentido organizacional que termo viria a adquirir nos anos seguintes. Alegam também que se estas epístolas fossem mesmo, como alegam os críticos, uma defesa da sucessão apostólica pelos bispos, elas já deveriam ter sido atacadas como fraudes na antiguidade, argumenta que não encontra nenhum suporte evidencial. 

O principal argumento contra a autoria de Paulo da Segunda Epístola aos Tessalonicenses é que a sua escatologia parece contradizer a da Primeira Epístola aos Tessalonicenses. Enquanto a primeira epístola parece indicar que a parousia é iminente, na segunda ele a coloca num futuro desconhecido, o que implicaria num “erro” do apóstolo em uma epístola que, segundo os crentes, teve inspiração divina. A defesa principal é que a frase mais polêmica, «Então nós que estivermos vivos, e formos deixados, seremos arrebatados em nuvens…» (1 Tessalonicenses 4:17) teve tradução problemática já na Vulgata (em latim: Nos, qui vivimus, qui residui sumus). 

Redenção

A teologia da redenção foi um dos principais assuntos abordados por Paulo. Paulo ensinou que os cristãos foram redimidos da Lei (veja supersessionismo) e do pecado pela morte de Jesus e sua ressurreição. Sua morte foi uma expiação e, pelo sangue de Cristo, a paz foi estabelecida entre Deus e o homem. Pelo batismo, um cristão toma sua parte na morte de Jesus e na sua vitória sobre a morte, recebendo, gratuitamente, uma renovada condição de filho de Deus. 

Relação com o judaísmo

A teologia de Paulo sobre o evangelho acelerou a separação da seita messiânica dos cristãos do judaísmo, algo que Paulo não desejava. Ele escreveu que somente a fé em Cristo (como Messias) era suficiente e decisiva para a salvação, tanto de judeus quanto de gentios, tornando o cisma entre os cristãos e os judeus não só inevitável, mas permanente. Ele argumentou que os gentios convertidos não precisavam se tornar judeus ou ser circuncidados, nem tampouco seguir as leis alimentares. Porém, em Romanos, ele insiste numa visão positiva do valor da Lei Mosaica como um guia moral. 

Escatologia

De acordo com Ehrman, Paulo acreditava que Jesus iria retornar ainda durante a sua vida. Ele afirma que Paulo acreditava que os cristãos que tinham morrido nesse meio tempo seriam ressucitados para poder participar do Reino de Deus. Acreditava também, segundo ele, que os salvos seriam transformados e assumiriam formas sobrenaturais. 

O ensinamento de Paulo sobre o fim do mundo aparece muito claramente nas suas epístolas à igreja de Tessalônica. Muito perseguidos, é possível que eles tenham escrito para o apóstolo primeiro perguntando sobre os que já tinham morrido e sobre o que deveriam esperar no final.

Paulo então os assegura que os mortos se levantarão primeiro e serão seguidos pelos que ainda estão vivos. Veja a discussão mais acima sobre as epístolas aos tessalonicenses, o que pode sugerir uma iminência do fim, mas ele não foi específico sobre a cronologia e encoraja seus ouvintes a terem paciência na epístola seguinte. O final dos tempos será uma batalha entre Jesus e o “Homem da iniquidade” [nota p], cuja conclusão será o triunfo final de Cristo. 

Papel das mulheres

Um verso na Primeira Epístola a Timóteo, tradicionalmente atribuída a Paulo (vide acima), é frequentemente utilizada como maior fonte de autoridade na bíblia para que às mulheres seja vedado o sacramento da ordem, além de outras posições de liderança e ministério no cristianismo. A Epístola a Timóteo é também muitas vezes utilizada por muitas igrejas para negar-lhes o voto em assuntos eclesiásticos e posições de ensino para público adulto e também a permissão para o trabalho missionário. 

“A mulher aprenda em silêncio com toda a sujeição; 12pois não permito à mulher que ensine, nem que tenha domínio sobre o homem; mas que esteja em silêncio. 
13Pois Adão foi formado primeiro, depois Eva. 
14Adão não foi seduzido, mas a mulher é que, deixando-se iludir, caiu na transgressão; ” 
— 1 Timóteo 2:11-14.

Esta passagem parece estar dizendo que as mulheres não devem ter na igreja nenhum papel de liderança frente aos homens. Se ela também proíbe as mulheres de ensinar outras mulheres ou crianças é duvidoso, pois até mesmo as igrejas católicas – que proíbem o sacerdócio feminino – permitem que abadessas ensinem e assumam posições de liderança sobre outras mulheres. Qualquer interpretação desta parte das escrituras tem que se confrontar com as dificuldades teológicas, contextuais, sintáticas e léxicas destas poucas palavras.

O teólogo J. R. Daniel Kirk encontrou um importante papel para as mulheres na igreja antiga, como por exemplo quando Paulo elogia Febe por seu trabalho como diaconisa e também Júnia, considerada por alguns como sendo a única mulher citada no Novo Testamento entre os apóstolos. Kirk aponta para estudos recentes que levaram alguns a concluir que a passagem que obriga as mulheres a “ficarem caladas nas igrejas” em 1 Coríntios 14:34 foi uma adição posterior, aparentemente por um autor diferente e não era parte da carta original de Paulo à igreja de Corinto.

Outros, como Giancarlo Biguzzi, alegam que a restrição de Paulo sobre as mulheres em Coríntios é genuína, mas aplica-se ao caso particular de proibi-las de fazerem perguntas ou de conversar, e não uma proibição generalizada contra as mulheres falarem, pois em 1 Coríntios 11:5 Paulo afirma o direito das mulheres de profetizar.

O terceiro exemplo de Kirk de uma visão mais inclusiva está em «Não pode haver judeu nem grego, não pode haver escravo nem livre, não pode haver homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus» (Gálatas 3:28). Ao anunciar um fim dentro da igreja das divisões que eram tão comuns no mundo todo, ele conclui destacando que “…havia mulheres do Novo Testamento que ensinaram e tinham autoridade na igreja antiga e que estes ensinamentos e esta autoridade eram sancionadas por Paulo e que o apóstolo mesmo oferece um paradigma teológico dentro do qual a superação da subjugação da mulher é um resultado esperado”.

Influência no cristianismo

A influência de Paulo no pensamento cristão é possivelmente o mais importante dentre todos os outros autores do Novo Testamento. Paulo declarou que sua fé em Cristo tornou a Torá desnecessária para a salvação, exaltou a igreja cristã como sendo o corpo de Cristo e mostrou o mundo fora da igreja como estando sob julgamento. 

Tradição oriental

No oriente, os padres da Igreja reduziram a eleição divina presente Romanos 9:11 à onisciência de Deus e o tema da predestinação presente na teologia ocidental não aparece no oriente. 

Tradição ocidental

As obras fundamentais de Agostinho sobre a “boa nova” como um presente (graça), sobre a moralidade como a vida no Espírito, sobre a predestinação e sobre o pecado original se baseiam todas em Paulo, especialmente na Epístola aos Romanos. 

Durante a Reforma protestante, Martinho Lutero expressou a doutrina de Paulo sobre a fé como elemento mais importante como justificação para a sua doutrina da sola fide (apenas a fé). 

Visões críticas

Elaine Pagels, professora de religião na Universidade de Princeton e uma autoridade reconhecida sobre o gnosticismo, argumenta que Paulo era um gnóstico e que as epístolas pastorais, antignósticas, são falsificações “pseudo-paulinas”, escritas para refutar esta crença ainda na antiguidade. O acadêmico britânico e judeu Hyam Maccoby argumenta que o Paulo como descrito nos Atos dos Apóstolos e o Paulo que aparece em suas próprias obras são pessoas muito diferentes. Algumas dificuldades foram apontadas no relato de sua vida, por exemplo. O Paulo dos Atos está muito mais interessado na história factual e menos na teologia e ideias como a justificação pela fé não estão ali, assim como não estão as referências ao Espírito, de acordo com Maccoby.

Ele também afirma que não existem referências a João Batista nas epístolas paulinas, enquanto Paulo o menciona diversas vezes nos Atos. Maccoby teoriza ainda que Paulo sintetizou o judaísmo, o gnosticismo e o misticismo para um cristianismo como uma religião com um salvador cósmico. De acordo com ele, o farisaísmo de Paulo foi sua própria invenção e que ele, na verdade, teria se associado com os saduceus. Maccoby atribui ainda as origens do antissemitismo cristão a Paulo e alega que a visão das mulheres que o apóstolo defendia, embora inconsistente, refletia seu gnosticismo (em seus aspectos misóginos). 

Outros autores lembram que linguagem nos discursos de Paulo é muito parecida com a de Lucas no estilo. Além disso, George Shillington escreve que o autor dos Atos provavelmente criou os discursos de acordo com este estilo e eles contêm sua marca teológica e literária. Contrariamente, o historiador e apologista cristão Christopher Price argumenta que o estilo de Lucas nos Atos representa o estilo dos historiadores da época que reconhecidamente relatavam discursos em suas obras.

F. C. Baur (1792–1860), professor de teologia em Tubinga, na Alemanha, o primeiro acadêmico a criticar os Atos e as epístolas paulinas, e fundador da Escola de Tubinga de teologia, argumentou que Paulo, como o “Apóstolo dos gentios”, estava em violenta oposição com os doze apóstolos originais. Baur considera os Atos como uma obra tardia e pouco confiável. O debate que ele iniciou continua até hoje, com Adolf Deissmann (1866 – 1937) e Richard Reitzenstein (1861–1931) enfatizando a herança grega de Paulo e Albert Schweitzer destacando a sua dependência do Judaísmo. 

O professor Robert Eisenman da Universidade da Califórnia em Long Beach, argumenta que Paulo era membro da família de Herodes, o Grande.[82] Eisenman faz uma conexão entre Paulo e um indivíduo identificado por Flávio Josefo como “Saulus”, um “parente de Agripa”. Outro elemento bastante citado como suporte a esta tese está em «Saudai a Herodião, meu compatriota.» (Romanos 16:11) (em latim: Salutate Herodionem cognatum meum.). 

Entre os críticos do apóstolo Paulo também está Thomas Jefferson, um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos, que escreveu que Paulo foi o “primeiro que corrompeu as doutrinas de Jesus”. F.F. Powell argumenta que Paulo, em suas epístolas, fez uso de muitas ideias do filósofo grego Platão, chegando até mesmo a usar as mesmas metáforas e a mesma linguagem. Por exemplo, em Fedro, Platão colocou Sócrates dizendo que os ideais celestes são percebidos como “se através de um vidro, vagamente”. Estas palavras são ecoadas por Paulo em «Pois agora vemos como por um espelho em enigma» (1 Coríntios 13:12). 

Veja mais:

Críticas de heresias

Há várias acusações feitas por pessoas de diferentes classes, como Mahatma Gandhi que alegam serem os ensinamentos escritos pelo Apóstolo Paulo uma obra Herege, não inspirada, deturpada e contrária aos ensinamentos contidos no Antigo Testamento bíblico e também contra o próprio Cristo.

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Pedro I da Rússia https://canalfezhistoria.com/pedro-i-da-russia/ https://canalfezhistoria.com/pedro-i-da-russia/#respond Wed, 12 Mar 2025 10:41:48 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5985 Pedro I (Moscou, 9 de junho de 1672 – São Petersburgo, 8 de fevereiro de 1725), apelidado de Pedro, o Grande, foi o Czar do Czarado da Rússia de 1682 até a formação do Império Russo em 1721, continuando a reinar como Imperador até sua morte. De pouco depois de sua ascensão até 1696, ele reinou junto com seu meio-irmão mais velho Ivan V. Pedro era o filho mais velho do czar Aleixo com sua segunda esposa Natália Naryshkina, vivendo seus primeiros anos tranquilamente até chegar ao trono com apenas dez anos de idade depois de ser escolhido como o novo soberano pela população moscovita. 

Sua escolha não satisfez a família da primeira esposa de Aleixo e o exército Streltsi, que fomentaram uma sangrenta revolta junto com sua meia-irmã Sofia que instaurou Ivan como co-monarca e ela como regente em nome dos dois. Pedro viveu sem ser incomodado no interior pelos sete anos seguintes ao mesmo tempo que Sofia governava o país, finalmente tirando o poder das mãos dela durante uma revolta em 1689 aos dezessete anos. Ele mesmo assim não assumiu o governo pessoalmente, deixando sua mãe e boiardos cuidado do país em seu nome.

Foi importante na modernização e ocidentalização da Rússia, país que já estava muito desfasado em relação às potências ocidentais. Também deu ao seu país grande poder depois de derrotar a Suécia na Grande Guerra do Norte, que ficou marcada pela sua grande vitória na Batalha de Poltava em 1709. Ao se aperceber de que a Rússia era socialmente e tecnicamente atrasada, resolveu abrir uma janela para o Ocidente, já como czar, a fim de ingressar no país ideias europeias de progresso.

Não sem antes recolher a irmã Sofia aos costumes no Convento das Carmelitas. Empreendeu um périplo de 18 meses pela Europa, em que se fez passar por marinheiro e trabalhar como carpinteiro num estaleiro da Holanda, aprendeu a retalhar a gordura da baleia, estudou anatomia e cirurgia observando dissecação de cadáveres, visitou museus e galerias de arte. 

Início de vida

Nascimento

Pedro nasceu em Moscou à 1h00min do dia 9 de junho de 1672. Era o primeiro filho do czar Aleixo da Rússia e sua segunda esposa Natália Naryshkina, filha de um pequeno proprietário de terras que tornaram-se a protegida de Artemon Matveiev, ministro-chefe e amigo íntimo do czar. Pedro foi nomeado em homenagem a São Pedro e ao nascer tinha olhos negros, cabelos castanho-avermelhados e media 48 centímetros de altura.

Ele foi batizado pelo confessor pessoal de Aleixo quatro semanas depois em 9 de julho, dia sagrado de São Pedro no calendário da Igreja Ortodoxa Russa. Um grande banquete foi servido pelo czar no dia seguinte no Kremlin de Moscou, tendo a presença de boiardos, comerciantes e outros cidadãos ilustres de Moscou. 

Pedro logo recebeu uma criadagem própria, que era formada por uma ama de leite – descrita como “uma mulher boa e limpa, com leite doce e saudável” – e uma equipe de anões para servirem de companheiros do jovem czarevich. Aos dois anos sua comitiva foi expandida com catorze damas de companhia. Seus pais e Matveiev lhe enchiam de presentes, que incluíam um cavalo de madeira com sela de couro e rédeas enfeitadas com esmeraldas, e um livro com imagens criadas por pintores renomados.

Entretanto, seus favoritos eram os brinquedos voltados ao mundo militar, como por exemplo soldados, fortalezas, barcos e armas em miniatura. Pedro era um menino saudável que começou a andar com apenas sete meses de vida, com Aleixo gostando de levá-lo para excursões por seus diferentes palácios e mansões nos arredores de Moscou.

O czarevich tinha duas irmãs mais novas chamadas Natália e Teodora, com a segunda morrendo ainda criança, e também dois meio-irmãos Teodoro e Ivan, além de outras meio-irmãs, do primeiro casamento de Aleixo com Maria Miloslavskaia. A família Miloslavski tinha ascendido ao poder graças ao casamento de Maria com o czar, porém ela morreu em agosto de 1689 e consequentemente eles perderam influência para a família Naryshkin e também Matveiev, ressentindo o ministro-chefe e os filhos de Aleixo com a nova czarina junto com outras famílias boiardas cujas filhas foram preteridas em favor de Natália.

Educação

Aleixo acabou morrendo repentinamente em janeiro de 1676. Ele foi sucedido por seu filho mais velho Teodoro III, então com quinze anos de idade, que apesar de frágil e semi-inválido fora reconhecido em 1674 como o herdeiro de seu pai e ascendeu ao trono sem oposição. Os Miloslavski voltaram ao poder com a liderança de Ivan Miloslavski, tio do novo czar.

Apesar de Teodoro nunca ter nutrido má vontade com Natália ou seus meio-irmãos, ele foi incapaz de impedir que a czarina e as crianças fossem tiradas da vida pública, enquanto os Naryshkin acabaram afastados do governo e Matveiev foi preso. Natália temia pela vida dos filhos, mas eles permaneceram intocados enclausurados dentro do Kremlin e aos poucos seus medos foram passando. 

A educação de Pedro começou aos seus três anos de idade enquanto seu pai ainda estava vivo, quando recebeu um pequena cartilha para aprender o alfabeto cirílico. Aos cinco anos, Teodoro, que também era seu padrinho, nomeou o eclesiástico Nikita Zotov para ser o tutor do czarevich com a aprovação de Natália. Sua tarefa era inicialmente ensinar Pedro a ler e escrever, com as primeiras aulas se centrando no estudo do alfabeto e de passagens da Bíblia.

O czarevich mostrou-se bem curioso e Zotov passou a lhe dar aulas de canto, história russa e geografia, com livros ilustrados com figuras de lugares estrangeiros e um enorme globo terrestre sendo colocados nos aposentos de Pedro para ele aproveitar e se distrair quando estivesse cansado das lições tradicionais.

Historiadores discordam sobre a qualidade do ensino dada por Zotov: enquanto Lindsey Hughes o criticou por providenciar uma educação que não ensinou Pedro como um czar deveria ser, Robert K. Massie achou que foi a melhor possível para um menino curioso como o czarevich, ainda mais porque na época ele estava atrás de seu meio-irmão Ivan na sucessão e era improvável que se tornasse soberano. Apesar de ter sido inferior à educação dada a Teodoro por exemplo, ela foi muito melhor do que a recebida por um nobre russo comum da época e permitiu que Pedro se tornasse um autodidata na idade adulta. Zotov conquistou o afeto de seu aluno, que o manteve por perto durante toda a vida. 

Começo de reinado

Ascensão

Teodoro conseguiu realizar uma reforma que aboliu o sistema de preferência de classes da Rússia, em que nobres só aceitavam cargos públicos ou ordens militares baseados em sua posição social, diminuindo a burocracia e incompetência do governo. Ele havia se casado duas vezes, primeiro com Agáfia Grushetskaia e depois com Marta Apraxina, afilhada de Matveiev que pediu a liberdade dele como condição de casamento.

Mesmo com duas esposas, ele não teve herdeiros e morreu em maio de 1682 sem também nomear um sucessor. Ivan e Pedro ficaram como os candidatos ao trono; apesar do primeiro fosse a opção mais lógica em circunstâncias normais como mais velho e filho da primeira esposa de Aleixo, ele era quase cego, coxo e com problemas de fala, enquanto Pedro era forte, inteligente e com uma altura acima da média para uma criança de dez anos. Independente da escolha, uma regência teria de ser estabelecida. 

Uma discussão começou entre os boiardos logo depois de deixarem o aposento onde o corpo de Teodoro estava. Alguns apoiavam os Miloslavski e a reivindicação de Ivan, enquanto outros achavam impraticável entregar o trono a uma criança enferma e favoreciam Pedro. Chegou-se ao consenso de que a decisão ficaria com a população moscovita que estava do lado de fora do palácio. O patriarca Joaquim foi para a sacada e indagou a multidão:

“O czar Teodoro Alexeievich, de abençoada memória, está morto. Não deixa herdeiros, apenas irmãos […] A qual dos dois czarevichs vocês entregam o poder?” Os gritos em favor de Pedro foram maiores e o patriarca aceitou a decisão. Pedro inicialmente recusou, porém foi persuadido que o melhor a ser feito era aceitar, com Natália sendo nomeada regente.

Apesar da czarina ser nominalmente a regente, esperava-se que o governo fosse na verdade comandado por Matveiev. Ele era um homem que não pertencia à classe dos boiardos e tinha conseguido alcançar a posição de ministro-chefe durante o reinado de Aleixo por mérito, não por preferência social como antigamente. Além disso, Matveiev interessava-se em assuntos eruditos e pela cultura ocidental, tendo inclusive casado-se com uma escocesa chamada Mary Hamilton.

Sua forma de vida e opiniões políticas e sociais eram um contraste com a tradicionalista sociedade russa da época, gerando suspeitas entre alguns boiardos. Matveiev estava exilado na Sibéria quando Pedro tornou-se czar, voltando lentamente para Moscou e sendo bem recebido pelo caminho e até chegar na capital em 21 de maio. Pelos três dias seguintes ele recebeu em sua casa as visitas de comerciantes, amigos estrangeiros e boiardos lhe desejando felicidades e oferecendo seu apoio. 

Revolta dos Streltsi

Além da família Miloslavski, outros dois elementos ficaram insatisfeitos com a ascensão de Pedro e proeminência de Matveiev: a czarevna Sofia Alexeievna da Rússia e os Streltsi. Sofia era uma das filhas de Aleixo e Maria Miloslavskaia, sendo uma mulher inteligente e ambiciosa que surpreendentemente tinha conseguido certa proeminência política durante o reinado de Teodoro e temia perder sua influência sob Pedro com os Naryshkin no poder, defendendo os interesses de Ivan.

Já os Streltsi eram um exército profissional criado por Ivan IV no século XVI para defender o governo, formado por “russos que viviam à moda antiga […] detestavam inovações e se opunham a reformas. […] Ignoravam a política, mas, quando acreditavam que o país estava se desviando dos caminhos tradicionais, convenciam-se facilmente de que sua interferência nos assuntos de Estado era necessária”. Eles acreditavam que os Naryshkin tinham matado Teodoro e forçado o afastamento de Ivan, algo que permitiria a chegada de estrangeiros no poder e o fim dos valores antigos, além da punição deles próprios. 

Ivan Miloslavski, Sofia e outros começaram a provocar os Streltsi para criar instabilidade. A revolta estourou em 25 de maio quando dois apoiadores da czarevna espalharam a notícia falsa de que Ivan tinha sido morto pelos Naryshkin, explodindo a fúria dos Streltsi que partiram para o Kremlin com a intenção de matar a família da czarina. O governo foi pego de surpresa e não teve tempo de reação antes da força revoltosa chegar na frente do Palácio das Facetas.

Natália apareceu pouco depois no alto das escadas segurando as mãos de Ivan e Pedro para acalmar a agitação; ela tremia assustada, porém o jovem czar permaneceu calmo e não demonstrou medo. Logo em seguida apareceram Matveiev e o patriarca Joaquim, que conversaram com a multidão calma e compreensivamente dizendo que eles tinham sido enganados e não havia motivo de preocupações. Os ânimos pareceram esfriar e os dois homens voltaram para dentro, porém o príncipe Miguel Dolguruki, filho do comandante dos Streltsi, tinha ficado furioso com o incidente e repreendeu asperamente os homens do alto da escada. Isso inflamou o exército novamente e eles partiram escada acima para atacar.

Os Streltsi primeiro pegaram Dolguruki, que foi esquartejado ali mesmo. Em seguida eles entraram no palácio e pegaram Matveiev, arrastando-o para fora na frente de Pedro e Ivan até ser morto pela turba mesmo com as tentativas de Natália de impedir a violência. Pelo resto do dia e nos dois dias seguintes, o exército tomou o palácio e matou boiardos e membros da família da czarina, incluindo seu irmão Afanásio, porém não foram capazes de encontrar seu objetivo principal: Ivan Naryshkin, irmão de Natália que havia falado mal dos Miloslavski, era alvo de rumores de que teria maltratado Sofia e envenenado Teodoro, e que ao longo da confusão tinha conseguido se esconder.

Durante todo esse tempo, Pedro permaneceu intocado isolado em um quarto. Ao final do terceiro dia, os Streltsi exigiram a entrega de Ivan Naryshkin ou mais boiardos morreriam, com Natália sendo forçada a ceder e entregar o irmão, que foi torturado e amputado até finalmente ser morto. 

Co-monarcas

Os Streltsi receberam anistia por sua ações, foram pagos os salários atrasados e ganharam um memorial para comemorar sua revolta bem sucedida. Porém, mesmo com muitos Naryshkin mortos ou anulados politicamente, eles poderiam voltar ao poder quando Pedro ficasse mais velho, suplantando os Miloslavski novamente. Os Streltsi, sob as maquinações de Sofia e outros membros da sua família, enviaram uma exigência ao governo em 2 de junho para que Ivan fosse feito czar ao lado de Pedro com precedência por ser o mais velho, com o patriarca, arcebispos e boiardos não tendo alternativas senão aceitar.

O próprio Ivan não desejava papel na política, mas foi forçado a acatar a decisão. Alguns dias depois os Streltsi vieram com uma última demanda, de que Sofia fosse nomeada regente no lugar de Natália devido a juventude e inexperiência dos dois meninos. O governo novamente estava sem alternativas e aceitou em 8 de junho. 

Sofia rapidamente se movimentou para consolidar a nova estrutura política e a dupla coroação de Pedro e Ivan foi organizada de maneira apressada, ocorrendo no dia 25 de junho na Catedral da Assunção. Dois tronos idênticos foram criados, com os dois meninos sendo coroados pelo patriarca com a Coroa de Monômaco; primeiro Ivan e depois Pedro. Depois a coroa voltou para Ivan enquanto Pedro ficou usando uma réplica. Ao final da cerimônia eles foram para a Catedral do Arcanjo Miguel prestar homenagem nos túmulos dos czares do passado, terminando o dia na Catedral da Anunciação para um grande banquete de celebração. 

Toda a experiência de sua ascensão e a Revolta dos Streltsi marcaram Pedro profundamente por toda a vida. Ele odiou ver familiares, estadistas e boiardos sendo massacrados, além dele próprio o czar e sua família estando a mercê de soldados revoltosos. Pedro pegou uma repulsa contra o Kremlin e seus aposentos pequenos e mal iluminados, e também contra Moscou e seu grande conservadorismo. O czar não gostava da pompa e cerimônia da capital, com todos esses sentimentos tempos depois fazendo com que ele passasse anos sem entrar na cidade. Pedro assim deixou Moscou e foi crescer no interior. 

Regência

Crescimento

Os Naryshkin foram exilados politicamente e isso permitiu que Pedro ficasse longe de várias funções, exceto algumas ocasiões cerimoniais. Ele passou a morar junto com sua mãe em Preobrajenskoye, nas margens do rio Yauza e perto de florestas e campos, tendo muito tempo livre para aproveitar seu passatempo favorito: brincar de guerra. Ele costumava encomendar uniformes, canhões e pólvora, pistolas e carabinas dos arsenais do governo para satisfazer seus desejos por diversão.

Enquanto crescia suas brincadeiras bélicas tornaram-se maiores; aos catorze anos ele formou um regimento militar próprio sediado em Preobrajenskoye formado por seus amigos filhos de boiardos e funcionários do governo ociosos. Posteriormente o regimento foi expandido para incluir também a vila próxima de Semyonovskoe e passou a permitir candidaturas de jovens de outras famílias nobres e classes sociais, com os exercícios militares ficando maiores e mais sérios, necessitando de consultores profissionais. Essa força eventualmente tornou-se o primeiro regimento da Guarda Imperial Russa e durou até o fim da monarquia em 1917. 

Além das atividades militares, nessa época Pedro também se interessou por navegação. Certa vez em 1688, enquanto vagava por uma das propriedades reais junto com Franz Timmerman, um imigrante holandês, o czar encontrou um antigo barco de maneira supostamente inglês guardado em um armazém. A embarcação chamou sua atenção porque era diferente daquelas usadas pelos russos na época, com Timmerman contratando o também holandês Karsten Brandt para repará-lo a fim de Pedro poder navegar com ela.

Ele passou a navegar quase todos os dias, primeiros nos rios e depois no lago Plescheievo, aprendendo a usar as velas, o vento e até mesmo o sextante. Pedro depois ordenou que mais barcos fossem construídos e assim Brandt, Timmerman e outros holandeses criaram para o czar uma pequena frota de barcos nas margens do Plescheievo. Estes homens acabaram tornando-se amigos próximos dele, com o czar vendo-os como grandes fontes de conhecimento e um meio de se aproximar do ocidente.

Nesse período, Pedro também aprendeu a mexer em ferramentas como machados, martelos e cinzéis. Além disso, aprendeu a ser escultor, a operar um torno mecânico e tornou-se um bom artesão de madeira. Entretanto, toda essa liberdade fez com que sua educação formal fosse encerrada; seus tutores foram dispensados enquanto o czar centrava-se em atividades práticas em vez de teóricas. Consequentemente, sua caligrafia e ortografia permaneceram terríveis, ele nunca aprendeu idiomas estrangeiros com exceção de noções básicas de holandês e alemão, e nunca se interessou por teologia e filosofia. Apesar de suas experiências práticas terem lhe sido muito úteis posteriormente em sua vida, o próprio Pedro anos depois lamentou a falta de profundidade e refinamento de sua educação. 

Primeiro casamento

Apesar de Pedro adorar seus passatempos militares e náuticos, sua mãe estava insatisfeita com as atitudes do filho. Mesmo tendo crescido no ambiente mais ocidentalizado da casa de Matveiev, Natália ficou irritada pelo interesse do czar em assuntos e pessoas estrangeiras. Os holandeses tratavam Pedro como um aprendiz, lhe apresentaram ao álcool e cachimbo, e também a mulheres estrangeiras que tinham um comportamento muito diferentes das reclusas russas; a czarina achava tudo isso inaceitável.

Além disso, o filho passava bom tempo tempo perto de canhões e velejando, colocando em risco sua vida e as perspectivas de gerar um herdeiro para continuar a dinastia Romanov. Quando Pedro chegou aos dezesseis anos em 1688, Natália achou que hora dele se casar com uma garota russa que poderia distraí-lo para longe dos militares e estrangeiros. 

Ele aceitou a vontade da mãe mesmo não se interessando pelo assunto. A czarina selecionou as mulheres que considerava mais adequadas e as apresentou ao filho, que escolheu Eudóxia Lopukhina e eles se casaram em 6 de fevereiro de 1689. Ela tinha três anos a mais que ele e era oriunda de uma família antiga, respeitada e conservadora, sendo uma mulher tímida, de grande devoção religiosa e adversa àquilo que era estrangeiro. De seu casamento, eles tiveram dois filhos: Aleixo e Alexandre. O segundo morreu sete meses depois do nascimento e Pedro estava tão desinteressado que não compareceu ao funeral. 

Pedro e Eudóxia eram completamente incompatíveis como casal. Ele estava na época completamente interessado em suas descobertas e atividades práticas, enquanto ela era incapaz de compreender o nível de atividade do marido e seu interesse por estrangeiros. Eudóxia tinha dificuldades em conversar com Pedro, enquanto este achava a parceira entediante.

Ele voltou para Plescheievo assim que pode, escrevendo cartas para mãe mas nenhuma para a esposa. Natália continuou irritada com Pedro, porém aos poucos passou a enxergar as limitações de Eudóxia e concordar com a avaliação negativa que o filho tinha feito. Por sua vez, Eudóxia tentava chamar a atenção do czar da melhor maneira que podia, sem sucesso. Seu desgosto por estrangeiros aumentou, culpando-os por terem lhe tirado o marido. 

Governo de Sofia

Assim que assumiu o governo, Sofia colocou seus apoiadores em posições importantes, principalmente seu favorito o príncipe Vassili Golitsyn, que foi nomeado chefe das relações exteriores e depois Guardião do Grande Selo. Durante os primeiros anos de regência, a czarevna cumpria suas funções particularmente enquanto mantinha Pedro e Ivan como figuras cerimoniais, conseguindo manter a ordem interna e colocar oficiais estrangeiros no comando do exército.

Enquanto isso o príncipe aproveitou os frequentes incêndios em Moscou para reconstruir as casas de madeira com pedra, porém foi incapaz de alcançar seu sonho de melhorar a conservadora sociedade russa. Externamente, Sofia procurou aceitar as perdas territoriais que o país tinham sofrido em conflitos passados e assim para este fim enviou embaixadores para Estocolmo, Varsóvia, Copenhague e Viena com o objetivo de reforçar acordos de paz e estabelecer as novas fronteiras da Rússia. 

Entretanto, o principal ponto de complicação era com a Polônia e a situação de Kiev. Esta era uma cidade ortodoxa que tinha sido entregue aos russos em 1667 durante o reinado de Aleixo, porém sob os termos do Tratado de Andrusovo ela deveria ser devolvida aos poloneses depois de dois anos. Isso nunca ocorreu e a Polônia recusava-se a abrir mão de sua reivindicação, enquanto a Rússia evitava quaisquer discussões a respeito e postergava a entrega.

As coisas mudaram durante a regência de Sofia, quando o Império Otomano conseguiu uma série de vitórias militares contra a Polônia e o Sacro Império Romano-Germânico. Os poloneses e austríacos passaram a desejar ajuda russa, com uma enorme comitiva sendo enviada a Moscou procurando uma aliança. Sofia aproveitou-se da situação e aceitou prestar ajuda sob a condição de que Kiev fosse cedida definitivamente para a Rússia, algo que o rei João III Sobieski da Polônia aceitou relutantemente.

Os russos e otomanos nunca tinham antes entrado em conflito. Uma força foi enviada em maio de 1687 para a Crimeia combater os tártaros, vassalos do Império Otomano, com Golitsyn sendo forçado a assumir o comando da expedição. Ele marchou para o sul e atravessou o rio Dniepre, encontrando campos queimados e nenhum alimento para as tropas, até finalmente avistar os tártaros na cidade de Perekop. Golitsyn decidiu recuar por causa da falta de suprimentos, porém enviou cartas a Moscou dizendo que a campanha tinha sido um sucesso e foi recebido como herói por Sofia ao retornar.

Porém, a verdade logo chegou na Polônia e na Áustria, que forçaram a Rússia a cumprir com sua parte do acordo. A czarevna novamente enviou o príncipe para uma nova expedição em março de 1689, que desta vez enfrentou os tártaros e conseguiu repelir alguns avanços, porém mais uma vez se viu sem suprimentos e tentou em vão chegar a um acordo de paz. Como antes, Golitsyn enviou relatos de vitórias e outra vez foi recebido como herói, porém agora a insatisfação e desaprovação geral com Sofia eram muito maiores, especialmente vindas de Pedro. 

Tomada de poder

O descontentamento com Sofia e Golitysn cresceu com o anúncio da segunda expedição militar, com os opositores da regente se reunindo ao redor de Pedro. O czar desaprovou as campanhas do príncipe e recusou aceitar as supostas vitórias, expressando publicamente sua repulsa ao favorito. Sofia ficou chocada pelas ações do meio-irmão e passou a sentir-se insegura, tentando fortalecer sua posição avaliando com os Streltsi a possibilidade de ser coroada, criando e espalhando pela Europa um retrato seu usando o cetro, orbe e a coroa de Monômaco, além de contendo versos de um poema laudatório de suas realizações, e se intitulando autocrata da mesma forma que os czares.

Essas ações alarmaram os apoiadores de Pedro, e este começou a desafiar pessoalmente a meia-irmã ao destratá-la em cerimônias públicas. A tensão entre os dois lados subiu, com Sofia cada vez mais movimentando-se por Moscou cercada de guardas e bajulando os Streltsi em troca de apoio. 

A crise começou em 27 de agosto de 1689 quando uma carta anônima e falsa chegou na capital dizendo que o exército de brincadeira de Pedro em Preobrajenskoye atacaria Moscou naquela noite para matar Ivan e Sofia. Como precaução, os portões do Kremlin foram fechados e vários Streltsi foram convocados para defender o palácio. Naquela noite um dos criados do czar foi entregar um despacho de rotina no Kremlin, porém sua aparição foi interpretada erroneamente pelos Streltsi como o prelúdio do ataque e ele foi espancado.

Apoiadores de Pedro dentro do exército souberam do ocorrido e acharam que era o começo de um ataque por parte de Sofia, alertando Preobrajenskoye. Pedro foi acordado no meio da madrugada e partiu para refugiar-se no Mosteiro da Trindade-São Sérgio, uma grande fortaleza e o lugar mais sagrado da Rússia naquela época. 

Da segurança do mosteiro, Pedro aproveitou sua posição como czar legítimo e enviou cartas aos comandantes Streltsi convocando-os até São Sérgio, porém Sofia proibiu que qualquer um deixasse Moscou sob a pena de morte. A regente enviou emissários para tentar uma reconciliação, porém sem sucesso. Dias depois o czar enviou novas cartas pedindo a presença dos comandantes, desta vez com ameaças de morte, com as deserções do lado da czarevna aumentando. Sofia foi pessoalmente para o mosteiro em 20 de setembro falar com o meio-irmão, porém sua entrada foi barrada.

Logo depois de sua volta para a capital, novas cartas de Pedro chegaram denunciando uma conspiração contra sua vida. Aqueles ainda indecisos abandonaram a regente e foram para o lado do czar, quem apesar de tudo tinham jurado defender e obedecer, com as últimas tropas leais a Sofia lhe abandonando em 22 de setembro. Sem apoio político e militar, ela aceitou a derrota e abriu mão da regência. Em seguida vários de seus apoiadores foram executados, Golitysn acabou exilado para o Ártico enquanto a própria Sofia foi confinada ao Convento de Novodevichi pelo restante da vida. 

Grande Guerra do Norte

Modernização da Rússia

Em 1697, organiza uma expedição diplomática à Europa Ocidental, a que dá o nome de Grande Embaixada. Entre os objectivos que traça para essa embaixada, figuram a busca de conhecimentos técnicos, militares e náuticos, bem como tentar obter o apoio das restantes nações europeias para fazer frente ao Império Otomano.

Oficialmente esta expedição era liderada por Franz Lefort, mas Pedro integrava incógnito a missão, sob o nome de Pedro Mikhailov. Uma parte significativa dessa expedição foi passada nos Países Baixos onde Pedro estudou as diversas vertentes das ciências náuticas, alimentando o seu sonho de tornar a Rússia numa potência marítima. Na língua russa, grande parte do vocabulário náutico foi assimilado da língua neerlandesa. Essa sua experiência durou apenas 18 meses, tendo regressado à Rússia no Outono de 1698 de forma inesperada ao receber notícia de uma rebelião dos streltsy em Moscovo. Quando regressou, trazia com ele várias centenas de mestres, técnicos, médicos e homens letrados que recrutou no seu périplo pela Europa. 

Não tendo o seu objectivo de unir uma coligação contra os Turcos sido atingido, a missão foi contudo um sucesso do ponto de vista do conhecimento. Consigo traz cartas topográficas, livros, invenções de Isaac Newton, e uma visão mais modernista que se reflecte inclusivamente na nova forma de vestir que introduz na sua corte. As tradicionais barbas longas passaram a ser objecto de imposto – todos os nobres e homens de comércio que ostentassem semelhantes barbas teriam agora de pagar 100 rublos; todos os outros teriam de pagar 1 “kopeik”. 

Também os tradicionais trajes de influência oriental foram alvo de mudança. À entrada das cidades, eram afixados trajes de corte francês que eram agora o traje exigido aos nobres e homens de posse. A quem quisesse entrar na cidade sem tal traje, os soldados mandavam ajoelhar e cortavam a parte do traje que ficasse abaixo do joelho; como alternativa havia o pagamento de uma taxa. Apesar dos óbvios protestos populares dos cidadãos mais tradicionais, os mais jovens adaptaram-se facilmente aos novos costumes. 

Pedro manda traduzir para russo diversas obras em francês, neerlandês, alemão e inglês. Em abril de 1702, Pedro declarou que todas as decisões referentes ao matrimônio deveriam ser voluntárias. O czar também proibiu o assassinato de recém-nascidos deformados. Os duelos foram banidos. Para encorajar estrangeiros a servirem na Rússia, Pedro declarou que todas as leis anteriores restringindo os direitos de cidadãos estrangeiros a passarem pelas fronteiras como quisessem agora deixavam de existir. E ainda, todos os estrangeiros receberam promessa de liberdade religiosa total enquanto estivessem na Rússia. 

Em 1717 desloca-se novamente à Europa ocidental, onde visita entre outros locais, as cidades belgas de Liège, Nieuwpoort, Spa e Namur. O seu fascínio pelo conhecimento leva-o a enviar diversas expedições de reconhecimento à Sibéria. Daniel Gottlieb Messerschmidt recolhe entre 1718 e 1727 dados sobre a geografia, população bem como sobre a fauna e flora das regiões ocidental e central da Sibéria. 

No extremo oriental a península de Kamchatka é explorada por Ivan Jevrejnov e Fiodor Lujin e o extremo norte é explorada pelo dinamarquês Vitus Bering (nome que fica associado ao estreito de Bering). Durante o seu reinado importantes medidas são tomadas tais como a adopção do calendário juliano, a simplificação do cirílico e a reforma do sistema administrativo. Em 1703 manda edificar São Petersburgo, a nova capital da Rússia, um projecto urbanístico de acordo com os costumes mais ocidentais. Esta seria uma porta de ligação da Rússia com a Europa ocidental também do ponto de vista cultural. 

Ainda nesse ano manda construir “Peterhof”, uma cidade periférica de São Petersburgo conhecida pelo seu magnânime complexo de palácios. Esse complexo só será concluído em 1725. 

Política militar

Desde cedo que Pedro se interessou pela vida militar. Quando ainda era criança e durante a sua permanência fora da corte, ele ter-se-ia entretido com casernas militares para crianças e exercícios militares a brincar, com crianças vestidas com uniformes. Ele acreditava na meritocracia, e preferia começar por um posto subalterno e alcançar postos de comando após comprovado mérito. 

Na sua expedição pela Europa Ocidental, para além dos conhecimentos que lhe permitiriam construir uma armada, Pedro assistiu a exercícios de artilharia na Prússia. Os seus grande conflitos militares foram principalmente a Grande Guerra do Norte com Carlos XII da Suécia e as batalhas contra os Otomanos. Nota-se, que apesar de alguns fracassos militares contra o Império Turco-Otomano, todo o exército fora reformado no Império, se adequando mais aos grandes exércitos europeus.

A esquadra marítima, pela primeira vez no Império, ganhou importância e a diplomacia estabelecida com o resto da Europa colocou o Império Russo no cenário político da época o marcando como potência. Apesar de ter que restituir Azov aos turcos em 1711; teve grandes conquistas territoriais, adquirindo a Livônia, a Estônia e a Finlândia pelo tratado de Nystad em 1721. 

Política fiscal

Pedro criou, em 1708, um corpo de oficiais cuja tarefa consistia em encontrar novas formas de tributar os cidadãos. Chamados pelo nome estrangeiro de fiscals, eles recebiam ordens para “sentar-se e gerar receita para o Senhor Soberano”. 

Novos impostos foram criados em toda uma gama de atividades humanas. Havia o imposto do nascimento, do casamento, do funeral e do registro de testamentos. Havia impostos sobre o trigo e o sebo. Cavalos custavam impostos, assim como couro de cavalo e rédeas. Havia o imposto do chapéu e o imposto para usar botas de couro.

O imposto da barba foi sistematizado e aplicado, e um imposto dos bigodes foi acrescentado. Coletava-se dez por cento de todas as tarifas de locomoção. As casas em Moscou pagavam impostos, assim como as colmeias em toda a Rússia. Havia o imposto do banho, o imposto da cama, o imposto da pousada, o imposto das chaminés de cozinha e da lenha que nelas ardia. Nozes, melões, pepinos passaram a ser tributados. Havia até mesmo um imposto sobre água potável. 

O dinheiro também vinha de um número cada vez maior de monopólios estatais. Esse arranjo, por meio do qual o Estado controlava a produção e a venda de uma Commodity, definindo o preço que desejasse, era aplicado a álcool, resina, sal, piche, peixe, óleo, giz, potássio, ruibarbo, dados, peças de xadrez, baralhos, pele de lobos, arminhos e zibelinas siberianos.

Veja mais:

Para apertar o controle administrativo e aumentar a eficiência da coleta de impostos da enorme massa do império, em 1708 o czar dividiu a Rússia em oito gigantescos governos estaduais, entregando-os a seus amigos mais próximos. Cada governador tornou-se responsável por todas as questões civis e militares da região, e especialmente pela produção de receita.

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Platão https://canalfezhistoria.com/platao/ https://canalfezhistoria.com/platao/#respond Wed, 12 Mar 2025 10:24:04 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5983 Platão (em grego antigo: Πλάτων, transl. Plátōn, “amplo”, Atenas, 428/427 – Atenas, 348/347 a.C.) foi um filósofo e matemático do período clássico da Grécia Antiga, autor de diversos diálogos filosóficos e fundador da Academia em Atenas, a primeira instituição de educação superior do mundo ocidental. Ele é amplamente considerado a figura central na história do grego antigo e da filosofia ocidental, juntamente com seu mentor, Sócrates, e seu pupilo, Aristóteles.

Platão ajudou a construir os alicerces da filosofia natural, da ciência e da filosofia ocidental, e também tem sido frequentemente citado como um dos fundadores da religião ocidental e espiritualidade. O assim chamado neoplatonismo de filósofos como Plotino e Porfírio influenciou Santo Agostinho e, portanto, o cristianismo, bem como a filosofia árabe e judaica. Alfred North Whitehead observou certa vez: “a caracterização geral mais segura da tradição filosófica europeia é de que ela consiste em uma série de notas de rodapé sobre Platão”. 

Platão era um racionalista, realista, idealista e dualista e a ele tem sido associadas muitas das ideias que inspiraram essas filosofias mais tarde. Foi o inovador do diálogo escrito e das formas dialéticas da filosofia. Platão também parece ter sido o fundador da filosofia política ocidental. Sua mais famosa contribuição leva seu nome, platonismo (também ambiguamente chamado de realismo platônico ou idealismo platônico), a doutrina das Formas conhecidas pela razão pura para fornecer uma solução realista para o problema dos universais. Ele também é o epônimo do amor platônico e dos sólidos platônicos. Alguns já alegaram que seu nome verdadeiro tenha sido Arístocles.

Acredita-se que suas influências filosóficas mais decisivas tenham sido da mesma linha de Sócrates, do pré-socrático Pitágoras, Heráclito e Parmênides, embora poucas das obras de seus antecessores permaneçam íntegras e muito do que sabemos sobre essas figuras hoje deriva do próprio Platão. O filósofo lituano Algis Uždavinys chega a propôr e evidenciar de forma acadêmica que sua filosofia deriva de uma continuidade de um pensamento filosófico que pode ser visto desde as inscrições do Egito Antigo, relatada por diversas fontes gregas antigas.

Pesquisadores da chamada Escola Tübingen e de Milão alegam que seu corpo textual contém fragmentos de doutrinas não escritas que eram lecionadas oralmente na sua Academia. Ao contrário do trabalho de quase todos os seus contemporâneos, acredita-se que o corpo inteiro de trabalho de Platão tenha sobrevivido intacto por mais de 2.400 anos. Embora sua popularidade tenha oscilado ao longo dos anos, os trabalhos de Platão nunca ficaram sem leitores desde a época em que foram escritos. 

Vida

Origem

A mãe de Platão era Perictíone, cuja família gabava-se de um relacionamento com o famoso legislador e poeta lírico ateniense Sólon. Perictíone era irmã de Cármides e sobrinha de Crítias, ambas figuras proeminentes na época da Tirania dos Trinta, a breve oligarquia que se seguiu sobre o colapso de Atenas no final da Guerra do Peloponeso (404–403 a.C). Além do próprio Platão, Aristão e Perictíone tiveram outros três filhos: Adimanto, Glaucão e uma filha, Potone, a mãe de Espeusipo (então o sobrinho e sucessor de Platão como chefe de sua Academia). De acordo com A República, Adimanto e Glaucão eram mais velhos que Platão. No entanto, na Memorabilia, Xenofonte apresenta Glaucão como sendo mais novo que Platão. 

Aristão parece ter morrido na infância de Platão, embora a data exata de sua morte seja desconhecida. Perictíone então casou-se com Perilampes, irmão de sua mãe que tinha servido muitas vezes como embaixador para a corte persa e era um amigo de Péricles, líder da facção democrática em Atenas. Em contraste com a sua reticência sobre si mesmo, Platão muitas vezes introduziu seus ilustres parentes em seus diálogos, ou a eles referenciou com alguma precisão: Cármides tem um diálogo com o seu nome; Crítias fala tanto em Cármides quanto em Protágoras ; e Adimanto e Glaucão têm trechos importantes em A República.

Estas e outras referências sugerem uma quantidade considerável de orgulho da família e nos permitem reconstruir a árvore genealógica de Platão. De acordo com Burnet, “a cena de abertura de Cármides é uma glorificação de toda [família] ligação… os diálogos de Platão não são apenas um memorial para Sócrates, mas também sobre os dias mais felizes de sua própria família.”. 

Infância e juventude

Platão nasceu em Atenas, provavelmente em 427-428 a.C. (no sétimo dia do mês Thargêliốn), cerca de um ano após a morte do estadista Péricles, e morreu em 348 a.C. (no primeiro ano da 108a Olimpíada). A data tradicional do nascimento de Platão (428/427) é baseada em uma interpretação dúbia de Diógenes Laércio, que afirma: “Quando Sócrates foi embora, Platão se juntou a Crátilo e Hermógenes, que filosofou à maneira de Parmênides. Então, aos vinte e oito anos, segundo Hermodoro, Platão foi para Euclides, em Megara.”

Em sua Sétima Carta, Platão observa que a sua idade coincidiu com a tomada do poder pelos Trinta Tiranos, comentando: “Mas um jovem com idade inferior a vinte seria motivo de chacota se tentasse entrar na arena política”. Assim, a data de nascimento de Platão seria 424/423. De acordo com Diógenes Laércio, o filósofo foi nomeado Arístocles, como seu avô, mas seu treinador de luta, Aristão de Argos, o apelidou de Platon, que significa “grande”, por conta de sua figura robusta. De acordo com as fontes mencionadas por Diógenes (todas datam do período alexandrino), Platão derivou seu nome a partir da “amplitude” (platytês) de sua eloquência, ou então, porque possuía a fronte (platýs) larga.

Estudiosos recentes têm argumentado que a lenda sobre seu nome ser Aristocles originou-se no período helenístico. Platão era um nome comum, dos quais 31 casos são conhecidos apenas em Atenas. A juventude de Platão transcorreu em meio a agitações políticas e a desordens devido à Guerra do Peloponeso, à instabilidade política reinante na cidade de Atenas que foi tomada pela Oligarquia dos Quatrocentos e assim submeteu-se ao governo dos Trinta Tiranos. 

Apuleio nos informa que Espeusipo elogiou a rapidez mental e a modéstia de Platão como os “primeiros frutos de sua juventude infundidos com muito trabalho e amor ao estudo”. Platão deve ter sido instruído em gramática, música e ginástica pelos professores mais ilustres do seu tempo. Dicearco foi mais longe a ponto de dizer que Platão lutou nos jogos de Jogos Ístmicos. Platão também tinha frequentado cursos de filosofia, antes de conhecer Sócrates, mas primeiro ele se familiarizou com Crátilo (um discípulo de Heráclito, um proeminente filósofo grego pré-socrático) e as doutrinas de Heráclito. 

Afastamento da política e primeira viagem

Após o término da guerra em Atenas, em cerca de 404 a.C, auxiliado pelo reinado espartano vitorioso, o terror da Tirania dos Trinta começou, e entre seu membros, incluíam-se parentes de Platão: o primo e o irmão de sua mãe, Crítias e Cármides, que participaram do governo. Platão foi convidado a participar da vida política, mas recusou porque considerou o então regime criminoso.

Mas a situação política após a restauração da democracia ateniense em 403 também o desagradou, sendo um ponto de viragem na vida de Platão a execução de Sócrates, em 399 a.C, que o abalou profundamente, levando-o a avaliar a ação do Estado contra seu professor, como uma expressão de depravação moral e evidência de um defeito fundamental no sistema político. Ele viu em Atenas a possibilidade e a necessidade de uma maior participação filosófica na vida política e tornou-se um crítico agudo. Essas experiências levaram-no a aprovar a demanda por um estado governado por filósofos. 

Depois de 399 a.C, Platão foi para Megara com alguns outros socráticos, como hóspedes de Euclides (provavelmente para evitar possíveis perseguições que lhe poderiam sobrevir pelo fato de ter feito parte do círculo socrático). Diógenes Laércio conta que ele “foi a Cirene, juntar-se a Teodoro, o matemático, depois à Itália, com os pitagóricos Filolau e Eurito; e daí para o Egito, avistar-se com os profetas; ele tinha decidido encontrar-se também com os magos, mas a guerras da Ásia fizeram-no renunciar a isso” Apesar desse relato de Diógenes Laércio, é posto em dúvida se Platão foi mesmo ao Egito, pois há evidências de que a estadia foi inventada no Egito, para aproximar Platão à tradição de sabedoria egípcia. 

Primeira viagem à Sicília

Por volta de 388 a.C, Platão empreendeu sua primeira viagem a Sicília. Em Taranto, Platão conheceu os pitagóricos, e o mais proeminente e politicamente bem sucedido entre eles, o estadista Arquitas, que o hospedou e protegeu.

A mais famosa fonte da história do resgate de Platão por Arquitas está na Sétima Carta, onde Platão descreve seu envolvimento nos incidentes de seu amigo Dion de Siracusa e Dionísio I, o tirano de Siracusa, Platão esperava influenciar o tirano sobre o ideal do rei-filósofo (exposto em Górgias, anterior à sua viagem), mas logo entrou em conflito com o tirano e sua corte; mas mesmo assim cultivou grande amizade com Díon, parente do tirano, sobre quem pensou que pudesse ser um discípulo capaz de se tornar um rei-filósofo.

Dionísio I irritou-se tanto com Platão a ponto de vendê-lo como escravo a um embaixador espartano de Egina, felizmente tendo sido resgatado por Anicérides de Cirene, que estava em Egina, ou ainda, o navio em que retornava foi capturado por espartanos o que o fez ser mantido como um escravo. 

Este relatos sobre a primeira estadia em Siracusa são, em grande parte, controversos: os historiadores tradicionais consideram assim os detalhes do encontro entre Platão e o tirano, e a posterior ruptura com ceticismo. Em todo caso, Platão teve contato com Dionísio e o resultado foi desfavorável para o filósofo já que sua sinceridade parece ter irritado o governante. 

Fundação da escola e ensino

Depois de sua primeira viagem à Sicília, por volta de 388 a.C, aos 40 anos, decepcionado com o luxo e os costumes da corte de Dionísio I de Siracusa e de lá expulso, Platão compra um ginásio perto de Colona, a nordeste de Atenas, nas vizinhanças de um bosque de oliveiras em homenagem ao herói Academo. Ele amplia a propriedade e constrói alojamentos para os estudantes. Os membros da Academia não eram estudantes no sentido moderno da palavra, pois aos jovens juntavam-se também anciãos; provavelmente todos deviam contribuir para o financiamento das despesas; ademais, o objetivo último da Academia era o saber pelo seu valor ético-político. 

Durante duas décadas, Platão assumiu suas funções na Academia e escreveu, nesse período, os diálogos chamados “da maturidade”: Fédon, Fedro, Banquete, Menexêno, Eutidemo, Crátilo; começou também a redação de A República. 

Segunda viagem à Sicília

Em 366/367 a.C, com a morte de Dionísio e encorajado por Dion, Platão transmite a direção da Academia a Eudóxio e retorna à Sicília. O velho Dionísio morrera em 367, logo após ter sabido que sua peça O Resgate de Heitor, tinha recebido o primeiro prêmio no Festival das Lenaias em Atenas. Seu filho, Dionísio II sucedeu-lhe no trono e Dion era seu conselheiro.

Dion teve trabalho em convencer Platão a voltar para Siracusa, insistindo com argumentos como a paixão do jovem tirano pela filosofia e educação e que a morte do velho tirano poderiam ser o “destino divino” necessário para que enfim se realizasse a felicidade de um povo livre sob boas leis. Platão, por fim, embarcou em 366 para sua segunda viagem à Sicília. 

No início a influência de Platão sobre Dionísio II teve algum progresso, mas pouco durou, pois o jovem era um tanto rude e não possuía o vigor mental para aguentar um prolongado tratamento educacional, além de ser pessoalmente desagradável. Invejoso da influência de Dion e de sua amizade com Platão, obrigou-o a se exilar; Platão então regressou a Atenas. 

Terceira viagem à Sicília

Em 361 a.C, Platão viaja novamente para Siracusa com seus alunos Espeusipo e Xenócrates em um navio enviado por Dionísio II, numa tentativa final de pôr ordem as coisas. Passou quase um ano tentando elaborar algumas medidas práticas para unir os gregos da Sicília em face do perigo cartaginês. No final, a má vontade da facção conservadora provou ser um obstáculo insuperável.

Platão conseguiu partir para Atenas em 360 a.C, não sem antes correr algum perigo de morte. Em seguida, Dion recuperou sua posição à força, mas apesar de advertências de Platão, mostrou-se um governante imprudente e acabou assassinado. Ainda assim, Platão incitou os seguidores de Dion a prosseguirem com a antiga política, mas os seus conselhos não foram ouvidos. O destino final da Sicília foi ser conquistada pelos estrangeiros, como Platão previra. 

Platão escreveu sobre a morte de seu amigo comparando-o a um navegante que antecipa corretamente uma tempestade mas subestima sua força de destruição: “que eram perversos os homens que o puseram por terra, ele sabia, mas não a extensão de sua ignorância, de sua depravação e avidez” 

Velhice e morte

Ao regressar em 360 a.C, Platão voltou a ensinar e escrever na Academia permanecendo como um autor ativo até a sua morte, em 348/347 a.C., aos oitenta anos de idade; conta-se que fora sepultado no terreno da Academia, para dentro do muro de demarcação da propriedade, ou ainda no jardim da Academia. Com sua morte, a Academia passou a ser dirigida por Espeusipo, forte simpatizante do aspecto matemático da filosofia de Platão. 

Obra

Houve um período na Idade Média em que quase todas as suas obras eram desconhecidas; mas, antes disso e depois da redescoberta de seus textos (Petrarca, no século XIV, tinha um manuscrito de Platão), Platão foi lido e tomado como ponto de referência. 

Tradição e autenticidade

Todas as obras de Platão que eram conhecidas na antiguidade foram preservadas, com exceção da palestra sobre o Bem, a partir da qual houve um pós-escrito de Aristóteles, que se encontra perdido. Há também obras que foram distribuídas sob o nome de Platão, mas possivelmente ou definitivamente não são genuínas; apesar disso, elas também pertencem ao Corpus Platonicum (o conjunto das obras tradicionalmente atribuídas a Platão), mesmo com sua falsidade sendo reconhecida ainda nos tempos antigos. Um total de 47 obras são reconhecidas por terem sido escritas por Platão ou das quais ele foi tomado como autor. 

O Corpus platonicum é constituído de diálogos (incluindo Crítias, de final inacabado), a Apologia de Sócrates, uma coleção de 13 cartas e uma coleção de definições, o Horoi. Fora do corpus, há uma coleção de dieresis, mais duas cartas, 32 epigramas e um fragmento de poema (7 hexâmetros) que, com exceção de uma parte desses poemas, não são obras de Platão.

É importante notar que na Antiguidade, vários diálogos considerados como falsamente atribuídos a Platão eram considerados genuínos, e alguns desses fazem parte do Canon de Trásilo, um filósofo e astrólogo alexandrino que serviu na corte de Tibério. Trásilo organizou os Diálogos de modo sistemático em nove grupos, chamados de Tetralogias, cujos escritos foram aceitos como sendo de Platão.

Segundo Diógenes Laércio (III, 61), encontravam-se na nona tetralogia “uma carta a Aristodemo [de fato a Aristodoro]” (X), duas a Arquitas (IX, XII), quatro a Dionísio II (I, II, III, IV), uma a Hérmias, Erastos e Coriscos (VI), uma a Leodamas (XI), uma a Dion (IV), uma a Perdicas (V) e duas aos parentes de Dion (VII, VIII)”. Trásilo criou a seguinte organização: 

Forma literária

Com a exceção das Epístolas e da Apologia, todas as outras obras não foram escritas em forma de poemas didáticos ou tratados – como eram escritos a maioria dos escritos filosóficos, – mas em forma de diálogos. A Apologia contém passagens ocasionais de diálogos, onde há um personagem principal, Sócrates, e diferentes interlocutores em debates filosóficos separados por inserções e discursos indiretos, digressões ou passagens mitológicas. Além disso, outros alunos de Sócrates como Xenofonte, Ésquines, Antístenes, Euclides de Megara e Fédon de Elis têm obras escritas na forma de diálogo socrático (Σωκρατικοὶ λόγοι Sokratikoì logoi). 

Platão foi certamente o representante máximo desse gênero literário, superior a todos os outros e, mesmo, o único representante, pois apenas em seus escritos é que se pode reconhecer a natureza autêntica do filosofar socrático, que nos outros escritores, degenerou em maneirismos; sendo assim, o diálogo, em Platão, é mais do que um gênero literário: é sua forma de fazer filosofia.

Nem todos os trabalhos no Corpus de Platão são diálogos. A Apologia parece ser o relato da defesa de Sócrates e seu julgamento, e Menêxeno é um pronunciamento para funeral. As treze cartas são ditas serem de Platão, mas a maioria são rejeitadas pelos pesquisadores modernos como sendo ilegítimas. A Sétima Carta ou Carta VII é uma das mais importantes cuja disputa permanece por dois motivos: (a) oferece detalhes biográficos de Platão e (b) coloca afirmações filosóficas sem paralelos em outros diálogos. Provavelmente a Sétima Carta é uma obra ilegítima e portanto não é uma fonte confiável para conhecer a biografia e filosofia de Platão. 

Cronologia

A questão da cronologia ainda continua a gerar opiniões conflitantes. Análises estilométricas dos diálogos demonstram que eles podem ser agrupados em três categorias definidas como obras do período Inicial, Médio e Tardio, embora exista este consenso comum, não há nenhum consenso sobre a ordem em que as obras devem figurar em seus respectivos grupos. Outro método usado para determinar a ordem cronológica dos diálogos se baseia na conexão entre os vários trabalhos.

Os estudiosos têm usado a evidência de pontos de vista filosóficos similares nos diálogos para sugerir uma ordem cronológica interna. As referências textuais dentro dos diálogos também ajudam a construir uma cronologia, ainda que existam pouquíssimos casos de um diálogo se referir a outro. Finalmente, a cronologia pode ser determinada a partir do testemunho de fontes antigas. 

Filosofia

Para Giovanni Reale, os três grandes pontos focais da filosofia de Platão são: a Teoria das ideias, dos Princípios e do Demiurgo. A obra Fédon engloba todo o quadro da metafísica platônica e enfatiza essas três teorias, mas Platão advertiu os leitores de sua obra sobre a dificuldade existente em compreendê-las. 

Política

Platão, em sua obra A República, faz uma critica a forma de governo de sua época, pois afirma que os governantes deveriam brigar para não governar, como brigam para chegar ao poder. Diz, ainda, que o verdadeiro chefe não nasce para atender os interesses de si próprio, mas sim de toda a coletividade a ele subordinada. 

Dessa forma, entende-se que a critica de Platão estava ligada ao governo que criava leis visando seus interesses, e os determinando como justo, entretanto, punindo como injusto aquele que transgredir suas regras, uma vez que o elegido para governar poderia ser o mais votado, mas não sendo, portanto, o mais preparado para aquela função.

Nesse sentido, Platão afirma que ” Efetivamente, arriscar-nos-íamos, se houvesse um Estado de homens de bem, a que houvesse competições para não governar, como agora as há para alcançar o poder, e tornar-se-ia, então evidente do verdadeiro chefe não nasceu para velar pela sua conveniência, mas pela dos seus subordinados. (Platão, A República, p. 34)”. Conclui-se que, deve se buscar uma harmonia entre o governante e o seus subordinados, em outras palavras, o ideal de Estado deveria corresponder ao ideal de homem. 

Teoria das Ideias

A Teoria das Ideias ou Teoria das Formas afirma que formas (ou ideias) abstratas não-materiais (mas substanciais e imutáveis) é que possuem o tipo mais alto e mais fundamental da realidade e não o mundo material mutável conhecido por nós através dos sentidos. Em uma analogia de Reale, as coisas que captamos com os “olhos do corpo” são formas físicas, as coisas que captamos com os “olhos da alma” são as formas não-físicas; o ver da inteligência capta formas inteligíveis que são as essências puras.

As Ideias são as essências eternas do bem, do belo etc. Para Platão, há uma conexão metafísica entre a visão do olho da alma e o objeto em razão do qual tal visão não existe. Este “mais real do que o que vemos habitualmente” é descrito em sua Alegoria da caverna. 

Epistemologia

Muitos têm interpretado que Platão afirma — e mesmo foi o primeiro a escrever — que conhecimento é crença verdadeira justificada, uma visão influente que informou o desenvolvimentos futuro da epistemologia. Esta interpretação é parcialmente baseada na uma leitura do Teeteto ,no qual Platão argumenta que o conhecimento se distingue da mera crença verdadeira porque o conhecedor deve ter uma “conta” do objeto de sua crença verdadeira (Teeteto 201C-d).

Essa mesma teoria pode novamente ser vista no Mênon, onde é sugerido que a crença verdadeira pode ser aumentada para o nível de conhecimento, se está ligada a uma conta quanto à questão do “porquê” o objeto da verdadeira crença é assim definido (Mênon 97d-98a). Muitos anos depois, Edmund Gettier demonstraria os problemas das crenças verdadeiras justificadas no contexto do conhecimento. 

Dialética

A dialética de Platão não é um método simples e linear, mas um conjunto de procedimentos, conhecimentos e comportamentos desenvolvidos sempre em relação a determinados problemas ou “conteúdos” filosóficos. O papel da dialética no pensamento de Platão é contestada, mas existem duas interpretações principais: a dialética platônica é tipo de raciocínio ou um método de intuição.

Simon Blackburn adota o primeiro, dizendo que a dialética de Platão é “o processo de extrair a verdade por meio de perguntas destinadas a abrir o que já é implicitamente conhecida, ou de expor as contradições e confusões de posição de um oponente”. Karl Popper afirma que a dialética é a arte da intuição para “visualizar os originais divinos, as formas ou ideias, de desvendar o grande mistério por trás do comum mundo das aparências do cotidiano do homem.” 

Ética e justiça

Na República, Platão define a justiça como a vontade de um cidadão de exercer sua profissão e atingir seu nível pré-determinado e não interferir em outros assuntos, Para que a justiça tenha alguma validade, ela terá que ser uma virtude e, portando, contribuidora de modo constitutivo para a boa vida de quem é justo. 

Na filosofia de Platão, é possível visualizar duas modalidades de justiça: uma, absoluta, e outra, relativa. A justiça relativa é a justiça humana que espelha-se nos princípios da alma e tenta dela se aproximar. Platão situa a justiça humana como uma virtude indispensável à vida em comunidade, é ela que propicia a convivência harmônica e cooperativa entre os seres humanos em coletividade. 

Conceitos

Anima mundi

Considerada por Platão como o princípio do cosmos e fonte de todas as almas individuais, o termo é um conceito cosmológico de uma alma compartilhada ou força regente do universo pela qual o pensamento divino pode se manisfestar em leis que afetam a matéria. O termo foi criado por Platão pela primeira vez na obra República ou ainda na obra Timeu. 

Demiurgo

O uso filosófico e o substantivo próprio derivam do diálogo Timeu, a causa do universo, de acordo com a exigência de que tudo que sofre transformação ou geração (genesis) sofre-a em virtude de uma causa. A meta perseguida pelo demiurgo platônico é o bem do universo que ele tenta construir. Este bem é recorrentemente descrito em termos de ordem, Platão descreve o demiurgo como uma figura neutra (não-dualista), indiferente ao bem ou ao mal. 

Doutrinas não escritas

Por um longo tempo, as doutrinas não escritas de Platão foram controversas. Muitos livros modernos sobre Platão parecem diminuir sua importância; no entanto, a primeira testemunha importante que menciona sua existência é Aristóteles, que em sua Física escreve: “É verdade, de fato, que o relato que ele dá lá [no Timeu] do participante é diferente do que ele diz em seus assim chamados de ensinamentos não escritos (ἄγραφα δόγματα).”

O termo “γραφα δόγματα” significa literalmente doutrinas não escritas e representa o ensinamento metafísico mais fundamental de Platão, que ele divulgou apenas oralmente, alguns dizendo que apenas aos seus companheiros mais confiáveis, e que ele pode ter mantido em segredo do público. A importância das doutrinas não escritas parece não ter sido seriamente questionada antes do século XIX. 

Uma razão para não revelá-lo a todos é parcialmente discutida em Fedro, onde Platão critica a transmissão do conhecimento por escrito como falha, favorecendo o logos falado: “quem tem conhecimento do justo, do bom e do belo … não irá, quando em sinceridade, escrevê-los a tinta, semeando-as por meio de uma pena com palavras, que não podem se defender argumentando e não podem ensinar a verdade eficazmente.”

O mesmo argumento é repetido na Sétima Carta de Platão: “todo homem sério ao lidar com assuntos realmente sérios evitam cuidadosamente a escrita.”Na mesma carta ele escreve: “Eu posso declarar com certeza sobre todos esses escritores que afirmam conhecer os assuntos que eu estudo seriamente… que não existe, nem jamais existirá, qualquer tratado meu lidando com isso.” Tal sigilo é necessário para “não expô-los a tratamento impróprio e degradante”.

É, no entanto, dito que Platão uma vez divulgou esse conhecimento ao público em sua palestra Sobre o Bem (Περὶ τἀγαθοῦ), na qual o Bem (τὸ ἀγαθόν) é identificado com o Uno (a Unidade, τὸ ἕν), o princípio ontológico fundamental. O conteúdo desta palestra foi transmitido por várias testemunhas, e satirizado em pelo menos 3 obras teatrais de sua época. Aristóxenes descreve o evento com as seguintes palavras: “Cada um deles veio esperando aprender algo sobre as coisas que geralmente são consideradas boas para os homens, como riqueza, boa saúde, força física e, ao todo, um tipo de felicidade maravilhosa.

Mas quando as demonstrações matemáticas vieram, incluindo números, figuras geométricas e astronomia, e finalmente a afirmação “O Bem é Uno” apareceu-lhes, totalmente inesperada e estranha; daí alguns menosprezaram o assunto, enquanto outros o rejeitaram.” Simplício cita Alexandre de Afrodísias, que afirma que “de acordo com Platão, os primeiros princípios de tudo, incluindo as próprias Formas são Um e Díada Indefinida (ἡ ἀόριστος δυάς), que ele chamou Grande e Pequeno (τὸ μέγα καὶ τὸ μικρόν)”, e Simplício relata da mesma forma que “também se pode aprender isso com Espeusipo e Xenócrates e com os outros que estavam presentes na palestra de Platão sobre o Bem”. 

O relato deles está em total concordância com a descrição de Aristóteles da doutrina metafísica de Platão. Na Metafísica ele escreve: “Agora, uma vez que as Formas são as causas de todo o resto, ele [Platão] supunha que seus elementos são os elementos de todas as coisas. Assim, o princípio material é o Grande e o Pequeno [i. e. a Díada] e a essência é o Um (τὸ ἕν), já que os números são derivados do Grande e do Pequeno pela participação no Um”.

“A partir deste relato, é claro que ele empregou apenas duas causas: a da essência e a causa material; pois as Formas são a causa da essência em tudo o mais, e o Um é a causa disso nas Formas. Ele também nos diz qual é o substrato material do qual as Formas são predicadas no caso de coisas sensíveis, e o Uno no das Formas – que é a dualidade (a Díade, ἡ δυάς), o Grande e o Pequeno (τὸ μέγα καὶ τὸ μικρόν). Além disso, ele atribuiu a estes dois elementos, respectivamente, a causação do bem e do mal”. 

O aspecto mais importante desta interpretação da metafísica de Platão é a continuidade entre seu ensino e a interpretação neoplatônica de Plotino ou Ficino, que tem sido considerada errônea por muitos, mas pode de fato ter sido diretamente influenciada pela transmissão oral da doutrina de Platão. Um erudito moderno que reconheceu a importância da doutrina não escrita de Platão foi Heinrich Gomperz, que a descreveu em seu discurso durante o 7º Congresso Internacional de Filosofia em 1930. Todas as fontes relacionadas ao ἄγραφα δόγματα foram coletadas por Konrad Gaiser e publicadas como Testimonia Platonica. Essas fontes foram posteriormente interpretadas por estudiosos da Escola Alemã de Interpretação Tübingen, como Hans Joachim Krämer ou Thomas A. Szlezák. 

Legado

Apesar de sua popularidade ter flutuado ao longo dos anos, as obras de Platão nunca ficaram sem leitores, desde o tempo em que foram escritas. O pensamento de Platão é muitas vezes comparado com a de seu aluno mais famoso, Aristóteles, cuja reputação, durante a Idade Média ocidental, eclipsou tão completamente a reputação de Platão que os filósofos escolásticos referiam-se a Aristóteles como “o Filósofo”. No entanto, no Império Bizantino, o estudo de Platão continuou. 

Os filósofos escolásticos medievais não tinham acesso à maioria das obras de Platão, nem o conhecimento de grego necessário para lê-los. Os escritos originais de Platão estavam essencialmente perdidos para a civilização ocidental, até que foram trazidos de Constantinopla no século de sua queda, por Gemisto Pletão. Acredita-se que Pletão passou uma cópia dos diálogos platônicos para Cosme de Médici em 1438/39 durante o Conselho de Ferrara, quando foi chamado para unificar as Igrejas grega e latina e então foi transferido para Florença onde fez uma palestra sobre a relação e as diferenças de Platão e Aristóteles; assim, Pletão teria influenciado Cosme com seu entusiasmo.

Durante a Era de Ouro Islâmica, estudiosos persas e árabes traduziram muito de Platão para o árabe e escreveram comentários e interpretações sobre Platão, Aristóteles e obras de outros filósofos Platonistas (ver Al-Farabi, Avicena, Averróis, Hunayn ibn Ishaq). Muitos desses comentários sobre Platão foram traduzidos do árabe para o latim e, como tal, influenciaram filósofos escolásticos medievais. 

Filósofos ocidentais notáveis continuaram a recorrer a obra de Platão desde aquela época. A influência de Platão tem sido especialmente forte em matemática e ciências. Ele ajudou a fazer a distinção entre a matemática pura e a matemática aplicada, ampliando o fosso entre a “aritmética”, agora chamada de teoria dos números e “logística”, agora chamada de aritmética. Ele considerou a logística como apropriada para homens de negócios, enquanto os homens de guerra “devem aprender a arte de números ou ele não vai saber como reunir suas tropas”, e a aritmética era apropriada para os filósofos “porque precisa emergir do mar de mudanças e lançar mão do verdadeiro ser”.

Segundo Stephen Körner, o platonismo é “tendência natural do matemático”, o que pode ser confirmado por nomes destacados de matemáticos que se reconhecem platônicos como Gottlob Frege, Bertrand Russell, A. N. Whitehead, Heinrich Scholz, Kurt Gödel, Alonzo Church, Georg Cantor etc. Partindo de Galileu, existe uma extensa tradição do platonismo fisicalista que vai até Werner Heisenberg, Roger Penrose, Frank Tipler, Stephen Hawking e muitos outros. 

Gödel, responsável por alguns dos mais importantes resultados da lógica matemática do século XX, por exemplo, foi um platonista da velha escola que, como Platão, acreditava na existência independente de formas matemáticas que ele identificou aos conceitos matemáticos, como os de conjuntos, número real etc. 

Leo Strauss é considerado por alguns como o principal pensador envolvido na recuperação do pensamento platônico em sua forma mais política e menos metafísica. Profundamente influenciado por Nietzsche e Heidegger, Strauss, no entanto, rejeita a condenação de Platão e olha para seus diálogos como uma solução para o que todos os três pensadores reconhecem como “a crise do Ocidente”. Ele também era contra a disseminação maciça do conhecimento baseando-se em Platão, já que as pessoas não tendo a vocação para lidar com a verdade, apoiariam propostas antiéticas.

Hobbes considerou Platão como o melhor filósofo da Antiguidade clássica, pela razão de sua filosofia ter como como ponto de partida ideias, enquanto que Aristóteles partia de palavras. Para Hobbes, Platão estaria apto a elaborar uma filosofia política por evitar conclusões falaciosas acerca do “o que é”, “o que foi”, “o que deveria ser”. 

Veja mais:

No século XX, os metafísicos René Guénon e Frithjof Schuon, foram dois influentes autores que re-elaboraram e atualizaram em linguagem contemporânea o pensamento universal e perene de Platão, por eles visto como um eminente representante da Filosofia Perene. Nos livros de ambos, como em A Crise do Mundo Moderno e O Reino da Quantidade, de Guénon, e A Unidade Transcendente das Religiões, Forma e Substância nas Religões e O Homem no Universo, de Schuon, as ideias de Platão são expostas e discutidas em profundidade.

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Qin Shihuang https://canalfezhistoria.com/qin-shihuang/ https://canalfezhistoria.com/qin-shihuang/#respond Wed, 12 Mar 2025 10:16:02 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5977 Qin Shi Huang Di (Novembro/Dezembro 260 a.C. – 10 de Setembro, 210 a.C.), foi rei do Estado chinês de Qin de 247 a.C. a 221 a.C., e posteriormente tornou-se o primeiro imperador de uma China unificada, de 221 a.C. a 210 a.C., reinando sob a alcunha de Primeiro Imperador. 

Tendo unificado a China, ele e seu primeiro-ministro, Li Si, iniciaram uma série de reformas significativas com o intuito de fortificar e estabilizar a unidade política chinesa, ordenando projetos de construção gigantescos, como a própria Muralha da China – ainda não em suas dimensões máximas. Apesar de Qin Shi Huang ser considerado ainda hoje como um dos fundadores da China unificada, que assim permaneceria, com certas interrupções e diferenças territoriais, por mais de dois milênios, o imperador também é lembrado como um tirano autocrático. 

Convenções do Nome

Qin Shi Huangdi nasceu, segundo o calendário chinês da época, no mês de Zheng (正), o primeiro mês do ano (no século III a.C. o ano chinês começava antes do Solstício de Inverno, e não depois, como ocorre atualmente), e portanto recebeu o nome de Zheng (政), podendo ambos ideogramas serem utilizados na China antiga. Naquela época, as pessoas não uniam o nome próprio com o sobrenome como é costume atualmente, portanto referir-se a Qin Shi Huangdi como “Ying Zheng” seria anacronismo.

O nome próprio era apenas utilizado por parentes próximos, e portanto seria também incorreto se referir ao jovem Qin Shi Huangdi como “Príncipe Zheng”, ou como “Rei Zheng de Qin”. Como rei, referiam-se a ele apenas como “Rei de Qin”. Ele teria recebido ainda, assim como seu pai, um nome póstumo, e teria sido conhecido pelos historiadores como “Rei NN. (nome póstumo) de Qin”, mas isto nunca ocorreu, contudo. 

Após conquistar o último Estado chinês independente em 221 a.C., Qin Shi Huangdi tornou-se o rei do Estado de Qin governando toda a China, um feito nunca antes alcançado. Para demonstrar que não era um rei como os do Período dos Reinos Combatentes, ele passou a se autodenominar Huangdi (皇帝), combinando as palavras Huang (皇), que era utilizada para denominar os três Huang lendários (três Augustos) que reinaram nos primórdios da história chinesa, com a palavra Di (帝), que era utilizada para denominar os lendários cinco Di (Cinco Imperadores) que reinaram imediatamente após os três Huang.

Estes três Huang e cinco Di eram considerados líderes perfeitos de imensos poderes, além de possuírem grande longevidade. A palavra huang também significa “grande”. A palavra di também significa o deus supremo, criador do mundo. Neste sentido, juntando essas duas palavras, o que ninguém havia feito anteriormente, Qin Shi Huangdi criou um título relacionado ao seu feito único de unificação do reino da China – ou melhor, de unificação do mundo, já que os antigos chineses, assim como os romanos, acreditavam que seu império englobava todo o mundo.

A palavra huangdi foi traduzida na maioria dos idiomas ocidentais como “imperador”, uma palavra também com uma longa história que remete a Roma antiga, e que os europeus consideram como superior a “rei”. Qin Shi Huang adotou o nome Primeiro Imperador (Shi Huangdi, literalmente “imperador que começa”).

Ele aboliu nomes póstumos, os quais os antigos reis tornavam-se conhecidos após morrerem, julgando-os inapropriados e contrários à piedade filial, e decidiu que as gerações futuras deveriam referir a ele como Primeiro Imperador (Shi Huangdi), seu sucessor deveria ser referido como Segundo Imperador (Er Shi Huangdi, literalmente “imperador da segunda geração”), o sucessor de seu sucessor deveria ser Terceiro Imperador (San Shi Huangdi, literalmente “imperador da terceira geração”), e assim por diante, por dez mil gerações, já que a casa imperial deveria reinar na China por dez mil gerações (“dez mil anos” é equivalente a “eternamente” em chinês, e também significa “boa sorte”). 

Qin Shi Huang tornou-se então o Primeiro Imperador do Estado de Qin. O nome oficial do Estado recém-unificado ainda era “Estado de Qin”, já que Qin absorvera todos os outros Estados. O nome China (中華 ou 中國) originado de “Chin”, como era conhecido na Pérsia e Industão, é uma versão romanizada de “Qin”.

Contemporâneos chamavam o imperador de “Primeiro Imperador”, deixando de lado o “do Estado de Qin”, o que era obviamente desnecessário. Entretanto, logo após a morte do imperador, seu regime entrou em colapso, e a China entrou em uma guerra civil. Eventualmente, em 202 a.C. a Dinastia Han iria reunificar a China, que ficou conhecida oficialmente como a Dinastia Han (漢國), que também pode significar “Império de Han”.

Qin Shi Huang não poderia mais ser chamado “Primeiro Imperador”, já que isso implicaria que ele era “Primeiro Imperador do Império de Han”. Tornou-se hábito então ter seu nome procedido por Qin (秦), o que não se referia mais ao Estado de Qin, mas a Dinastia Qin, uma dinastia agora substituída pela Dinastia Han. A palavra huangdi (imperador) em seu nome foi também minimizada para huang, e então ele ficou conhecido como Qin Shi Huang. Provavelmente huangdi foi encurtado para obter um nome de três ideogramas, o que está de acordo com o costume chinês (é raro entre os chineses um nome composto de quatro ou mais ideogramas).

O nome Qin Shi Huang (i.e., “Primeiro Imperador da Dinastia Qin”) é o nome que aparece no livro Registros do Historiador, escrito por Sima Qian, e é o nome mais aceito atualmente na China para se referir ao Primeiro Imperador. Ocidentais às vezes escrevem “Qin Shi Huangdi”, o que não é convencional – o mais comum é escrever “Qin Shi Huang” ou “Primeiro Imperador”. 

Juventude e Rei de Qin: O Conquistador

No período em que o jovem Zheng nasceu, a China estava dividida em Estados feudais que guerreavam entre si. Este período da história chinesa é conhecido como o Período dos Reinos Combatentes. A competição entre eles era extremamente violenta, e aproximadamente em 260 a.C. havia apenas alguns Estados (tendo os outros sido conquistados e anexados pelos demais), mas o Estado de Zheng, Qin, era o mais poderoso. Ele era governado por uma filosofia Legalista e se centrava desde seus primórdios em assuntos militares. 

Zheng nasceu em Handan (邯鄲), a capital do Estado inimigo de Zhao. Ele era filho de Zichu, um príncipe da casa real de Qin que havia se tornado refém em Zhao devido a um acordo político entre os Estados de Qin e Zhao. Zichu posteriormente retornou a Qin após muitas aventuras e com a ajuda do rico mercador chamado Lü Buwei. Ele planejou ascender ao trono de Qin, colocando Lü Buwei como chanceler (primeiro-ministro) de Qin. Zichu é conhecido póstumamente como Rei Zhuangxiang de Qin.

De acordo com uma história bastante difundida, Zheng não era o verdadeiro filho de Zichu, mas sim filho do poderoso chanceler Lü Buwei. Esta história surgiu porque a mãe de Zheng era originalmente uma concubina de Lü Buwei antes dele dá-la ao seu bom amigo Zichu pouco antes do nascimento de Zheng. Entretanto, a história é duvidosa já que os confucionistas teriam tido muito facilidade em denunciar um líder cujo nascimento foi ilegítimo.

Zheng ascendeu ao trono em 247 a.C. com pouco mais de 12 anos de idade, e era auxiliado por um regente até 238 a.C., quando atinge a idade de 21 anos e passa a assumir o poder de forma absoluta. Zheng continuou a tradição de atacar com tenacidade os Estados feudais (escapando de uma tentativa de assassinato realizada por Jing Ke enquanto o fazia) e finalmente tomou controle de toda a China em 221 a.C. derrotando o último Estado chinês independente de Qin, o estado de Qi Então no mesmo ano, com 38 anos de idade, o rei de Qin proclamou a si mesmo “Primeiro Imperador”. 

Unificação da China

Para evitar o caos do Período dos Reinos Combatentes, Qin Shi Huang e seu primeiro-ministro Li Si aboliram completamente a economia tradicional, predominantemente considerada como feudal. Em vez deste sistema, o que fizeram foi dividir o império em trinta e seis províncias, governadas cada uma por três governadores, que poderiam ser dispensados de acordo com a vontade do governo central. Poderes civis e militares eram também divididos, para evitar que muito poder caísse nas mãos de uma única pessoa.

Assim, cada província era governada por um governador civil, auxiliado por um governador militar. O governador civil era superior ao governador militar (uma constante na história chinesa). O governador civil também era redirecionado para uma província diferente em poucos anos, para evitar que pudesse construir uma base de poder própria. Um inspetor também governava cada província, sendo responsável de informar o governo central a respeito dos outros dois governantes, e possivelmente evitando conflitos entre estes. 

Este sistema administrativo era apenas uma extensão do sistema já em voga no reino de Qin antes da unificação da China. No Estado de Qin, o feudalismo havia sido abolido já no século IV a.C., e o reino já era dividido em províncias. 

Qin Shi Huang ordenou que todos os membros das antigas casas reais que ele conquistou se mudassem para Xianyang (咸陽), a capital de Qin (atualmente a província chinesa de Shaanxi), para que estes fossem mantidos sob uma vigilância rígida, evitando assim qualquer tentativa de rebelião. O imperador também desenvolveu uma extensa rede de estradas e canais conectando as províncias, para assim acelerar o comércio entre estas, além de facilitar e acelerar o transporte de tropas no caso de uma província rebelde.

Qin Shi Huang e Li Si unificaram a China economicamente, padronizando os pesos e medidas, assim como a moeda, a largura das carroças (assim todas carroças poderiam ser utilizadas sem problemas nas novas estradas), o sistema legal, etc. 

Talvez o mais importante tenha sido a unificação da escrita. Li Si desenvolveu um conjunto de caracteres chamado selos pequenos, baseados nos caracteres utilizados no Estado de Qin. Escritos utilizando o novo sistema foram encontrados encravados nas encostas de montanhas sagradas na China, como o Monte Taishan, para assim fazer com que os céus soubessem a respeito da unificação da terra sob um único imperador, além de propagar a nova escrita para as pessoas. 

Qin Shi Huang continuou a expansão militar durante seu reinado, anexando regiões ao Sul (o que é atualmente a província de Guangdong foi penetrado pela primeira vez pelos exércitos chineses) e combatendo tribos nômades ao norte e noroeste (os Xiongnu). Foi para prevenir que os Xiongnu avançassem mais pela fronteira Norte que Qin Shi Huang ordenou a construção de uma imensa muralha defensiva, unindo várias muralhas já existentes desde o Período dos Reinos Combatentes.

Esta muralha, em cuja construção foram mobilizados centenas de milhares de homens (e um número desconhecido morreu), é a precursora da atual Muralha da China. Ela foi construída muito mais ao Norte do que a atual muralha, que foi construída apenas durante a Dinastia Ming, quando a China possuía pelo menos o dobro de habitantes em relação ao período do Primeiro Imperador, e quando mais de cem anos foram dedicados na construção da muralha, em oposição aos meros dez anos devotados durante o período do Primeiro Imperador. Muito pouco restou das muralhas construídas por Qin Shi Huang. 

Morte e Consequências

O imperador morreu durante uma viagem para o Leste da China, à procura das lendárias Ilhas dos Imortais (possivelmente localizadas além da costa Leste da China), onde pretendia descobrir o segredo da imortalidade. Supostamente, Qin Shi Huang teria morrido ao beber uma poção, que havia sido preparada pelos cientistas e médicos da corte. A poção, que ironicamente deveria tornar o imperador imortal, continha altas taxas de mercúrio. 

Sua morte ocorreu no começo de Setembro de de 210 a.C. no palácio da prefeitura de Shaqiu, cerca de dois meses de distância, por terra, da capital Xianyang. O primeiro-ministro Li Si, que o acompanhava, estava extremamente preocupado com as notícias de sua morte, temendo que isto pudesse impulsionar um levante geral no império, dadas as brutais políticas utilizadas no império por Qin Shi Huang, assim como o ressentimento geral que a população sentiria por ser forçada a trabalhar em projetos gigantescos, como a grande muralha ao Norte da China ou o mausoléu do imperador.

Levaria dois meses para o governo chegar a capital, e não seria possível controlar um levante que se iniciasse neste meio tempo. Li Si decidiu ocultar a morte de Qin Shi Huang, e retornar para Xianyang.

A maioria dos servos do imperador que o acompanhavam não foram informados por Li Si de sua morte, e todos os dias Li Si entrava na carruagem onde supostamente o imperador estaria viajando, e fingia discutir assuntos políticos. Tendo o imperador sido um homem bastante retraído e de poucas aparições, o estratagema de Li Si funcionou perfeitamente, sem levantar dúvidas na corte.

Li Si também ordenou que duas carruagens contendo peixes fossem levadas uma atrás e outra na frente da carruagem do imperador, para que ninguém sentisse o cheiro exalado pelo seu corpo sem vida. Após dois meses, Li Si e a corte imperial estavam novamente em Xianyang, e então apenas neste momento é que foi anunciada a morte do imperador. 

Qin Shi Huang não gostava muito de falar sobre a morte, e nunca escreveu um testamento. Após sua morte, Li Si e o chefe eunuco Zhao Gao persuadiram seu segundo filho Huhai para que forjasse um testamento do imperador. Eles forçaram o primeiro filho do imperador, Fusu, a cometer suicídio, e tomaram o comando das tropas de Meng Tian – que era leal a Fusu -, além de matarem a família de Meng. Hunai tornou-se o Segundo Imperador (Er Shi Huangdi), conhecido pelos historiadores como Qin Er Shi.

Qin Shi Huang foi enterrado em seu mausoléu, com o famoso Exército de terracota, próximo a atual Xi’an (província de Shaanxi), mas sua câmara mortuária ainda não foi aberta. Contudo, uma análise magnética do sítio arqueológico revela que um grande número de moedas podem ser encontradas na tumba ainda lacrada, ocasionando especulações de que o tesouro real foi enterrado junto com o imperador. Arqueólogos, temendo destruir ou avariar a tumba ainda intocada, não pretende abri-la.

Contudo, há um outro lado da história; de que, na cultura popular chinesa – e para a grande massa da população, principalmente no meio rural, onde foi encontrada a tumba – não quer abri-la, pois teme que, de acordo com a tradição religiosa chinesa, o espírito de Qin Shi Huang seja liberado. De qualquer modo, seja por crenças religiosas locais, ou por medo de destruição material, a abertura da tumba do imperador, ao menos no momento, está fora de cogitação. 

Qin Er Shi não foi um imperador tão capaz quanto seu pai. Revoltas rapidamente surgiram, e após apenas quatro anos da morte de Qin Shi Huang, seu filho também estava morto. O palácio imperial e os arquivos do Estado foram queimados, e a dinastia Qin chegou ao fim. Foi durante o governo de Qin Er Shi que poderosas famílias entraram em guerra, com as mais poderosas ascendendo politicamente e trazendo ordem, novamente, para a China (contudo iniciando uma nova dinastia de imperadores). Esta foi uma época de grande agitação civil, e tudo que o imperador havia solidificado e criado em seu governo entrou em colapso, por um curto período. 

A próxima dinastia chinesa, a Dinastia Han, rejeitou o legalismo (a favor do confucionismo) e tornaram as leis mais moderadas, apesar de manterem os aspectos políticos e econômicos de Qin Shi Huang quase intactos. Neste sentido, a obra do Primeiro Imperador foi mantida durante os séculos que seguiram sua morte, e tornou-se uma característica duradoura da sociedade chinesa. 

Qin Shi Huang na Historiografia

Na historiografia tradicional chinesa, o Primeiro Imperador quase sempre foi descrito como um tirano brutal, supersticioso -como resultado de sua suposta obsessão paranóica em atingir a imortalidade (de fato ele morreu por intoxicação por mercúrio contido em suas “poções” para atingi-la)-, e muitas vezes foi colocado mesmo como um líder medíocre. Discriminações contra o Estado legalista de Qin começaram a surgir já em 266 a.C., quando o filósofo confucionista Xun Zi comparou-o com tribos bárbaras e escreveu “Qin possui o coração de um tigre ou um lobo; [e é] avarento, perverso, ávido para o lucro, e sem sinceridade”. 

Posteriormente, historiadores confucionistas condenariam o imperador por queimar os clássicos, além de queimar os próprios estudiosos confucionistas. Eles eventualmente iriam compilar a lista dos Dez Crimes de Qin para destacar suas ações tirânicas. O famoso estadista e poeta do período Han, Jia Yi, concluiu seu ensaio As Faltas de Qin com o que se tornaria o julgamento confucionista padrão acerca das razões para o colapso de Qin.

O ensaio de Jia Yi, admirado como uma obra-prima em retórica e racionalidade, foi copiado em duas histórias Han, tendo alcançado uma grande influência no pensamento político chinês como um exemplo clássico da teoria confucionista. Ele explicou a maior fraqueza de Qin como resultado da busca desenfreado por poder, o mesmo fator que havia tornado-o tão poderoso; pois como Confúcio havia ensinado, a força de um governo é baseado em última instância no apoio do povo e na conduta virtuoso de seu governante.

Devido a esta oposição sistemática ao Primeiro Imperador, por parte de estudiosos de Han, algumas das histórias a respeito de Qin Shi Huang são duvidosas, e muitas provavelmente foram criadas para enfatizar seu caráter negativo. Por exemplo, a acusação de que ele executou 460 estudiosos enterrando-os vivos, deixando apenas suas cabeças acima do chão – para então decapitá-los -, muito provavelmente não é verdadeira. 

Existem também muitas lendas a respeito da fúria do Paraíso contra o Primeiro Imperador, como a história de uma pedra que teria caído do céu, e onde estavam gravadas palavras que denunciavam o imperador e profetizavam o colapso de seu império após sua morte. A maioria das histórias deste gênero foram descreditadas pelos sinólogos, classificadas como lendas para denegrir a imagem do Primeiro Imperador. 

Apenas em tempos modernos os historiadores tornaram-se aptos a penetrar além das limitações da historiografia tradicional chinesa. A rejeição política da tradição confucionista, colocando esta como um impedimento para a modernização da China, abriu as portas para mudanças de perspectivas a respeito de Qin Shi Huang. Nas três décadas entre a queda da Dinastia Qing e o início da Segunda Guerra Mundial, com a profunda insatisfação com a fraqueza e desunição presentes na China, começa a surgir uma reinterpretação da memória e do legado do homem que unificara a China.

Quando o território chinês se via totalmente ocupado por nações estrangeiras, o famoso historiador do Kuomitang, Xiao Yishan, enfatizava em seus escritos o papel de Qin Shi Huang na expulsão dos bárbaros do Norte, particularmente com a construção da Grande Muralha. Outro historiador, Ma Feibai (馬非百), publicou em 1941 uma biografia revisionista completa a respeito do Primeiro Imperador, intitulada Qin Shi huangdi Zhuan (《秦始皇帝傳》), onde colocava Qin Shi Huang como um dos maiores heróis da história chinesa.

Ma comparava-o com o líder chinês contemporâneo Chiang Kai-Shek, apresentando muitos paralelos na carreira e política dos dois homens. A Expedição ao Norte da década de 1920 de Chiang Kai-Shek, que procedeu diretamente o novo governo nacionalista em Nanjing foi comparada, por exemplo, com a unificação realizada por Qin Shi Huang. 

Com a chegada da Revolução Comunista em 1949, novas interpretações a respeito do Primeiro Imperador surgiriam. O estabelecimento do novo regime revolucionário significava outra resignificação do Primeiro Imperador, desta vez de acordo com a teoria marxista. A nova interpretação dada a Qin Shi Huang era geralmente uma combinação de visões tradicionais e modernas, mas essencialmente, era uma visão crítica. Isto é exemplificado na obra História Completa da China, compilada em Setembro de 1955, como uma pesquisa oficial da história chinesa.

A obra descrevia os principais passos do Primeiro Imperador em direção da unificação e padronização nacional, como correspondente aos interesses da classe social dominante (mercantil), e não como correspondente aos interesses da nação ou do povo. Além disso, a obra descrevia a subsequente queda da Dinastia Qin, também de acordo com a teoria marxista, como resultado da luta de classes: rebeliões de camponeses contra a opressão – uma revolta que demoliu a dinastia, mas que estava fadada a falhar devido ao compromisso com os “elementos da classe proprietária”.

Desde 1972, entretanto, uma visão do Primeiro Imperador radicalmente diferente das usuais começou a tornar-se proeminente ao redor de toda a China. O movimento de resignificação foi iniciado por Hong Shidi com sua obra Qin Shi Huang. A obra foi publicada pela própria editora oficial do governo chinês, que almejava que tal obra atingisse as massas populares. Foram vendidas 1,85 milhões de cópias em dois anos. Nesta nova interpretação, Qin Shi Huang é visto como um líder com visão ampla do futuro, que destruiu as tentativas de desunir o país e finalmente o unificou, pela primeira vez.

Atributos pessoais, como sua busca por imortalidade, tão enfatizadas na historiografia tradicional, são vagamente mencionados. As novas interpretações mostavam agora, neste tempo (uma era de grandes mudanças políticas e sociais), que o Primeiro Imperador não tinha escrúpulos em utilizar métodos violentos para sufocar contra-revolucionários, como o “dono de escravos comercial e industrial” chanceler Lü Buwei. Infelizmente, ele não teria sido tão minucioso quanto deveria ser, e após sua morte, subversivos ocultos, sob liderança do chefe eunuco Zhao Gao, tomaram o poder e usaram-no para retornar à velha ordem feudal. 

Ainda para circular esta resignificação, uma nova interpretação do rápido colapso da Dinastia Qin foi apresentada no artigo intitulado “Sobre a Luta de Classes entre os Períodos Qin e Han”, por Luo Siding, em um boletim de 1974 de Bandeira Vermelha, para substituir a explicação antiga. A nova teoria clamava que a causa da queda de Qin devia a falta de minuciosidade em sua “ditadura sobre os reacionários, incluindo até a extensão de permitir que eles adentrassem em órgãos de autoridade política e usurpassem postos importantes.” 

Qin Shi Huang foi apontado por Michael H. Hart em sua Lista das Figuras Mais Influentes da História como a 17ª figura mais importante. 

Diversos

Qin Shi Huang se interessava pela imortalidade e visitou a Ilha Zhifu. Estes feitos tornaram-se uma história muito popular, do imperador enviando um habitante de Zhifu, Xu Fu, como o líder religioso dos navios com centenas de jovens homens e mulheres que sairia à procura do elixir da imortalidade. Estas pessoas nunca retornaram, já que sabiam que se retornassem sem o “elixir da imortalidade”, eles seriam certamente executados. A lenda diz que eles se instalaram em uma das ilhas japonesas. A lenda também diz que este é o porque de vários aspectos do idioma japonês serem similares ao chinês, e o fato de as pessoas japonesas serem parecidas com as chinesas. 

O imperador geralmente viajava para as maiores cidades do império para inspecionar a eficiência da burocracia e para simbolizar a presença do prestígio de Qin. (foi em uma dessas viagens que ele teria morrido). De qualquer modo, estas viagens proporcionavam oportunidades para tentativas de assassinatos, sendo a mais famosa delas a executada por Zhang Liang. 

Veja mais:

Posteriormente, quando já havia sofrido inúmeras tentativas de assassinato, Qin Shi Huang começou a tornar-se paranóico com o fato de permanecer em um lugar por muito tempo e contrataria servos para levá-lo cada noite em diferentes edifícios de seu complexo de palácios. Ele também teria contratado vários “sósias” para confundir os assassinos.

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Queóps https://canalfezhistoria.com/queops/ https://canalfezhistoria.com/queops/#respond Wed, 12 Mar 2025 10:11:26 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5974 Quéops, Khufu em egípcio antigo, foi um faraó do Reino Antigo do Antigo Egito. Reinou por volta de 2551 a.C. a 2528 a.C. Foi o segundo faraó da Quarta Dinastia. 

Quéops era filho do faraó Snefru e, ao contrário de seu pai, foi lembrado como sendo cruel e sem piedade. Quéops teve diversos filhos, um dos quais, Djedef-re que foi seu sucessor imediato. Ele teve uma filha chamada Hetepherés II.

Quéops foi o faraó responsável pela construção da maior das três Pirâmides de Gizé e que são as únicas das Sete Maravilhas do Mundo Antigo ainda existentes —, levando seu nome em grego: a Pirâmide de Quéops. 

A Pirâmide de Quéops, também conhecida como a Grande Pirâmide, é o monumento mais massivo construído pelo ser humano (apesar de suplantado por outras construções não monumentais, como a Muralha da China, um conjunto de estruturas com mais de 21mil km de extensão, com finalidade militar). Aproximadamente possui 2,3 milhões de blocos de rocha, cada um pesa em torno de 2,5 toneladas, resultando um total de ~5.700.000t. Com mais de 146 metros de altura, só foi ultrapassada no século XVI pela torre da Catedral de Beauvais que foi terminada em 1569.

Veja mais:

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René Descartes https://canalfezhistoria.com/rene-descartes/ https://canalfezhistoria.com/rene-descartes/#respond Wed, 12 Mar 2025 10:09:36 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5965 René Descartes (La Haye en Touraine, 31 de março de 1596 – Estocolmo, 11 de fevereiro de 1650) foi um filósofo, físico e matemático francês. Durante a Idade Moderna, também era conhecido por seu nome latino Renatus Cartesius. 

Notabilizou-se sobretudo por seu trabalho revolucionário na filosofia e na ciência, mas também obteve reconhecimento matemático por sugerir a fusão da álgebra com a geometria – fato que gerou a geometria analítica e o sistema de coordenadas que hoje leva o seu nome. Por fim, foi também uma das figuras-chave na Revolução Científica.

Descartes, por vezes chamado de “o fundador da filosofia moderna” e o “pai da matemática moderna”, é considerado um dos pensadores mais importantes e influentes da História do Pensamento Ocidental. Inspirou contemporâneos e várias gerações de filósofos posteriores; boa parte da filosofia escrita a partir de então foi uma reação às suas obras ou a autores supostamente influenciados por ele. Muitos especialistas afirmam que, a partir de Descartes, inaugurou-se o racionalismo da Idade Moderna. Décadas mais tarde, surgiria nas Ilhas Britânicas um movimento filosófico que, de certa forma, seria o seu oposto – o empirismo, com John Locke e David Hume. 

Biografia

René Descartes nasceu em 31 de Março de 1596 em La Haye, a cerca de 300 quilômetros de Paris (hoje Descartes), no departamento francês de Indre-et-Loire. 

Sua mãe, Jeanne Brochard (1566 – 1597) morreu quando ele tinha um ano. Com oito anos, ingressou no colégio jesuíta Royal Henry-Le-Grand, em La Flèche. O curso em La Flèche durava três anos, tendo Descartes sido aluno do padre Estevão de Noel, que lia Pedro da Fonseca nas aulas de lógica, a par dos Commentarii. Descartes reconheceu que lá havia certa liberdade; no entanto, no seu “Discurso sobre o método”, declara a sua decepção, não com o ensino da escola em si, mas com a tradição escolástica, cujos conteúdos considerava confusos, obscuros e nada práticos.

Em carta a Mersenne, diz que “os Conimbres são longos, sendo bom que fossem mais breves (crítica já então corrente, mesmo nas escolas da Companhia de Jesus). Descartes esteve em La Flèche por cerca de nove anos (1606-1615). “Descartes não mereceu, como se sabe, a plena admiração dos escolares jesuítas, que o consideravam um deficiente filósofo”. Prosseguiu depois seus estudos, graduando-se em direito, em 1616, pela Universidade de Poitiers.

No entanto, Descartes nunca exerceu o direito, e em 1618 foi para a Holanda, alistando-se no exército do príncipe Maurício, com a intenção de seguir carreira militar. Mas se achava menos um ator do que um espectador: antes ouvinte numa escola de guerra do que verdadeiro militar. Conheceu então Isaac Beeckman, que o influenciou fortemente, e compôs um pequeno tratado sobre música intitulado Compendium Musicae (Compêndio de Música). 

Também é dessa época (1619-1620) o Larvatus prodeo (Ut comœdi, moniti ne in fronte appareat pudor, personam induunt, sic ego hoc mundi teatrum conscensurus, in quo hactenus spectator exstiti, larvatus prodeo). Esta declaração do jovem Descartes no preâmbulo das Cogitationes Privatae (1619) é interpretada como uma confissão que introduz o tema da dissimulação, e, segundo alguns, marca uma estratégia de separação entre filosofia e teologia.

Jean-Luc Marion, em seu artigo Larvatus pro Deo : Phénoménologie et théologie refere-se à abordagem dionisíaca do homem escondido diante de deus (larvatus pro Deo) como justificativa teológica do filósofo que avança mascarado (larvatus prodeo). Em 1619, viajou para a Alemanha, onde, segundo a tradição, em dia 10 de novembro, teve uma visão oniúnrica de um novo sistema matemático e científico. No mesmo ano, viajou a Dinamarca e Polônia. Em 1622 retornou à França, passando os anos seguintes em Paris.

Em 1628, compôs as Regulae ad directionem ingenii (Regras para a Direção do Espírito) e partiu para os Países Baixos, onde viveria até 1649. Em 1629, começou a redigir o “Tratado do Mundo”, uma obra de física na qual aborda a sua tese sobre o heliocentrismo. Porém, em 1633, quando Galileu é condenado pela Inquisição, Descartes abandona seus planos de publicá-lo. Em 1635, nasce Francine, filha de uma serviçal. A criança é batizada em 7 de agosto de 1635, morrendo precocemente em 1640, o que foi um grande baque para Descartes. 

Em 1637, publicou três pequenos tratados científicos: “A Dióptrica”, “Os Meteoros” e “A Geometria”, mas o prefácio dessas obras é que faz seu futuro reconhecimento: o “Discurso sobre o método”. Em 1641, aparece sua obra filosófica e metafísica mais imponente: as “Meditações Sobre a Filosofia Primeira”, com os primeiros seis conjuntos de “Objeções e Respostas”. Os autores das objeções são: do primeiro conjunto, o teólogo holandês Johan de Kater; do segundo, Mersenne; do terceiro, Thomas Hobbes; do quarto, Arnauld; do quinto, Gassendi; e do sexto conjunto, Mersenne. Em 1642, a segunda edição das Meditações incluía uma sétima objeção, feita pelo jesuíta Pierre Bourdin, seguida de uma “Carta a Dinet”. 

Em 1643, o cartesianismo é condenado pela Universidade de Utrecht. Descartes inicia a sua longa correspondência com a princesa Isabel (1618-1680), filha mais velha de Frederico V e de Isabel da Boémia. A correspondência deverá durar sete anos, até a morte do filósofo, em 1650. 

Também no ano de 1643, Descartes publica “Os Princípios da Filosofia”, resumindo seus princípios filosóficos que formariam a “ciência”. Em 1644, fez uma visita rápida à França, onde encontrou Chanut, o embaixador francês junto à corte sueca, que o põe em contato com a rainha Cristina da Suécia. Nesta ocasião, Descartes teria declarado que o Universo é totalmente preenchido por um “éter” onipresente. Assim, a rotação do Sol, através desse éter, criaria ondas ou redemoinhos, explicando o movimento dos planetas, tal qual uma batedeira. O éter também seria o meio pelo qual a luz se propaga, atravessando-o pelo espaço, desde o Sol até nós. 

Em 1647, Descartes foi premiado pelo Rei da França com uma pensão, começando a trabalhar na “Descrição do Corpo Humano”. Entrevista Frans Burman em Egmond-Binnen (1648), resultando na “Conversa com Burman”. Em 1649, foi à Suécia, a convite da rainha Cristina. Seu “Tratado das Paixões”, que ele dedicou a sua amiga Isabel da Boêmia, fora publicado.

René Descartes morreu de pneumonia em 11 de fevereiro de 1650, em Estocolmo, depois de 10 dias enfermo, enquanto trabalhava como professor, a convite da rainha. Acostumado a trabalhar na cama até meio-dia, há de ter sofrido com as demandas da rainha Christina, cujos estudos começavam às 5 da manhã. Como católico em um país protestante, ele foi enterrado em um cemitério de crianças não batizadas, na Adolf Fredrikskyrkan, em Estocolmo. 

Em 1667, os restos mortais de Descartes foram repatriados para a França e enterrados na Abadia de Sainte-Geneviève de Paris. Um memorial construído no século XVIII permanece na igreja sueca. No mesmo ano, a Igreja Católica coloca os seus livros na lista proibida. Embora a Convenção, em 1792, tenha projetado a transferência do seu túmulo para o Panthéon, ao lado de outras grandes figuras da França, desde 1819, seu túmulo está na Igreja de Saint-Germain-des-Prés, em Paris. 

A vila no vale do Loire onde ele nasceu foi renomeada para La Haye-Descartes, e, posteriormente, já no final do século XX, para Descartes. 

Pensamento

O pensamento de Descartes é revolucionário para uma sociedade feudalista em que ele nasceu, onde a influência da Igreja ainda era muito forte e quando ainda não existia uma tradição de “produção de conhecimento”. Aristóteles tinha deixado um legado intelectual que o clero se encarregava de . Foi um dos precursores do movimento racional-científico, considerado o pai do racionalismo, e defendeu a tese de que a dúvida era o primeiro passo para se chegar ao conhecimento. 

Descartes viveu em uma época marcada pelas guerras religiosas entre protestantes e católicos na Europa – a Guerra dos Trinta Anos. Viajou muito e viu que sociedades diferentes têm crenças diferentes, mesmo contraditórias. Aquilo que em uma região é tido por verdadeiro também pode ser considerado ridículo, disparatado e falso em outros lugares.

Descartes viu que os “costumes”, a história de um povo, sua tradição “cultural” influenciam a forma como as pessoas veem e pensam aquilo em que acreditam. 

O primeiro pensador moderno

Descartes é considerado o primeiro filósofo moderno. A sua contribuição à epistemologia é essencial, assim como às ciências naturais por ter estabelecido um método que ajudou no seu desenvolvimento. Descartes criou, em suas obras Discurso sobre o método e Meditações – a primeira escrita em francês, a segunda escrita em latim, língua tradicionalmente utilizada nos textos eruditos de sua época – as bases da ciência contemporânea. 

O método cartesiano consiste no ceticismo metodológico – que nada tem a ver com a atitude cética: duvida-se de cada ideia que não seja clara e distinta. Ao contrário dos gregos antigos e dos escolásticos, que acreditavam que as coisas existem simplesmente porque “precisam” existir, ou porque assim deve ser etc., Descartes instituiu a dúvida: só se pode dizer que existe aquilo que puder ser provado, sendo o ato de duvidar indubitável. Baseado nisso, Descartes busca provar a existência do próprio eu (que duvida: portanto, é sujeito de algo. Ego cogito ergo sum, “penso, logo existo”) e de Deus. 

Também consiste o método de quatro regras básicas: 

• Verificar se existem evidências reais e indubitáveis acerca do fenômeno ou coisa estudada;
• Analisar, ou seja, dividir ao máximo as coisas, em suas unidades mais simples e estudar essas coisas mais simples;
• Sintetizar, ou seja, agrupar novamente as unidades estudadas em um todo verdadeiro;
• Enumerar todas as conclusões e princípios utilizados, a fim de manter a ordem do pensamento.

Em relação à Ciência, Descartes desenvolveu uma filosofia que influenciou muitos, até ser superada pela metodologia de Newton. Ele sustentava, por exemplo, que o universo era pleno e não poderia haver vácuo. Acreditava que a matéria não possuía qualidades secundárias inerentes, mas apenas qualidades primárias de extensão e movimento. 

Ele dividia a realidade em res cogitans (consciência, mente) e res extensa (matéria). Acreditava também que Deus criou o universo como um perfeito mecanismo de moção vertical e que funcionava deterministicamente sem intervenção desde então. 

Matemáticos consideram Descartes muito importante por sua descoberta da geometria analítica. Antes de Descartes, a geometria e a álgebra apareciam como ramos completamente separados da matemática. Descartes mostrou como traduzir problemas de geometria para a álgebra, abordando esses problemas através de um sistema de coordenadas.

A teoria de Descartes forneceu a base para o cálculo de Isaac Newton e Gottfried Leibniz, e então, para muitos outros da matemática moderna. Isso parece ainda mais incrível tendo em mente que esse trabalho foi intencionado apenas como um exemplo no seu “Discurso Sobre o Método”. 

Geometria

O interesse de Descartes pela matemática surgiu cedo, no College de la Flèche, escola do mais alto padrão, dirigida por jesuítas, na qual ingressara aos oito anos de idade. Mas por uma razão muito especial e que já revelava seus pendores filosóficos: a certeza que as demonstrações ou justificativas matemáticas proporcionam. Aos vinte e um anos de idade, depois de frequentar rodas matemáticas em Paris (além de outras), já graduado em Direito, ingressa voluntariamente na carreira das armas, uma das poucas opções “dignas” que se ofereciam a um jovem como ele, oriundo da nobreza menor da França. Durante os quase nove anos que serviu em vários exércitos, não se sabe de nenhuma proeza militar realizada por Descartes. 

A geometria analítica de Descartes apareceu em 1637 no pequeno texto chamado Geometria, como um dos três apêndices do “Discurso do Método”, obra considerada o marco inicial da filosofia moderna. Nela, em resumo, Descartes defende o método matemático como modelo para a aquisição de conhecimentos em todos os campos. 

Medicina

Segundo Descartes, o corpo é formado de matéria física e, por isso, tem propriedades comuns a qualquer matéria, como tamanho, peso e capacidade motora. Assim, as leis que regem a física, também regem o corpo humano. Incita, assim, a separação do corpo e da alma. 

Teoria Cartesiana do sistema circulatório

Note-se que só a partir desta distinção entre o corpo e a alma é possível inferir propriedades do corpo humano a partir do estudo da anatomia animal. A partir desse ponto, Descartes explica o funcionamento do sistema sanguíneo e como chegou a suas conclusões:

“Desejo dar aqui a explicação do movimento do coração e das artérias o qual, sendo o que mais geralmente se observa nos animais, se julgará mais facilmente o que se deve pensar dos outros e, a fim de termos menos dificuldades em compreender o que vou dizer, desejava que os não versados em anatomia se resolvessem, antes de ler, a colocar ante eles o coração de qualquer grande animal que tenha pulmões, porque ele é em tudo bastante semelhante ao do homem” (1, p. 47).

“(…) desejo adverti-los que este movimento que acabo de explicar resulta necessária e somente da disposição dos órgãos que se podem observar a olho nu no coração, e do calor que lá se pode sentir com os dedos, e da natureza do sangue que se pode conhecer por experiências, da mesma maneira que o movimento de um relógio resulta da força, da situação e da forma dos seus contrapesos e das rodas” 

Observe-se que a teoria de Descartes, apesar de errada, é coerente com a nova visão mecanicista da natureza, como mostra a metáfora feita com o relógio. “A explicação cartesiana do corpo, considerado como máquina, necessita de um motor que possibilite todas as funções fisiológicas, e esse motor tem por base o fogo cardíaco que, por um processo semelhante à fermentação, faz com que o sangue entre em ebulição e distribua-se pelo corpo por meio das artérias.

A defesa da fermentação, como estando na base do movimento do coração e do sangue, não sofre alteração ao longo da obra de Descartes”. Para Descartes, o batimento cardíaco era uma consequência do movimento do sangue e não a sua causa: o coração é obrigado a contrair-se quando não contém sangue; volta a inchar quando tem novamente sangue.

Teoria do ato de reflexo

Pela linha de raciocínio mecânica da anatomia, Descartes observava que alguns robôs, na época criados para entreter as pessoas, tinham seus movimentos realizados através de canos por onde passava água sob pressão, fazendo com que as partes móveis dos robôs (pernas, braços e cabeça) ganhassem movimentos que imitavam o do ser humano. 

Porém, percebeu que, mesmo parecendo um movimento humano, os robôs apenas se movimentavam por causa da água que circulava em seus tubos, não sendo resultado da ação voluntária da máquina. Assim, o ser humano é algo muito mais complexo do que movimentos, podendo executar ações independente de sua vontade. 

Essa questão fez com que Descartes elaborasse a idéia do undulatio reflexa, modernamente conhecida como teoria do ato de reflexo, segundo a qual um estímulo externo pode gerar um movimento corporal que não depende da vontade do sujeito, como por exemplo, a perna se mover quando um médico bate no joelho com um pequeno martelo (reflexo patelar). Por essa teoria, o comportamento reflexo não envolve pensamento.

Veja mais:

Obras

• Regras para a Direção do Espírito (1628) – a obra da juventude inacabada na qual o método aparece em forma de numerosas regras;
• “O Mundo ou Tratado da Luz” (1632-1633) – a obra contém algumas das conquistas definitivas da física clássica: a lei da inércia, a da refração da luz e, principalmente, as bases epistemológicas contrárias ao que seria denominado de princípio da ciência escolástica, radicada no aristotelismo;
• Discurso sobre o Método (1637);
• Geometria (1637);
• Meditações sobre Filosofia Primeira (1641);
• “Princípios de Filosofia” (1644);
• “As Paixões da Alma” (1649);

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Sidarta Gautama https://canalfezhistoria.com/sidarta-gautama/ https://canalfezhistoria.com/sidarta-gautama/#respond Wed, 12 Mar 2025 10:05:07 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5962 Siddhartha Gautama, (por vezes, simplificado para Sidarta Gáutama ou Sidarta Gautama) é popularmente chamado simplesmente de Buda ou Buddha (Sct: बुद्ध, Buddha; lit. O Desperto) , foi um príncipe de uma região no sul do atual Nepal que, tendo renunciado ao trono, se dedicou à busca da erradicação das causas do sofrimento humano e de todos os seres, e desta forma encontrou um caminho até ao “despertar” ou “iluminação”. Após o que se tornou mestre ou professor espiritual, fundando o budismo. 

Na maioria das tradições budistas, é considerado como o “Supremo Buda” (Sammāsambuddha) de nossa era, Buda significando “o desperto”. A época de seu nascimento e a de sua morte são incertas: na sua maioria, os primeiros historiadores do século XX datavam seu tempo de vida por volta de 563 a.C. a 483 a.C.; mas recentemente, contudo, num simpósio especializado nesta questão, a maioria dos estudiosos apresentou opiniões definitivas de datas dentro do intervalo de 20 anos antes ou depois de 400 a.C. para a morte do Buda, com outros apoiando datas mais tardias ou mais recentes.

Gautama, também conhecido como Śākyamuni, Shakyamuni e Sakyamuni (“sábio do clã dos Shakyas”),é a figura-chave do budismo: os budistas creem que os acontecimentos de sua vida, bem como seus discursos e aconselhamentos monásticos, foram preservados depois de sua morte e repassados para outros povos pelos seus seguidores. Uma variedade de ensinamentos atribuídos a Gautama foram repassados através da tradição oral e, então, escritos cerca de 400 anos após a sua morte. Os primeiros estudiosos ocidentais tendiam a aceitar a biografia do Buda apresentada pelas escrituras budistas como verdadeira, mas, hoje em dia, “os acadêmicos são cada vez mais relutantes em clamar como aptos os fatos históricos dos ensinamentos e da vida do Buda.” 

Biografias tradicionais

As fontes primárias de informações sobre a vida de Siddhārtha Gautama são os textos budistas. Estes são compostos por uma grande variação de biografias tradicionais, nas quais estão incluídos o Buddhacarita, Lalitavistara Sūtra, Mahāvastu e o Nidānakathā. Destes, o Buddhacarita é a biografia completa mais antiga, sendo um poema épico escrito pelo poeta Aśvaghoṣa que data de por volta do começo do século II a.C.

O Lalitavistara Sūtra é a segunda biografia mais antiga e a biografia Mahāyāna/Sarvāstivāda data do século III. O Mahāvastu, extraído do Mahāsāṃghika Lokottaravāda, é outra grande fonte de biografia, tendo sido composto e incrementado desde o século IV a.C. Por último, temos o Nidānakathā, da escola Teravada do Sri Lanca, composto no século V a.C. por Budagosa. 

Das fontes canônicas, o Jātaka, o Mahāpadāna Sutta (DN 14) e o Acchariyaabbhuta Sutta (MN 123) incluem registros seletivos que, apesar de serem antigos, não são biografias completas. Os contos de Jātaka registram as vidas prévias de Gautama como um bodhisattva. A primeira dessas coleções pode ser datada entre os textos mais antigos do budismo. O Mahāpadāna Sutta e o Acchariyaabbhuta Sutta contam eventos miraculosos que ocorreram durante o nascimento de Gautama, como a descida do bodhisattva de Tuṣita dos céus para o útero de sua mãe.

Os antigos indianos, geralmente, não se preocupavam com cronologias, se focando mais nos aspectos filosóficos. Os textos budistas refletem esta tendência, oferecendo uma concepção mais clara sobre o que Gautama poderia ter ensinado do que as datas dos eventos em sua vida. Estes textos contêm descrições da cultura e do modo de vida da Índia Antiga, corroborados pelas escrituras Jainistas e fazendo, do tempo de Buda, o período mais antigo na Índia Antiga do qual significantes registros existiram. 

Concepção e nascimento

Siddhārtha nasceu em Lumbinī, no atual Nepal, e foi criado no pequeno reino ou principado de Kapilavastu, território atualmente dividido entre Nepal e Índia. Na época do nascimento de Buda, a área estava na fronteira ou além da civilização védica, a cultura dominante no norte da Índia naquele tempo. É mesmo possível que a sua língua materna não fosse uma língua indo-ariana. Os textos antigos sugerem que Gautama não estava familiarizado com os ensinamentos religiosos dominantes do seu tempo até que partisse em sua busca religiosa, que foi motivada por uma preocupação existencial com a condição humana.

Naquele tempo, uma multidão de pequenas cidades-estado existiam na Índia Antiga, chamadas Janapadas. Repúblicas e chefias com poder político difuso e limitado estratificação social não eram raros e eram chamados de gana-sangas. A comunidade de Buda não parece ter tido um sistema de castas. Não era uma monarquia e parece ter sido estruturado ou como uma oligarquia ou como uma forma de república. A forma mais igualitária de governo das gana-sangas, como uma alternativa política aos reinos fortemente hierarquizados, pode ter influenciado o desenvolvimento de shramanas (monges errantes) jainistas e sanghas budistas, enquanto que as monarquias tendiam para o bramanismo védico.

Segundo a biografia tradicional, o pai de Buda foi o rei Suddhodana, líder do clã Shakya, cuja capital era Kapilavastu (Capilvasto), e que foi posteriormente anexado pelo crescente reino de Côssala durante a vida de Buda. Gautama era o nome de família. Sua mãe, rainha Maha Maya (Māyādevī) e esposa de Suddhodana, era uma princesa Koliyan. Como era a tradição shakya, quando sua mãe, a rainha Maya, ficou grávida, ela deixou Kapilvastu e foi para o reino de seu pai para dar à luz.

No entanto, ela deu à luz no caminho, em Lumbini, em um jardim debaixo de uma árvore de Shorea robusta. Na noite que Siddhārtha foi concebido, segundo biografias tradicionais, a rainha Maya sonhou que um elefante branco com seis presas brancas entrou em seu lado direito, e, dez meses mais tarde, Siddhārtha nasceu. “Siddhartha” (em Pāli: Siddhattha) quer dizer “aquele que atinge seus objetivos”. “Gautama” significa “condutor de gado” (gau, gado + tama, condutor).

Outro registro relatado nas biografias tradicionais é a de que, durante as celebrações de seu nascimento, o eremita Asita, retornando de uma viagem às montanhas, anunciou que a criança iria se tornar ou um grande rei chakravartin ou um homem santo. O dia do nascimento de Buda é celebrado mundialmente, principalmente nos países de tradição teravada, e conhecido como Vesak. 

Juventude e casamento

Siddhārtha foi educado pela irmã mais nova de sua mãe, Maha Pajapati. Por tradição, ele deveria ter sido destinado por nascimento para a vida de um príncipe, e tinha três palácios (por ocupação sazonal) construídos para ele. O seu pai, Śuddhodana, desejando para o seu filho o destino de ser um grande rei e preocupado com extravio do filho desse caminho, segundo relatos biográficos, tentou proteger o filho dos ensinamentos religiosos e do conhecimento do sofrimento humano. 

Quando chegou a idade de 16 anos, seu pai arranjou-lhe um casamento com uma prima da mesma idade chamada Yashodhara (Pāli: Yasodhara). Segundo o relato tradicional, ela deu à luz um filho, chamado Rahula. Siddhārtha teria passado então 29 anos de sua vida como um príncipe em Kapilavastu. Embora seu pai garantisse que Siddhārtha fosse fornecido com tudo o que ele poderia querer ou precisar, escrituras budistas dizem que o futuro Buda sentiu que a riqueza material não era o objetivo final da vida. 

Partida e vida ascética

Com a idade de 29 anos, de acordo com as biografias populares, Siddhārtha saiu de seu palácio para encarar suas inquietações. Apesar dos esforços de seu pai para escondê-lo dos doentes, moribundos e do sofrimento presentes no mundo, Siddhārtha teria visto um homem velho. Quando seu cocheiro Chandaka explicou para ele que todas as pessoas envelheciam, o príncipe partiu para viagens para mais além do palácio. Nesses encontros, avistou um homem doente, um corpo em decomposição e um asceta. Estas visões o deprimiram e marcaram profundamente, o que lhe deu motivos para o esforço de tentar superar a doença, velhice e a morte através do ascetismo. 

Acompanhado por Chandaka e por seu cavalo Kanthaka, Gautama deixou seu palácio para a vida de um mendicante. Diz-se que os “cascos do cavalo eram abafados pelos deuses” para impedir que os guardas soubessem de sua partida. Gautama inicialmente foi para Rajagaha e começou sua vida ascética pedindo esmolas na rua. Tendo sido reconhecido pelos homens do rei Bimbisara, Bimbisara ofereceu-lhe o trono após a audição da busca de Siddhārtha. Siddhārtha rejeitou a oferta, mas prometeu visitar o seu reino de Mágada primeiro, depois de alcançar a iluminação.

Ele deixou Rajagaha e praticou sob dois professores eremitas. Depois de dominar os ensinamentos de Alara Kalama (em sânscrito: Arada Kalama), ele foi convidado por Kalama para sucedê-lo. No entanto, Gautama se sentia insatisfeito com a prática e mudou-se para se tornar um estudante de Udaka Ramaputta (em sânscrito: Udraka Rāmaputra). Com ele, ele alcançou altos níveis de consciência meditativa e foi novamente convidado a suceder a seu professor. Mas, mais uma vez, ele não estava satisfeito e mudou-se novamente. 

Siddhārtha e um grupo de cinco companheiros, liderados por Kaundinya, tomaram austeridades ainda maiores nas práticas yogicas. Eles tentaram encontrar a iluminação através da privação de bens materiais, incluindo a alimentação, praticando a automortificação. Depois de quase passar fome até a morte, restringindo a sua ingestão de alimentos para cerca de uma folha por dia, ele caiu em um rio durante o banho e quase se afogou. Siddhārtha começou a reconsiderar seu caminho. Então, lembrou-se de um momento na infância em que tinha estado a observar seu pai a arar o campo. Ele atingiu um estado concentrado, focado, feliz e abençoado: o jhana. 

Iluminação

De acordo com os textos mais antigos, após ter alcançado o estado meditativo de jhana, Gautama estava no caminho certo para a iluminação. Mas o seu ascetismo extremo não funcionou e Gautama descobriu o que os Budistas chamaram de o Caminho do Meio, o caminho para a moderação, afastado dos extremismos da autoindulgência e da automortificação. Em um famoso incidente, depois ter ficado extremamente fraco devido à fome, é dito que ele aceitou leite e pudim de arroz de uma garota chamada Sujata. Tal era a aparência pálida de Siddhārtha, que Sujata teria acreditado, erroneamente, que ele seria um espírito que lhe realizaria um desejo. 

Seguindo este incidente, Gautama sentou-se sob uma árvore (segundo a tradição budista, a árvore era uma Ficus religiosa), conhecida agora como a Árvore de Bodhi, em Bodh Gaya e jurou nunca mais se levantar enquanto não tivesse encontrado a verdade. Kaundinya e outros quatro companheiros, acreditando que ele tinha abandonado a sua busca e se tornado um indisciplinado, o deixaram para trás.

Após 49 dias de meditação e com a idade de 35 anos, é dito que Gautama alcançou a iluminação espiritual. Segundo algumas tradições, isto ocorreu em aproximadamente quinze meses lunares, enquanto que, de acordo com outras tradições, o fato ocorreu em doze meses. Desde este tempo, Gautama ficou conhecido por seus seguidores como o Buda, termo derivado do páli buddha, que significa “desperto, iluminado, o que compreendeu, o que sabe”. Ele é frequentemente referido dentro do budismo como o Shakyamuni Buda, ou “O Iluminado da tribo dos Shakya”. Outro termo pelo qual Siddhārtha se tornou conhecido pelos seus contemporâneos foi Sugato, termo páli que, traduzido, significa “Feliz”.

De acordo com o budismo, durante a sua iluminação, Siddhārtha compreendeu as causas do sofrimento e os caminhos necessários para eliminá-lo. Estas descobertas tornaram-se conhecidas como as Quatro Nobres Verdades, que são o coração dos ensinamentos budistas. Com a realização dessas verdades, um estado de suprema liberação, ou nirvana, é acreditado ser possível ao alcance de qualquer ser. O Buda descreve o nirvana como um estado perfeito de paz mental livre de toda ignorância, inveja, orgulho, ódio e outros estados aflitivos. Nirvana é também conhecido como o fim do ciclo samsárico, em que nenhuma identidade pessoal ou limites da mente permanecem. 

De acordo com a história do Āyācana Sutta (Samyutta Nikaya VI.1) – uma escritura, escrita em páli – e outros canônes, imediatamente após a sua iluminação, o Buda debateu se deveria ou não ensinar o dharma aos outros. Ele estava preocupado que os humanos, tão fortemente influenciados pela ignorância, inveja e ódio, poderiam nunca reconhecer o caminho, que é profundo e difícil de ser compreendido. No entanto, segundo o mito, Brahmā Sahampati tê-lo-ia convencido a ensinar a doutrina, argumentando que pelo menos alguns iriam entendê-lo. O Buda, após isso, concordou em ensinar o darma. 

Pregação

Após ter criado sua doutrina, Siddhārtha percorreu o país pelos 45 anos seguintes, difundindo-a. Teve grande aceitação por uma grande parte da população, havendo episódios de professores de outras linhas, juntamente com todos os seus discípulos, converterem-se em alunos seus. Também houve inimigos que tentaram detê-lo, normalmente Brâmanes que viam sua religião e seu status social ameaçados pela nova doutrina. Sidarta enfrentou a oposição também de seu primo Devadatta, que, apesar de ter se tornado seu discípulo, posteriormente quis superar Sidarta e tomar-lhe o controle da sanga. 

Morte

Siddhārtha morreu aos oitenta anos de idade, na cidade de Kushinagar, no atual estado de Uttar Pradesh, na Índia. Seu corpo foi cremado por seus amigos, sob a orientação de Ananda, seu assistente pessoal. As suas cinzas foram repartidas entre vários governantes, para serem veneradas como relíquias sagradas.

Veja mais:

Achado arqueológico de 2013

Em 2013, foram achados restos de uma estrutura em madeira sob tijolos com um espaço aberto no centro, como se fosse um santuário, no templo Maya Devi (o lugar tradicionalmente tido como o lugar do nascimento de Buda), em Lumbini, no Nepal. Também foram achados indícios de raízes de árvores antigas no vazio central do templo. A estrutura foi datada como tendo sido fabricada no século VI a.C. O achado foi considerado a primeira evidência arqueológica ligando a vida de Buda a um século específico.

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Sigmund Freud https://canalfezhistoria.com/sigmund-freud/ https://canalfezhistoria.com/sigmund-freud/#respond Wed, 12 Mar 2025 10:00:56 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5953 Sigmund Schlomo Freud (Freiberg in Mähren, 6 de maio de 1856 – Londres, 23 de setembro de 1939), mais conhecido como Sigmund Freud, foi um médico neurologista e psiquiatra criador da psicanálise. Freud nasceu em uma família judaica, em Freiberg in Mähren, na época pertencente ao Império Austríaco (atualmente, a localidade é denominada Příbor, e pertence à República Tcheca). 

Freud iniciou seus estudos pela utilização da técnica da hipnose no tratamento de pacientes com histeria, como forma de acesso aos seus conteúdos mentais. Ao observar a melhora dos pacientes tratados pelo médico francês Charcot, elaborou a hipótese de que a causa da histeria era psicológica, e não orgânica. Essa hipótese serviu de base para outros conceitos desenvolvidos por Freud, como o do inconsciente. 

Freud também é conhecido por suas teorias do complexo de édipo e da repressão psicológica e por criar a utilização clínica da psicanálise como tratamento das psicopatologias, através da escuta do paciente. Freud acreditava que o desejo sexual era a energia motivacional primária da vida humana. Sua obra fez surgir uma nova compreensão do ser humano, como um animal dotado de razão imperfeita e influenciado por seus desejos e sentimentos. Segundo Freud, a contradição entre esses impulsos e a vida em sociedade gera, no ser humano, um tormento psíquico. 

Freud tinha uma visão biopsicossocial do ser humano. Fatos como a descrição de pacientes curados através do diálogo por Josef Breuer e a morte do colega Ernst von Fleischl-Marxow por dose excessiva do antidepressivo da época, a cocaína, levaram-no ao abandono das técnicas de hipnose e de drogas para criar um novo método: a cura pela fala, ou seja, a psicanálise, que utilizava a interpretação de sonhos e a livre associação como vias de acesso ao inconsciente. 

Suas teorias e seus tratamentos foram controversos na Viena do século XIX, e continuam a ser muito debatidos hoje. Sua teoria é de grande influência na psicologia atual e segue se desenvolvendo através de estudos e prática clínica na área, com psicanalistas que vieram depois dele. Estes criaram suas próprias teorias, mas sempre com base nos pressupostos intrínsecos colocados por Freud, como a noção de inconsciente e transferência. 

Biografia

Sigmund Freud era filho de Jacob Freud (um judeu proveniente da Galícia e comerciante de lã) e de sua terceira mulher, Amalie Nathanson (1835-1930). Nascido com o nome de Sigmund Schlomo Freud em 1856, Freud foi anotado no Registro Civil como Segismundo Schlomo Freud . 

Freud, com dois anos de idade, mudou-se com sua família primeiro para Lípsia na Alemanha e logo após mudou-se para Viena em 1860, quando tinha quatro anos de idade, por causa de problemas financeiros e de problemas de saúde de sua família.

Freud ingressou na Universidade de Viena aos 17 anos. Ele planejava estudar direito mas, ao invés disso, entrou para a faculdade de medicina, onde seus estudos incluíram filosofia, com o professor Franz Brentano, fisiologia, com o professor Ernst Brücke e zoologia, com o professor darwinista Carl Friedrich Claus. Em 1876, Freud passou quatro semanas na estação zoológica de Claus em Trieste, dissecando o sistema reprodutor masculino de centenas de enguias, num estudo que se revelou inconclusivo. 

Os primeiros anos de Freud são pouco conhecidos, já que ele destruiu seus escritos pessoais em duas ocasiões: a primeira em 1885 e novamente em 1894. Além disso, seus escritos posteriores foram protegidos cuidadosamente nos Arquivos de Sigmund Freud, aos quais só tinham acesso Ernest Jones (seu biógrafo oficial) e uns poucos membros do círculo da psicanálise. O trabalho de Jeffrey Moussaieff Masson pôs alguma luz sobre a natureza do material oculto.

Os estudos na universidade tomaram-lhe inesperadamente bastante tempo até a graduação, em 1881. Registros de amigos que o conheciam naquela época, assim como informações nas próprias cartas escritas por Freud, sugerem que ele foi menos diligente nos estudos de medicina do que devia ter sido.

Em lugar dos estudos, ele atinha-se à pesquisa científica, inicialmente pelos estudos dos órgãos sexuais de enguias — um estranho, mas interessante presságio das teorias psicanalíticas que estariam por vir vinte anos mais tarde. De acordo com os registros, Freud completou tal estudo satisfatoriamente, mas sem distinção especial. Em 1877, desapontado com os resultados e talvez menos excitado em enfrentar mais dissecações de enguias, Freud foi ao laboratório de Ernst Brücke, que tornou-se seu principal modelo de ciência. 

Com Brücke, Freud entra em contato com a linha fisicalista da fisiologia. O interesse de Brücke não era apenas descobrir as estruturas de órgãos ou células particulares, mas sim, suas funções. Dentre as atribuições de Freud, nesta época, estavam o estudo da anatomia e da histologia do cérebro humano. Durante os estudos, identificou várias semelhanças entre a estrutura cerebral humana e a de répteis, o que o remete ao então recente estudo de Charles Darwin sobre a evolução das espécies e à discussão da “superioridade” dos seres humanos sobre outras espécies. 

Freud, então, conhece Martha Bernays, e parece ter sido amor à primeira vista. Seu desejo de desposar Martha, o baixo salário e as poucas perspectivas de carreira na pesquisa científica fazem-no abandonar o laboratório e a começar a trabalhar no Hospital Geral, o principal hospital de Viena, passando por vários departamentos do mesmo. O próprio Brücke aconselha-o a mudar, apesar de seu bom desempenho e com razão, já que Freud precisava ganhar dinheiro. 

No hospital, depois de algumas desilusões com o estudo dos efeitos terapêuticos da cocaína — com inclusive um episódio de morte por overdose de um amigo da época do laboratório de Brücke —, Freud recebe uma licença e viaja para a França, onde trabalha com Charcot, um respeitável psiquiatra do hospital psiquiátrico Saltpêtrière que estudava a histeria.

De volta ao Hospital Geral e entusiasmado pelos estudos de Charcot, Freud passa a atender, na maior parte, jovens senhoras judias que sofriam de um conjunto de sintomas aparentemente neurológicos que compreendiam paralisia, cegueira parcial, alucinações, perda de controle motor e que não podiam ser diagnosticados com exames. O tratamento mais eficaz para tal doença incluía, na época, massagem, terapia de repouso e hipnose. 

Em 14 de setembro de 1886, em Hamburgo, Freud casou-se com Martha Bernays com a ajuda financeira de alguns amigos mais abastados, dentre eles Josef Breuer, um colega mais velho da faculdade de medicina. Foi com as discussões de casos clínicos com Breuer que surgiram as ideias que culminaram com a publicação dos primeiros artigos sobre a psicanálise. O primeiro caso clínico relatado deve-se a Breuer e descreve o tratamento dado a uma paciente (Bertha Pappenheim, chamada de “Anna O.” no livro), que demonstrava vários sintomas clássicos de histeria.

O método de tratamento consistia na chamada “cura pela fala” ou “cura catártica”, na qual o ou a paciente discute sobre as suas associações com cada sintoma e, com isso, os faz desaparecer. Esta técnica tornou-se o centro das técnicas de Freud, que também acreditava que as memórias ocultas ou “reprimidas” nas quais baseavam-se os sintomas de histeria eram sempre de natureza sexual. Breuer não concordava com Freud neste último ponto, o que levou à separação entre eles logo após a publicação dos casos clínicos. 

Na verdade, inicialmente, a classe médica em geral acaba por marginalizar as ideias de Freud; seu único confidente durante esta época é o médico Wilhelm Fliess. Depois que o pai de Freud falece, em outubro de 1896, segundo as cartas recebidas por Fliess, Freud, naquele período, dedica-se a anotar e analisar seus próprios sonhos, remetendo-os à sua própria infância e, no processo, determinando as raízes de suas próprias neuroses.

Tais anotações tornam-se a fonte para a obra A Interpretação dos Sonhos. Durante o curso desta autoanálise, Freud chega à conclusão de que seus próprios problemas eram devidos a uma atração por sua mãe e a uma hostilidade em relação a seu pai. É o famoso “complexo de Édipo”, que se torna o coração da teoria de Freud sobre a origem da neurose em todos os seus pacientes.

Nos primeiros anos do século XX, são publicadas suas obras A Interpretação dos Sonhos e A psicopatologia da vida cotidiana. Nesta época, Freud já não mantinha mais contato nem com Josef Breuer, nem com Wilhelm Fliess. No início, as tiragens das obras não animavam Freud, mas logo médicos de vários lugares — Eugen Bleuler, Carl Jung, Karl Abrahams, Ernest Jones, Sandor Ferenczi — mostram respaldo às suas ideias e passam a compor o Movimento Psicanalítico. Por sua vida inteira, Freud teve uma posição financeira modesta. Josef Breuer foi, no início, um aliado de Freud em suas ideias e também um aliado financeiro. 

Freud criou o termo “psicanálise” para designar um método para investigar os processos inconscientes e de outro modo inacessíveis do psiquismo. Nos tempos do nazismo, Freud perdeu quatro das cinco irmãs nos campos de concentração: Regine (Rosa) em Auschwitz, Mitzi (Marie) em Theresienstadt, Dolfi (Esther Adolfine) e Paula (Pauline) em Treblinka. Embora Maria Bonaparte tenha tentado tirá-las do país, elas foram impedidas de sair de Viena pelas autoridades nazistas. 

Morou em Viena até 1938, quando, após a anexação da Áustria à Alemanha nazista, em razão de sua etnia judaica, refugiou-se na Inglaterra, onde já se encontrava parte de sua família. Freud morreu de cancro no palato aos 83 anos de idade (passou por trinta e três cirurgias). Supõe-se que tenha morrido de uma dose excessiva de morfina. Freud sentia muita dor, e segundo a história contada, ele teria dito ao médico que lhe aplicasse uma dose excessiva de morfina para terminar com o sofrimento, o que seria eutanásia. 

Encontra-se sepultado no crematório de Golders Green, no bairro de Golders Green, em Londres, na Inglaterra. 

Freud e Martha tiveram seis filhos: Mathilde, nascida em 1887, Jean-Martin, nascido em 1889, Olivier, nascido em 1891, Ernst, nascido em 1892, Sophie, nascida em 1893 e Anna, nascida em 1895. Um deles, Martin Freud, escreveu uma memória intitulada Freud: Homem e Pai, na qual descreve o pai como um homem que trabalhava extremamente, por longas horas, mas que adorava ficar com suas crianças durante as férias de verão.

Anna Freud, filha de Freud, foi também uma psicanalista destacada, particularmente no campo do tratamento de crianças e do desenvolvimento psicológico. Sigmund Freud foi avô do pintor Lucian Freud e do ator e escritor Clement Freud, e bisavô da jornalista Emma Freud, da desenhista de moda Bella Freud e do relações públicas Matthew Freud.

Pacientes de Freud

Esta é uma lista parcial de pacientes cujos estudos de caso foram publicados por Freud. 

• Anna O. = Bertha Pappenheim (1859-1936), paciente de Breuer, tratada pelo método catártico (livre associação de ideias).
• Cäcilie M. = Anna von Lieben
• Dora = Ida Bauer (1882-1945)
• Frau Emmy von N. = Fanny Moser
• Fräulein Elizabeth von R.
• Fräulein Katharina = Aurelia Kronich
• Fräulein Lucy R.
• O pequeno Hans = Herbert Graf (1903-1973)
• O homem dos ratos = Ernst Lanzer (1878-1914)
• O homem dos lobos = Sergei Pankejeff (1887-1979)

Pensamento e Linguagem

Em suas teorias, Freud afirma que os pensamentos humanos são desenvolvidos por processos diferenciados, relacionando tal ideia à de que o nosso cérebro trabalha essencialmente no campo da semântica, isto é, a mente desenvolve os pensamentos num sistema intrincado de linguagem baseada em imagens, as quais são meras representações de significados latentes.

Em diversas obras, como “A Interpretação dos Sonhos”, “A Psicopatologia da Vida Cotidiana” e “Os Chistes e suas Relações com o Inconsciente”, Freud não só desenvolve sua teoria sobre o inconsciente da mente humana, como articula o conteúdo do inconsciente ao ato da fala, especialmente aos atos falhos. Para Freud, a consciência humana subdivide-se em três níveis: Consciente, Pré-Consciente e Inconsciente – o primeiro contém o material perceptível; o segundo, o material latente, mas passível de emergir à consciência com certa facilidade; e o terceiro contém o material de difícil acesso, isto é, o conteúdo mais profundo da mente, que está ligado aos instintos primitivos do homem. 

Os níveis de consciência estão distribuídos entre as três entidades que formam a mente humana, ou seja, o Id, o Ego e o Superego. Segundo Freud, o conteúdo do inconsciente é, muitas vezes, reprimido pelo Ego. Para driblar a repressão, as ideias inconscientes apelam aos mecanismos definidos por Freud em sua obra “A Interpretação dos Sonhos”, como deslocamento e condensação. Estes dois, mais tarde, seriam relacionados por Jacobson à metonímia e metáfora, respectivamente. 

Portanto, as representações de ideias inconscientes manifestam-se nos sonhos como símbolos imagéticos, tanto metafóricos quanto metonímicos. Aplicando o conceito à fala, o inconsciente consegue expelir ideias recalcadas através dos chistes ou atos falhos. Freud propõe que as piadas ou as “trocas de palavras por acidente” nem sempre são inócuas. Antes, são mecanismos da fala que articulam ideias aparentes com ideias reprimidas, são meios pelos quais é possível exprimir os instintos primitivos. Semelhante à análise dos sonhos, a análise da fala seria um caminho psicanalítico para investigar os desejos ocultos do homem e as causas das psicopatologias. 

“É na palavra e pela palavra que o inconsciente encontra sua articulação essencial.” Deste modo, Freud cria uma inter-relação entre os campos da linguística e da psicanálise, que será retomada por estudiosos posteriores, como Jacques-Marie Émile Lacan. 

Fundamentos da terapia freudiana

O objetivo da terapia freudiana ou psicanálise é, relacionando conceitos cartesianos da mente e conceitos da hidráulica, mover (mediante a associação livre e a interpretação dos sonhos) os pensamentos e sentimentos reprimidos (explicados como uma forma de energia) através do consciente para permitir, ao sujeito, a catarse que provocaria a cura automática. 

Teoria da Representação

O fenômeno representacional psíquico está relacionado ao sistema nervoso humano. As representações, segundo Freud, são analógicas e imagéticas. Estas se inter-relacionam através de redes associativas. As redes associativas das representações são provenientes do processo fisiológico cerebral, que se baseia em uma rede de neurônios. Esse processo ocorre através de um mecanismo reflexo: a informação parte por uma rede associativa de neurônios até chegar à região motora e sensorial. Ela provoca então, modificações nas células centrais, causando a formação das representações. Enquanto elementos, as representações são originadas da percepção sensorial do indivíduo. São unidades mentais tanto de objetos, como de situações, sensações, relações. 

A representação de objeto, também chamada de representação da “coisa”, é “um complexo de associações, formado por uma grande variedade de apresentações visuais, acústicas, táteis, cinestésicas e outras”, de acordo com Freud. 

As emoções, por exemplo, são processos de descarga de energia, que são percebidos como os sentimentos. São as chamadas representações imagéticas, que não formam imagens psíquicas, e sim traços mnésicos de sensações. 

É preciso destacar que as relações entre as representações não são a demonstração e a manifestação dos sentimentos, dos afetos, das emoções. A relação entre os tipos de representação formam as ideias, ou seja, as relações associativas contidas nas representações de objeto (captadas pelos processos perceptivos) formam os complexos de sensações associados, dando origem a uma representação completa. Portanto, um único objeto representado na mente é constituído por seus vários aspectos sensoriais da realidade externa: cor, gosto, textura, cheiro e coisas do gênero. 

Teoria do processo de pensamento

Segundo Freud, o processo de pensamento é a ativação ou inibição dos complexos de sensações associadas que tornam, possível, o fenômeno representacional psíquico, o que se dá através da energia que flui no sistema nervoso pelos sistemas de neurônios. Podemos distinguir, neste processamento, um nível primário e um secundário. 

Processo Primário

Associado ao inconsciente, o processamento primário do pensamento é aquele que dirige ações imediatas ou reflexas, sendo associado, assim, ao prazer, ao emocional do indivíduo e ao fenômeno de arco reflexo. Nele, a energia presente no aparelho mental flui livremente pelas representações, do polo do estímulo ao da resposta. 

Processo Secundário

O processo de pensamento secundário, por outro lado, está associado ao pré-consciente, também chamado de “ação interiorizada” ou, ainda, de “processo racional do pensamento”. Nele, o escoamento de energia mental fica retido, só acontecendo após uma série de associações, as quais se refletem no aparelho psíquico. As ações decorrentes dessa forma de processamento devem ser tomadas com base no mundo externo, no contexto em que a pessoa se encontra e em seus objetivos. Assim, ao contrário da energia do processo primário, que é livre, a energia do secundário é condicional, ou seja, está sujeita a quaisquer ações. 

Inovações de Freud

Freud foi inovador. Simultaneamente, desenvolveu uma teoria da mente e da conduta humana, e uma técnica terapêutica para ajudar pessoas afetadas psiquicamente. Alguns de seus seguidores afirmam estar influenciados por um, mas não pelo outro campo. 

Provavelmente a contribuição mais significativa que Freud fez ao pensamento moderno é a de tentar dar, ao conceito de inconsciente, um status científico (não compartilhado por várias áreas da ciência e da psicologia). Seus conceitos de inconsciente, desejos inconscientes e repressão foram revolucionários; propõem uma mente dividida em camadas ou níveis, dominada em certa medida por vontades primitivas que estão escondidas sob a consciência e que se manifestam nos lapsos e nos sonhos. Em sua obra mais conhecida, A Interpretação dos Sonhos, Freud explica o argumento para postular o novo modelo do inconsciente e desenvolve um método para conseguir o acesso ao mesmo, tomando elementos de suas experiências prévias com as técnicas de hipnose. 

Como parte de sua teoria, Freud postula também a existência de um pré-consciente, que descreve como a camada entre o consciente e o inconsciente (o termo subconsciente é utilizado popularmente, mas não é parte da terminologia psicanalítica). A repressão em si tem grande importância no conhecimento do inconsciente. De acordo com Freud, as pessoas experimentam repetidamente pensamentos e sentimentos que são tão dolorosos que não podem suportá-los. Tais pensamentos e sentimentos (assim como as recordações associadas a eles) não podem ser expulsos da mente, mas, em troca, são expulsos do consciente, para formar parte do inconsciente. 

Embora, ao longo de sua carreira, Freud tenha tentado encontrar padrões de repressão entre seus pacientes que derivassem em um modelo geral para a mente, ele observou que pacientes diferentes reprimiam fatos diferentes. Observou, ainda, que o processo da repressão é, em si mesmo, um ato não consciente (isto é, não ocorreria através da intenção dos pensamentos ou sentimentos conscientes). Em outras palavras, o inconsciente era tanto causa como efeito da repressão. 

Cocaína

Como um pesquisador da área médica e da psicanálise, Freud foi um dos primeiros a usar e a propor o uso da cocaína como um estimulante, bem como analgésico. Ele escreveu vários artigos sobre as qualidades antidepressivas do medicamento e ele foi influenciado por seu amigo e confidente Wilhelm Fliess, que recomendou a cocaína para o tratamento da “neurose nasal reflexa”. Fliess operou Freud e o nariz de vários pacientes de Freud que ele acreditava estarem sofrendo do transtorno, incluindo Emma Eckstein, cuja cirurgia foi desastrosa. 

Freud achava que a cocaína iria funcionar como uma panaceia para muitos transtornos e escreveu um artigo científico bem recebido, “Sobre Coca” (Über Coca, em alemão), explicando as suas virtudes. Prescreveu-o para seu amigo Ernst von Fleischl-Marxow para ajudá-lo a superar o vício da morfina, que tinha adquirido ao tratar uma doença do sistema nervoso. 

Divisão do Inconsciente

Freud procurou uma explicação à forma de operar do inconsciente, propondo uma estrutura particular. No primeiro tópico, recorre à imagem do iceberg em que o consciente corresponde à parte clara, e o inconsciente corresponde à parte não visível, ou seja, à parte submersa do iceberg. De sua teoria, ele estava preocupado em estudar o que levava à formação dos sintomas psicossomáticos (principalmente a histeria, por isso apenas os conceitos de inconsciente, pré-consciente e consciente eram suficientes). Quando sua preocupação se virou para a forma como se dava o processo da repressão, passou a adotar os conceitos de id, ego e superego. 

  • O id representa os processos primitivos do pensamento e constitui, segundo Freud, o reservatório das pulsões, dessa forma toda energia envolvida na atividade humana seria advinda do Id. Inicialmente, considerou que todas essas pulsões seriam ou de origem sexual, ou que atuariam no sentido de autopreservação. Posteriormente, introduziu o conceito das pulsões de morte, que atuariam no sentido contrário ao das pulsões de agregação e preservação da vida. O Id é responsável pelas demandas mais primitivas e perversas.
  • O Ego, permanece entre ambos, alternando nossas necessidades primitivas e nossas crenças éticas e morais. É a instância na que se inclui a consciência. Um eu saudável proporciona a habilidade para adaptar-se à realidade e interagir com o mundo exterior de uma maneira que seja cômoda para o id e o superego.
  • O Superego, a parte que contra-age ao id, representa os pensamentos morais e éticos internalizados. Freud estava especialmente interessado na dinâmica destas três partes da mente. Argumentou que essa relação é influenciada por fatores ou energias inatas, que chamou de pulsões. Descreveu duas pulsões antagónicas: Eros, uma pulsão sexual com tendência à preservação da vida, e Tânato, a pulsão da morte, que levaria à segregação de tudo o que é vivo, à destruição. Ambas as pulsões não agem de forma isolada, estão sempre trabalhando em conjunto. Como no exemplo de se alimentar, embora haja pulsão de vida presente, afinal a finalidade de se alimentar é a manutenção da vida, existe também a pulsão de morte presente, pois é necessário que se destrua o alimento antes de ingeri-lo, e aí está presente um elemento agressivo, de segregação. 

MECANISMOS DE DEFESA

As percepções de um acontecimento, do mundo externo ou interno, pode ser algo muito constrangedor, doloroso, desorganizador, para evitar esse desprazer, a pessoa “deforma” ou suprime a realidade – deixa de registrar percepções externas, afasta determinados conteúdos, psíquicos, interfere no pensamento. São vários mecanismos que o indivíduo pode realizar essa deformação da realidade, chamados mecanismos de defesa, são eles: 

· RECALQUE: indivíduo “não vê” ou “não ouve” o que ocorre. Existe a supressão de uma parte da realidade. 
· FORMAÇÃO REATIVA: o ego procura afetar o desejo que vai para determinada direção, e para isso o indivíduo adota uma atitude oposta á esse desejo. 
· REGRESSÃO: o indivíduo retorna as etapas anteriores do seu desenvolvimento, é passagem para modos de expressão primitivos. 
· PROJEÇÃO: é uma confluência de distorções do mundo externo e interno. O indivíduo localiza no mundo externo e não percebe que aquilo foi projetado com algo que considera indesejável. 
· RACIONALIZAÇÃO: o indivíduo constrói uma argumentação intelectualmente convincente e aceitável, que justifica os estados “deformados” de convivência. 

Libido

Freud também acreditava que a libido amadurecia nos indivíduos por meio da troca de seu objeto (ou objetivo). Argumentava que os humanos nascem “polimorficamente perversos”, no sentido de que uma grande variedade de objetos possam ser uma fonte de prazer, sem ter a pretensão de se chegar à finalidade última, ou seja, o ato sexual.

O desenvolvimento psicossexual ocorreria em etapas, de acordo com a área na qual a libido está mais concentrada: a etapa oral (exemplificada pelo prazer dos bebês ao chupar a chupeta, que não tem nenhuma função vital, mas apenas a de proporcionar prazer); a etapa anal (exemplificada pelo prazer das crianças ao controlar sua defecação); e logo a etapa fálica (que é demonstrada pela manipulação dos órgãos genitais). 

Até então, percebe-se que a libido é voltada para o próprio ego, ou seja, a criança sente prazer consigo mesma. O primeiro investimento objetal da libido, segundo Freud, ocorreria no progenitor do sexo oposto, esta fase caracterizada pelo investimento libidinal em um dos progenitores (se chama complexo de Édipo). A criança percebe, então, que, entre ela e a mãe (no caso de um menino), existe o pai, impedindo a comunhão por ele desejada.

A criança passa então a amar a mãe e a experienciar um sentimento antagônico de amor e ódio com relação ao pai. Ela percebe, então, que tanto o amor vivido com a mãe como o ódio vivido com o pai são proibidos e o complexo de Édipo é, então, finalizado com o surgimento do superego, com a desistência da criança com relação à mãe e com a identificação do menino com o pai. 

Freud e a neurologia

É menos conhecido o interesse de Freud pela neurologia. No início de sua carreira, investigou a paralisia cerebral. Publicou numerosos artigos médicos neste campo. Também mostrou que a doença existia muito antes de outros pesquisadores de seu tempo terem notícia dela e de a estudarem. Também sugeriu que era errado que esta doença, segundo descrito por William Little (cirurgião ortopédico britânico), tivesse, como causa, uma falta de oxigênio durante o nascimento. Ao invés disso, Freud afirmou que as complicações no parto eram somente um sintoma do problema. Somente na década de 1980, suas especulações foram confirmadas por pesquisadores modernos. 

Nas últimas décadas o modelo estrutural de Freud tem sido validado pelas pesquisas que buscam correlacionar a neurociência e a psicanálise. Os dados que verificam as descrições de Freud da segunda tópica confirmam seu lugar na neurofisiologia hoje e permanecem abertos à discussão para melhor compreensão da mente humana. 

Transferência

Outro elemento importante da psicanálise é a pouca intervenção do psicanalista, para que o paciente possa projetar seus pensamentos e sentimentos no psicanalista. Através deste processo, chamado de transferência, o paciente pode reconstruir e resolver conflitos reprimidos (causadores de sua doença), especialmente conflitos da infância com seus pais. 

Críticas a Freud

Atualmente, muitas críticas têm sido feitas ao método psicanalítico, porém, por mais que a ciência moderna avance, muitos dos conceitos estruturadores da psique humana e os resultados obtidos pela aplicação do método continuam melhorando a qualidade de vida de muitas pessoas. Nota-se que a revolução promovida por Freud abriu caminhos para estudos que antigamente se encontravam em um plano imaginário.

A criação de um método clínico a serviço do diagnóstico e tratamento de doenças da psique é um fato sem igual em toda a história da ciência. Porém, é de se constatar, certamente, que, em muitos escritos de Montaigne e de Pascal, a ideia da autoanálise já era usada para explicar problemas subjetivos usando a lógica vigente, transformando os problemas do ser e de seu inconsciente em desafios universais, com os quais todos os homens se deparam. 

Uma das mais severas críticas sofridas pelo método psicanalítico foi feita pelo filósofo da ciência Karl Popper. Segundo ele, a psicanálise é pseudociência, pois uma teoria seria científica apenas se pudesse ser falseável pelos fatos. 

Um exemplo é a teoria freudiana do “Complexo de Édipo”. Freud afirmava que esse complexo era universal, mas com que base de dados chegou a essa conclusão? Na época da formulação da psicanálise, a sua “amostra” era bastante limitada; parte dela vinha de sua experiência subjetiva (a sua “autoanálise” precedendo a publicação de A Interpretação dos Sonhos) e da sua prática clínica, feita na maioria das vezes com pacientes burgueses de uma Áustria vitoriana. Ou seja: uma amostra retirada de contextos bem específicos e que não poderiam fundamentar a universalidade pretendida pelo autor.

No entanto, contrária a esta afirmação, a utilização da cultura nas teorias psicanáliticas (como demonstrada pelo uso do mito grego Édipo Rei) fundamenta esta universalidade ao recorrer à mesma situação ou conflito em diferentes contextos (para Édipo, a Grécia do século V a.C; para Freud, a Viena do século XX d.C.), de acordo com o psicanalista Renato Mezan em seu livro Freud, Pensador da Cultura. 

Outra crítica robusta foi feita pelo psiquiatra inglês Willian Sargant no livro “A possessão da mente”. O autor relata suas experiências com pacientes com traumas de guerra, em que ele se deparou com situações nas quais estes se tornavam altamente sugestionáveis. O método psicanalítico, segundo Sargant, atuaria de forma semelhante a estes fenômenos, o que tornava não críveis os relato dos pacientes que supostamente confirmavam o pensamento freudiano. Como a relação psicanalista-paciente pode provocar estados de alta sugestionabilidade, estes estariam, na verdade, expressando as crenças do próprio psicanalista. 

Crítica ao modelo psicossexual

O modelo psicossexual que desenvolveu tem sido criticado por diferentes frentes. Alguns têm atacado a afirmação de Freud sobre a existência de uma sexualidade infantil (e, implicitamente, a expansão que se fez na noção de sexualidade). Outros autores, porém, consideram que Freud não ampliou os conhecimentos sobre sexualidade (que tinham antecedentes na psiquiatria e na filosofia, em autores como Schopenhauer); senão que Freud “neurotizou” a sexualidade ao relacioná-la com conceitos como incesto, perversão e transtornos mentais. Ciências como a antropologia e a sociologia argumentam que o padrão de desenvolvimento proposto por Freud não é universal nem necessário no desenvolvimento da saúde mental, qualificando-o de etnocêntrico por omitir determinantes socioculturais.

Veja mais:

Freud esperava provar que seu modelo, baseado em observações da classe média austríaca, fosse universalmente válido. Utilizou a mitologia grega e a etnografia contemporânea como modelos comparativos. Recorreu ao “Édipo Rei” de Sófocles para indicar que o ser humano deseja o incesto de forma natural e como é reprimido este desejo. O complexo de Édipo foi descrito como uma fase do desenvolvimento psicossexual e de amadurecimento.

Também fixou-se nos estudos antropológicos de totemismo, argumentando que este reflete um costume ritualizado do complexo de Édipo (Totem e Tabu). Incorporou, também, em sua teoria, conceitos da religião católica e da judaica; assim como princípios da Sociedade Vitoriana sobre repressão, sexualidade e moral; e outros da biologia e da hidráulica. Esperava que sua investigação proporcionasse uma sólida base científica para seu método terapêutico.

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Simón Bolívar https://canalfezhistoria.com/simon-bolivar/ https://canalfezhistoria.com/simon-bolivar/#respond Tue, 11 Mar 2025 21:54:56 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5946 Simón José Antonio de la Santísima Trinidad Bolívar y Palacios Ponte-Andrade y Blanco (Caracas, 24 de julho de 1783 — Santa Marta, 17 de dezembro de 1830), comumente conhecido como Simón Bolívar, foi um militar e líder político venezuelano, sendo o primeiro ilustrado a apoiar na prática a descolonização. Junto a José de San Martín, foi uma das peças chave nas guerras de independência da América Espanhola do Império Espanhol. 

Após o triunfo da Monarquia Espanhola, Bolívar participou da fundação da primeira união de nações independentes na América Latina, nomeada Grã-Colômbia, da qual foi Presidente de 1819 a 1830. Simón Bolívar é considerado por alguns países da América Latina como um herói, visionário, revolucionário e libertador, Durante seu curto tempo de vida, liderou a Bolívia, a Colômbia, Equador, Panamá, Peru e Venezuela à independência, e ajudou a lançar bases ideológicas democráticas na maioria da América Hispânica. Por essa razão, é referido por alguns historiadores como “George Washington da América do Sul”. 

Infância e juventude de Simón Bolívar

De origem aristocrata, Simón Bolívar nasceu em Caracas, Venezuela, filho de Juan Vicente Bolívar y Ponte-Andrade e de María de la Concepción Palacios de Aguirre y Ariztía-Sojo y Blanco. O pai de Simón faleceu quando este tinha apenas três anos, em 1786. Sua mãe morreu em 6 de julho de 1792. O menino foi então levado para a casa do avô materno, e, depois da morte deste, para a casa do tio, Carlos Palacios. 

Início dos ideais

Aos doze anos Simón fugiu da casa do tio para a casa da irmã deste, María Antonia, por quem sentia uma maior ligação afectiva. Em consequência do seu ato passou alguns meses na casa do pedagogo Simón Rodríguez, por quem foi muito influenciado e com quem manteve uma relação de amizade até o fim dos seus dias. Teve ainda outros tutores, entre os quais o humanista Andrés Bello. 

Em janeiro de 1797 ingressou como cadete no Batalhão de Milícias de Blancos de los Valles de Aragua (do qual o seu pai tinha sido Coronel), onde se destacou pelo seu desempenho. Em 1799 viajou para a Espanha com o propósito de aprofundar os seus estudos. Em Madrid ampliou os seus conhecimentos de História, Literatura, Matemática e aprendeu a língua francesa. Na capital espanhola casou-se com María Teresa Rodríguez del Toro y Alaysa (26 de maio de 1802). 

O Libertador

No dia 14 de agosto de 1805, na Santa Catarina, em Roma, Simón Bolívar proclamou diante de Simón Rodríguez e do seu amigo Francisco Rodríguez del Toro que não descansaria enquanto não libertasse toda a América do domínio espanhol (Juramento do Monte Sacro). O local tinha grande valor simbólico uma vez que havia sido palco do protesto dos plebeus contra os aristocratas na Roma Antiga. Ainda na Itália escalou o Vesúvio na companhia de Humboldt e do físico Louis Joseph Gay-Lussac. Em meados de 1806, Bolívar tomou conhecimento dos primeiros movimentos em favor da independência da Venezuela, protagonizados pelo general Francisco Miranda, decidindo que chegara a ocasião de retornar ao seu país natal. 

Em janeiro de 1807 foi para Charleston nos Estados Unidos, vindo a visitar diversas cidades naquele país, como Washington, DC, Filadélfia, Boston e Nova Iorque. Bolívar retornou para a Venezuela ainda em 1807 e, quando Napoleão Bonaparte tornou seu irmão José Bonaparte rei de Espanha e das suas colónias em 1808, passou a participar nas Juntas de resistência na América Espanhola. 

A Junta de Caracas declarou a independência em 1810, e Bolívar foi enviado para a Inglaterra numa missão diplomática. De volta à Venezuela em 1811, em Julho de 1812, o líder da Junta, Francisco de Miranda, rendeu-se às forças espanholas e Bolívar foi obrigado a fugir para Cartagena das Índias, onde redigiu o Manifesto de Cartagena. 

Em 1813 liderou a invasão da Venezuela, entrando em Mérida em 23 de maio, sendo proclamado El Libertador (“libertador”). Caracas foi reconquistada a 6 de agosto, sendo proclamada a Segunda República Venezuelana. Bolívar passou então a comandar as forças nacionalistas da Colômbia, capturando Bogotá em 1814. Entretanto, após alguns revezes militares, Bolívar foi obrigado a fugir, em 1815, para a Jamaica onde pediu ajuda ao líder haitiano Alexander Sabes Petión. Aqui redigiu a Carta da Jamaica. Em 1816, concedida essa ajuda, Bolívar regressou ao combate, desembarcando na Venezuela e capturando Angostura (atual Ciudad Bolívar). 

Durante a libertação de Quito apaixonou-se pela revolucionária Manuela Sáenz, de quem tornou-se amante, valendo a ela o epíteto de Libertadora do Libertador. Em 1828 ela o salvou de ser assassinado. 

O Integrador

Em 1826, Bolívar tentou promover uma integração continental ao convocar o Congresso do Panamá. Compareceram apenas os representantes dos governos do México, da Federação Centro-Americana, da Grã-Colômbia (Colômbia, Equador e Venezuela) e do Peru. Era o princípio das Conferências Pan-americanas. 

Seus ideais

“O novo mundo deve estar constituído por nações livres e independentes, unidas entre si por um corpo de leis em comum que regulem seus relacionamentos externos”. Nessa frase dita por Simón Bolívar pode-se ter uma ideia de que ele era um homem à frente de seu tempo, de ideias revolucionárias. Em poucas palavras ele exterioriza diversas intenções e objetivos. Analisando-se a frase por partes, observa-se a intenção de: 

• Nações livres, sem o comando das metrópoles da época;

• Independentes, tanto política como economicamente;
• União dos povos, tanto com objetivo de formar blocos, sejam políticos ou econômicos, como para discutir problemas de ordem mundial.

A ideia de “nações livres” era, provavelmente, na época, o objetivo mais importante, pois sem a liberdade, não seria possível a conquista dos outros objetivos. E para isso, Bolívar não foi só um idealizador, e sim, um verdadeiro guerreiro, enfrentando as mais diversas batalhas. Mas ele não estava sozinho nessa luta.

Os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade haviam se enraizado nos povos latino-americanos, pois o que se viu não foi uma luta isolada de Simón e seus fiéis seguidores. Foram lutas por toda a América Latina, onde cada região teve o seu “libertador”, como era chamado Simón. Na questão de independência, Bolívar via como necessária uma nação não só independente, mas também democrática: “Somente a democracia, no meu conceito, é suscetível de uma liberdade absoluta”, vinculando a ideia de um governo democrático, além do fato, também, de ver a necessidade de que se tenha um projeto econômico. 

Na terceira parte, ele propõe a união dos povos entre si “por um corpo de leis em comum que regulem seus relacionamentos externos”. É mais nessa terceira parte que se pauta este trabalho, pois tais leis em comum seriam o Tratado de União, Liga e Confederação Perpétua, assinado no Congresso do Panamá.

Simón Bolivar também foi um grande defensor da separação dos poderes temporal e espiritual (Estado e religião), posição essa fortemente influenciada pelos princípios maçônicos que professava ao lado de outros libertadores americanos, como Miranda, Santa Cruz e San Martín, conforme depreende-se do manifesto que lançou em 1824/1825, perante o Congresso Constituinte da Bolívia, onde conclamou: “ Legisladores! Farei agora menção de um artigo que, segundo a minha consciência, devia omitir.

Numa Constituição política não deverá prescrever-se uma profissão religiosa, porque segundo as melhores doutrinas sobre as leis fundamentais estas são as garantias dos direitos políticos e civis, mas a religião não se integra em nenhum destes direitos, é de natureza indefinível na ordem social e pertence à moral intelectual.

A religião governa o homem em casa, no gabinete, dentro de si próprio: ela apenas tem o direito de examinar a sua consciência íntima. As leis, pelo contrário, têm em vista a superfície das coisas: governam fora da casa dos cidadãos. Aplicando estas considerações, poderá um Estado reger a consciência dos seus súbditos, velar pelo cumprimento das leis religiosas e atribuir prêmio ou castigo, quando os tribunas estão no céu e quando Deus é o juiz? Só a Inquisição seria capaz de substituí-los neste mundo. Voltará ainda ‘a -Inquisição com os seus archotes incendiários? A religião é a lei da consciência.

Toda a lei sobre ela a anula, porque impondo a necessidade tira mérito à fé, que é a base da religião. Os preceitos e dogmas sagrados são úteis, luminosos e de evidência metafísica; todos devemos professá-los, mas este dever é moral, não é político. ” Porém, nem tudo foi como Bolívar gostaria que fosse. Com o decorrer do tempo, a situação não era das melhores, começaram a surgir divergências nas propostas políticas, muitos criticavam a Simón o seu modo de governar, além de a Espanha continuar a mandar tropas para a América.

Desse modo, os ideais iniciais de Simón começaram a se desvirtuar. O seu modo de governo já se aproximava mais de um autoritarismo do que uma democracia. O poder demasiadamente centralizado se fazia necessário, mas descaracterizava a federação que tanto desejava. Ele via a América muito fraca ainda, e precisava desse mando único do governo: “…Cada dia torna-se pior o sul da América; no dia em que eu deixar o Peru ele volta a se perder: porque não há homens capazes de sustentar o Estado…”.

Além do mais, via que não estava sendo possível mais vencer a guerra contra os espanhóis sem uma ajuda externa, procurando algum diálogo com a Inglaterra, o que também contrariava suas ideias, pois a Inglaterra também era uma metrópole e seu modo de governo era uma Monarquia, o qual Bolívar era contrário, além do risco de pedir ajuda a um país que tinha grande relacionamento com a Espanha. Seus propósitos foram se tornando cada vez mais difíceis de serem atingidos. 

Simon Bolívar costumava dizer que fazer revolução na América é como arar o mar. Nas regiões onde ocorriam as guerras os lugares ficavam devastados, prejudicados economicamente. Campos de agricultura viravam campos de batalhas, que quando terminadas, deixavam o lugar desolado.

Havia problemas como a mão de obra, pois praticamente todos os homens com mais de 14 anos, que não apresentassem algum problema físico, deviam se apresentar no exército. Restavam as crianças e mulheres. Havia ainda problemas na questão de organização dos órgãos públicos: uma vez expulsos os espanhóis, era necessária uma substituição e reestruturação do poder público. Soma-se a isso o fato de não se saber se haveria o retorno de forças armadas espanholas, o que mantinha o ambiente de insegurança. 

A morte

Em 17 de dezembro de 1830, com a idade de quarenta e sete anos, Simón Bolívar morreu após uma batalha dolorosa contra a tuberculose na Quinta de San Pedro Alejandrino em Santa Marta, Grande Colômbia (atual Colômbia). Em seu leito de morte, Bolívar pediu ao seu ajudante-de-campo, o general Daniel F. O’Leary, que queimasse o extenso arquivo remanescente de seus escritos, cartas e discursos.

O’Leary desobedeceu a ordem e os seus escritos sobreviveram, proporcionando aos historiadores uma vasta riqueza de informações sobre o pensamento e a filosofia liberais de Bolívar, bem como detalhes de sua vida pessoal, como seu caso amoroso de longa data com Manuela Sáenz. Poucos anos depois de sua morte, em 1856, Sáenz enriqueceu esse acervo, dando a O’Leary suas cartas recebidas de Bolívar. 

Exumação

Em 15 de julho de 2010, por ordem do 19° Tribunal de Controle de Caracas, os restos mortais de Bolívar foram exumados para esclarecer a causa de sua morte, uma vez que havia a possibilidade de assassinato. A versão oficial, até então, era de que Bolívar morrera em decorrência de uma tuberculose. Para o presidente Hugo Chávez, Bolívar teria sido vítima de uma conspiração e envenenado por um general colombiano.

Em 25 de julho, o vice-presidente da Venezuela, Elías Jaua, informou que a análise dos restos mortais de Simón Bolívar não fora conclusiva, permanecendo aberta a possibilidade de envenenamento (intencional ou não) por arsênico ou cantaridina. O presidente Chávez, no entanto, afirmou que continuava a acreditar na hipótese de assassinato. 

Veja mais:

Em 2012, numa cerimônia no Palácio de Miraflores, foi apresentada uma reconstituição digital do rosto de Bolívar, resultado de dois anos de pesquisas com os restos mortais do Libertador.

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Thomas Jefferson https://canalfezhistoria.com/thomas-jefferson/ https://canalfezhistoria.com/thomas-jefferson/#respond Tue, 11 Mar 2025 21:48:32 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5939 Thomas Jefferson (Shadwell, 13 de abril de 1743 – Charlottesville, 4 de julho de 1826) foi o terceiro presidente dos Estados Unidos (1801-1809), é o principal autor da declaração de independência (1776) dos Estados Unidos. Jefferson foi um dos mais influentes Founding Fathers (os “Pais Fundadores” da nação), conhecido pela sua promoção dos ideais do republicanismo nos Estados Unidos. Visualizava o país como a força por trás de um grande “Império de Liberdade” que promoveria o republicanismo e poderia combater o imperialismo do Império Britânico. 

Entre os eventos de destaque da história americana que ocorreram durante sua presidência estão a Compra da Louisiana (1803) e a Expedição de Lewis e Clark (1804-1806), bem como a escalada das tensões entre a Grã-Bretanha e a França que levaram à guerra com o Império Britânico em 1812, ano em que deixou o cargo.

Como filósofo político Jefferson foi um homem do Iluminismo, que conheceu diversos dos grandes líderes intelectuais da Grã-Bretanha e França de seu tempo. Idealizou o fazendeiro yeoman como um exemplo das virtudes republicanas, alimentava uma desconfiança de cidades e financeiros, enquanto privilegiava os direitos dos estados e um governo federal rigorosamente controlado.

Apoiava a separação entre Igreja e Estado e foi o autor do Estatuto da Virgínia para Liberdade Religiosa (1779, 1786). Epônimo da democracia jeffersoniana, foi co-fundador e líder do Partido Democrata-Republicano, que dominou a política dos Estados Unidos por 25 anos. Jefferson serviu como governador da Virgínia durante um período de guerra (1779-1781), foi o primeiro secretário de Estado dos Estados Unidos (1789-1793) e segundo vice-presidente dos Estados Unidos (1797-1801). 

Um polímata, Jefferson se destacou, entre outras coisas, como horticultor, líder político, arquiteto, arqueólogo, paleontólogo, músico, inventor e fundador da Universidade da Virgínia. Quando o presidente John F. Kennedy recebeu 49 vencedores do Prêmio Nobel à Casa Branca, em 1962, declarou: “acredito que esta é a mais extraordinária reunião de talento e conhecimento humano que já foi reunida na Casa Branca– com a possível exceção de quando Thomas Jefferson jantava aqui sozinho.” Até o presente, Jefferson é o único presidente americano a ter servido dois mandatos completos no cargo sem ter vetado um único projeto de lei do Congresso. Jefferson foi regularmente classificado pelo meio acadêmico como um dos maiores presidentes americanos. 

Biografia

Os seus pais foram Peter Jefferson (29 de Março de 1708 – 17 de Agosto de 1757) e Jane Randolph (20 de Fevereiro de 1720 – 31 de Março de 1776), ambos de famílias de colonos estabelecidos na Virgínia há várias gerações. Ele frequentou o College of William & Mary, tendo depois tentado instituir aí reformas, antes de finalmente vir a fundar a sua própria visão de ensino superior com a Universidade da Virgínia. 

Foi o principal autor da Declaração da Independência Americana, e uma fonte de muitas outras contribuições para a cultura americana. A lista de sucessos da sua presidência inclui a compra da Louisiana e a expedição de Lewis e Clark. En 1804, a compra da Luisiana despertou grande interesse na população e motivou a colonização dos novos territórios até à costa oeste. Antecipando-se a estes movimentos, Jefferson, convencido da necessidade dessa expansão, dispôs, apenas poucas semanas antes da compra, as medidas para a exploração e cartografia do território então desconhecido.

O intuito era a reclamação pelos Estados Unidos adiantando-se aos europeus e encontrar a famosa Passagem do Noroeste. Influenciado pelas narrativas da exploração de Le Page du Pratz na Louisiana (1763) e do capitão James Cook no Pacífico (1784), Jefferson e outros persuadiram o Congresso em 1804 para que atribuísse $2500 a uma expedição até ao oceano Pacífico.

A sua casa, em Virgínia, que ele próprio desenhou, foi em Monticello, perto de Charlottesville, tendo sido equipada com portas automáticas e outros dispositivos convenientes inventados pelo próprio Jefferson. 

Os interesses de Jefferson incluem a arqueologia, uma disciplina que estava então na sua infância. Ele foi por vezes chamado de “pai da arqueologia”, em reconhecimento pelo seu papel no desenvolvimento de técnicas de escavação. Quando explorava um túmulo índio na sua propriedade na Virginia em 1748, Jefferson evitou a prática comum de cavar de cima para baixo até que algo aparecesse. Em vez disso, ele cortou uma cunha do túmulo por forma a que se pudesse caminhar para dentro, observar as camadas de ocupação e tirar conclusões delas. 

Thomas Jefferson era também um ávido apreciador de vinho e um gastrônomo. Embaixador na França (1784-1789), envolveu-se entusiasticamente nos primeiros acontecimento da Revolução Francesa, nos quais ainda não se conhece ao certo a real dimensão da sua intervenção.

Realizou inúmeras reuniões políticas na sua casa, trocou numerosa correspondência com vários dos protagonistas políticos e elaborou projectos de propostas políticas, como seja a de uma «Declaração dos direitos do cidadão». Fez longas viagens pela França e outras regiões vinícolas europeias, e enviava os melhores vinhos para a Casa Branca. É conhecido pela sua arrojada declaração: “Nós poderíamos, nos Estados Unidos, produzir variedades de vinho tão boas como aquelas feitas na Europa, não exatamente dos mesmos tipos, mas sem dúvida da mesma qualidade”.

Apesar de a vinha ter sido extensamente plantada em Monticello, uma porção significativa era V. vinifera, que não sobreviveu às muitas doenças nativas das Américas. Por isso, Jefferson nunca conseguiu produzir vinho tão bom quanto o europeu. 

A visão de Jefferson para os Estados Unidos era a de uma nação agrícola de pequenos proprietários lavradores, que acreditava serem o povo eleito de Deus, e associa as grandes cidades às pragas de um corpo humano, visão que o levou a pegar em armas contra a Inglaterra, que julgava ser um instrumento de Satanás, pelo fato de obrigar a América a abandonar o paraíso da agricultura para se dedicar à manufatura. 

Tal visão não era compartilhada por Alexander Hamilton, que desejava uma nação de comércio e da manufatura. Jefferson era um grande crente na singularidade e do enorme potencial dos Estados Unidos, sendo frequentemente citado como um precursor do excepcionalismo americano. Como muitos donos de terra do seu tempo, Jefferson possuía escravos. Um tema de considerável controvérsia desde o próprio tempo de Jefferson é saber se Jefferson era o pai de alguma das crianças da sua escrava Sally Hemings. Uma perspectiva moderna sobre esta relação encontra-se no livro “As crianças de Jefferson” de Shannon Fair.

Por outro lado, sugeriu a aquisição de negros recém nascidos para entregá-los à tutela do Estado, que os submeteria ao trabalho o mais cedo possível para viabilizar economicamente sua deportação para Santo Domingo no momento oportuno, ainda que reconhecesse que tal proposta, por ensejar a separação das crianças de suas mães, poderia gerar escrúpulos humanitários, mas dizia não ser necessária tamanha sensibilidade. 

A eleição presidencial americana de 1800 resultou num empate entre Jefferson e seu oponente Aaron Burr, membro fundador do Partido Democrata-Republicano no estado de Nova Iorque. Foi resolvida a 17 de fevereiro de 1801, quando Jefferson foi eleito presidente e Burr vice-presidente pela câmara dos representantes. Jefferson foi o único vice-presidente americano a ser eleito para a presidência e servido dois mandatos plenos. 

Tal disputa gerou ressentimento nos adversários, que apelidaram Jefferson de “presidente negro”, de fato sua vitória se deve ao peculiar Compromisso dos Três Quintos, segundo o qual, para efeito de determinação do números de representantes dos Estados no Colégio Eleitoral que elegia o presidente, levava-se em conta a população de escravos, que não eram eleitores, reduzida a três quintos, tal cláusula favorecia os estados do sul e em particular a Virgínia onde residiam 40% dos escravos nos Estados Unidos, O retrato de Jefferson aparece na nota de 2 dólares e na moeda de 5 cêntimos (ou nickel). Thomas Jefferson foi enterrado na sua propriedade, em Monticello. 

No epitáfio, escrito pelo próprio Jefferson, com a insistência que apenas as suas palavras e nem uma palavra mais sejam inscritas, lê-se: “Aqui jaz Thomas Jefferson, autor da declaração da independência americana, da lei da liberdade religiosa da Virgínia e pai da Universidade da Virgínia” 

Morte

Thomas Jefferson teria passado seus últimos anos de vida em Monticello onde morreu aos 83 anos em 1826. 

Jefferson possuía uma grande biblioteca particular, onde acumulou diversos livros durante 50 anos. Sua biblioteca foi considerada uma das melhores dos Estados Unidos. Mais tarde ele vendeu sua coleção de 6487 livros para a Biblioteca do Congresso Thomas Jefferson e John Adams (também ex-presidente, participante da Declaração da Independência e amigo) morreram no mesmo dia, 4 de Julho de 1826, coincidentemente, nesse dia eram comemorados os 50 anos da independência dos Estados Unidos, independência essa que os dois ajudaram a conquistar. Foi sepultado em Monticello. 

Jefferson e a América Latina

Em 1786, na França, alguns estudantes brasileiros (inconfidentes) chegaram a tratar com Jefferson a respeito da possibilidade da independência política do Brasil. Em outra ocasião, ele chegou a expressar que estava perfeitamente seguro de que os países da América Latina acabariam por repelir o jugo da Espanha e de Portugal, mas era decididamente cético quanto à sua capacidade de se auto-governarem. 

Jefferson compartilhava do tradicional pensamento protestante, de que os católicos são “papistas”, que não agem com liberdade de consciência, mas sempre em obediência ao Papa. Com isso, não poderiam aceitar com sinceridade as liberdades comuns e as obrigações correlativas e que, ao contrário, tanto a Igreja Católica quanto seus fiéis poderiam nutrir secretamente o pensamento de trabalhar pelo aniquilamento de uma constituição democrática, o que poderia ser colocado em prática no momento em que tivessem oportunidade para isso.

Por isso, Jefferson temia que o seu futuro fosse constituído de uma sucessão de despotismos militares, durante longo tempo. Para ele, a América Latina não tinha a tradição anglo-saxônica de liberdades, nem mesmo a concorrência de denominações religiosas que impediram o estabelecimento por parte do Estado de alguma Igreja, e que, portanto, trabalhou em prol da liberdade religiosa, e, consequentemente, em nome da democracia. Conforme ele, a “diferença de opinião é vantajosa em religião. Os diversos segmentos desempenham a função de um Censor morum (“censor de costumes”) um sobre os outros” (“difference of opinion is advantageous in religion. The several sects perform the office of a Censor morum over each other”). 

Com o passar dos anos, Jefferson demonstrou estar correto em suas opiniões. A América Latina passou e ainda passa por uma série de despotismos, tendo uma democracia frágil, e muitos intelectuais católicos importantes declararam ao longo da história, em especial no Brasil, que a Igreja tinha o dever de trabalhar contra a República. 

Influências

Jefferson foi fortemente influenciado pelas idéias da igreja dos irmãos polacos. O inglês John Bidle tinha traduzido duas obras de Przypkowski: o catecismo racoviano e uma obra de J. Stegmann, um “irmão polaco” da Alemanha. 

Os seguidores de Bidle tinham relações próximas com a família polaca sociniana de Crellius (conhecido como Spinowski). 

Veja mais:

Subsequentemente, a ramificação unitária do Cristianismo foi continuada, sobretudo com Joseph Priestley, que tinha emigrado para os EUA e era amigo de James Madison e Thomas Jefferson. Digno de nota salientar que Jefferson publicou: The life and morals of Jesus. Uma selecção de todos os ensinamentos e eventos essenciais da vida de Jesus expurgada de todas as menções sobrenaturais ou de qualquer modo ligados ao dogma religioso, (ser o rei, o filho de deus, exorcismos, milagres).

Os princípios políticos de Jefferson foram também fortemente influenciados por John Locke, particularmente em relação ao princípio da inalienabilidade dos direitos, da soberania popular e em especial, da limitação do poder do Estado e da divisão tripartida do poder. O Thomas Jefferson também tinha o alcorão na sua coleção de livros.

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Thomas Malthus https://canalfezhistoria.com/thomas-malthus/ https://canalfezhistoria.com/thomas-malthus/#respond Tue, 11 Mar 2025 21:45:34 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5936 Thomas Robert Malthus (Rookery, perto de Guildford, 14 de fevereiro de 1766 — Bath, 23 de dezembro de 1834) foi um economista britânico. É considerado o pai da demografia por sua teoria para o controle do aumento populacional, conhecida como malthusianismo.

Índice de Conteúdo

Filho de um rico proprietário de terras, terminou os estudos no Jesus College (Cambridge) a partir de 1784, onde obteria um posto de professor em 1793. Maltus tornou-se pastor anglicano em 1797 e, dois anos depois, iniciou uma longa viagem de estudos pela Europa. Casou-se em 1804. 

Malthualismo

Em 1805, foi nomeado professor de história e de economia política em um colégio da Companhia das Índias (o East India Company College), em Haileybury. Expôs suas ideias em dois livros conhecidos como “Primeiro Ensaio” e “Segundo Ensaio”. No primeiro, de 1798, ele especificou: 

”Foi um economista britânico, e é considerado o pai da demografia, por suas teorias.” “Um ensaio sobre o princípio da população na medida em que afeta o melhoramento futuro da sociedade, com notas sobre as especulações de Mr. Godwin, M. Condorcet e outros escritores Já o segundo, de 1803, foi descrito como: 

“Um ensaio sobre o princípio da população ou uma visão de seus efeitos (…) passados e presentes na felicidade humana, com uma investigação das nossas expectativas quanto à remoção ou mitigação futura dos males que ocasiona.”

Tanto o primeiro ensaio (o qual apresenta uma crítica ao utopismo) quanto o segundo (em que há uma vasta elaboração de dados materiais) têm como princípio fundamental a hipótese de que as populações humanas crescem em progressão geométrica. Malthus estudou possibilidades de restringir esse crescimento, pois os meios de subsistência poderiam crescer somente em progressão aritmética. Segundo ele, esse crescimento populacional é limitado pelo aumento da mortalidade e por todas as restrições ao nascimento, decorrentes da miséria e do vício. Seus dois ensaios estão permeados de conceitos cristãos como o mal, a salvação e a condenação. 

Malthus escreveu também “Princípios de economia política”, em 1820, e “Definições em economia política”, em 1827. Em suas obras econômicas, Malthus demonstrou que o nível de atividade em uma economia capitalista depende da demanda efetiva, o que constituía, a seus olhos, uma justificativa para os esbanjamentos praticados pelos ricos. A ideia da importância da demanda efetiva seria depois retomada por Keynes. 

Discípulos

Suas obras exerceram influência em vários campos do pensamento e forneceram a chave para as teorias evolucionistas de Darwin e Wallace. Os economistas clássicos como David Ricardo, incorporaram o princípio da população às suas teorias, supondo que a oferta de força de trabalho era inexaurível, sendo limitada apenas pelo fundo de salários. 

Para Malthus, assim como para seus discípulos, qualquer melhoria no padrão de vida de grande massa é temporária, pois ela ocasiona um inevitável aumento da população, que acaba impedindo qualquer possibilidade de melhoria.

Ele foi um dos primeiros pesquisadores a tentar analisar dados demográficos e econômicos para justificar sua previsão de incompatibilidade entre o crescimento demográfico e à disponibilidade de recursos. Apesar de ter assumido popularmente que as suas teses deram à Economia a alcunha da “ciência da desesperança” (dismal science), a frase foi na verdade cunhada pelo historiador Thomas Carlyle em referência a um ensaio contra a escravatura escrito por John Stuart Mill. 

Thomas Malthus representa o paradigma de uma visão que ignora ou rebaixa os benefícios da industrialização ou do progresso tecnológico. Ernest Gellner afirma em Pós-modernismo, razão e religião: 

“Previamente, a humanidade agrária vivia num mundo malthusiano no qual a escassez de recursos em geral condenava o homem a estritas e autoritárias normas sociais, à dominação tanto por tiranos quanto por concidadãos ou por ambos.”

Veja mais:

Para o autor, a diferença entre as classes sociais era uma consequência inevitável. A pobreza e o sofrimento eram o destino para a grande maioria das pessoas.

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Tomás de Aquino https://canalfezhistoria.com/tomas-de-aquino/ https://canalfezhistoria.com/tomas-de-aquino/#respond Tue, 11 Mar 2025 21:41:50 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5933 Tomás de Aquino, em italiano Tommaso d’Aquino (Roccasecca, 1225 – Fossanova, 7 de março de 1274), foi um frade católico da Ordem dos Pregadores (dominicano) italiano cujas obras tiveram enorme influência na teologia e na filosofia, principalmente na tradição conhecida como Escolástica, e que, por isso, é conhecido como “Doctor Angelicus”, “Doctor Communis” e “Doctor Universalis”. “Aquino” é uma referência ao condado de Aquino, uma região que foi propriedade de sua família até 1137. 

Ele foi o mais importante proponente clássico da teologia natural e o pai do tomismo. Sua influência no pensamento ocidental é considerável e muito da filosofia moderna foi concebida como desenvolvimento ou oposição de suas ideias, particularmente na ética, lei natural, metafísica e teoria política. Ao contrário de muitas correntes da Igreja na época, Tomás abraçou as ideias de Aristóteles – a quem ele se referia como “o Filósofo” – e tentou sintetizar a filosofia aristotélica com os princípios do cristianismo.

As obras mais conhecidas de Tomás são a “Suma Teológica” (em latim: Summa Theologiae) e a “Suma contra os Gentios” (Summa contra Gentiles). Seus comentários sobre as Escrituras e sobre Aristóteles também são parte importante de seu corpus literário. Além disso, Tomás se distingue por seus hinos eucarísticos, que ainda hoje fazem parte da liturgia da Igreja.

Tomás é venerado como santo pela Igreja Católica e é tido como o professor modelo para os que estudam para o sacerdócio por ter atingido a expressão máxima tanto da razão natural quanto da teologia especulativa. O estudo de suas obras há muito tempo tem sido o cerne do programa de estudos obrigatórios para os que buscam as ordens sagradas (como padres e diáconos) e também para os que se dedicam à formação religiosa em disciplinas como filosofia católica, teologia, história, liturgia e direito canônico. Tomás foi também proclamado Doutor da Igreja por Pio V em 1568. Sobre ele, declarou Bento XV: 

“Esta ordem [dominicana]… ganhou novo lustre quando a Igreja declarou os ensinamentos de Tomás como seus próprios e este Doutor, honrado por elogios especiais dos pontífices, o mestre e patrono das escolas católicas.” 
— Fausto appetente die, Papa Bento XV.

Primeiros anos (1225-1244)

Tomás nasceu em Roccasecca, no condado de Aquino do Reino da Sicília (atualmente na região do Lácio, na Itália) por volta de 1225. De acordo com alguns autores, nasceu no castelo de seu pai, Landulfo de Aquino, que não pertencia ao ramo mais poderoso de sua família e era apenas um miles (“cavaleiro”). Já a mãe de Tomás, Teodora, era do ramo Rossi da família napolitana dos Caracciolo. Enquanto o resto da família dedicou-se à carreira militar, seus pais pretendiam que Tomás seguisse o exemplo do irmão de Landulfo, Sinibaldo, que era abade do mosteiro beneditino de Monte Cassino, uma carreira perfeitamente normal para o filho mais jovem de uma família nobre do sul da Itália da época. 

Aos cinco anos de idade, começou a estudar em Monte Cassino, mas, depois que o conflito militar entre o imperador Frederico II e o papa Gregório IX chegou à abadia no início de 1239, Landulfo e Teodora matricularam o pequeno Tomás no studium generale (a universidade em Nápoles), recém-criada por Frederico em Nápoles. Foi provavelmente lá que Tomás foi introduzido aos estudos de Aristóteles, Averróis e Maimônides, importantes influências para sua filosofia teológica. Seu professor de aritmética, geometria, astronomia e música era Pedro da Ibérnia.

Foi também durante seus estudos em Nápoles que acabou sob a influência de João de São Juliano, um pregador dominicano que era parte do grande esforço empreendido pela Ordem dos Pregadores para recrutar seguidores. Finalmente, aos dezenove, Tomás resolveu se juntar à ordem, o que não agradou sua família. Numa tentativa de impedir que Teodora influenciasse a escolha de Tomás, os dominicanos arranjaram para que ele se mudasse para Roma e, de lá, para Paris. Porém, durante a viagem para Roma, seguindo as instruções de Teodora, seus irmãos o capturaram quando ele bebia num riacho e o levaram de volta para seus pais no castelo de Monte San Giovanni Campano. 

Ficou preso por cerca de um ano nos castelos da família em Monte San Giovanni e Roccasecca, numa tentativa de fazê-lo mudar de ideia. Preocupações políticas impediram que o papa interviesse em defesa de Tomás, aumentando significativamente o tempo que ficou preso. Durante este período de provações, Tomás ensinou suas irmãs e escreveu para seus irmãos dominicanos. Desesperados com a teimosia de Tomás, dois de seus irmãos chegaram a ponto de contratarem uma prostituta para seduzi-lo. De acordo com a lenda, Tomás a expulsou com um ferro em brasa e, durante a noite, dois anjos apareceram para ele enquanto ele dormia para fortalecer sua determinação de permanecer celibatário.

Em 1244, percebendo que todas suas tentativas de dissuadir Tomás fracassaram, Teodora tentou salvar a dignidade da família e arranjou para ele escapasse durante uma noite pela janela. Ela acreditava que uma fuga secreta da prisão era menos prejudicial que uma rendição aberta aos dominicanos. Tomás seguiu primeiro para Nápoles e, depois, para Roma, onde se encontrou com João de Wildeshausen, o mestre-geral da Ordem dos Pregadores. 

Paris, Colônia, Alberto Magno e a primeira regência em Paris (1245-1259)

Em 1245, Tomás foi enviado para estudar na faculdade das artes da Universidade de Paris, onde é muito provável que ele tenha encontrado o estudioso dominicano Alberto Magno (que seria depois proclamado Doutor da Igreja como Aquino), que era na época o catedrático da cadeira de Teologia do Colégio de São Tiago em Paris. Quando Alberto foi enviado por seus superiores para ensinar no novo studium general em Colônia, em 1248, Tomás foi junto depois de recusar uma oferta do papa Inocêncio IV de nomeá-lo abade de Monte Cassino mesmo sendo dominicano.

Em seguida, Alberto nomeou o relutante Tomás magister studentium. Por ser calado e não falar muito, alguns dos companheiros de Tomás acreditavam que ele era “devagar”, ao que Alberto rebateu, profeticamente, “Vocês o chamam de boi mudo, mas em sua doutrina ele produzirá um dia um mugido tal que será ouvido pelo mundo afora”.

Tomás lecionou em Colônia como professor aprendiz (baccalaureus biblicus), instruindo seus alunos nos livros do Antigo Testamento e escrevendo “Comentário Literal sobre Isaías” (“Expositio super Isaiam ad litteram”), “Comentário sobre Jeremias” (“Postilla super Ieremiam”) e “Comentário sobre as Lamentações” (“Postilla super Threnos”). Então, em 1252, Tomás retornou para Paris para tentar obter o mestrado em teologia e passou a ensinar estudos bíblicos como professor aprendiz.

Quando tornou-se “baccalaureus Sententiarum” (“bacharel das Sentenças”), dedicou seus três anos finais de estudo a comentar sobre as “Sentenças” de Pedro Lombardo. Na primeira de suas quatro sínteses teológicas, Tomás compôs um enorme comentário sobre elas chamado “Comentário sobre as Sentenças” (“Scriptum super libros Sententiarium”). Além destas obras de seu mestrado, Tomás escreveu ainda “Sobre o Ser e a Essência” (“De ente et essentia”) para seus companheiros dominicanos de Paris. 

Na primavera de 1256, Tomás foi nomeado regente principal em teologia em Paris e uma de suas primeiras obras depois de assumir o cargo foi “Contra Aqueles que Ameaçam a Devoção a Deus e a Religião” (“Contra impugnantes Dei cultum et religionem”) defendendo as ordens mendicantes que estavam na época sob ataque por Guilherme de Saint-Amour.

Durante seu mandato, que foi de 1256 até 1259, Tomás escreveu diversas obras, incluindo: “Questões em Disputa sobre a Verdade” (“Questiones disputatae de veritate”), uma coleção de vinte e nove questões controversas sobre aspectos da fé e da condição humana preparada para os debates universitários públicos que ele presidia na Quaresma e no Advento; “Quaestiones quodlibetales”, uma coleção de suas respostas às questões propostas pela audiência acadêmica nos debates e o par “Comentários sobre ‘De trinitate’ de Boécio” (“Expositio super librum Boethii De trinitate”) e “Comentário sobre ‘De hebdomdibus’ de Boécio” (“Expositio super librum Boethii De hebdomadibus”), comentários sobre as obras do filósofo romano do século VI Boécio.

Quando terminou sua regência, Tomás estava trabalhando numa de suas obras-primas, a “Suma contra os Gentios”.

Nápoles, Orvietto e Roma (1259-1268)

Em 1259, Tomás completou sua primeira regência no studium generale e deixou Paris para que outros pudessem obter a mesma experiência. Retornando para Nápoles, foi nomeado pregador geral pelo capítulo provincial da ordem em 29 de setembro de 1260. Em setembro do ano seguinte, foi enviado a Orvietto como leitor conventual responsável pela formação dos frades que não podiam frequentar um studium generale. Lá, completou a “Suma contra os Gentios”, escreveu “A Corrente de Ouro” (Catena aurea) e escreveu obras para o papa Urbano IV, como a liturgia para a recém-criada festa de Corpus Christi e “Contra os Erros dos Gregos” (“Contra Errores Graecorum”). 

Em fevereiro de 1265, o recém-eleito papa Clemente IV convocou Tomás de Aquino a Roma para servir como teólogo papal. No mesmo ano, foi ordenado pelo capítulo dominicano de Agnani para ensinar no studium conventuale do Convento de Santa Sabina, fundado alguns anos antes, em 1222. O studium em Santa Sabina rapidamente tornou-se um experimento para os dominicanos, o primeiro studium provinciale, uma escola intermediária entre o studium conventiale (restrito aos residentes das casas monásticas – mosteiros e conventos) e o studium generale (as universidades nas grandes cidades).

Antes disso, não havia na província de Roma nenhuma forma de educação especializada, apenas as escolas conventuais, com cursos básicos de teologia para os frades residentes, e ainda assim apenas na Toscana. Tolomeo da Lucca, um parceiro e um dos primeiros biógrafos de Aquino, conta que, no studium de Santa Sabina, Aquino ensinou uma ampla de temas filosóficos, morais e naturais.

Foi em Santa Sabina que Tomás começou a escrever sua obra mais famosa, a “Suma Teológica”, que ele concebeu como sendo mais adequada especificamente aos estudantes em seus primeiros anos: “Pois um doutor da verdade católica deveria ensinar não apenas os proficientes, mas a ele cabe também instruir os iniciantes. Como diz o apóstolo em I Coríntios 3:2 ‘Leite vos dei a beber, não vos dei comida; porque ainda não podíeis’, nossa intenção com esta obra é apresentar tudo sobre a religião cristã de uma forma pertinente à instrução de iniciantes”.

Ele escreve em Orvietto também uma variedade de outras obras, como o incompleto “Compêndio Teológico” (“Compendium Theologiae”) e “Resposta ao Irmão João de Vercelli sobre os 108 Artigos Retirados da Obra de Pedro de Tarentaise” (“Responsio ad fr. Ioannem Vercellensem de articulis 108 sumptis ex opere Petri de Tarentasia”). Em sua posição de superior do studium, Aquino conduziu uma série de importantes debates sobre o poder de Deus que compilou depois em sua “Do Poder” (“De potentia”).

Nicholas Brunacci (1240-1322) estava entre os alunos de Aquino em Santa Sabina e, depois, em Paris. Em novembro de 1268, ele estava com Aquino e seu parceiro e secretário, Reginaldo de Piperno, quando deixaram Viterbo a caminho de Paris para o início do ano acadêmico. Outro aluno em Santa Sabina foi o beato Tommasello de Perúgia. 

Aquino permaneceu no studium de Santa Sabina de 1265 até ser chamado de volta a Paris em 1268 para uma segunda regência. Com o tempo, principalmente depois de sua partida, as atividades pedagógicas no studium provinciale de Santa Sabina foram divididos em dois campi. Um novo convento da ordem na Igreja de Santa Maria sopra Minerva começou de forma modesta em 1255 como uma comunidade de mulheres recém-convertidas, mas cresceu rapidamente em tamanho e em importância de ser entregue aos cuidados dos frades dominicanos em 1275.

Em 1288, o componente teológico do currículo provincial para a educação dos frades foi realocado do studium provinciale de Santa Sabina para o studium conventuale de Santa Maria sopra Minerva, que foi então rebatizado como um studium particularis theologiae. No século XVI, este studium foi transformado no Colégio de São Tomás (em latim: Collegium Divi Thomæ) e, no século XX, o colégio foi transferido para o Convento de Santi Domenico e Sisto e transformado na Pontifícia Universidade São Tomás de Aquino (o famoso “Angelicum”). 

A difícil segunda regência em Paris (1269-1272)

Em 1268, a Ordem dos Pregadores nomeou Tomás para ser o regente mestre da Universidade de Paris pela segunda vez, uma posição que ele manteve até a primavera de 1272. Parte da razão para esta súbita transferência parece ter sido a ascensão do “averroísmo”, conhecido também como “aristotelismo radical”, nas universidades. Como resposta a estes aparentes malefícios, Tomás escreveu duas obras.

Na primeira, “Sobre a Unidade do Intelecto, Contra os Averroístas” (“De unitate intellectus, contra Averroistas”), ele ataca o averroísmo como sendo incompatível com a doutrina cristã. Foi durante a segunda regência que Aquino terminou a segunda parte da “Suma” e escreveu “Dos Virtuosos” (“De virtutibus”) e “Da Eternidade do Mundo” (“De aeternitate mundi”), esta tratando do controverso conceito aristotélico e averroísta sobre a “falta de começo” do mundo. 

Diversas controvérsias com alguns importantes franciscanos, como Boaventura e João Peckham, ajudaram a tornar a segunda regência muito mais difícil e conturbada que a primeira. Um ano antes de tomar posse novamente, nos debates de 1266-67 em Paris, o mestre franciscano Guilherme de Baglione acusou Tomás de encorajar os averroístas, chamando-o de “líder cego dos cegos”. Tomás chamou-os de “murmurantes” (“resmungões”). Na realidade, ele ficou profundamente perturbado pela disseminação do averroísmo e se enfureceu quando soube que Siger de Brabante estava ensinando interpretações averroístas de Aristóteles aos seus alunos em Paris.

Em 10 de dezembro de 1270 o bispo de Paris, Etienne Tempier, publicou um édito condenando treze proposições aristotélicas e averroístas como sendo heréticas e excomungou os que continuavam a defendê-las. Muitos na comunidade eclesiástica, os chamados “agostinianos”, temiam que a introdução do aristotelismo e sua versão mais extrema, o averroísmo, pudesse de alguma forma contaminar a pureza da fé cristã. No que parece ter sido uma tentativa de conter o temor contra o pensamento aristotélico, Tomás conduziu uma série de debates entre 1270 e 1272, reunidos em “Sobre as Virtudes em Geral” (“De virtutibus in communi”, “Sobre as Virtudes Cardinais” (“De virtutibus cardinalibus”) e “Sobre a Esperança” (“De spe”). 

Últimos anos (1272-1274)

Em 1272, Tomás pediu licença da Universidade de Paris quando os dominicanos de sua província natal o convocaram para fundar um studium general onde quisesse, com liberdade para empregar nele quem desejasse. Aquino escolheu Nápoles e se mudou para lá para assumir o posto de regente mestre. Ele aproveitou esta temporada ali para trabalhar na terceira parte da “Suma” enquanto dava aulas sobre vários tópicos religiosos.

Em 6 de dezembro de 1273, Tomás se demorou um pouco mais na Capela de São Nicolau do convento dominicano de Nápoles e foi visto pelo sacristão Domenic de Caserta levitando aos prantos em oração diante de um ícone de Cristo crucificado. Segundo o relato, Cristo perguntou: “Escrevestes bem sobre mim, Tomás. Que recompensa esperas pelo teu trabalho?” A resposta foi: “Nada além de ti, Senhor”.

Depois desta conversa, algo mudou, mas Aquino jamais falou ou escreveu sobre o tema. Depois de ver o que viu, ele abandonou sua rotina e parou de ditar para seu secretário, Reginaldo de Piperno. Quando este implorou-lhe que voltasse ao trabalho, Tomás lhe disse: “Reginaldo, não posso, pois tudo o que escrevi não passa de uma palha para mim” (“mihi videtur ut palea”). Seja o que for que tenha despertado a mudança no comportamento de Tomás de Aquino, os católicos acreditam que foi alguma espécie de experiência sobrenatural de Deus. 

Anos antes, em 1054, o Grande Cisma dividiu a Igreja entre a Igreja Latina, sob a liderança do papa (posteriormente conhecida como Igreja Católica Romana), no ocidente e os quatro patriarcados do oriente (conhecidos coletivamente como Igreja Ortodoxa). Numa tentativa de reunir as duas partes, o papa Gregório X convocou o Segundo Concílio de Lyon em 1 de maio de 1274 e ordenou que Tomás comparecesse para apresentar sua obra “Contra os Erros dos Gregos” (“Contra Errores Graecorum”).

A caminho do concílio, montado num burro enquanto viajava pela Via Ápia, bateu a cabeça num galho de uma árvore tombada, ficou seriamente ferido e foi levado às pressas para Monte Cassino para se recuperar. Depois de descansar por um tempo, tentou novamente seguir viagem, mas teve que parar, doente novamente, na abadia cisterciense de Fossanova. Os monges tentaram ajudá-lo por diversos dias, mas ele não resistiu. Quando recebeu sua extrema unção, as últimas palavras de Aquino foram: 

“Eu te recebo, Resgate pela minha alma. Pelo teu amor estudei e me mantive vigilante, trabalhei, preguei e ensinei…” 
— Tomás de Aquino.

São Tomás de Aquino morreu em 7 de março de 1274 enquanto ditava seus comentários sobre o Cântico dos Cânticos. 

Filosofia

Tomás era um teólogo e filósofo escolástico. Porém, ele jamais se considerou filósofo e os criticava por acreditar que eram pagãos que estavam sempre “aquém da verdadeira e correta sabedoria encontrada na revelação cristã”. 

Mesmo assim, ele tinha muito respeito por Aristóteles, tanto que, na “Suma”, geralmente cita-o simplesmente como “o Filósofo”. Boa parte desta obra trata de tópicos filosóficos e, neste sentido, pode ser considerada filosófica. O fato é que o pensamento de Tomás exerceu uma enorme influência sobre a teologia cristã subsequente, especialmente a da Igreja Católica, mas também para toda a filosofia ocidental em geral.

Segundo a filosofia de Tomás de Aquino, o homem não vive por acaso, a vida humana tem um propósito que é a felicidade, porém o homem precisa conhecer os meios adequados para a sua posse. A felicidade para ele parte do princípio de que as riquezas materiais seriam a falsa noção da felicidade, pois a riqueza não tem consciência existencial em si mesma, e a razão de ser está fora dela mesma. O estado da felicidade parte do estado de espírito em que o homem se encontra.

O indivíduo tem que conhecer seu eu interior antes de partir em busca dos meios adequados para a posse da mesma. Contudo, deve-se considerar que o estado da felicidade não é eterno, e uma vez encontrada, nada impede de se perdê-la, para assim então iniciar-se uma nova busca até o fim da vida humana. 

Em todo momento o homem busca a felicidade, e muitos ligam a felicidade à posse de bem materiais, mas para Tomás de Aquino a ideia de felicidade vai muito além disso. Ela é o guia necessário para a vida (alma) do homem. Na vida corriqueira, com o stress do dia a dia, o homem acaba abrindo mãos dos pequenos detalhes que possivelmente trariam a felicidade, em busca da materialização para supri-la. 

Comentários sobre Aristóteles

Aquino escreveu diversos comentários importantes sobre as obras de Aristóteles, incluindo “Da Alma”, “Ética a Nicômaco” e “Metafísica”. Estes trabalhos estão associados com as traduções para o latim feitas por William de Moerbeke. 

Ele quis organizar os argumentos e elementos racionais da filosofia Aristotélica para defender as verdades cristãs. Seu principal objetivo nesse aspecto foi o de não contrariar a fé. Através das traduções de textos de Aristóteles feitas pelos filósofos da idade média, inclusive o árabe “Averróis”, Tomás transforma parte do pensamento aristotélico em ferramenta argumentativa para expandir seu pensamento e empreender uma sistematização da doutrina cristã. Embora haja em sua filosofia pontos que não são pensamentos aristotélicos, tal qual a ideia de um Deus único que o vir-a-ser, não é autodeterminação, mas precede de Deus. 

Aquino introduziu uma distinção entre o ser e a essência. Dividiu a metafísica em Essência do Ser geral e Essência do Ser pleno que é Deus. Também definiu seu conceito de “Metafísica” – segundo ele uma tríplice: Metafísica enquanto ciência do ente, ciência divina e “filosofia”. Enquanto a primeira investiga as primeiras causas, a “Metafísica” tomista leva o homem inevitavelmente a “Deus”, por meio de um caminho racional, coerente e demonstrável. Por isso, ela é ciência. 

O Ser é diferente da essência, pois as criaturas são seres não necessários. É Deus que permite às essências realizarem-se em entes, em seres existentes. Que existe como fundamento da realidade das outras essências que, uma vez existentes participam de seu Ser.

Deus é ato puro, não há o que se realizar ou se atualizar em Deus, pois ele é completo. ‘ ‘”Deus é o Ser”‘ ‘, diz Tomás de Aquino, Deus é o ser que existe como fundamento da realidade das outras essências que, uma vez existentes participam de seu Ser. A filosofia de Aristóteles não fala sobre um Deus criador, como o compreendemos, tirando o mundo do nada, nem fala da questão sobre a providência divina, Deus para Aristóteles não conhece o mundo, não o dirige de nenhum modo. 

O filósofo sempre procurou conciliar fé e razão em seus escritos, valendo-se, várias vezes, de ensinamentos de Aristóteles e de Santo Agostinho, para afirmar que a graça e a fé não suprimem a natureza racional do homem, senão antes a supõe e a aperfeiçoa e, a partir disso, também sustentar que é possível a conciliação de filosofia (ratio – razão) e teologia (fides – fé), na medida em que para Aquino, a filosofia é serva da teologia: philosophia ancilla theologiae est.

Aristóteles foi a figura que mais influenciou no pensamento de Santo Tomás de Aquino, ele afirmava que o universo sempre existiu e que permanecia em movimento e mudanças constantes. Alguns pensadores cristãos, baseando-se na Bíblia diziam que o universo tinha um início e que havia sido criado por Deus, discordando assim da concepção de Aristóteles. Porém, Tomás de Aquino salientou que o universo pode sim sempre ter existido e que apenas a raça humana e os animais tiveram um início. Apesar de defender as ideias de Aristóteles, ele discordava do fato do mesmo afirmar que o universo era eterno, porque a fé cristã dizia ao contrário. 

Epistemologia

Aquino acreditava “que para o conhecimento de qualquer verdade, o homem precisa da ajuda divina; que o intelecto pode ser movido por Deus a agir”. Porém, ele acreditava também que os seres humanos tinham a capacidade natural de conhecer muitas coisas sem nenhuma revelação divina especial, apesar de revelacões ocorrerem de quando em quando “especialmente em relação àquelas [verdades] pertinentes à fé”.

Mas esta é a luz dada ao homem por Deus na proporção da natureza humana: “Agora todas as formas concedidas às coisas criadas por Deus tem poder para determinadas ações, que podem realizar na medida de sua própria dotação; e além disto, são impotentes, exceto por meio de uma forma adicionada, como água que só esquenta quando aquecida pelo fogo. E assim a compreensão humana tem uma forma, viz. luz inteligível, que, por si só, é suficiente para conhecer certas coisas inteligíveis, viz. as que se pode aprender através dos sentidos”. 

Ética

A ética de Tomás de Aquino se baseia no conceito dos “princípios primeiros da ação”. Na “Suma”, ele escreveu: 

“Virtude denota uma certa perfeição de um poder. Agora a perfeição de algo é considerada principalmente em relação à sua finalidade. Mas a finalidade do poder é ato. Por isso diz-se que um poder é perfeito na medida que é determinante para seu ato” 
— Suma Teológica, Tomás de Aquino.

Mais adiante, ele completa: 

“Diz-se que a sinderese é a lei de nossa mente, pois trata-se do hábito que contém os preceitos da lei natural, que são os princípios primeiros das ações humanas” 
— Suma Teológica, Tomás de Aquino.

De acordo com ele, “…todos os atos da virtude são prescritos pela lei natural: como a razão de cada um naturalmente dita que ele aja virtuosamente. Mas se falarmos de atos virtuosos considerados em si mesmos, ou seja, em suas próprias espécies, segue que nem todos os atos virtuosos são prescritos pela lei natural: pois muitas coisas são realizadas virtuosamente, mas cuja natureza não se inclinava para inicialmente; mas que, pelo inquérito da razão, foram percebidas pelos homens como condutivas ao bem estar”. A conclusão é que é necessário determinar se estamos falando de atos virtuosos sob o aspecto das virtudes ou como um ato per se, em sua própria espécie. 

Tomás definiu as quatro virtudes cardinais como sendo prudência, temperança, justiça e coragem (ou “fortaleza”). Segundo ele, elas são naturais, reveladas na natureza e inerentes a todos. Há, porém, três virtudes teológicas: fé, esperança e caridade. Estas, por outro lado, são algo sobrenaturais e distintas das demais em seu objeto: Deus. Segundo o próprio Aquino: 

“Agora o objeto das virtudes teológicas é o próprio Deus, que é a última finalidade de tudo e acima do conhecimento da nossa razão. Por outro lado, o objeto das virtudes morais e intelectuais é algo compreensível à razão humana. Por isso, as virtudes teológicas são especificamente distintas das virtudes morais e intelectuais” 
— Suma Teológica, Tomás de Aquino.

Avançando o raciocínio, Tomás distingue quatro tipos de lei que governam os atos humanos: eterna, natural, humana e divina. “Lei eterna” é o decreto divino que governa toda criação, a “lei que é a Razão Suprema e não pode ser compreendida senão como algo imutável e eterno”. “Lei natural” é a “participação” humana na “lei eterna” descoberta pela razão e baseada nos “princípios primeiros”: “…este é o primeiro preceito da lei, que o bem deve ser feito e promovido e o mal, evitado.

Todos os demais preceitos da lei natural se baseiam neste…”. Se a lei natural contém vários preceitos ou apenas este, o próprio Aquino esclarece: “todas as inclinações de quaisquer partes da natureza humana, como por exemplo as partes concupiscentes e irascíveis, na medida em que são governadas pela razão, pertencem à lei natural e se reduzem ao primeiro preceito, como afirmando acima: pois os preceitos da lei natural são muitos em si próprios, mas são todos baseados numa fundação comum”. 

O desejo de viver e procriar são considerados por Tomás entre os valores básicos (naturais) do homem, sobre os quais todos os demais valores humanos estão baseados. De acordo com Tomás, todas as tendências humanas estão aparelhadas o “bem” real humano. E no caso destes dois desejos, a natureza humana em questão é o matrimônio, o presente completo de uma pessoa a outra que assegura uma família às crianças e um futuro à humanidade. Para os cristãos, Tomás definia que o amor era “desejar o ‘bem’ de outro”. 

Sobre a “lei humana”, Aquino conclui “…que, assim como no caso da razão especulativa, na qual tiramos conclusões em várias ciências a partir de princípios não demonstráveis e naturalmente conhecidos, conclusões estas não comunicadas a nós pela natureza, mas adquiridas pelos esforços da razão, é assim também com os preceitos da lei natural, pois a partir de princípios gerais e indemonstráveis, a razão humana precisa avançar para uma determinação mais precisa de certos assuntos. Estas determinações particulares, criadas pela razão humana, são chamadas de leis humanas desde que as outras condições essenciais da lei sejam observadas…”, ou seja, a “lei humana” é a lei positiva, a lei natural aplicada pelos governos às sociedades. 

Leis naturais e humanas não são adequadas sozinhas. A necessidade humana de que seu comportamento seja dirigido fez necessária a existência da “lei divina”, que é a lei especificamente revelada nas Escrituras. Segundo Aquino, “O apóstolo diz: «Pois mudado que seja o sacerdócio, é necessário que se faça também mudança da Lei.» (Hebreus 7:12) Mas o sacerdócio tem duas facetas, como afirmado na própria passagem, viz., os sacerdócio levita e o sacerdócio de Cristo. Portanto, a lei divina tem também duas facetas, a Antiga Lei e a Nova Lei”. 

Aquino se refere aos animais como estúpidos e que a ordem natural declarou que eles foram criados para uso humano. Ele negava que os homens tinham qualquer dever de caridade para com os animais por não serem eles “pessoas”. Se não fosse assim, seria ilegal utilizá-los como fonte de alimento. Porém, este racional não dava aos homens permissão para serem cruéis com eles, pois “hábitos cruéis podem transbordar para o nosso tratamento dos seres humanos”. 

Ainda tratando de ética e justiça, Aquino deu grandes contribuições para o pensamento econômico medieval. Ele tratou do conceito de preço justo, normalmente o preço de mercado ou o regulamentado e suficiente para cobrir o custo de produção do vendedor. Ele argumentava que era imoral para os vendedores aumentarem os preços simplesmente por que os compradores estavam em algum momento precisando demais do produto. 

Teologia

Tomás via a teologia (a “doutrina sagrada”) como uma ciência cuja matéria-prima eram as Escrituras e a tradição da Igreja Católica. Estas fontes, por sua vez, seriam, segundo ele, produtos da auto-revelação de Deus a indivíduos ou grupos de indivíduos através da história. Finalmente, fé e razão, distintas e relacionadas, seriam as duas ferramentas primárias para processar os dados teológicos. Ele acreditava que ambas eram necessárias- ou, melhor, que a “confluência” de ambas era necessária – para obter-se o verdadeiro conhecimento de Deus. O objetivo final da teologia, para Tomás, era utilizar a razão para perceber a verdade sobre Deus e experimentar a salvação através desta verdade. 

Revelação

Aquino acreditava que a verdade é conhecida pela razão (“revelação natural”) e pela fé (“revelação sobrenatural”). Esta tem sua origem na inspiração pelo Espírito Santo e está disponível através do ensinamento dos profetas, reunidos nas Escrituras e transmitidos pelo magisterium, coletivamente chamado de “tradição”. Já a revelação natural é a verdade disponível a todos através da natureza humana e dos poderes da razão, por exemplo aplicando métodos racionais para perceber a existência de Deus. 

Assim, apesar de se poder deduzir a existência e os atributos de Deus através da razão, certas especificidades só podem ser conhecidas através da revelação especial de Deus em Jesus Cristo. Os principais componentes teológicos do cristianismo, como a Trindade e a Encarnação, são revelados nos ensinamentos da Igreja e nas Escrituras; não podem, portanto, ser deduzidos pela razão humana. 

Criação

Como católico, Aquino acreditava que Deus é o “criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis”; como Aristóteles, defendia que a vida poderia se formar a partir de matéria não viva ou de plantas, uma forma de abiogênese conhecida como “geração espontânea”: 

“Como a geração de uma coisa é a corrupção de outra, não é incompatível com a primeira a formação de coisas; que, da corrupção do menos perfeito, o mais perfeito deva ser gerado. Assim, animais gerados da corrupção de coisas inanimadas ou de plantas possam então ser gerados. ” 
— Suma Teológica, Tomás de Aquino.

Além disso, Tomás defendia – em seu comentário sobre a “Física”, de Aristóteles – a teoria de Empédocles de que várias mutações das espécies emergiram ainda durante a Criação. Ele argumenta que estas espécies foram geradas através de mutações no esperma animal de forma não esperada pela natureza. Para estas espécies, simplesmente não havia intenção de que tivessem existência perpétua: 

“O mesmo vale para aquelas substâncias que Empédocles afirma terem sido produzidas no começo do mundo, como a “descendência do touro”, ou seja, meio-homem e meio-touros. Pois se tais coisas não conseguiram encontrar algum objetivo e um estado natural final para que pudessem ter sua existência preservada, não foi por que a natureza assim não quis [um estado final], mas por que eles não conseguiram ser preservados. Pois não foram gerados de acordo com a natureza, mas pela corrupção de algum princípio natural, como ainda hoje ocorre quando filhos monstruosos são gerados pela corrupção da semente” 
— Comentário sobre a Física, Tomás de Aquino.

Guerra justa 

Santo Agostinho concordava fortemente com o senso comum de sua época, de que os cristãos deveriam ser pacifistas filosoficamente, mas que deviam utilizar a força como meio de preservar a paz no longo prazo. Ele argumentou muitas vezes que o pacifismo não era contrário à defesa dos inocentes ou à auto-defesa, por exemplo. Resumidamente, Agostinho acreditava que, para a preservação da paz no longo prazo, o uso justificado da força poderia ser necessário, mas estabelecia limites para isso, exigindo, por exemplo, que as guerras com esta finalidade deveriam ser defensivas e ter a restauração da paz (e não a conquista de vantagens) como objetivo. 

Aquino, séculos depois, aproveitou-se da autoridade dos argumentos de Agostinho quando tentou definir as condições para que uma guerra fosse considerada justa, resumidos na “Suma”: 

• Primeiro, a guerra deve ocorrer por uma causa boa e justa e nunca pela busca de riqueza ou poder.
• Segundo, a guerra justa deve ser declarada por uma autoridade legalmente instituída, como um estado.
• Terceiro, a paz deve ser a motivação central em meio à violência decorrente.

Natureza de Deus

Aquino acreditava que a existência de Deus era auto-evidente, mas não era evidente para os homens. “Portanto, digo que esta proposição, ‘Deus existe’, em si mesma, é auto-evidente, pois o predicado é o mesmo que o sujeito… Agora, como não conhecemos a essência de Deus, a proposição não é auto-evidente para nós e precisa ser demonstrada por coisas que são-nos mais conhecidas, apesar de menos conhecidas em sua própria natureza – nomeadamente, pelos efeitos”. 

Ele acreditava também que se poderia demonstrar a existência de Deus. De forma breve na “Suma Teológica” e mais extensivamente na “Suma contra os Gentios”, Aquino considera em detalhes seus cinco argumentos para a existência de Deus, amplamente conhecidos como “quinque viae” (“cinco vias”): 

• Movimento: algumas coisas indubitavelmente mudam sem serem capazes de provocar seu próprio movimento. Como, segundo o racional de Tomás, não pode haver uma cadeia infinita de causas para um movimento, decorre que deve existir um “Primeiro Movimentador”, não movido por nada anterior e este seria o que todos entendem como sendo “Deus”.

• Causa: como no caso do movimento, nada é causa de si próprio e uma cadeia causal infinita seria impossível, deve haver uma “Primeira Causa”, conhecida por “Deus”. Aquino neste caso baseia-se nas assertivas de Aristóteles sobre os princípios do ser. O conceito de Deus como prima causa (“causa primeira”) deriva do conceito aristotélico do “movedor imovível”.

• Existência do necessário e do desnecessário: nossa experiência inclui coisas que certamente existem, mas que são, aparentemente, desnecessárias. Porém, não é possível que tudo seja desnecessário, pois então, quando nada houver [que seja necessário], nada existiria. Portanto, somos compelidos a supor que existe algo que existe “necessariamente”, cuja necessidade deriva de si próprio; na realidade, ele próprio seria a necessidade para que tudo o mais existisse. Este seria Deus. • Gradação: se podemos perceber uma gradação nas coisas no sentido de que algumas são mais quentes, boas etc., deve haver um superlativo que é a coisa mais verdadeira e nobre e, portanto, a que “existe mais completamente”. Esta, então, seria Deus.

• Tendências ordenadas da natureza: uma direção para as ações em direção a uma finalidade se percebe em todos os corpos governados pela lei natural. As coisas sem consciência tendem a ser guiadas pelos que a tem. A isto chamamos “Deus”.

Sobre a natureza de Deus, Aquino acreditava que a melhor abordagem, geralmente chamada de via negativa em latim, é considerar o que Deus “não é”. Seguindo assim, ele propôs cinco expressões sobre as qualidades divinas: 

  • Deus é simples, sem composição de partes – como “corpo” e “alma” ou “matéria” e “forma”.
  • Deus é perfeito, nada Lhe-falta. Ou seja, Deus é diferente dos demais seres por Sua completa realização. Tomás definiu Deus como “Ipse Actus Essendi subsistens” (“subsistente ato de ser”).
  • Deus é infinito. Ou seja, Deus não finito no sentido que os seres criados são física, intelectual e emocionalmente limitados. Esta infinidade deve ser diferenciada da simples infinidade de tamanho ou número.
  • Deus é imutável, não passível de mudanças de caráter ou essência.
  • Deus é uno, sem diversificação em si próprio. A unidade de Deus é tal que Sua essência é idêntica à Sua existência. Nas palavras de Tomás, “em si mesma, a proposição ‘Deus existe’ é necessariamente verdadeira, pois, nela, sujeito e predicado são o mesmo”.

Natureza de Jesus

Antiga sede da Pontifícia Universidade Santo Tomás de Aquino (Angelicum), uma das mais prestigiosas universidades em Roma.

Na “Suma Teológica”, Tomás começa sua discussão sobre Jesus Cristo relembrado a histórica bíblica de Adão e Eva e descrevendo os efeitos negativos do pecado original. A partir daí, ele desenvolve seu argumento de que o objetivo da Encarnação era restaurar a natureza humana, removendo a “contaminação pelo pecado”, algo que os humanos são incapazes de realizar por si mesmos. “A Sabedoria Divina julgou apropriado que Deus tornar-se-ia humano para que, assim, Este pudesse restaurar o homem e dar uma satisfação”. Tomás argumentou a favor da visão da satisfação da expiação, ou seja, que Jesus morreu “para dar satisfação por toda a raça humana, que foi sentenciada a morrer por causa do pecado”.

Aquino argumentou contra diversos teólogos que defendiam pontos de vista diferentes sobre Jesus. Em resposta a Plotino, afirmou que Jesus era verdadeiramente divino e não um simples ser humano. Contra Nestório, que sugeriu que o Filho de Deus estaria meramente conjuminado com o Cristo homem, defendeu que a completude de Deus era parte integral da existência de Cristo.

Contra-atacou as visões de Apolinário defendendo que Cristo tinha uma alma verdadeiramente humana (racional, portanto) e a dualidade de naturezas de Cristo (a humana e a divina). Contra Eutiques, afirmou que esta dualidade permaneceu mesmo depois da Encarnação e, contra os ensinamentos de Maniqueu e Valentim, que as duas naturezas existiam simultaneamente e separadamente num único corpo humano real. Resumindo, “Cristo tinha um ‘corpo real’ da mesma natureza que o nosso, uma ‘verdadeira alma racional’ e, além disso, a ‘divindade perfeita'”: 

“Respondo que, a pessoa ou hipóstase de Cristo pode ser vista de duas formas. Primeiro como ela por si mesma e, assim, de todo simples, mesmo como a natureza do Verbo. Segundo, no aspeto da pessoa ou hipóstase a quem ela subsiste através de uma natureza; e, assim, a Pessoa de Cristo subsiste em duas naturezas. Assim, embora haja um ser subsistindo N’ele, há diferentes aspectos de subsistência presentes, motivo pelo qual diz que ele é uma pessoa composta, um ser subsistindo em dois” 

Ecoando Atanásio de Alexandria, Aquino afirmou que “O Unigênito Filho de Deus…assumiu nossa natureza para que, feito homem, pudesse fazer dos homens deuses”. 

Objetivo da vida humana

Aquino identificou que a razão da existência humana seria a união e amizade eterna com Deus, um objetivo alcançado através da visão beatífica, na qual uma pessoa experimenta a felicidade perfeita e sem fim ao presenciar a essência de Deus. Ela ocorre depois da morte como presente de Deus aos que na vida experimentaram a salvação e a redenção através de Cristo. 

O objetivo da união com Deus tem implicações para a vida das pessoas na terra. Segundo Tomás, a vontade dos indivíduos deve ser dirigida às coisas corretas, como caridade, paz e santidade. Ele via nesta orientação como um caminho para a felicidade e estruturou suas ideias sobre a vida moral à volta desta crença. A relação entre a vontade e o objetivo da vida é antecedente na natureza “por que a retidão da vontade consiste em ser obedientemente dirigida ao objetivo final [a visão beatífica]”. Os que buscam verdadeiramente entender e ver Deus irão necessariamente amar o que Ele ama, um amor que requer moralidade e aparece nas escolhas cotidianas dos homens. 

Tratamento dispensado aos heréticos 

Aquino era um dominicano, ou seja, um membro da Ordem dos Pregadores (Ordo Praedicatorum) cujo objetivo inicial era a conversão dos albigenses e de outras facções heterodoxas de forma pacífica num primeiro momento, mas que logo degeneraria na violenta Cruzada Albigense. Na “Suma Teológica”, escreveu: 

“Sobre os heréticos, dois pontos precisam ser observados: um do lado deles e outro, no da Igreja. Do lado deles há o pecado, pelo qual eles merecem não apenas serem separados da Igreja pela excomunhão, mas também separados do mundo pela morte. Pois é um problema muito mais grave corromper a fé que alimenta a alma do que forjar dinheiro, que sustenta a vida temporal. De onde se conclui que se os falsificadores de dinheiro e outros malfeitores são condenados à morte por isso pelas autoridades seculares, há muito mais motivos para os heréticos, tão logo sejam condenados por heresia, sejam não apenas excomungados, mas executados.

Da parte da Igreja, porém, há misericórdia, que procura a conversão dos desgarrados, e por isso ela não condena imediatamente, mas “depois da primeira e segunda admoestação”, como ensinou o Apóstolo: depois disso, se persistir na teimosia, a Igreja, sem esperança de conversão, procura pela salvação dos demais excomungando-o e separando-o da Igreja; além disso, entrega-o ao tribunal secular para ser exterminado assim deste mundo pela morte.” 
— Suma Teológica, Tomás de Aquino.

Roubo simples, falsificação, fraude e outros crimes similares eram também ofensas passíveis de morte na época; o ponto de Aquino é que a gravidade da heresia, que trata não apenas de bens materiais, mas também dos espirituais de outros, é pelo menos tão grave quanto falsificação. A sugestão dele exige, porém, que os heréticos sejam entregues a um “tribunal secular” ao invés da autoridade magisterial.

Além disso, a ideia de que os heréticos merecem a morte está relacionada à teologia de Aquino, segundo a qual os pecadores não tem um direito intrínseco à vida, “pois o pagamento do pecado é a morte; mas o presente grátis de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor”). Seja como for, seu ponto é claro: heréticos devem ser executados pelo estado. Ele elabora ainda mais o tema no artigo seguinte quando diz: 

“No tribunal de Deus, aqueles que retornam são sempre recebidos, pois Deus é um examinador de corações e conhece os que retornam com sinceridade. Mas a Igreja não pode imitar Deus nisso, pois ela presume que os que recaem depois depois de terem sido recebidos uma vez não são sinceros em seu retorno; daí ela não pode excluí-los do cominho da salvação, mas não pode também protegê-los da sentença de morte.” 
— Suma Teológica, Tomás de Aquino.

Vida depois da morte e ressurreição

Alguma compreensão sobre o estado psicológico de Tomás de Aquino é fundamental para compreender suas crenças sobre a vida após a morte e a ressurreição. Seguindo a doutrina da Igreja, ele aceita que a alma continue existindo depois da morte do corpo. Como ele aceita também que ela é a forma do corpo, Aquino defende que o ser humano, assim como todas as coisas materiais, é um composto de “forma” e “matéria”, uma versão do hilemorfismo aristotélico.

A forma substancial (a alma humana) configura (define) a matéria-prima (o corpo) e é assim que um composto material se enquadra numa determinada espécie; no caso dos homens, a do “animal racional”. Portanto, o ser humano seria um composto de forma-matéria organizado para ser um animal racional. A matéria não pode existir sem ser configurado por uma forma, mas esta pode existir sem a matéria, o que abre espaço para a crença da separação da alma do corpo. Aquino afirma que a alma coexiste nos mundos material e espiritual e, portanto, tem algumas caraterísticas materiais e outras imateriais (como o acesso aos universais). 

Finalmente, Aquino rejeitava a ideia de que a ressurreição necessite de alguma forma de dualismo (entre corpo e alma como distintos), defendendo que alma (parte do composto forma-matéria) persistia depois da morte e à corrupção do corpo, sendo capaz de existência autônoma no período entre a morte e a ressurreição. Ele sabe que os seres humanos são essencialmente físicos, mas que esta “fisicalidade” tem um espírito capaz de retornar a Deus depois da vida.

Para ele, as recompensas e punições da vida depois da morte não são “apenas” espirituais. Por isso, a ressurreição é uma parte importante de sua filosofia sobre a alma. O homem é realizado e completo no corpo físico e, portanto, a vida eterna deve contar com almas materializadas em corpos ressuscitados. Além da recompensa espiritual, os homens podem então esperar o gozo de bênçãos materiais e físicas.

Aquino afirma claramente sua posição sobre a ressurreição e a utiliza para defender sua filosofia da justiça: a promessa da ressurreição compensa os cristãos que sofreram neste mundo através de uma união celeste com o divino. Em suas palavras, “se não há ressurreição dos mortos, segue que não há nada de bom para os seres humanos fora desta vida”.

Assim, a esperança da ressurreição seria responsável pelo ímpeto para as pessoas na terra abrirem mão de prazeres nesta vida; aqueles que se prepararam para a vida depois da morte, moral e intelectualmente, receberão recompensas ainda maiores pela graça divina. Aquino insiste que a beatitude será conferida por mérito e irá tornar as pessoas mais capazes de conceber o divino. Na mesma linha, a punição também está diretamente relacionada com esta preparação e as ações na terra. 

Obras

A lista completa de obras de Tomás de Aquino (ou atribuídas a ele) é a seguinte: 

Opera maiora (“Obras maiores”)
• Scriptum super sententiis;
• Summa contra gentiles;
• Summa theologiae.
Quaestiones (“Questões”) 
• Quaestiones disputatae;
• Quaestiones de quolibet.
Opuscula (“Obras menores”)
• Opuscula philosophica;
• Opuscula theologica;
• Opuscula polemica pro mendicantibus;
• Censurae;
• Rescripta;
• Responsiones.
Commentaria (“Comentários”)
• In Aristotelem;
• In neoplatonicos;
• In Boethium.
Commentaria biblica (“Comentários bíblicos”)
• In Vetus Testamentum;
• Commentaria cursoria;
• In Novum Testamentum;
• Catena aurea;
• In epistolas S. Pauli.
Collationes et sermones (“Coleções e sermões”)
• Collationes;
• Sermones.
Documenta (“Documentos”)
• Acta;
• Opera collectiva;
• Reportationes Alberti Magni super Dionysium.
Opera probabilia authenticitate (“Autoria provável”)
• Lectura romana in primum Sententiarum Petri Lombardi;
• Quaestiones;
• Opera liturgica;
• Sermones;
• Preces.
Opera dubia authenticitate (“Autoria duvidosa”)
• Quaestiones;
• Opuscula philosophica;
• Rescripta;
• Opera liturgica;
• Sermones;
• Preces;
• Opera collectiva;
• Reportationes.
Opera aliqua false adscripta (“Falsa autoria” – atribuídas no passado)
• Quaestiones disputatae;
• Opuscula philosophica;
• Opuscula theologica;
• Rescripta;
• Concordantiae;
• Commentaria philosophica;
• Commentaria theologica;
• Commentaria biblica;
• Sermones;
• Opera liturgica;
• Preces;
• Carmina.

Levitação

Por séculos persistem alegações recorrentes de que Tomás teria tido a habilidade de levitar. Por exemplo, G. K. Chesterton escreveu: “Suas experiências incluíram casos bem atestados de levitação em êxtase; e a Virgem Maria apareceu para ele, confortando-o com as boas novas de que ele jamais seria bispo”. 

Condenação de 1277

Em 1277, Étienne Tempier, o mesmo bispo de Paris que havia publicado o édito de condenação de 1270, publicou outro, mais amplo. Um dos objetivos desta vez era clarificar que o poder absoluto de Deus transcendia quaisquer princípios da lógica de Aristóteles ou de Averróis. Mais especificamente, ele continha uma lista de 219 proposições que, segundo o bispo, violavam a onipotência de Deus, entre eles vinte proposições de Tomás de Aquino, o que prejudicou seriamente sua reputação por muitos anos.

Na “Divina Comédia”, Dante coloca a alma glorificada de Tomás de Aquino no “céu do Sol” com outros grandes da sabedoria religiosa. Ele afirma ainda que Tomás morreu envenenado por ordem de Carlos de Anjou, uma versão citada por Villani (ix. 218) e descrita, inclusive o motivo, pelo Anonimo Fiorentino. Porém, o historiador Ludovico Antonio Muratori reproduz o relato feito pelos amigos de Tomás e não encontrou traço algum de má fé. 

“Tomás de Aquino sou; está-me vizinho / À destra de Colônia o grande Alberto / A quem de aluno e irmão devo o carinho. // Se do mais todos ser desejas certo, / Na santa c´roa atenta cuidadoso, / A tua vista a voz me siga perto.” 
— Dante Alighieri, A Divina Comédia, Canto X, 97 – 102).

A teologia de Tomás de Aquino já havia começado a ganhar prestígio quando, dois séculos depois, em 1567, Pio V proclamou-o um Doutor da Igreja e colocou sua festa no mesmo nível da dos grandes Padres latinos: Ambrósio, Agostinho, Jerônimo e Gregório. Porém, na mesma época, o Concílio de Trento buscava muito mais en Duns Escoto do que em Tomás argumentos em defesa da Igreja. 

Canonização

Quando o advogado do diabo de seu processo de canonização argumentou que não haviam milagres em seu nome, um dos cardeais respondeu: “Tot miraculis, quot articulis” (“Tantos milagres quanto artigos”, uma referência à quantidade de artigos na “Suma Teológica”, milhares). Cinquenta anos depois de sua morte, em 18 de julho de 1323, João XII, papa em Avinhão, declarou Tomás de Aquino santo.

Num mosteiro de Nápoles, perto da catedral de São Januário de Benevento, uma cela na qual São Tomás supostamente viveu ainda é visitada por peregrinos. Seus restos estão abrigados na Igreja dos Jacobinos em Toulouse desde 28 de junho de 1369. Entre 1789, data da Revolução Francesa, e 1974, eles estiveram na Basilique de Saint-Sernin. Neste anos, foram devolvidos à Igreja dos Jacobinos onde estão até hoje. 

Quando foi canonizado, a festa de São Tomás foi incorporada ao Calendário Geral Romano em 7 de março, o dia de sua morte. Como esta data geralmente cai na Quaresma, a festa foi modificada para 28 de janeiro, a data da translação de suas relíquias para Toulouse. 

Influência moderna

Muitos estudiosos da ética, dentro e fora da Igreja Católica (notavelmente Philippa Foot e Alasdair MacIntyre), comentaram em tempos recentes sobre a possibilidade de utilizar a ética de virtude de Aquino como meio de evitar o utilitarismo ou a deontologia de Kant (o “senso do dever”). Pelas obras de filósofos do século XX como Elizabeth Anscombe (especialmente no livro “Intention”), o princípio do duplo efeito de Aquino e sua teoria da atividade intencional tem sido muito influentes. 

O neurocientista cognitivo Walter J. Freeman afirmou que o tomismo é o sistema filosófico sobre a cognição que é mais compatível com a neurodinâmica num artigo de 2008 no periódico “Mind and Matter” intitulado “Nonlinear Brain Dynamics and Intention According to Aquinas” (“Dinâmica e Intenção Cerebral Não-lineares Segundo Aquino”). 

As teorias estéticas de Aquino, especialmente seu conceito de claritas, influenciaram profundamente a obra do autor modernista James Joyce, que costumava dizer que Aquino estava atrás apenas de Aristóteles entre os filósofos ocidentais. Ele fez referências ao pensamento de Aquino através da “Elementa philosophiae ad mentem D. Thomae Aquinatis doctoris angelici” (1898), de Girolamo Maria Mancini, professor de teologia no famoso Collegium Divi Thomae de Urbe, como, por exemplo, em “Portrait of the Artist as a Young Man”. 

As obras do semiótico italiano Umberto Eco também foram influenciadas pela estética de Aquino, principalmente no ensaio que ele escreveu sobre Tomás de Aquino publicada em 1956 e republicada, revisada, em 1988. 

Veja mais:

Crítica de Bertrand Russell

Bertrand Russell criticou a filosofia de Aquino por que: 

“Ele não persegue, como o platónico Sócrates, o argumento até onde ele possa levar. Ele não se mostra engajado no inquérito, cujo resultado é impossível saber de antemão. Antes de começar a filosofar, ele já sabe a verdade; a que está declarada na fé católica. Se ele consegue encontrar argumentos aparentemente racionais para partes da fé, melhor; se não consegue, basta-lhe recuar para o uso da revelação. A busca por argumentos para uma conclusão dada de antemão não é filosofia e sim uma súplica especial. Não posso, portanto, concordar que ele mereça ser considerado no mesmo nível dos melhores filósofos, seja da Grécia ou de tempos modernos” 
— Bertrand Russell, Uma História da Filosofia Ocidental.

Esta crítica pode ser ilustrada com alguns dos exemplos (todos com base no raciocínio de Russell): 

  • Aquino defende a indissolubilidade do matrimônio “afirmando que o pai é útil para a educação das crianças, (a) por que é mais racional que a mãe, (b) por que, sendo mais forte, está melhor capacitado a infligir a punição corporal”. Independente da visão moderna sobre a educação, “nenhum seguidor de São Tomás de Aquino iria, com base neste relato, deixar de acreditar na monogamia perpétua só por que a motivação real desta crença não são as alegadas [por ele]”. Esta argumentação, porém, pode ser amenizada pelo fato de que o matrimônio, na “Suma”, está no volume “suplementar”, que não foi escrito por Aquino. Além disso, como já mencionado, a introdução dos conceitos pagãos de Aristóteles e Averróis no cristianismo por Aquino é de aceitação controversa.
  • A visão de Aquino sobre Deus como causa primeira, em acordo com sua quinque viae, “depende da suposta impossibilidade de uma série não ter um primeiro termo. Todo matemático sabe que não existe esta impossibilidade; a série de inteiros negativos, que termina em -1, é uma ocorrência do contrário”.
  • As afirmações sobre a essência e a existência de Deus são fruto da lógica aristotélica e se baseiam em “alguma forma de confusão sintática, sem a qual muito da argumentação sobre Deus perderia sua plausibilidade”.
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Vasco da Gama https://canalfezhistoria.com/vasco-da-gama/ https://canalfezhistoria.com/vasco-da-gama/#respond Tue, 11 Mar 2025 21:24:17 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5928 Vasco da Gama (Sines, Portugal, 1469 — Cochim, Índia, 24 de dezembro de 1524) foi um navegador e explorador português. Na Era dos Descobrimentos, destacou-se por ter sido o comandante dos primeiros navios a navegar da Europa à Índia, na mais longa viagem oceânica até então realizada, superior a uma volta completa ao mundo pelo Equador. No fim da vida foi, por um breve período, Vice-Rei da Índia.

Biografia

Nasceu cerca de 1469, em Sines, na costa sudoeste de Portugal, possivelmente numa casa perto da Igreja de Nossa Senhora das Salvas de Sines. Sines, um dos poucos portos da costa alentejana, era então uma pequena povoação habitada por pescadores. 

Era filho legítimo de Estêvão da Gama, que em 1460 era cavaleiro da casa de D. Fernando de Portugal, Duque de Viseu e Mestre da Ordem de Cristo. D. Fernando nomeara-o alcaide-mor de Sines e permitira-receber uma pequena receita de impostos sobre a fabricação de sabão em Estremoz. Estêvão da Gama era casado com Dona Isabel Sodré, filha de João Sodré (também conhecido como João de Resende).Sodré, que era de ascendência inglesa, tinha ligações à casa de D. Diogo, Duque de Viseu, filho de Fernando de Portugal, Duque de Viseu.

Pouco se sabe do início da vida deste navegador. Foi sugerido pelo médico e historiador português Augusto Carlos Teixeira de Aragão que terá estudado em Évora, onde poderá ter aprendido matemática e navegação. É evidente que conhecia bem a astronomia, e é possível que tenha estudado com o astrónomo Abraão Zacuto. 

Em 1492, João II de Portugal enviou-o ao porto de Setúbal, a sul de Lisboa, e ao Algarve para capturar navios franceses em retaliação por depredações feitas em tempo de paz contra a navegação portuguesa – uma tarefa que Vasco da Gama executou rápida e eficazmente. 

Descoberta do caminho marítimo para a Índia (1497-1499) 

Antecedentes

Desde o início do século XV, impulsionados pelo Infante D. Henrique, os portugueses vinham aprofundando o conhecimento sobre o litoral Africano. A partir da década de 1460, a meta tornara-se conseguir contornar a extremidade sul do continente africano para assim aceder às riquezas da Índia – pimenta preta e outras especiarias – estabelecendo uma rota marítima de confiança. A República de Veneza dominava grande parte das rotas comerciais entre a Europa e a Ásia, e desde a tomada de Constantinopla pelos otomanos limitara o comércio e aumentara os custos. Portugal pretendia usar a rota iniciada por Bartolomeu Dias para quebrar o monopólio do comércio mediterrânico. 

Quando Vasco da Gama tinha cerca de dez anos, esses planos de longo prazo estavam perto de ser concretizados: Bartolomeu Dias tinha retornado de dobrar o Cabo da Boa Esperança, depois de explorar o “Rio do Infante” (Great Fish River, na actual África do Sul) e após ter verificado que a costa desconhecida se estendia para o nordeste.

Em simultâneo foram feitas explorações por terra durante o reinado de D. João II de Portugal, suportando a teoria de que a Índia era acessível por mar a partir do Oceano Atlântico. Pero da Covilhã e Afonso de Paiva foram enviados via Barcelona, Nápoles e Rodes até Alexandria, porta para Aden, Ormuz e Índia. 

Faltava apenas um navegador comprovar a ligação entre os achados de Bartolomeu Dias e os de Pero da Covilhã e Afonso de Paiva, para inaugurar uma rota de comércio potencialmente lucrativa para o Oceano Índico. A tarefa fora inicialmente atribuída por D. João II a Estevão da Gama, pai de Vasco da Gama.

Contudo, dada a morte de ambos, em Julho de 1497 o comando da expedição foi delegado pelo novo rei D. Manuel I de Portugal a Vasco da Gama, possivelmente tendo em conta o seu desempenho ao proteger os interesses comerciais portugueses de depredações pelos franceses ao longo da Costa do Ouro Africana. A chamada Primeira Armada da Índia seria financiada em parte pelo banqueiro florentino Girolamo Sernige. 

A viagem

Manuel I de Portugal confiou a Vasco da Gama o cargo de capitão-mor da frota que, num sábado 8 de Julho de 1497, zarpou de Belém em demanda da Índia. 

Era uma expedição essencialmente exploratória que levava cartas do rei D. Manuel I para os reinos a visitar, padrões para colocar, e que fora equipada por Bartolomeu Dias com alguns produtos que haviam provado ser úteis nas suas viagens, para as trocas com o comércio local. O único testemunho presencial da viagem é constada num diário de bordo anónimo, atribuído a Álvaro Velho: Contava com cerca de cento e setenta homens, entre marinheiros, soldados e religiosos, distribuídos por quatro embarcações:

• São Gabriel, uma nau de 27 metros de comprimento e 178 toneladas, construída especialmente para esta viagem, comandada pelo próprio Vasco da Gama;
• São Rafael, de dimensões semelhantes à São Gabriel, também construída especialmente para esta viagem, comandada por Paulo da Gama, seu irmão; no regresso, com a tripulação diminuída, foi abatida em Melinde, prosseguindo na Bérrio e São Gabriel.
• Bérrio, uma nau ligeiramente menor que as anteriores, oferecida por D. Manuel de Bérrio, seu proprietário, sob o comando de Nicolau Coelho;
• São Miguel, uma nau para transporte de mantimentos, sob o comando de Gonçalo Nunes, que viria a ser queimada na ida, perto da baía de São Brás, na costa oriental africana.

A expedição partiu de Lisboa, acompanhada por Bartolomeu Dias que seguia numa caravela rumo à Mina, seguindo a rota já experimentada pelos anteriores exploradores ao longo da costa de África, através de Tenerife e do Arquipélago de Cabo Verde. Após atingir a costa da atual Serra Leoa, Vasco da Gama desviou-se para o sul em mar aberto, cruzando a linha do Equador, em demanda dos ventos vindos do oeste do Atlântico Sul, que Bartolomeu Dias já havia identificado desde 1487.

Esta manobra de “volta do mar” foi bem sucedida e, a 4 de Novembro de 1497, a expedição atingiu novamente o litoral Africano. Após mais de três meses, os navios tinham navegado mais de 6.000 quilómetros de mar aberto, a viagem mais longa até então realizada em alto mar. 

A 16 de Dezembro, a frota já tinha ultrapassado o chamado “rio do Infante” (“Great Fish River”, na atual África do Sul) – de onde Bartolomeu Dias havia retornado anteriormente – e navegou em águas até então desconhecidas para os europeus. No dia de Natal, Gama e sua tripulação batizaram a costa em que navegavam o nome de Natal (actual província KwaZulu-Natal da África do Sul). 

A 2 de Março de 1498, completando o contorno da costa africana, a armada chegou à costa de Moçambique, após haver sofrido fortes temporais e de Vasco da Gama ter sufocado com mão de ferro uma revolta da marinhagem. Na costa Leste Africana, os territórios controlados por muçulmanos integravam a rede de comércio no Oceano Índico. Em Moçambique encontram os primeiros mercadores indianos. Inicialmente são bem recebidos pelo sultão, que os confunde com muçulmanos e disponibiliza dois pilotos. Temendo que a população fosse hostil aos cristãos, tentam manter o equívoco mas, após uma série de mal entendidos, foram forçados por uma multidão hostil a fugir de Moçambique, e zarparam do porto disparando os seus canhões contra a cidade. 

O piloto que o sultão da ilha de Moçambique ofereceu para os conduzir à Índia havia sido secretamente incumbido de entregar os navios portugueses aos mouros em Mombaça. Um acaso fez descobrir a cilada e Vasco da Gama pôde continuar.

Na costa do actual Quénia a expedição saqueou navios mercantes árabes desarmados. Os portugueses tornaram-se conhecidos como os primeiros europeus a visitar o porto de Mombaça, mas foram recebidos com hostilidade e logo partiram. 

Em Fevereiro de 1498, Vasco da Gama seguiu para norte, desembarcando no amistoso porto de Melinde – rival de Mombaça – onde foi bem recebido pelo sultão que lhe forneceu um piloto árabe, conhecedor do Oceano Índico, cujo conhecimento dos ventos de monções permitiu guiar a expedição até Calecute, na costa sudoeste da Índia. As fontes divergem quanto à identidade do piloto, identificando-o por vezes como um cristão, um muçulmano e um guzerate. Uma história tradicional descreve o piloto como o famoso navegador árabe Ibn Majid, mas relatos contemporâneos posicionam Majid noutro local naquele momento. 

Chegada a Calecute

Em 20 de Maio de 1498, a frota alcançou Kappakadavu, próxima a Calecute, no actual estado indiano de Kerala, ficando estabelecida a Rota do Cabo e aberto o caminho marítimo dos Europeus para a Índia. No dia seguinte à chegada, João Nunes , um Cristão-Novo degredado, foi enviado a terra porque tinha conhecimento rudimentar de árabe (foi o primeiro a desembarcar em Calecute) . Dois mouros de origem Tunisina, receberam-no na sua casa e à interpelação de um deles em castelhano «Ao diabo que te dou; quem te trouxe cá?» este respondeu a célebre frase : «Vimos buscar cristãos e especiaria.», conforme relatado por Álvaro Velho. 

Ao ver as imagens de deuses Hindus, Gama e os seus homens pensaram tratar-se de santos cristãos, por contraste com os muçulmanos que não tinham imagens. A crença nos “cristãos da Índia”, como então lhes chamaram, perdurou algum tempo mesmo depois do regresso.

Contudo, as negociações com o governador local, Samutiri Manavikraman Rajá, samorim de Calecute, foram difíceis. Os esforços de Vasco da Gama para obter condições comerciais favoráveis foram dificultados pela diferença de culturas e pelo baixo valor de suas mercadorias. com os representantes do samorim a escarnecerem das suas ofertas, e os mercadores árabes aí estabelecidos a resistir à possibilidade de concorrência indesejada. As mercadorias apresentadas pelos portugueses mostraram-se insuficientes para impressionar o samorim, em comparação com os bens de alto valor ali comerciados, o que gerou alguma desconfiança. Os portugueses acabariam por vender as suas mercadorias por baixo preço para poderem comprar pequenas quantidades de especiarias e jóias para levar para o reino. 

Por fim o samorim mostrou-se agradado com as cartas de D. Manuel I e Vasco da Gama conseguiu obter uma carta ambígua de concessão de direitos para comerciar, mas acabou por partir sem aviso após o Samorim e o seu chefe da Marinha Kunjali Marakkar insistirem para que deixasse todos os seus bens como garantia. Vasco da Gama manteve os seus bens, mas deixou alguns portugueses com ordens para iniciar uma feitoria. 

Regresso a Portugal

Vasco da Gama iniciou a viagem de regresso a 29 de Agosto de 1498. Na ânsia de partir, ignorou o conhecimento local sobre os padrões da monção que lhe permitiria velejar. Na Ilha de Angediva foram abordados por um homem que se afirmava cristão mas que se fingia de muçulmano ao serviço de Hidalcão, o sultão de Bijapur. Suspeitando que era um espião, açoitaram-no até que ele confessou ser um aventureiro judeu polaco no Oriente. Vasco da Gama apadrinhou-o, nomeando-o Gaspar da Gama. 

Na viagem de ida, cruzar o Índico até à Índia com o auxílio dos ventos de monção demorara apenas 23 dias. A de regresso, navegando contra o vento, consumiu 132 dias, tendo as embarcações aportado em Melinde a 7 de Janeiro de 1499. Nesta viagem cerca de metade da tripulação sobrevivente pereceu, e muitos dos restantes foram severamente atingidos pelo escorbuto, por isso dos 148 homens que integravam a armada, só 55 regressaram a Portugal.

Apenas duas das embarcações que partiram do Tejo conseguiram voltar a Portugal, chegando, respectivamente em Julho e Agosto de 1499. A caravela Bérrio, sendo a mais leve e rápida da frota, foi a primeira a regressar a Lisboa, onde aportou a 10 de Julho de 1499, sob o comando de Nicolau Coelho e tendo como piloto Pêro Escobar, que mais tarde acompanhariam a frota de Pedro Álvares Cabral na viagem em que se registrou o descobrimento do Brasil em Abril de 1500. 

Vasco da Gama regressou a Portugal em setembro de 1499, um mês depois de seus companheiros, pois teve de sepultar o irmão mais velho Paulo da Gama, que adoecera e acabara por falecer na ilha Terceira, nos Açores. No seu regresso, foi recompensado como o homem que finalizara um plano que levara oitenta anos a cumprir. Recebeu o título de “almirante-mor dos Mares das Índia”, sendo-lhe concedida uma renda de trezentos mil réis anuais, que passaria para os filhos que tivesse. Recebeu ainda, conjuntamente com os irmãos, o título perpétuo de Dom e duas vilas, Sines e Vila Nova de Milfontes. 

Segunda viagem à Índia (1502)

Em 12 de Fevereiro de 1502, Vasco da Gama comandou uma nova expedição com uma frota de vinte navios de guerra, com o objetivo de fazer cumprir os interesses portugueses no Oriente. Fora convidado após a recusa de Pedro Álvares Cabral, que se desentendera com o monarca acerca do comando da expedição. Esta viagem ocorreu depois da segunda armada à Índia, comandada por Pedro Álvares Cabral em 1500, que ao desviar-se da rota descobrira o Brasil.

Quando chegou à Índia, Cabral soube que os portugueses que haviam sido aí deixados por Vasco da Gama na primeira viagem para estabelecer um posto comercial haviam sido mortos. Após bombardear Calecute, rumou para o sul até Cochim, um pequeno reino rival, onde foi calorosamente recebido pelo Rajá, regressando à Europa com seda e ouro. 

Gama tomou e exigiu um tributo à ilha de Quíloa na África Oriental, um dos portos de domínio árabe que haviam combatido os portugueses, tornando-a tributária de Portugal. Com ouro proveniente de 500 moedas trazidas por Vasco da Gama do régulo de Quíloa (actual Kilwa Kisiwani, na Tanzânia), como tributo de vassalagem ao rei de Portugal, foi mandada criar, pelo rei D. Manuel I para o Mosteiro dos Jerónimos, a Custódia de Belém.

Nesta viagem ocorreu o primeiro registo europeu conhecido do avistamento das ilhas Seychelles, que Vasco da Gama nomeou Ilhas Amirante (ilhas do Almirante) em sua própria honra. Vasco da Gama partira com o objectivo de instalar o centro português e uma feitoria em Cochim, após esforços consecutivos de Pedro Álvares Cabral e João da Nova. Bombardeou Calecute e destruiu postos de comércio árabes. 

Depois de chegar ao norte do Oceano Índico, Vasco da Gama aguardou até capturar um navio que retornava de Meca, o Mîrî, com importantes mercadores muçulmanos, apreendendo todas as mercadorias e incendiando-o. Ao chegar a Calecute, a 30 de Outubro 1502, o samorim estava disposto a assinar um tratado, num acto de ferocidade que chocou até os cronistas contemporâneos, que o consideraram um acto e vingança pelos portugueses mortos em Calecute da sua primeira viagem. 

Em 1 de Março de 1503 inicia-se a guerra entre o samorim de Calecute e o rajá de Cochim. Os seus navios assaltaram navios mercantes árabes, destruindo também uma frota de 29 navios de Calecute. Após essa batalha, obteve então concessões comerciais favoráveis do Samorim. Vasco da Gama fundou a colónia portuguesa de Cochim, na Índia, regressando a Portugal em Setembro de 1503. Vasco da Gama voltou a pátria em 1513 e levou vida retirada, em Évora, apesar da consideração de que gozava junto do rei.

Terceira viagem à Índia (1524)

Em 1519 foi feito primeiro Conde da Vidigueira pelo rei D. Manuel I, com sede num terreno comprado a D. Jaime I, Duque de Bragança, que a 4 de Novembro cedera as vilas da Vidigueira e Vila de Frades a Vasco da Gama, seus herdeiros e sucessores, bem como todos os rendimentos e privilégios relacionados, sendo o primeiro Conde português sem sangue real. 

Tendo adquirido uma reputação de temível “solucionador” de problemas na Índia, Vasco da Gama foi enviado de novo para o subcontinente indiano em 1524. O objectivo era o de que ele substituísse o Duarte de Meneses, cujo governo se revelava desastroso, mas Vasco da Gama contraiu malária pouco depois de chegar a Goa. Como vice-rei atuou com rigidez e conseguiu impor a ordem, mas morreu na cidade de Cochim, na véspera de Natal em 1524. 

Foi sepultado na Igreja de São Francisco (Cochim). Em 1539 os seus restos mortais foram transladados para Portugal, mais concretamente para a Igreja de um convento carmelita, conhecido actualmente como Quinta do Carmo (hoje propriedade privada), próximo da vila alentejana da Vidigueira, como conde da Vidigueira de juro e herdade (ou seja, a si e aos seus descendentes) desde 1519. 

Aqui estiveram até 1880, data em que ocorreu a trasladação para o Mosteiro dos Jerónimos, que foram construídos logo após a sua viagem, com os primeiros lucros do comércio de especiarias, ficando ao lado do túmulo de Luís Vaz de Camões. Há quem defenda, porém, que os ossos de Vasco da Gama ainda se encontram na vila alentejana. Como testemunho da trasladação das ossadas, em frente à estátua do navegador na Vidigueira, existe a antiga Escola Primária Vasco da Gama (cuja construção serviu de moeda de troca para obter permissão para efectuar a trasladação à época), onde se encontra instalado o Museu Municipal de Vidigueira. 

Títulos e honrarias

Foi feito: 

• Dom com direito excepcionalmente estendido a toda a sua descendência masculina e feminina, e a seus irmãos e irmã;
• Fidalgo de Cota de Armas de Mercê Nova para da Gama;

• 1.º Senhor das Vilas da Vidigueira e de Vila de Frades com o título de 1.º Conde da Vidigueira em 1519 pelo Rei D. Manuel I de Portugal;
• 1.º Almirante-Mor dos Mares da Índia;
• 2.º 6.º Governador da Índia em 1524.

Legado

O comércio de especiarias viria a ser um trunfo para a economia portuguesa, e a viagem de Vasco da Gama deixou clara a importância da costa leste da África para os interesses portugueses: os seus portos forneciam água potável, víveres e madeira, serviam para reparos e como abrigo para os navios esperarem em tempos desfavoráveis (aguardando a monção, ou abrigando-se de ataques). Um resultado significativo desta exploração foi a colonização de Moçambique pela Coroa Portuguesa. 

Embora o rei D. Manuel tenha compreendido a importância das suas mercadorias, apesar de escassas, as conquistas de Vasco da Gama foram um pouco obscurecidas pelo seu fracasso em trazer bens comerciais de interesse para as nações da Índia. Além disso, a rota de mar estava repleta de perigos – a sua frota levou mais de trinta dias sem ver terra e apenas 60 dos seus 180 companheiros, numa das suas três naus, regressaram a Portugal em 1498. No entanto, esta jornada abriu a rota do cabo direta para a Ásia. Na segunda armada à Índia, de Pedro Álvares Cabral, seria feita uma demonstração de poder, com tripulação dez vezes maior e 9 navios a mais. 

Da sua esposa, D. Catarina de Ataíde, Vasco da Gama teve sete filhos. Alguns acompanharam-no e vieram a desempenhar importantes cargos no Oriente: Francisco, segundo Conde da Vidigueira; Estêvão, 11º governador da Índia; Paulo; Cristóvão, um mártir na Etiópia; Pedro, Isabel de Ataíde e Álvaro da Gama, Capitão de Malaca. 

Veja mais:

O poema épico “Os Lusíadas” (1572) de Luís Vaz de Camões, centra-se em grande parte nas viagens de Vasco da Gama. José Agostinho de Macedo escreveu o poema narrativo “Gama” (1811), posteriormente refundido e aperfeiçoado no poema épico “O Oriente” (1814), com Vasco da Gama como Herói. A ópera “L’Africaine”, composta em 1865 por Giacomo Meyerbeer e Eugène Scribe, inclui a personagem de Vasco da Gama, interpretada em 1989 na San Francisco Opera pelo tenor Placido Domingo.

O compositor do século XIX, Louis-Albert Bourgault-Ducoudray, compôs uma ópera em 1872 de mesmo nome, baseada na vida e explorações marítimas de Vasco da Gama. A cidade portuária de Vasco da Gama, em Goa, é nomeada em sua memória, como o é a “cratera de Vasco da Gama” na Lua.

Existem três clubes de futebol no Brasil (incluindo o Club de Regatas Vasco da Gama) e o Vasco Sports Club, em Goa, também nomeados em sua homenagem. Uma igreja em Cochim, Kerala, a Igreja Vasco da Gama, e o bairro Vasco na Cidade do Cabo, também o homenageiam. As três viagens de Vasco da Gama são relatadas com pormenor, no romance histórico “Indias”, de João Morgado, prémio Literário Alçada Baptista 2012.

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Voltaire https://canalfezhistoria.com/voltaire/ https://canalfezhistoria.com/voltaire/#respond Tue, 11 Mar 2025 21:19:09 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5924 François-Marie Arouet, mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire (Paris, 21 de novembro de 1694 — Paris, 30 de maio de 1778), foi um escritor, ensaísta, deísta e filósofo iluminista francês. 

Conhecido pela sua perspicácia e espirituosidade na defesa das liberdades civis, inclusive liberdade religiosa e livre comércio, é uma dentre muitas figuras do Iluminismo cujas obras e ideias influenciaram pensadores importantes tanto da Revolução Francesa quanto da Americana. Escritor prolífico, Voltaire produziu cerca de 70 obras em quase todas as formas literárias, assinando peças de teatro, poemas, romances, ensaios, obras científicas e históricas, mais de 20 mil cartas e mais de 2 mil livros e panfletos.

Foi um defensor aberto da reforma social apesar das rígidas leis de censura e severas punições para quem as quebrasse. Um polemista satírico, ele frequentemente usou suas obras para criticar a Igreja Católica e as instituições francesas do seu tempo. Voltaire é o patriarca de Ferney. Ficou conhecido por dirigir duras críticas aos reis absolutistas e aos privilégios do clero e da nobreza. Por dizer o que pensava, foi preso duas vezes e, para escapar a uma nova prisão, refugiou-se na Inglaterra. Durante os três anos em que permaneceu naquele país, conheceu e passou a admirar as ideias políticas de John Locke. 

Ideias

Voltaire foi um pensador que se opôs à intolerância religiosa e à intolerância de opinião existentes na Europa no período em que viveu. Suas ideias reformistas acabaram por fazer com que fosse exilado de seu país de origem, a França. O conjunto de ideias de Voltaire constitui uma tendência de pensamento conhecida como Liberalismo.

Exprime na maioria dos seus textos a preocupação da defesa da liberdade, sobretudo do pensar, criticando a censura e a escolástica, como observamos na seguinte frase, escrita por Evelyn Beatrice Hall como tentativa de descrever o espírito de Voltaire: ” Posso não concordar com nenhuma palavra do que você disse, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo “. Destaca-se que Voltaire, em sua vida, também foi “conselheiro” de alguns reis, como é o caso de Frederico II, o grande, da Prússia, um déspota esclarecido. 

• Voltaire foi influenciado pelo cientista Isaac Newton e pelo filósofo John Locke;

• Defendia as liberdades civis (de expressão, religiosa e de associação);

• Criticou as instituições políticas da monarquia, combatendo o absolutismo; 
• Criticou o poder da Igreja Católica e sua interferência no sistema político;
• Foi um defensor do livre comércio, contra o controle do estado na economia;
• Foi um importante pensador do iluminismo francês e suas ideias influenciaram muito nos processos da Revolução Francesa e de Independência dos Estados Unidos.

Primeiros anos

Voltaire nasceu em uma família abastada, burguesa e aristocrata, em Paris, em 21 de novembro de 1694. Sua mãe morreu quando ele tinha sete anos. Estudou com os jesuítas no Colégio Collège Louis-le-Grand onde revelou-se um aluno brilhante. Frequentou a Societé du Temple, de libertinos e livres pensadores. Por causa de versos irreverentes contra os governantes, foi preso na Bastilha (1717-1718), onde iniciou a tragédia Édipo (1718) e o Poema da Liga (1723). 

Logo tornou-se rico e célebre, mas uma discussão com o príncipe de Rohan-Chabot valeu-lhe nova prisão e foi obrigado a exilar-se na Inglaterra (1726-1728). Ali, orientou definitivamente sua obra e seu pensamento para uma filosofia reformadora. Celebrou a liberdade em uma tragédia (Brutus, 1730), criticou a guerra (História de Carlos XII, 1731), os dogmas cristãos (Epístola a Urânio, 1733), as falsas glórias literárias (O templo do gosto, 1733) e escreveu um dos livros que mais o projetaram, as Cartas Filósoficas ou “Cartas sobre os ingleses”, que criticava o regime político francês, fazendo espirituosas comparações entre a liberdade inglesa e o atraso da França absolutista, clerical e obsoleta.

As autoridades proibiram e queimaram o livro em praça pública, forçando Voltaire a deixar Paris e refugiar-se no Castelo de Cirey, onde procurou rejuvenescer a tragédia (Zaire, 1732; A morte de César, 1735; Mérope, 1743). Logrou obter um lugar na Academia Francesa (1746) graças a algumas poesias (Poema de Fontenoy, 1745), e, no mesmo ano, foi para a corte na condição de historiógrafo real.

Convidado por Frederico II, o Grande, da Prússia, foi viver na corte de Potsdam, onde publicou inicialmente o conto Zadig (1747) e posteriormente O século de Luís XIV (1751) e Micrômegas (1752). Em 1753, depois de um conflito com o rei, retirou-se para uma casa perto de Genebra. Ali, chocou ao mesmo tempo os católicos (A donzela de Orléans, 1755), os protestantes (Ensaio sobre os costumes, 1756) e criticou o pensamento de Rousseau (Poema sobre os desastres de Lisboa, 1756). 

Início de carreira

Replicando seus opositores com o conto Cândido (1759), refugiou-se em seguida em Ferney que em sua honra se passou a chamar Ferney-Voltaire. 

Prosseguiu sua obra escrevendo tragédias (Tancredo, 1760), contos filosóficos dirigidos contra os aproveitadores (Jeannot e Colin, 1764), os abusos políticos (O ingênuo, 1767), a corrupção e a desigualdade das riquezas (O Homem de Quarenta Escudos, 1768), denunciou o fanatismo clerical e as deficiências da justiça, celebrou o triunfo da razão (Tratado sobre a tolerância, 1763; Dicionário Filosófico, 1764). 

Iniciado maçom no dia 7 de abril de 1778, mesmo ano de sua morte, na Loja Les Neuf Sœurs, Paris, ingressando no Templo apoiado no braço de Benjamin Franklin, embaixador dos EUA na França na época. A sessão foi dirigida pelo Venerável Mestre Lalande na presença de 250 irmãos. O Venerável Ancião foi revestido com o avental que pertenceu a Helvétius e que fora cedido para a ocasião pela sua viúva. Chamado a Paris em 1778, foi recebido em triunfo pela Academia e pela Comédie-Française, onde lhe ofereceram um busto. Esgotado, morreu a 30 de maio de 1778. 

Voltaire foi um teórico sistemático, mas um propagandista e polemista, que atacou com veemência alguns abusos praticados pelo Antigo Regime. Tinha a visão de que não importava o tamanho de um monarca, deveria, antes de punir um servo, passar por todos os processos legais, e só então executar a pena, se assim consentido por lei. Se um príncipe simplesmente punisse e regesse de acordo com o seu bem-estar, seria apenas mais um “salteador de estrada ao qual se chama de ‘Sua Majestade'”. As ideias presentes nos escritos de Voltaire estruturam uma teoria coerente, mas por vezes contraditória, que em muitos aspectos expressa a perspectiva do Iluminismo.

Defendia a submissão ao domínio da lei, baseava-se em sua convicção de que o poder devia ser exercido de maneira liberal e racional, sem levar em conta as tradições. 

Por ter convivido com a liberdade inglesa, não acreditava que um governo e um Estado liberais, tolerantes fossem utópicos. Não era um democrata, e acreditava que as pessoas comuns estavam curvadas ao fanatismo e à superstição. Para ele, a sociedade deveria ser reformada mediante o progresso da razão e o incentivo à ciência e tecnologia. Assim, Voltaire transformou-se num perseguidor ácido dos dogmas, sobretudo os da Igreja Católica, que afirmava contradizer a ciência, no entanto, muitos dos cientistas de seu tempo eram padres jesuítas. 

Sobre essa postura, o catedrático de filosofia Carlos Valverde escreve um surpreendente artigo, no qual documenta uma suposta mudança de comportamento do filósofo francês em relação à fé cristã, registrada no tomo XII da famosa revista francesa Correpondance Littérairer, Philosophique et Critique (1753-1793). Tal texto traz, no número de abril de 1778, páginas 87-88, o seguinte relato literal de Voltaire: 

“Eu, o que escreve, declaro que havendo sofrido um vômito de sangue faz quatro dias, na idade de oitenta e quatro anos e não havendo podido ir à igreja, o pároco de São Suplício quis de bom grado me enviar a M. Gautier, sacerdote. Eu me confessei com ele, se Deus me perdoava, morro na Santa Religião Católica em que nasci esperando a misericórdia divina que se dignará a perdoar todas minhas faltas, e que se tenho escandalizado a Igreja, peço perdão a Deus e a ela. Assinado: Voltaire, 2 de março de 1778 na casa do marqués de Villete, na presença do senhor abade Mignot, meu sobrinho e do senhor marqués de Villevielle. Meu amigo.” 

Este relato foi reconhecido como autêntico por alguns, pois seria confirmado por outros documentos que se encontram no número de junho da mesma revista, esta de cunho laico, decerto, uma vez que editada por Grimm, Diderot e outros enciclopedistas. Já outros questionam a necessidade de alguém que já acredita em Deus ter que se converter a uma religião específica, como o catolicismo. No caso de Voltaire não teria ocorrido reconversão. 

Morte

Voltaire morreu em 30 de maio de 1778. A revista lhe exalta como “o maior, o mais ilustre e talvez o único monumento desta época gloriosa em que todos os talentos, todas as artes do espírito humano pareciam haver se elevado ao mais alto grau de sua perfeição”. 

A família quis que seus restos repousassem na abadia de Scellieres. Em 2 de junho, o bispo de Troyes, em uma breve nota, proíbe severamente ao prior da abadia que enterre no Sagrado o corpo de Voltaire. Mas no dia seguinte, o prior responde ao bispo que seu aviso chegara tarde, porque – efetivamente – o corpo do filósofo já tinha sido enterrado na abadia. Livros históricos afirmam que ele tentou destruir a Igreja a favor da maçonaria.

A Revolução trouxe em triunfo os restos de Voltaire ao Panteão de Paris – antiga igreja de Santa Genoveva – , dedicada aos grandes homens. Na escura cripta, frente a de seu inimigo Rousseau, permanece até hoje a tumba de Voltaire com este epitáfio: 

“Aos louros de Voltaire. A Assembleia Nacional decretou em 30 de maio de 1791 que havia merecido as honras dadas aos grandes homens”. 

Legado

Voltaire introduziu várias reformas na França, como a liberdade de imprensa, tolerância religiosa, tributação proporcional e redução dos privilégios da nobreza e do clero. Mas também foi precursor da Revolução Francesa, ela que instaurou a intolerância, a censura e o aumento dos impostos para financiar as guerras, tanto coloniais, quanto napoleônicas (Europa). Se, em uma obra tão diversificada, Voltaire dava preferência a sua produção épica e trágica, foi, entretanto morreu em 100a.c nos contos e nas cartas que se impôs. Como filósofo, foi o porta voz dos iluministas. 

Veja mais:

Não seria exagero dizer que Voltaire foi o homem mais influente do século XVIII. Seus livros foram lidos por toda a Europa e vários monarcas pediam seus conselhos. 

Obras

As principais obras de Voltaire: 

  • • Édipo, 1718
  • • Mariamne, 1724
  • • La Henriade, 1728
  • • História de Charles XII, 1730
  • • Brutus, 1730
  • • Zaire, 1732
  • • Le temple du goût, 1733
  • • Cartas Filósoficas, 1734
  • • Adélaïde du Guesclin, 1734
  • • Le fanatisme ou Mahomet, (escrita em 1736, representada em 1741)
  • • Mondain (Voltaire), 1736
  • • Epître sur Newton, 1736
  • • Tratado de Metafísica, 1736
  • • L’Enfant prodigue, 1736
  • • Essai sur la nature du feu, 1738
  • • Elementos da Filosofia de Newton, 1738
  • • Zulime, 1740
  • • Mérope, 1743
  • • Zadig ou o destino, 1748,
  • • Sémiramis 1748
  • • Le monde comme il va, 1748
  • • Nanine, ou le Péjugé vaincu, 1749
  • • Le Siècle de Louis XIV, 1751
  • • Micrômegas, 1752,
  • • Rome sauvée, 1752
  • • Poème sur le désastre de Lisbonne, 1756
  • • Essai sur les mœurs et l’esprit des Nations, 1756
  • • Histoire des voyages de Scarmentado écrite par lui-même, 1756
  • • Cândido ou o otimismo, 1759
  • • Le Caffé ou l’Ecossaise, 1760
  • • Tancredo, 1760
  • • Histoire d’un bon bramin, 1761
  • • La Pucelle d’Orléans, 1762
  • • Tratado sobre a tolerância, 1763
  • • Ce qui plait aux dames, 1764
  • • Dictionnaire philosophique portatif, 1764
  • • Jeannot et Colin, 1764
  • • De l’horrible danger de la lecture, 1765
  • • Petite digression, 1766
  • • Le Philosophe ignorant, 1766
  • • L’ingénu, 1767
  • • L’homme aux 40 écus, 1768
  • • A princesa da Babilônia, 1768
  • • Canonisation de saint Cucufin, 1769
  • • Questions sur l’Encyclopédie, 1770
  • • Les lettres de Memmius, 1771
  • • Il faut prendre un parti, 1772
  • • Le Cri du Sang Innocent, 1775
  • • De l’âme, 1776
  • • Dialogues d’Euhémère, 1777
  • • Irene, 1778
  • • Agathocle, 1779
  • • Correspondance avec Vauvenargues, établie en 2006
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Werner Heisenberg https://canalfezhistoria.com/werner-heisenberg/ https://canalfezhistoria.com/werner-heisenberg/#respond Tue, 11 Mar 2025 21:14:39 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5921 Werner Karl Heisenberg (Würzburg, 5 de dezembro de 1901 — Munique, 1 de fevereiro de 1976) foi um físico teórico alemão que recebeu o Nobel de Física de 1932, “pela criação da mecânica quântica, cujas aplicações levaram à descoberta, entre outras, das formas alotrópicas do hidrogênio”. 

Juntamente com Max Born e Pascual Jordan, Heisenberg estabeleceu as bases da formulação matricial da mecânica quântica em 1925. Em 1927, publicou o artigo Über den anschaulichen Inhalt der quantentheoretischen Kinematik und Mechanik, em que apresenta o Princípio da incerteza. Também fez importantes contribuições teóricas nos campos da hidrodinâmica de escoamentos turbulentos, no estudo do núcleo atômico, do ferromagnetismo, dos raios cósmicos e das partículas subatômicas. Teve ainda uma contribuição fundamental no planejamento do primeiro reator nuclear alemão em Karlsruhe e de um reator de pesquisa em Munique, em 1957.

Após a guerra, foi nomeado diretor do Instituto Kaiser Wilhelm de Física, que mais tarde passou a ser denominado Instituto Max Planck de Física. Ele dirigiu o instituto até sua transferência para Munique em 1958, quando foi ampliado e renomeado Instituto Max Planck de Física e Astrofísica. Heisenberg foi ainda presidente do Conselho de Pesquisa Alemão, presidente da Comissão de Física Atômica, presidente do Grupo de Física Nuclear de Trabalho, e presidente da Fundação Alexander von Humboldt. 

Carreira científica

Em 1924 Heisenberg tornou-se assistente de Max Born no centro universitário de Göttingen, transferiu-se para Copenhague, onde trabalhou com Niels Bohr. No ano seguinte desenvolveu a mecânica matricial, o que constituiu o primeiro desenvolvimento da mecânica quântica.

Em 1927 passou a ensinar física na Universidade de Leipzig, onde enunciou o Princípio da incerteza, segundo o qual é impossível medir simultaneamente e com precisão absoluta a posição e o momento linear de uma partícula, isto é, a determinação conjunta do momento e posição de uma partícula, necessariamente, contém erros não menores que a constante de Planck. Esses erros são desprezíveis em âmbito macroscópico, porém se tornam importantes para o estudo de partículas atômicas; as duas grandezas podem ser determinadas exatamente de forma separada, quanto mais exata for uma delas, mais incerta se torna a outra. 

Em 1932, recebeu o Nobel de Física pela “criação da mecânica quântica, cuja aplicação possibilitou, entre outras, a descoberta das formas alotrópicas do hidrogênio”. De 1942 a 1945, dirigiu o Instituto Max Planck, Berlim. Durante a Segunda Guerra Mundial trabalhou com Otto Hahn, um dos descobridores da fissão nuclear, no projeto de um reator nuclear (ver: Projeto de energia nuclear alemão). Sendo o lider do programa de construção de bomba atômica dos alemães, o que motivou inclusive Niels Bohr a pôr fim na amizade entre eles. Heisenberg organizou e dirigiu o Instituto de Física e Astrofísica de Göttingen.

Em 1958, o Instituto de Física e Astrofísica foi mudado para Munique, onde o cientista se concentrou na pesquisa sobre a teoria das partículas elementares, fez descobertas sobre a estrutura do núcleo atômico, da hidrodinâmica das turbulências, dos raios cósmicos e do ferromagnetismo. Heisenberg participou das conferências de Solvay de 1927 (Elétrons e fótons), 1930 (Magnetismo) e 1933 (Estrutura e propriedades dos núcleos atômicos). 

Segunda Guerra Mundial

Apesar de controvérsias sobre seu trabalho em pesquisa nuclear durante a Segunda Guerra Mundial, Heisenberg não era favorável ao regime nazista, tampouco à construção de bombas atômicas. Como explica em seu livro “A Parte e o Todo” (Editora Contraponto, 2007), temia, em 1933, pelos rumos que a Alemanha poderia tomar com a ascenção de Hitler ao poder. Após a expulsão de vários de seus colegas judeus que eram professores na Universidade de Leipzig, viajou a Berlim para conversar com seu amigo, Max Planck.

Heisenberg pretendia, como havia combinado com outros de seus colegas alemães em Leipzig, realizar um processo de demissão coletiva dos professores nas universidades, como forma de protesto ao antissemitismo de Hitler. No entanto, Planck o advertiu de que isso não seria entendido pelas massas, que apoiavam Hitler naquele momento, e que o único efeito seria taxá-los de antipatrióticos e arruinar suas carreiras. Planck, então, falou sobre a ideia que tinha para si.

Ele pretendia permanecer na Alemanha, por alguns motivos. O primeiro deles era: físicos de renome, como ele, teriam muita oportunidade em qualquer lugar do mundo. Sendo assim, seria melhor deixar para físicos não tão conhecidos as vagas de trabalho no exterior, tão procuradas. Outra razão era que Planck queria retardar o desenvolvimento da bomba atômica e acreditava que isso seria mais fácil se permanecesse na Alemanha.

Por fim, a razão mais importante, segundo ele, era reunir novos jovens que também tivessem interesse na física atômica, para que, após o “caos” (como se referia ao regime nazista), houvesse, na Alemanha, bons físicos, que pudessem continuar fazendo pesquisa neste ramo. Heisenberg, então, voltou para Leipzig convencido de que deveria ficar em seu país, pelo mesmo motivo de Planck. 

Após o início da guerra, veio o interesse de Hitler pela bomba atômica. No entanto, Heisenberg e outros físicos que também haviam permanecido na Alemanha e foram convocados pelo governo mostraram aos militares que não seria viável, por falta de tempo e de recursos, construir uma bomba atômica em tempo suficiente para que pudesse ser usada na guerra, convencendo os alemães a desistirem dessa ideia, mas continuando a investir em física atômica.

Como diz em seu livro, Heisenberg e todos os outros realmente acreditavam que era impossível construir uma bomba atômica em tão pouco tempo. Todos, principalmente Otto Hahn, descobridor da fissão do urânio, ficaram extremamente surpresos quando, em 6 de agosto de 1945, os Estados Unidos lançaram a “Little Boy” em Hiroshima. 

Veja mais:

Publicações de Werner Heisenberg

Publicou vários ensaios e livros, destacando-se: 

• Die physikalischen Prinzipien der Quantentheorie, 1930 (Os princípios físicos da teoria dos quanta)
• Die Physik der Atomkerne, 1943 (A física dos núcleos atômicos)
• Physik und Philosophie, 1959 (Física e filosofia).
• Der Ganz und das Teil, 1971 (A parte e o todo)

Cinema

O filme Copenhagen de 2002 com Daniel Craig, Stephen Rea e Francesca Annis [de O Libertino (2004) e Duna (1985)] narra a vida de Werner Karl Heisenberg.

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Wilhelm Conrad Röntgen https://canalfezhistoria.com/wilhelm-conrad-rontgen/ https://canalfezhistoria.com/wilhelm-conrad-rontgen/#respond Tue, 11 Mar 2025 21:06:51 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5917 Wilhelm Conrad Röntgen (Lennep, 27 de março de 1845 — Munique, 10 de fevereiro de 1923) foi um físico e engenheiro mecânico alemão. Em 8 de novembro de 1895, produziu e detectou radiação electromagnética nos comprimentos de onda correspondentes aos atualmente chamados raios-X. 

Por essa descoberta recebeu seu primeiro Nobel de Física, em 1901. Em 2004, em reconhecido a seus feitos científicos, a União Internacional de Química Pura e Aplicada (IUPAC) nomeou o elemento químico 111 de roentgênio.

Primeiros anos e educação

Wilhelm nasceu em 1845 em Lennep, uma província alemã no baixo Reno. Era o filho único de mãe holandesa, Charlotte Constanze Frowein, e pai alemão, comerciante e tecelão. Estudou em Utrecht, na Holanda, para onde a família se mudou quando Wilhelm tinha 3 anos de idade. Suas notas eram regulares, dentro da média, mas ele apresentou uma curiosidade para as ciências naturais, gostando de passear pelos bosques da cidade. 

Também gostava de mecânica, criando intrincados mecanismos, algo pelo qual manteve a prática na vida adulta. Em 1862, entrou na escola técnica de Utrecht, de onde foi injustamente expulso por ter feito uma caricatura de um de seus professores, que na verdade fora feito por outro colega.

Sem um diploma de ensino médio, ele só pode cursar a universidade como visitante. Em 1865, tentou ingressar na Universidade de Utrecht sem a documentação necessária para ser matriculado como aluno regular. Depois de saber que ele poderia ingressar no instituto politécnico de Zurique e de ser aprovado na admissão, ele passou a cursar engenharia mecânica. 

Como aluno em Zurique, estudou com August Kundt e Rudolf Clausius, que foram duas grandes influências em seu trabalho. em 1869, obteve o Ph.D., pela Universidade de Zurique, onde estudou mais uma vez com Kundt, que seguiu até a Universidade de Estrasburgo. 

Vida pessoal de Wilhelm Conrad Röntgen

Em 19 de janeiro de 1872, Wilhelm se casou com Anna Bertha Ludwig (1839-1919), sobrinha do poeta Otto Ludwig, em Apeldoorn, na Holanda. Os dois namoravam desde os tempos de estudante de Wilhelm em Zurique. O casal não teve filhos, mas em 1887 eles adoram Josephine Bertha Ludwig, então com 6 anos de idade, filho do único irmão de Anna. Anna morreu em 1919, apenas 4 anos antes do marido. 

Carreira

Em 1874, ingressou como professor assistente na Universidade de Estrasburgo e em 1875 tornou-se professor titular de agricultura na Universidade de Hohenheim. No ano seguinte voltou para Estrasburgo como professor titular de física, mas três anos depois aceitou a cadeira de Física na Universidade de Giessen. Por várias vezes, Wilhelm recusou vagas semelhantes em outras universidade, até que aceitou a proposta da Universidade de Würzburgo em 1888. Em 1899 recusou a cadeira de física na Universidade de Leipzig, mas em 1900 aceitou a mesma cadeira na Universidade de Munique depois de um pedido especial feito pelo governo da Bavária, para substituir o professor Eugen von Lommel. 

Wilhelm ficou na Universidade de Munique pelo resto da vida, tendo recusado a direção do Physikalisch-Technische Bundesanstalt (PTB) e a cadeira de física da Academia das Ciências de Berlim. Wilhelm tinha família vivendo em Iowa, nos Estados Unidos e tinha planos para imigrar. Chegou a aceitar um cargo na Universidade Colúmbia, em Nova Iorque e chegou a comprar as passagens de navio, quando a eclosão da Primeira Guerra Mundial atrapalhou seus planos e ele acabou permanecendo em Munique até o fim da vida

Seu primeiro trabalho foi publicado em 1870, falando sobre o ponto de aquecimento específico de gases. Alguns anos depois, publicou um trabalho sobre a condutividade térmica dos cristais. Estudou características elétricas do quartzo, a influência da pressão nos índices de refração de vários fluídos, a modificação dos planos de luz polarizada por influências eletromagnéticas, variações de temperatura e de compressão da água e de outros fluídos e o fenômeno que se segue após o espalhamento de gotas de óleo na água. 

Os raios-X

Em 1895, Wilhelm testava equipamentos desenvolvidos pelos seus colegas Heinrich Hertz, Johann Wilhelm Hittorf, William Crookes, Nikola Tesla e Philipp Lenard, quando foi atingido por uma descarga elétrica. No início de novembro, ele estava repetindo um experimento com um dos tubos de Lenard em que uma fina camada de alumínio foi adicionada para permitir que os raios catódicos saíssem do tubo, mas uma cobertura de papelão foi adicionada para proteger o alumínio de danos causados pelo forte campo eletrostático que produzia os raios catódicos.

Ele sabia que a cobertura de papelão evitava que a luz escapasse, mas Wilhelm observou que os raios invisíveis causavam um efeito fluorescente em uma pequena tela de papelão pintada com platinocianeto de bário quando era colocado próximo à janela alumínio. Wilhelm percebeu que o tubo Crookes-Hittorf, que tinha uma parede de vidro muito mais espessa do que o tubo Lenard, também poderia causar esse efeito fluorescente. 

Em 8 de novembro de 1895, Wilhelm estava determinado a testar sua ideia. Ele cuidadosamente construiu uma camada de papelão preta semelhante à que ele havia usado no tubo de Lenard. Cobriu o tubo de Crookes-Hittorf com o papelão e conectou os eletrodos a uma bobina de indução para gerar uma carga eletrostática. Antes de montar a tela de platinocianeto de bário para testar sua ideia, Wilhelm escureceu a sala para testar a opacidade de sua capa de papelão.

Ao passar a carga da bobina através do tubo, Wilhelm determinou que a tampa estava protegida da luz e preparou o próximo passo do experimento. Foi quando ele notou um brilho fraco vindo de um banquinho há poucos metros do tubo. Para se certificar, ele tentou várias descargas, vendo o mesmo brilho todas as vezes. Ele então descobriu que o brilho vinha da tela de platinocianeto de bário que ele pretendia usar em seguida.

Wilhelm se perguntava que tipo de raio estaria por trás do brilho. O dia 8 de novembro era uma sexta-feira, então ele aproveitou o final de semana para repetir seus experimentos e fazer anotações. Nas semanas seguintes, ele praticamente viveu dentro do laboratório para investigar as propriedades dos novos raios que descobriu, que apelidou temporariamente de “raios-X”, usando a notação matemática (“X”) para o desconhecido. Em vários idiomas, os novos raios levariam seu nome. 

Em um determinado momento, enquanto investigava a capacidade de vários materiais de deter os raios, Wilhelm colocou um pequeno pedaço de chumbo em posição enquanto a descarga acontecia. Wilhelm viu então a primeira imagem radiográfica, seu próprio esqueleto cintilando na tela de platinocianeto de bário. Mais tarde, ele relatou que foi nesse ponto que decidiu continuar seus experimentos em sigilo, porque temia por sua reputação profissional se suas observações estivessem erradas. 

O artigo original de Wilhelm, Ueber Eine Neue Art von Strahlen (“Sobre uma nova espécie de Raios”), foi publicado 50 dias depois, em 28 de dezembro de 1895. Em 5 de janeiro de 1896, um jornal austríaco relatou a descoberta, por Wilhelm, de um novo tipo de radiação. Após a descoberta dos raios-X, Wilhelm recebeu o título de Doutor Honorário em Medicina, da Universidade de Würzburgo.

Entre 1895 e 1897, ele publicou três artigos a respeito dos raios-X, cuja tradução para o português pode ser vista nos links externos. Até os dias atuais, nenhuma das suas conclusões foi considerada falsa. Atualmente, Wilhelm Röntgen é considerado o pai da Radiologia de Diagnóstico – a especialidade médica que utiliza imagem para o diagnóstico de doenças.

Devido à sua descoberta, Röntgen foi laureado com o primeiro Nobel de Física, em 1901. O prêmio foi concedido “em reconhecimento aos extraordinários serviços que a descoberta dos notáveis raios que levam seu nome possibilitaram”. Röntgen doou a recompensa monetária à sua universidade, convicto de que a ciência deve estar ao serviço da humanidade e não do lucro. À semelhança da escola científica alemã da época, e, da mesma forma que Pierre Curie faria vários anos mais tarde, rejeitou registrar qualquer patente relacionada à sua descoberta.

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Morte

Wilhelm Röntgen morreu em Munique, em 10 de fevereiro de 1923, devido a um carcinoma, aos 77 anos. Atendendo seu pedido, ele foi sepultado no túmulo da família em Gießen, onde a esposa Anna também tinha sido enterrada.

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William Harvey https://canalfezhistoria.com/william-harvey/ https://canalfezhistoria.com/william-harvey/#respond Tue, 11 Mar 2025 21:02:07 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5914 William Harvey (Folkestone, 1 de abril de 1578 — Roehampton, 3 de junho de 1657) foi um médico britânico que, pela primeira vez, descreveu corretamente os detalhes do sistema circulatório do sangue ao ser bombeado, por todo o corpo, pelo coração. 

Biografia de William Harvey

Estudou Medicina na Universidade de Cambridge, onde, em 1602, se doutorou. Estudou entre 1597 e 1601, em Pádua com Girolamo Fabrizi. Exerceu clínica em Londres e foi médico do St. Bartholomew’s Hospital, sendo, em 1609, nomeado professor de Anatomia e Cirurgia no Royal College of Physicians. Seus estudos inspiraram as ideias de René Descartes, que em sua “Descrição do Corpo Humano” disse que as artérias e as veias eram canos que carregavam nutrientes pelo corpo.

Muitos acreditam que ele descobriu e expandiu as técnicas de medicina muçulmana, particularmente o trabalho de Ibn Nafis, que lançou os primeiros estudos sobre a maioria das veias e artérias no século XIII. Apesar da discussão que a sua descoberta desencadeou, as suas ideias acabaram por ser aceitas ainda durante a sua vida. Na época em que a discussão decorria, os seus defensores eram apelidados pelos opositores de “circulatores”. 

São também notáveis os seus estudos sobre a geração. Realizando trabalhos experimentais, utiliza os animais do parque do rei, concluindo que todo ser vivo provém de um ovo. Demitiu-se de todos os seus cargos em 1646, retirando-se para o campo, tendo recusado a presidência do Colégio dos Médicos para a qual tinha sido eleito em 1654. 

Contribuições na Biofísica

William Harvey foi um dos primeiros cientistas a descrever o funcionamento do sistema circulatório, mais especificamente o movimento do sangue pelo interior dos vasos sanguíneos. Interessou-se pelos movimentos do coração de tal forma que não os coordenou com os movimentos respiratórios , deixando assim de lado o velho conceito segundo o qual, desde Cláudio Galeno, se atribuía uma importância excessiva à mistura no coração das moléculas de ar com as substâncias nutritivas.

Assim, Harvey por meio de estudos com animais vivos, nos quais ele observava o interior da cavidade torácica de um animal enquanto ainda vivo, constatou que o coração é um músculo que se contrai e enrijece, da mesma maneira que o bíceps quando se flexiona o cotovelo.

Porém deduziu que o coração é um músculo diferente, já que é oco, e é responsável por bombear o sangue nos vasos sanguíneos e, como conhecia perfeitamente as válvulas em ninho de pombos existentes nas veias, também entendeu que, quando o coração se contrai para expulsar o sangue que lhe chegou através das veias, este é jorrado unicamente nas artérias. Logo, concluiu que: as veias levam o sangue ao coração e este o expulsa para as artérias quando há contrações cardíacas.

Seus manuscritos, numa mistura de inglês com latim, são de difícil leitura, mas foram conservados no Museu Britânico e graças a esses manuscritos é que se sabe que sua teoria estava bem clara para que se pudesse dizer: “está provado, pela estrutura do coração, que o sangue é constantemente transferido dos pulmões para a aorta, como se fosse impulsionado por duas pancadas de um carneiro d’água. ” “De Motu Cordis” (“Sobre o Movimento do Coração e do Sangue”)

Publicado em 1628 na cidade de Frankfurt, este livro de 72 páginas contém a primeira explicação acurada sobre a circulação sanguínea. Inicia-se com uma dedicatória clara e simples ao Rei Charles I, e divide-se em 17 capítulos descrevendo a anatomia e movimentação do coração e a consequente circulação do sangue pelo corpo.

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Tendo apenas lupas normais a sua disposição, Harvey não conseguiu as imagens mais tarde obtidas por Leeuwenhoek e seu microscópio: assim ele possuía uma teoria sólida, mas algumas partes do livro careciam de evidências práticas. Depois do primeiro capítulo que delineia as ideias anteriormente aceitas sobre o coração e os pulmões, Harvey avança para a premissa fundamental do seu tratado, enfatizando que é extremamente importante o estudo do coração enquanto está em funcionamento para entender seus movimentos; um objetivo que alcançou não sem dificuldades, como ele diz na obra:

“…Achei esta tarefa verdadeiramente árdua… que quase me levou a pensar que os movimentos do coração só poderiam ser entendidos por Deus. Pois sequer eu podia perceber de início da diferença entre a sístole e a diástole dada a rapidez dos movimentos.”

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William Shakespeare https://canalfezhistoria.com/william-shakespeare/ https://canalfezhistoria.com/william-shakespeare/#respond Tue, 11 Mar 2025 20:51:18 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5911 William Shakespeare (Stratford-upon-Avon, 1564 (batizado a 26 de abril) — Stratford-upon-Avon, 23 de abril de 1616) foi um poeta, dramaturgo e ator inglês, tido como o maior escritor do idioma inglês e o mais influente dramaturgo do mundo. É chamado frequentemente de poeta nacional da Inglaterra e de “Bardo do Avon” (ou simplesmente The Bard, “O Bardo”).

De suas obras, incluindo aquelas em colaboração, restaram até os dias de hoje 38 peças, 154 sonetos, dois longos poemas narrativos, e mais alguns versos esparsos, cujas autorias, no entanto, são ainda disputadas. Suas peças foram traduzidas para todas as principais línguas modernas e são mais encenadas que as de qualquer outro dramaturgo. Muitos de seus textos e temas permanecem vivos até os nossos dias, sendo revisitados com frequência, especialmente no teatro, na televisão, no cinema e na literatura. 

Shakespeare nasceu e foi criado em Stratford-upon-Avon. Aos 18 anos casou-se com Anne Hathaway, com quem teve três filhos: Susanna e os gêmeos Hamnet e Judith. Entre 1585 e 1592 William começou uma carreira bem-sucedida em Londres como ator, escritor e um dos proprietários da companhia de teatro chamada Lord Chamberlain’s Men, mais tarde conhecida como King’s Men. Acredita-se que ele tenha retornado a Stratford em torno de 1613, morrendo três anos depois. Restaram poucos registros da vida privada de Shakespeare, e existem muitas especulações sobre assuntos como a sua aparência física, sexualidade, crenças religiosas, e se algumas das obras que lhe são atribuídas teriam sido escritas por outros autores.

Shakespeare produziu a maior parte de sua obra entre 1590 e 1613. Suas primeiras peças eram principalmente comédias e obras baseadas em eventos e personagens históricos, gêneros que ele levou ao ápice da sofisticação e do talento artístico ao fim do século XVI. A partir de então escreveu apenas tragédias até por volta de 1608, incluindo Hamlet, Rei Lear e Macbeth, consideradas algumas das obras mais importantes na língua inglesa.

Na sua última fase, escreveu um conjuntos de peças classificadas como tragicomédias ou romances, e colaborou com outros dramaturgos. Diversas de suas peças foram publicadas, em edições com variados graus de qualidade e precisão, durante sua vida. Em 1623, John Heminges and Henry Condell, dois atores e antigos amigos de Shakespeare, publicaram o chamado First Folio, uma coletânea de suas obras dramáticas que incluía todas as peças (com a exceção de duas) reconhecidas atualmente como sendo de sua autoria. 

Shakespeare foi um poeta e dramaturgo respeitado em sua própria época, mas sua reputação só viria a atingir o nível em que se encontra hoje no século XIX. Os românticos, especialmente, aclamaram a genialidade de Shakespeare, e os vitorianos idolatraram-no como um herói, com uma reverência que George Bernard Shaw chamava de “bardolatria”. No século XX sua obra foi adotada e redescoberta repetidamente por novos movimentos, tanto na academia e quanto na performance. Suas peças permanecem extremamente populares hoje em dia e são estudadas, encenadas e reinterpretadas constantemente, em diversos contextos culturais e políticos, por todo o mundo. 

Identidade

Esta está envolta em grande polémica, muito continua ainda por saber sobre William Shakespeare – quem foi, por onde andou ou com quem se dava. Não faltam teorias — uns dizem que era Francis Bacon, a Rainha Isabel I disfarçada e até um francês chamado Jacques Pierre. Mas, se não o virmos como tendo uma vida própria, a mais credível é que seria um pseudónimo de Christopher Marlowe. Pois, este último, que era igualmente um poeta e dramaturgo seu contemporâneo, que emprega nos seus versos um estilo ou estrutura muito similar, parece ter sido provado que terá trabalhado na composição de algumas peças de teatro atribuídas a Shakespeare. 

Tal como era uso da época, há evidências de uma nova fonte da qual ele terá retirado ideias e até frases dum livro escrito no final de 1500 por George North, uma figura presente na corte inglesa, “A Brief Discourse of Rebellion and Rebels”.

Primeiros anos

William Shakespeare era filho de John Shakespeare, um bem-sucedido luveiro e sub-prefeito de Stratford (depois comerciante de lãs), vindo de Snitterfild, e Mary Arden, filha afluente de um rico proprietário de terras. Embora a sua data de nascimento seja desconhecida, admite-se a de 23 de Abril de 1564 com base no registro de seu batizado, a 26 do mesmo mês, devido ao costume, à época, de se batizarem as crianças três dias após o nascimento. Shakespeare foi o terceiro filho de uma prole de oito e o mais velho a sobreviver. 

Muitos concordam que William foi educado em uma excelente grammar schools da época, um tipo de preparação para a Universidade. No entanto, Park Honan conta, em Shakespeare, uma vida, que John foi obrigado a tirá-lo desta escola, quando William deveria ter quinze ou dezesseis anos (algumas fontes citam doze anos). Na década de 1570 John passou a ter um declínio econômico que o impossibilitou junto aos credores e da sociedade.

Acredita-se que, por causa disso, o jovem Shakespeare possuiu uma formação colegial incompleta. Segundo certos biógrafos, Shakespeare precisou trabalhar cedo para ajudar a família, aprendendo, inclusive, a tarefa de esquartejar bois e até abater carneiros. Em 1582, aos 18 anos de idade, casou-se com Anne Hathaway, uma mulher de 26 anos, que estava grávida. Há fontes que dizem que Shakespeare queria ter uma vida mais favorável ao lado de uma esposa rica. O casal teve uma filha, Susanna, e dois anos depois, os gêmeos Hamnet e Judith.

Após o nascimento dos gêmeos, há pouquíssimos vestígios históricos a respeito de Shakespeare, até que ele é mencionado como parte da cena teatral de Londres em 1592. Devido a isso, estudiosos referem-se aos anos de 1586 a 1592 como os Anos perdidos de Shakespeare. 

As tentativas de explicar por onde andou William Shakespeare durante esses seis anos foram o motivo pelo qual surgiram dezenas de anedotas envolvendo o dramaturgo. Nicholagas Rowe, o primeiro biógrafo de Shakespeare, conta que ele fugiu de Stratford para Londres devido a uma acusação envolvendo o assassinato de um veado numa caça furtiva, em propriedade alheia (provavelmente de Thomas Lucy). Outra história do século XVIII é a de que Shakespeare começou uma carreira teatral com os Lord Chamberlains.

Londres e carreira teatral

Foi em Londres onde se atribui a Shakespeare seus momentos de maiores oportunidades para destaque. Não se sabe de exato quando Shakespeare começara a escrever, mas alusões contemporâneas e registros de performances mostram que várias de suas peças foram representadas em Londres em 1592. Neste período, o contexto histórico favorecia o desenvolvimento cultural e artístico, pois a Inglaterra vivia os tempos de ouro sob o reinado da rainha Elizabeth I. O teatro deste período, conhecido como teatro elisabetano, foi de grande importância e primor para os ingleses da alta sociedade.

Na época, o teatro também era lido, e não apenas assistido e encenado. Havia companhias que compravam obras de autores em voga e depois passavam a vender o repertório às tipografias. As tipografias imprimiam os textos e vendiam a um público leitor que crescia cada vez mais. Isso fazia com que as obras ficassem em domínio público. Biógrafos sugerem que sua carreira deve ter começado em qualquer momento a partir de meados dos anos 1580. Ao lado do The Globe, haveria um matadouro, onde aprendizes do açougue deveriam trabalhar.

Ao chegar em Londres, há uma tradição que diz que Shakespeare não tinha amigos, dinheiro e estava pobre, completamente arruinado. Segundo um biógrafo do século XVIII, ele foi recebido pela companhia, começando num serviço pequeno, e logo fora subindo de cargo, chegando provavelmente à carreira de ator. Há referências que apresentam Shakespeare como um cavalariço. Ele dividiria seu emprego entre tomar conta dos cavalos dos espectadores do teatro, atuar no palco e auxiliar nos bastidores. Segundo Rowe, Shakespeare entrou no teatro como ponto, encarregado de avisar os atores o momento de entrarem em cena. O então cavalariço provavelmente tinha vontade mesmo era de atuar e de escrever. 

Seu talento limitante como ator teria o inspirado a conhecer como funcionava o teatro e seu poeta interior foi floreando, floreando, foi lembrando-se dos textos dos mestres dramáticos da escola, e começou a experimentar como seria escrever para o teatro. Desde 1594, as peças de Shakespeare foram realizadas apenas pelo Lord Chamberlain’s Men. Com a morte de Elizabeth I, em 1603, a companhia passou a atribuir uma patente real ao novo rei, James I da Inglaterra, mudando seu nome para King’s Men (Homens do Rei).

Todas as fontes marcam o ano de 1599 como o ano da fundação oficial do Globe Theatre. Fundado por James Burbage, ostentava uma insígnia de Hércules sustentando o globo terrestre. Registros de propriedades, compras, investimentos de Shakespeare o tornou um homem rico. William era sócio do Globe, um edifício que tinha forma octogonal, com abertura no centro. Não existia cortina e, por causa disso, os personagens mortos deveriam ser retirados por soldados, como mostra-se em Hamlet.

Inclusive, todos os papéis eram representados pelos homens, sendo os mais jovens os encarregados de fazerem papéis femininos. Em 1597, fontes dizem que ele comprou a segunda maior casa em Stratford, a New Place. De 1601 a 1608, especula-se que ele esteve motivado para escrever Hamlet, Otelo e Macbeth. Em 1613, O Globe Theatre foi destruído pelo fogo. Alguns biógrafos dizem que foi durante a representação da peça Henry VIII. 

Shakespeare teria estado bem cansado e por esse motivo resolveu desligar-se do Globe e voltar para Stratford, onde a família o esperava. 

Últimos anos e morte

Após 1606-7, Shakespeare escreveu peças menores, que jamais são atribuídas como suas após 1613. Suas últimas três obras foram colaborações, talvez com John Fletcher, que sucedeu-lhe com o cargo de dramaturgo no King’s Men. Escreveu a sua última peça, A Tempestade terminada somente em 1613. Então, Rowe foi o primeiro biógrafo a dizer que Shakespeare teria voltado para Stratford algum tempo antes de sua morte; mas a aposentadoria de todo o trabalho era rara naquela época; e Shakespeare continuou a visitar Londres.

Em 1612, foi chamado como testemunha em um processo judicial relativo ao casamento de sua filha Susanna. Em março de 1613, comprou uma gatehouse no priorado de Blackfriars; a partir de novembro de 1614, ficou várias semanas em Londres ao lado de seu genro John Hall. 

William Shakespeare morreu em 23 de Abril de 1616, mesmo dia de seu aniversário. Susanna havia se casado com um médico, John Hall, em 1607, e Judith tinha se casado com Thomas Quiney, um vinificador, dois meses antes da morte do pai. A morte de Shakespeare envolve mistério ainda hoje. No entanto, é óbvio que existam diversas anedotas. A que mais se propagou é a de que Shakespeare estaria com uma forte febre, causada pela embriaguez. Recebendo a visita de Ben Jonson e de Michael Drayton, Shakespeare bebeu demais e, segundo diversos biógrafos, seu estado se agravou. 

Bom amigo, por Jesus, abstém-te
de profanar o corpo aqui enterrado.
Bendito seja o homem que respeite estas pedras,
e maldito o que remover meus ossos. 

Epitáfio na tumba de Shakespeare

Admite-se que Shakespeare deixou como herança sua segunda melhor cama para a esposa. Sabe-se, entretanto, que a “second best bed”, no testamento, é simplesmente a cama de casal, sendo a melhor cama, conforme os costumes da época, a do quarto de hóspedes. Ao que parece, o testamento não teria sido redigido pelo dramaturgo, que só o assinou; certas expressões religiosas fizeram recentemente descobrir-se que se trata de uma fórmula legal, então em uso e até prescrita.

Em sua vontade, ele deixou a maior parte de sua propriedade à sua filha mais velha, Susanna. Essa herança intriga biógrafos e estudiosos porque, afinal, como Anne Hathaway aguentaria viver mais ou menos vinte anos cuidando de seus filhos, enquanto Shakespeare fazia fortuna em Londres? O escritor inglês Anthony Burgess tem uma explicação ficcional sobre esse assunto. Em Nada como o Sol, um livro de sua autoria, ele cita Shakespeare espantado em um quarto diante de seu irmão Richard e de sua esposa Anne; estavam nus e abraçados. 

Os restos mortais de Shakespeare foram sepultados na igreja da Santíssima Trindade (Holy Trinity Church) em Stratford-upon-Avon. Seu túmulo mostra uma estátua vibrante, em pose de literário, mais vivo do que nunca. A cada ano, na comemoração de seu nascimento, é colocada uma nova pena de ave na mão direita de sua estátua. Acredita-se que Shakespeare temia o costume de sua época, em que provavelmente havia a necessidade de esvaziar as mais antigas sepulturas para abrir espaços à novas e, por isso, há um epitáfio na sua lápide, que anuncia a maldição de quem mover seus ossos.

Após a morte de Shakespeare, a Inglaterra passou por alguns importantes momentos políticos e religiosos. Jaime I morreu em 27 de março de 1625, em Theobalds House, e tão logo sua morte foi anunciada, Carlos I, seu filho com Ana da Dinamarca, assumiu o reinado. É válido lembrar que, com a morte de Elizabeth I, Shakespeare e os demais dramaturgos da época não foram prejudicados. Jaime I, o sucessor da rainha, contribuiu para o florescimento artístico e cultural inglês; era um apaixonado por teatro.

Em 1649, a Câmara dos Comuns cria uma corte para o julgamento de Carlos I. Era a primeira vez que um monarca seria julgado na história da Inglaterra. No dia 29 de janeiro do mesmo ano, Carlos I foi condenado a morte por decapitação. Ele foi decapitado no dia seguinte. Foi enterrado no dia 7 de fevereiro na Capela de St.George do Castelo de Windsor em uma cerimônia privada. 

Nota: É bem conhecida a coincidência das datas de morte de dois dos grandes escritores da humanidade, Miguel de Cervantes e William Shakespeare, ambos com data de falecimento em 23 de Abril de 1616). Porém, é importante notar que o Calendário gregoriano já era utilizado na Espanha desde o século XVI, enquanto que na Inglaterra sua adoção somente ocorreu em 1751. 

Genealogia

Os estudiosos costumam anotar quatro períodos na carreira de dramaturgia de Shakespeare. Até meados de 1590, escreveu principalmente comédias, influenciado por modelos das peças romanas e italianas. O segundo período iniciou-se aproximadamente em 1595, com a tragédia Romeu e Julieta e terminou com A Tragédia de Júlio César, em 1599. Durante esse tempo, escreveu o que são consideradas suas grandes comédias e histórias. De 1600 a 1608, o que chamam de “período sombrio”, Shakespeare escreveu suas mais prestigiadas tragédias: Hamlet, Rei Lear e Macbeth. E de aproximadamente 1608 a 1613, escrevera principalmente tragicomédias e romances. 

Os primeiros trabalhos gravados de Shakespeare são Ricardo III’ e as três partes de Henry V, escritas em 1590, adiantados durante uma moda para o drama histórico. É difícil datar as primeiras peças de Shakespeare, mas estudiosos de seus textos sugerem que A Megera Domada, A Comédia dos Erros e Titus Andronicus pertencem também ao seu primeiro período. Suas primeiras histórias, parecem dramatizar os resultados destrutivos e fracos ou corruptos do Estado e têm sido interpretadas como uma justificação para as origens da dinastia Tudor.

Suas composições foram influenciadas por obras de outros dramaturgos isabelinos, especialmente Thomas Kyd e Christopher Marlowe, pelas tradições do teatro medieval e pelas peças de Sêneca. A Comédia dos Erros também foi baseada em modelos clássicos. As clássicas comédias de Shakespeare, contendo plots (centro da ação, o núcleo da história) duplos e sequências cênicas de comédia, cederam, em meados de 1590, para uma atmosfera romântica em que se encontram suas maiores comédias.

Sonho de uma Noite de Verão é uma mistura de romance espirituoso, fantasia, e envolve também a baixa sociedade. A sagacidade das anotações de Muito Barulho por Nada’, a excelente definição da área rural de Como Gostais, e as alegres sequências cênicas de Noite de Reis completam essa sequência de ótimas comédias. Após a peça lírica Ricardo II, escrito quase inteiramente em versículos, Shakespeare introduziu em prosa as histórias depois de 1590, incluindo Henry VI, parte I e II, e Henry V.

Seus personagens tornam-se cada vez mais complexos e alternam entre o cômico e o dramático ou o grave, ou o trágico, expandindo, dessa forma, suas próprias identidades. Esse período entre essas tais alternações começa e termina com duas tragédias: Romeu e Julieta, sem dúvida alguma sua peça mais famosa e a história sobre a adolescência, o amor e a morte; e Júlio César. O período chamado “período trágico” durou de 1600 a 1608, embora durante esse período ele tenha escrito também a “peça cômica” Medida por medida. Muitos críticos acreditam que as maiores tragédias de Shakespeare representam o pico de sua arte.

Seu primeiro herói, Hamlet, provavelmente é o personagem shakespeariano mais discutido do que qualquer outro, em especial pela sua frase “Ser ou não ser, eis a questão”. Ao contrário do reflexivo e pensativo Hamlet, os heróis das tragédias que se seguiram, em especial Otelo e Rei Lear, são precipitados demais e mais agem do que pensam. Essas precipitações sempre acabam por destruir o herói e frequentemente aqueles que ele ama.

Em Otelo, o vilão Iago acaba assassinando sua mulher inocente, por quem era apaixonado. Em Rei Lear, o velho rei comete o erro de abdicar de seus poderes, provocando cenas que levam ao assassinato de sua filha e à tortura e a cegueira do Conde de Glócester. Segundo o crítico Frank Kermode, “a peça não oferece nenhum personagem divino ou bom, e não supre da audiência qualquer tipo de alívio de sua crueldade”.

Em Macbeth, a mais curta e compactada tragédia shakespeariana, a incontrolável ambição de Macbeth e sua esposa, Lady Macbeth, de assassinar o rei legítimo e usurpar seu trono, até à própria culpa de ambos diante deste ato, faz com que os dois se destruam. Portanto, Hamlet seria seu personagem talvez mais admirado. Hamlet reflete antes da ação em si, é inteligente, perceptivo, observador, profundamente proprietário de uma grande sabedoria diante dos fatos. Suas últimas e grandes tragédias, Antônio e Cleópatra e Coriolano contêm algumas das melhores poesias de Shakespeare e foram consideradas as tragédias de maior êxito pelo poeta e crítico T.S. Eliot. 

No seu último período, Shakespeare centrou-se na tragicomédia e no romance, completando suas três mais importantes peças dessa fase: Cimbelino, Conto de Inverno e A Tempestade, e também Péricles, príncipe de Tiro. Menos sombrias do que as tragédias, essas quatro peças revelam um tom mais grave da comédia que costumavam produzir na década de 1590, mas suas personagens terminavam com reconciliação e o perdão de seus erros. Certos comentadores vêem essa mudança de estilo como uma forma de visão da vida mais serena por parte de Shakespeare. Shakespeare colaborou com mais dois trabalhos, Henry VIII e Dois parentes nobres, provavelmente com John Fletcher. 

Performances

Ainda não está claro para as companhias as datas exatas de quando Shakespeare escreveu suas primeiras peças. O título da página da edição de 1594 de Titus Andronicus revela que a peça havia sido encenada por três diferentes companhias. Após a peste negra de 1592-3, as peças shakespearianas foram realizadas por sua própria empresa no The Theatre e no The Curtain, em Shoreditch. As multidões londrinas foram ver a primeira parte de Henrique IV.

Depois de uma disputa com o caseiro, o teatro foi desmantelado e a madeira usada para a construção do Globe Theatre, a primeira casa de teatro construída por atores para atores. A maioria das peças shakespearianas pós-1599 foram escritas para o Globe, incluindo Hamlet, Otelo e Rei Lear. 

Quando a Lord Chamberlain’s Men mudou seu nome para King’s Men, em 1603, eles entraram com uma relação especial com o novo rei, James I. Embora as performances realizadas são díspares, o King’s Men realizou sete peças shakespearianas perante à corte, entre 1 de novembro de 1604 e 31 de outubro de 1605, incluindo duas performances de O mercador de Veneza. Depois de 1608, eles a realizaram no teatro Blackfriars Theatre. A mudança interior, combinada com a moda jacobina de aprimorar a montagem dos palcos e cenários, permitiu com que Shakespeare pudesse introduzir uma fase com dispositivos e recursos mais elaborados. Em Cibelino, por exemplo, “Júpiter desce em trovão e relâmpagos, sentado em uma águia e lança um raio”.

Os atores da empresa de Shakespeare incluem o famoso Richard Burbage, William Kempe, Henry Condell e John Heminges. Burbage desempenhou um papel de liderança em muitas performances das peças de Shakespeare, incluindo Richard III, Hamlet, Otelo e Rei Lear. O popular ator cômico Will Kempe encenou o agente Peter em Romeu e Julieta e também encenou em Muito barulho por nada. Kempe fora substituído na virada do século XVI por Robert Armin, que desempenhou papéis como a de Touchstone em Como Gostais e os palhaços no Rei Lear.

Sabe-se que em 1613, Sir Henry Wotton encenou Henry VIII e foi nessa encenação que o Globe foi devorado por um incêndio causado por um canhão. Imagina-se que Shakespeare, já retirado em Stratford-on-Avon, retornou para auxiliar na recuperação do prédio. 

Imortalidade

Em 1623, John Heminges e Henry Condell, dois amigos de Shakespeare no King’s Men, publicaram uma compilação póstuma das obras teatrais de Shakespeare, conhecida como First Folio. Contém 36 textos, sendo que 18 impressos pela primeira vez. Não há evidências de que Shakespeare tenha aprovado essa edição, que o First Folio define como “stol’n and surreptitious copies”. No entanto, é nele em que se encontram um material extenso e rico do trabalho de Shakespeare. 

As peças shakespearianas são peculiares, complexas, misteriosas e com um fundo psicológico espantoso. Uma das qualidades do trabalho de Shakespeare foi justamente sua capacidade de individualizar todos seus personagens, fazendo com que cada um se tornasse facilmente identificado. Shakespeare também era excêntrico e se adaptava a gêneros diferentes. Trabalhando com o sombrio e com o divertido ou cômico, Shakespeare conseguiu chegar perto da unanimidade. 

Estima-se que as obras de Shakespeare influenciaram pelo menos 20.000 peças musicais que vão de óperas, canções e outros ritmos. Shakespeare é também o dramaturgo mais consistentemente adaptado nos palcos, em todo o século XX houve mais de 50.000 produções e adaptações em todo o globo. Em termos de tradução, vendas e estudos Shakespeare só perde para a Bíblia, e fica a frente de tópicos como Comunismo, Islamismo e Judaísmo. Um artigo publicado diz que as três figuras mais estudadas na história são Jesus, Napoleão e Hamlet. 

Diversos filósofos e psicanalistas estudaram as obras de Shakespeare e a maioria encontrou uma riqueza psicológica e existencial. Entre eles, Arthur Schopenhauer, Freud e Goethe são os que mais se destacam. No Brasil, Machado de Assis foi muito influenciado pelo dramaturgo. Diversas fontes alegam que Bentinho, de Dom Casmurro, seja a versão tropical de Otelo. A revolta dos canjicas, em O Alienista, é provavelmente uma outra versão da revolta fracassada do Jack Cade, descrita em Henrique IV. Na introdução de A Cartomante, Assis utiliza a frase “há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe vossa vã filosofia”, frase que pode ser encontrada em Hamlet. 

Poemas

Em 1593 e 1594, quando os teatros foram fechados por causa da peste, Shakespeare publicou dois poemas eróticos, hoje conhecidos como Vênus e Adônis e O Estupro de Lucrécia. Ele os dedica a Henry Wriothesley, o que fez com que houvesse várias especulações a respeito dessa dedicatória, fato esse que veremos mais tarde. Em Vênus e Adônis, um inocente Adônis rejeita os avanços sexuais de Vênus (mitologia); enquanto que o segundo poema descreve a virtuosa esposa Lucrécia que é violada sexualmente.

Ambos os poemas, influenciados pela obra Metamorfoses, do poeta latino Ovídio, demonstram a culpa e a confusão moral que resultam numa determinada volúpia descontrolada. Ambos tornaram-se populares e foram diversas vezes republicados durante a vida de Shakespeare. Uma terceira narrativa poética, A Lover’s Complaint, em que uma jovem lamenta sua sedução por um persuasivo homem que a cortejou, fora impresso na primeira edição do Sonetos em 1609. A maioria dos estudiosos hoje em dia aceitam que fora Shakespeare quem realmente escreveu o soneto A Lover’s Complaint. Os críticos consideram que suas qualidades são finas e dirigidas por efeitos. 

Sonetos

Publicado em 1609, a obra Sonetos foi o último trabalho publicado de Shakespeare sem fins dramáticos. Os estudiosos não estão certos de quando cada um dos 154 sonetos da obra foram compostos, mas evidências sugerem que Shakespeare as escreveu durante toda sua carreira para leitores particulares. Ainda fica incerto se estes números todos representam pessoas reais, ou se abordam a vida particular de Shakespeare, embora Wordsworth acredite que os sonetos abriram suas emoções.

A edição de 1609 foi dedicada a “Mr. WH”, creditado como o único procriados dos poemas. Não se sabe se isso foi escrito por Shakespeare ou pelo seu editor Thomas Thorpe, cuja sigla aparece no pé da página da dedicação; nem se sabe quem foi Mr. WH, apesar de inúmeras teorias terem surgido a respeito. Os críticos elogiam os sonetos e comentam que são uma profunda meditação sobre a natureza do amor, a paixão sexual, a procriação, a morte e o tempo. 

Veja mais:

Especulações quanto à sua identidade

Alguns estudiosos e pesquisadores acreditam na hipótese de que Shakespeare não seja realmente o autor das próprias obras, discutindo a questão da identidade de Shakespeare.

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William Thomas Green Morton https://canalfezhistoria.com/william-thomas-green-morton/ https://canalfezhistoria.com/william-thomas-green-morton/#respond Tue, 11 Mar 2025 20:44:43 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5908 William Thomas Green Morton (9 de Agosto de 1819 – 15 de Julho de 1868) foi um dentista americano responsável pela primeira demonstração pública com sucesso, de uma droga anestésica por inalação. Morton nasceu em 1819 em Charlton, um vilarejo no Condado de Worcester, Massachusetts. Ele teve uma escolaridade comum na Northfield and Leicest Academies. 

Índice de Conteúdo

William Thomas Green Morton

Em 1840, Morton entrou para a primeira escola de dentistas do mundo, a Baltimore College of Dental Surgery. Ele a abandonou sem se graduar. Ao invés disso, em 1842 Morton se tornou pupilo e depois sócio de Horace Wells, o cirurgião dentista de Hartford. Essa parceria não foi de grande sucesso e se dissolveu seis meses depois.

Morton não teve nenhum papel nos acontecimentos do dia 10 de dezembro, quando Horace Wells percebeu os efeitos analgésicos do gás Hilariante, mas foi ele quem Wells procurou para contar todas as suas experiências e sucessos com o Gás Hilariante. Morton entretanto não demonstrou interesse em especial pelo relatado e não se mostrava um profissional com quaisquer interesses científicos. 

Entretanto, Morton compareceu à apresentação de Wells no Hospital Geral de Massachusetts e foi influenciado pelo insucesso do antigo mestre. No dia 16 de outubro de 1846 Morton voltou ao hospital e dessa vez mudou para sempre a cirurgia no mundo. Esse dia é o oficialmente aceito como aquele em que se realizou a primeira intervenção cirúrgica com anestesia geral.

Morton falou com muito determinação e confiança e apresentou um instrumento, um globo de vidro com duas cânulas que direcionava os vapores à boca do paciente, sendo que dentro havia éter no lugar do antes utilizado protóxido de azoto. O cirurgião presente, o renomado John Collins Warren, extraiu do paciente submetido ao experimento de Morton, um tumor que lhe tomava a glândula submandibular e uma parte da língua.

Veja mais:

Ao não se ouvir nenhuma manifestação de sofrimento por parte do doente e de outro conseguinte que por dores na medula espinhal foi submetido a ferro em brasa, foi constatado que daquela vez sim havia se descoberto e provado perante inúmeros médicos e demais presentes um meio de anestesiar um ser humano, a ponto de permitir qualquer procedimento cirúrgico, por mais doloroso que fosse.

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Zaratustra https://canalfezhistoria.com/zaratustra/ https://canalfezhistoria.com/zaratustra/#respond Tue, 11 Mar 2025 20:40:37 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5904 Zaratustra, também conhecido na versão grega de seu nome Zoroastres, Zoroastro (Ζωροάστρης Zōroastrēs), foi um profeta e poeta nascido na Pérsia (atual Irão), provavelmente em meados do século VII a.C. Ele foi o fundador do Masdeísmo ou Zoroastrismo, a primeira religião monoteísta ética da história (existem debates acadêmicos inconclusivos sobre o assunto), adotada oficialmente pelos Aquemênidas (558 – 330 a.C.). A denominação grega Ζωροάστρης significa contemplador de astros. É uma corruptela do avéstico Zarathustra (em persa moderno: Zartosht ou زرتشت). O significado do nome é obscuro, ainda que, certamente, contenha a palavra ushtra (camelo). 

Nascimento e infância de Zaratustra (tradicional)

Há muito tempo, nas estepes a perder de vista da Ásia Central, perto do Mar de Aral, havia uma pequena vila de casas de adobe onde vivia a família Spitama. Um dia, no sexto dia da primavera, um menino nasceu naquela família. A sua mãe e o seu pai decidiram dar-lhe o nome de Zaratustra. Ao nascer, Zaratustra não chorou; pelo contrário, riu sonoramente. As parteiras, vendo aquilo, admiraram-se, pois nunca tinham visto um bebê rir ao nascer. 

Na vila havia um sacerdote que percebeu que aquele menino viria a ser um revolucionário do pensamento humano e que enfraqueceria o poder dos “donos” das religiões. Ele então decidiu tomar providências e procurou Pourushaspa, o pai de Zaratustra, com a seguinte conversa: “Pourushaspa Spitama, vim avisar-lhe. O seu filho é um mau sinal para a nossa vila porque riu ao nascer. Ele tem um demônio. Mate-o ou os deuses destruirão os seus cavalos e plantações. Onde já se viu rir ao nascer nesse mundo triste e escuro?! Os deuses estão furiosos!”.

Pourushaspa não queria ferir o seu filho, mas o sacerdote insistiu e impôs uma prova. Na manhã seguinte Pourushaspa fez uma grande fogueira e à frente de todos colocou Zaratustra no meio do fogo, mas ele não sofreu dano algum. O sacerdote ficou confuso. 

Zaratustra foi levado então para um vale estreito e colocado no caminho de uma boiada de mil cabeças de gado, para ser pisoteado. O primeiro boi da boiada percebeu o menino e ficou parado sobre ele, protegendo-o, enquanto o resto passava ao lado e o bebê não sofreu um só arranhão. O sacerdote logo arquitetou outro plano. O menino Zaratustra foi colocado na toca de uma loba que, ao invés de devorá-lo, cuidou dele até que Dugdav, sua mãe, viesse buscá-lo. Diante de tantos prodígios o sacerdote ficou envergonhado e mudou-se da vila. 

Ao crescer, Zaratustra peramburalava pelas estepes indagando-se: “Quem fez o sol e as estrelas do céu? Quem criou as águas e as plantas? E quem faz a lua crescer e minguar? Quem implantou nas pessoas a sua natural bondade e justiça?”.

Um dia Zaratustra estava meditando às margens de um rio quando um ser estranho lhe apareceu. Ele era indescritível, tal a sua beleza e brilho. Zaratustra perguntou-lhe quem era ele, ao que teve como resposta: “Sou Vohu Mano, a Boa Mente. Vim buscá-lo”. E tomou-lhe a mão e o levou para um lugar muito bonito, onde sete outros seres os esperavam. 

A Boa Mente disse-lhe então: “Zaratustra, se você quiser, pode encontrar em você mesmo todas as respostas que tanto busca e também questões mais interessantes ainda. Aúra-Masda, deus que tudo cria e sustenta, assim escolheu partilhar a sua divindade com os seres que cria. Agora, sabendo disso, você pode anunciar essa mensagem libertadora a todas as pessoas.” 

Zaratustra contestou: “Por que eu? Não sou poderoso e nem tenho recursos!”. Os outros seres responderam em coro: “Você tem tudo o que precisa, o que todos igualmente têm: Bons pensamentos, boas palavras e boas ações”. 

Zaratustra voltou para casa e contou a todos o que lhe acontecera. A sua família aceitou o que ele havia descoberto, mas os sacerdotes o rejeitaram. Eles argumentaram: “Se é assim nada há de especial em nosso serviço, nada valem nossos sacrifícios e perderemos o poder que nos dão os deuses ciumentos e caprichosos que servimos. Estamos sem trabalho e passaremos fome!”. Decidiram, então, dar cabo da vida de Zaratustra.

Com sua boa mente ele entendeu que tinha que sair dali por uns tempos. Chamou seus vinte e dois companheiros e companheiras de primeira hora e fugiram com tudo o que tinham. Eles viajaram durante várias semanas até chegarem a um lugar cuja governante chamava-se Vishtaspa. Zaratustra procurou Vishtaspa e partilhou com ela a sua descoberta. 

Vishtaspa respondeu ao seu apelo com uma recusa: “Por que haveria de crer nesse estranho? Meus deuses são, com certeza, mais poderosos que esse Aúra-Masda!”. 

Após dois anos tentando convencer Vistaspa, e enfrentando a mais cruel oposição, passando, inclusive, um tempo preso, um acidente com o cavalo de Vishtaspa ajudou a resolver a favor de Zaratustra esse impasse. À beira de morte, o cavalo tornou-se o pivô de todas as atenções. Vistaspa chamou sacerdotes, feiticeiros, médicos e sábios para salvar o seu cavalo. Juntos eles tentaram de tudo, inclusive oferecendo aos deuses dezenas de sacrifícios de outros cavalos.

Além disso, brigaram entre si, fizeram intrigas, mas nada aconteceu, o cavalo de Vishtaspa só piorava. Zaratustra, que fora criado num ambiente rural, logo percebeu que ele fora envenenado. Procurando Vishtaspa ele sugeriu um remédio muito usado nesses casos em sua terra. Sem alternativas, embora descrente, Vishtaspa aceitou a ideia de Zaratustra e em dois dias seu cavalo estava de pé, sem sinal da doença.

Todos ficaram pasmados e acharam que Zaratustra tinha operado um milagre. Ele respondeu que havia apenas usado a sua boa mente e os conhecimentos que tinha adquirido em casa. Vishtaspa e sua família ficaram encantados com a honestidade e simplicidade de Zaratustra e dispuseram-se a ouvi-lo de novo, dessa vez com coração e mentes desarmados. Em pouco tempo não só Vishtaspa e sua família haviam sido iniciados, como também grande parte de seu povo. 

Vida de Zaratustra

Dos 20 aos 30 anos, segundo narrativas que chegaram a nós, Zaratustra viveu quase sempre isolado, habitando no alto de uma montanha, em cavernas sagradas. Não ingeria nenhum alimento de origem animal. Em outros relatos, teria ido ao deserto, onde fora tentado por uma entidade maligna. Após sete anos de solidão completa, regressou ao seu povo, e com a idade de trinta anos recebeu a revelação divina por meio de sete visões ou ideias. 

Assim começou Zaratustra a sua missão aos trinta anos (a mesma idade em que o Zaratustra de Nietzsche iniciou a dele). Segundo os Masdeístas ele encontrou muita dificuldade para converter as pessoas à sua nova religião. Em dez anos de pregação teve somente um crente: o seu primo. Durante este período, o chamado de Zaratustra foi como uma voz no deserto. Ninguém o escutava. Ninguém o entendia. 

Foi perseguido e hostilizado pelos sacerdotes e por toda a sorte de inimigos ao longo de dez anos. Os príncipes recusaram dar-lhe apoio e proteção e encarceraram-no porque a sua nova mensagem ameaçava a tradição e causava confusão nas mentes de seus súbditos. Com 40 anos, realizou milagres e preocupava-se com a instrução do povo. Converteu o rei Vishtaspa, que se tornou um fervoroso seguidor da religião por ele pregada, iniciando a verdadeira difusão dos ensinamentos de Zaratustra e de uma grande reforma religiosa. 

Logo em seguida, a corte real seguiu os passos do rei e, mais tarde, o Masdeísmo chegou a ser a religião oficial da Pérsia. No império dos reis Sassânidas, principalmente no de Artaxes I (227), o chefe religioso era a segunda pessoa no Estado depois do imperador soberano, e este, inteiramente de acordo com o antigo costume, era admitido como divino ou semidivino, vivendo em particular intimidade com Aúra-Masda.

Aos 77 anos de idade ele teria morrido assassinado enquanto rezava no templo, diante do fogo sagrado. Segundo alguns relatos, o seu túmulo estaria em Persépolis. 

Cosmogonia

Na doutrina zaratustriana, antes de o mundo existir, reinavam dois espíritos ou princípios antagónicos: os espíritos do Bem (Aúra-Masda, Spenta Mainyu, ou Ormuz) e do Mal (Angra Mainyu ou Arimã). Divindades menores, gênios e espíritos ajudavam Ormuz a governar o mundo e a combater Arimã e a legião do mal. Entre as divindades auxiliares, como consta no Avesta a mais importante era Mithra, um deus benéfico que exercia funções de juiz das almas. No final do século III d.C, a religião de Mithra fundiu-se com cultos solares de procedência oriental, configurando-se no culto do Sol. 

Arimã é representado como uma serpente. Criador de tudo que há de ruim (crime, mentira, dor, secas, trevas, doenças, pecados, entre outros), ele é o espírito hostil, destruidor, que vive no deserto entre sombras eternas. Aúra-Masda, no entanto, é o Criador original, organizador do mundo de modo perfeito. 

Aúra-Masda é representado também como o divino Lavrador, o que mostra o enraizamento do culto na civilização agrícola, na qual o cultivo da terra era um dever sagrado. No plano cosmológico, contudo, ele é o criador do universo e da raça humana, com poderes para sustentar e prover todos os seres, na luz e na glória supremas. 

Bem e Mal não são apenas valores morais reguladores da vida cotidiana dos humanos, mas são transfigurados em princípios cósmicos, em perpétua discórdia. A luta entre Bem e Mal origina todas as alternativas da vida do universo e da humanidade. A vitória definitiva de Aúra-Masda sobre Arimã só poderia ocorrer se Zaratustra conseguisse formar uma legião de seguidores e servidores, forte o bastante para vencer o Espírito Hostil, e expurgar o Mal do universo.

Nesse sentido, Bem e Mal são princípios criadores e estruturadores do universo, que podem ser observados na natureza e encontram-se presentes na alma humana. A vida humana é uma luta incessante para atingir a bondade e a pureza, para vencer Angra Mainyu e toda a sua legião de demônios cuja vontade é destruir o mundo criado por Aúra-Masda.

A doutrina de Zaratustra é escatológica. De acordo com os seus preceitos, o mundo duraria doze mil anos. No fim de nove mil anos, ocorreria a segunda vinda de Zaratustra como um sinal e uma promessa de redenção final dos bons. Isso seria seguido do nascimento miraculoso do Saoshyant, semelhante ao Messias hebreu, cuja missão seria aperfeiçoar os bons para o fim do mundo, da história humana, enfim, para a vitória do Bem sobre as forças do Mal.

A cada mil anos viria um profeta/messias (Saoshyant). Assim, nos últimos três milênios, três Saoshyant preparariam a completude do grande ano cósmico. É neste sentido que Nietzsche menciona Zaratustra como aquele que compreendeu a História em toda a sua completude. Cada série de desenvolvimento da História seria presidida por um profeta, que teria seu hazar, seu reino de mil anos. O Zaratustra histórico, no entanto, anuncia a chegada do tempo em que surgirá da raça persa o Xá Baram, o Senhor Prometido, o Salvador do Mundo, o Grande Mensageiro da Paz.

No final dos tempos haveria o julgamento derradeiro de todas as almas e a ressurreição dos mortos. Não fica claro se o inferno tem duração eterna, se os maus se agitarão eternamente “nas trevas”. Nos Gathas, cantos de Zaratustra, consta também que o mal poderia ser banido para sempre do universo, com o nascimento de um novo mundo, física e espiritualmente perfeito, aqui na Terra. Não seria possível, assim, a coexistência de um mundo físico degradado e um mundo hiperfísico perfeito. 

Os gregos enfatizaram, no profeta persa, mais a astrologia e a cosmologia do que o dualismo moral. Para eles, Zoroastro é um ser mítico, um astrólogo, legendário fundador da seita dos magos. Os aspectos cosmológicos, soteriológicos (relativos à parte da Teologia que trata da salvação do homem), teológicos e morais do Masdeísmo estavam contidos nos pálavis (principalmente no Dencarda), livros baseados no Avesta. Mas esses textos estão perdidos. 

Moral

O dualismo cósmico e teogônico do Masdeísmo está intimamente relacionado ao dualismo moral. Zaratustra, com a sua mensagem divina, provocou uma verdadeira transformação no modo de pensar da sua civilização, contrariando o tradicional pensamento dos sábios de sua época. Sua mensagem baseava-se nos Gathas, cantos entoados com o objetivo de serem um guia para a humanidade – continham o triplo princípio de boa mente, boas palavras e boas ações.

O Bem e o Mal, para Zaratustra, manifestam-se também na alma humana, e a única forma de poder organizar o mundo e a sociedade é estando o Bem acima do Mal. Este não traz contribuição alguma para a construção de uma vida boa, já que impossibilita uma relação equilibrada entre ser humano, sociedade, natureza e o ser. 

Zaratustra propõe que o homem encontre o seu lugar no planeta de forma harmoniosa, buscando o equilíbrio com o meio (natural e social), respeitando e protegendo terra, água, ar, fogo e a comunidade. O cultivo de mente, palavras e ações boas é de livre escolha: o indivíduo deve decidir perante as circunstâncias que se apresentam em determinado fato. A boa deliberação, ou seja, uma boa reflexão a respeito de cada ação faz surgir uma responsabilidade social para colaborar com o projeto que Deus propôs ao mundo.

Os seres humanos, portanto, possuem livre-arbítrio e são livres para pecar ou para praticar boas ações. Mas serão recompensados ou punidos na vida futura conforme a sua conduta. Os principais mandamentos são: falar a verdade, cumprir com o prometido e não contrair dívidas. O homem deve tratar o outro da mesma forma que deseja ser tratado. Por isso, a regra de ouro do Masdeísmo é: “Age como gostarias que agissem contigo”.

Entre as condutas proibidas destacavam-se a gula, o orgulho, a indolência, a cobiça, a ira, a luxúria, o adultério, o aborto, a calúnia e a dissipação. Cobrar juros a um integrante da religião era considerado o pior dos pecados. Reprovava-se duramente o acúmulo de riquezas. 

As virtudes como justiça, retidão, cooperação, verdade e bondade, surgem com o princípio organizador de Deus Ascha, que só se pode manifestar com o esforço individual de cultivar a Tríplice Bondade. Esta prática do Bem leva ao bem-estar individual e, consequentemente, coletivo. A comunidade somente pode surgir quando o indivíduo se vê como autônomo, e desse modo pode descobrir o outro como pessoa. O ego é valorizado como fonte para o reconhecimento do próximo. Cultivado de forma sadia, o ego torna-se forte e poderoso para o homem observar a si próprio como membro da comunidade e capaz de contribuir para o bom relacionamento harmonioso com os outros seres. 

Por isso, eram incentivadas as virtudes econômicas e políticas, entre elas a diligência, o respeito aos contratos, a obediência aos governantes, a procriação de uma prole numerosa e o cultivo da terra, como está expresso na frase: “Aquele que semeia o grão, semeia santidade”. Havia também outras virtudes ou recomendações de Aúra-Masda: os homens devem ser fiéis, amar e auxiliar uns aos outros, amparar o pobre e ser hospitaleiros. 

A doutrina original de Zaratustra opunha-se ao ascetismo. Era proibido infligir sofrimento a si, jejuar e mesmo suportar dores excessivas, visto o fato de essas práticas prejudicarem a alma e o corpo, e impedirem os seres humanos de exercerem os deveres de cultivar a terra e de procriar. Essas prescrições fomentavam a temperança e não a abstinência. Assim, as exortações e interdições destinavam-se a proporcionar aos homens uma boa conduta, além de reprimir os maus impulsos. 

Doutrina religiosa

As revelações e profecias de Zaratustra estão contidas nos Gathas, cinco hinos que formam a mais antiga parte do livro do Masdeísmo, o Avesta. Os Gathas datam do final do segundo milênio a.C. Foram escritos numa língua do nordeste do Irã, aparentada ao sânscrito, o avestan gático. Originalmente, esses hinos eram transmitidos oralmente. Grande parte do Avesta original foi destruída, com a invasão de Alexandre Magno e com o domínio posterior do Islamismo. As escrituras sagradas do Masdeísmo, o Avesta ou Zend-Avesta, como se tornaram mais conhecidas no ocidente, significam “comentário sobre o conhecimento”. 

O Zoroastrismo é uma das religiões mais antigas e de mais longa duração da humanidade. Após o domínio Islâmico do Irã, o Masdeísmo passou a ser religião de uma minoria, que passou a ser perseguida pela nova religião hegemônica. Por isso, parte dos seguidores remanescentes migrou para o noroeste da Índia, onde foi estabelecida a comunidade Parsi. No Irã, permanece ainda a comunidade Zardushti. Atualmente, o número total de seguidores do Masdeísmo (Zoroastrismo) não chega a 120 mil, distribuídos em pequenas comunidades rurais. Por ser uma religião étnica, o Masdeísmo geralmente não permite a adesão de convertidos. Na atualidade há uma maior flexibilidade, devido à migração, à secularização e aos casamentos realizados entre etnias distintas.

Como já mencionado, a base da doutrina de Zaratustra é o dualismo Bem-Mal. O cerne da religião consiste em evitar o mal por intermédio de uma distinção rigorosa entre Bem e Mal. Além disso, é necessário cultivar a sabedoria e a virtude, por meio de sete ideais, personificados em sete espíritos, os Imortais Sagrados: o próprio Aúra-Masda, concebido como criador e espírito santo; Vohu Mano, o Espírito do Bem; Asa-Vahista, que simboliza a Retidão Suprema; Khsathra Varya, o Espírito do Governo Ideal;Spenta Armaiti, a Piedade Sagrada; Haurvatãt, a Perfeição; e Ameretãt, a Imortalidade.

Estes deuses enfrentam constantemente as forças do Mal, os maus pensamentos, a mentira, a rebelião, a doença e a morte. O príncipe destas forças é Angra Mainyu, o Espírito Hostil, também conhecido como Arimã. A adoração a Aúra-Masda ou Ormuz pode também ser chamada Mazdayasna (Adoração ao Sábio). O culto não requeria templos, pois Deus era representado pelo fogo, considerado sagrado e símbolo de pureza.

A chama era mantida constantemente em altares, erguidos geralmente em lugares elevados das montanhas, onde se faziam oferendas. Os magos, detentores de segredos e de verdades reveladas, dirigiam os ritos e os cultos – são referidos na Bíblia, no Novo Testamento. O rei da Pérsia teria enviado a Israel sacerdotes do Zoroastrismo, que seguiram uma estrela até Belém, no intuito de encontrar o Salvador, ou Messias. 

Zaratustra transmitira, aos magos e adeptos, os segredos e a verdade suprema que lhe foram revelados por Aúra-Masda por meio de um anjo chamado Vohu Manõ. Assim como o Cristianismo, o judaísmo e o islamismo, também no zoroastrismo a revelação divina é elemento essencial. A religião Masdeísta diferencia-se das existentes até então não só pelo dualismo Bem–Mal, mas também pelo caráter escatológico. Entre os seus dogmas, estão a vinda do Messias, a ressurreição dos mortos, o julgamento final e a translação dos bons para o paraíso eterno. Inclui também a doutrina da imortalidade da alma e o seu julgamento. 

Conforme os seus méritos ou pecados, elas iriam para o mundo dos justos (paraíso), para a mansão dos pesos iguais (purgatório) ou para a escuridão eterna (inferno). Não sepultavam, incineravam ou jogavam os mortos em rios, mas ficavam expostos em altas torres a céu aberto. Os corpos dos justos, salvos da destruição, secariam; já os dos injustos seriam devorados pelas aves de rapina. Desse modo, Zaratustra pode ser visto como um dos primeiros teólogos da história por ter erigido um sistema de fé religiosa desenvolvido e estruturado. 

Veja mais:

Enquanto religião ética, o Masdeísmo possuía a missão de purificar os costumes tradicionais de seu povo a fim de erradicar o politeísmo, o sacrifício de animais e a magia. Com isso, o culto poderia atingir uma dimensão ético-espiritual elevada. Zaratustra pregava que o esforço e o trabalho eram atos santos. Eis algumas frases ou ditos a ele atribuídos: 

• “O que vale mais num trabalho é a dedicação do trabalhador”.
• “O que lavra a terra com dedicação tem mais mérito religioso do que poderia obter com mil orações sem nada fazer”.
• “Aquele que diz uma palavra injusta pode enganar o seu semelhante, mas não enganará a Deus.”
• “Deus está sempre à tua porta, na pessoa dos teus irmãos de todo o mundo.”
• “O que semeia milho, semeia a religião. Não trabalhar é um pecado.”

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Isabel I de Castela https://canalfezhistoria.com/isabel-i-de-castela/ https://canalfezhistoria.com/isabel-i-de-castela/#respond Tue, 11 Mar 2025 20:35:01 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5897 Isabel I (Madrigal de las Altas Torres, 22 de abril de 1451 – Medina del Campo, 26 de novembro de 1504), apelidada de “Isabel, a Católica”, foi a Rainha de Castela e Leão de 1474 até sua morte, além de Rainha Consorte de Aragão a partir de 1479 e Imperatriz titular do Império Bizantino de 1502 até sua morte. Era filha do rei João II e sua esposa Isabel de Portugal. 

Casou-se com o seu primo em segundo-grau, o príncipe Fernando de Aragão e, devido ao seu parentesco próximo, tiveram de pedir permissão ao Papa. No entanto, com a ajuda de Rodrigo Bórgia, o papa Sisto IV acabou por aceitar o casamento, uma vez que considerava a união conveniente para os interesses da Igreja. Isabel e o seu marido Fernando criaram as bases para a unificação política da Espanha através do seu neto, Carlos I, que se tornaria imperador do Sacro Império Romano.

Depois de uma luta para reclamar o seu direito ao trono, Isabel reorganizou o sistema de governo e da administração, centralizando competências ostentadas anteriormente pelos nobres; reformou o sistema de segurança dos cidadãos de tal forma que a taxa de criminalidade desceu drasticamente e levou a cabo uma reforma económica para reduzir a divida que o reino tinha herdado do seu meio-irmão e predecessor no trono, Henrique IV.

As suas reformas e as que realizou com o marido, tiveram grande influência mesmo fora das fronteiras dos seus reinos. Juntamente com o seu marido, Isabel participou na guerra de Granada através da qual conseguiram reconquistar terras muçulmanas, expulsando-os assim da Península Ibérica. Posteriormente decretaram também a expulsão dos judeus da região através do Decreto de Alhambra. Por estas medidas, tanto Isabel como o seu marido foram reconhecidos pela Santa Sé como “defensores ou protectores da fé”, recebendo o título de Reis Católicos. 

Contudo, Isabel foi recordada sobretudo pelo apoio incondicional que deu a Cristóvão Colombo na sua busca pelas Índias Ocidentais, uma missão que o levaria a descobrir a América. Este acontecimento levou posteriormente às descobertas e ao surgimento do Império Espanhol. 

Primeiros Anos

Isabel de Castela, filha de João II de Castela e da sua segunda esposa, Isabel de Portugal, nasceu em Madrigal de las Altas Torres, na província de Ávila, no dia 22 de abril de 1451, numa Quinta-Feira Santa, no palácio que hoje em dia é ocupado pelo Mosteiro de Nossa Senhora da Graça. O lugar e a data de nascimento foram discutidos historicamente, uma vez que quando nasceu, ninguém suspeitava da importância histórica que teria a menina no futuro. Madrigal era na altura uma pequena vila movimentada onde a sua mãe, Isabel de Avis, residia ocasionalmente. Foi da sua mãe que recebeu o nome Isabel que, na altura, ainda não era muito usado em Espanha. 

Dois anos depois, em Tordesilhas, nasceu o seu irmão Afonso. Anteriormente, fruto do matrimónio entre João II de Castela e Maria de Aragão, e por tanto irmão paterno de Isabel, tinha nascido Henrique, que ocuparia o trono em 1454 e seria conhecido como Henrique IV, o Impotente.

Após a morte do seu pai em 1454, Isabel retirou-se com a sua mãe e irmão Afonso para a vila de Arévalo, onde assistiria aos ataques de loucura da sua mãe, Isabel. Esta foi uma época de dificuldades, inclusivamente económicas, pois embora o seu pai tivesse deixado disposições importantes no testamento a favor da sua mãe, o rei Henrique IV não as cumpre reiteradamente. Nesta adversidade, Isabel fortaleceu-se com leituras evangélicas e livros religiosos.

A sua amizade com Santa Beatriz de Silva também a ajudou. Mais tarde, já rainha, Isabel ajudou-a a fundar a Ordem da Imaculada Conceição e ofereceu-lhe os palácios de Galiana na cidade de Toledo. Outras personagens importantes, neste momento e em geral durante a sua vida, foram Gutierre de Cárdenas, e a sua esposa Teresa Enríquez y Gonzalo Chacón. 

Em 1461, Isabel e o seu irmão Afonso mudaram-se para Segóvia, lugar onde se encontrava a Corte, por estar para breve o nascimento da filha dos reis, dona Joana de Castela. Logo que nasceu, apelidaram a criança de Joana, a Beltraneja porque, segundo rumores da época, era filha da rainha, dona Joana de Portugal, e de Beltrán de La Cueva. 

Os nobres, ansiosos por poder, colocaram o seu irmão Afonso, na altura apenas com doze anos de idade, contra o seu meio-irmão Henrique, exibindo-o na “farsa de Ávila”. Em 1468, o seu irmão Afonso morreu, provavelmente envenenado, em Cardeñosa. Inicialmente, pensou-se que tinha sido vítima da peste, mas o médico que examinou o seu cadáver não encontrou indícios de tal doença.

Apesar das pressões dos nobres, Isabel recusou proclamar-se rainha enquanto Henrique IV estivesse vivo. Pelo contrário, conseguiu fazer com que o seu irmão lhe concedesse o título de princesa das Astúrias, numa cerimónia discutida que aconteceu nos Toros de Guisando a 19 de setembro de 1468, conhecida como a Concórdia de Guisando. Diz-se que dom Andrés de Cabrera, tesoureiro real, disse ao rei: “A virtude e as modéstia da infanta obrigam-nos a esperar que não terá mais vontade do que a vossa nem alimentará a ambição dos Grandes, pois se não tivesse recusado o título de rainha que lhe ofereceram, contentando-se com o de princesa que, a seu ver, lhe pertence”. 

Isabel tornou-se assim herdeira da coroa, à frente da sua sobrinha e afilhada Joana a quem a nobreza não considerava legítima para ocupar o trono devido às dúvidas que existiam em relação à sua paternidade. A partir deste momento, Isabel passa a residir em Ocaña, uma vila que pertencia a dom Juan Pacheco, marquês de Villena. O rei inicia contactos diplomáticos com outras casas reais para conseguir um acordo matrimonial que lhe trouxesse benefícios. 

Acordos matrimoniais

Desde os três anos de idade Isabel estave comprometida com Fernando, filho do rei João II de Aragão. No entanto, Henrique IV acabou com este acordo seis anos depois para comprometer a irmã com Carlos, príncipe de Viana. O casamento não chegou a realizar-se devido à oposição férrea de João II de Aragão. Também foram inúteis as tentativas de Henrique IV de casá-la com o rei Afonso V de Portugal, primo em segundo-grau de Isabel e quase vinte anos mais velho do que ela.

Em 1464, conseguiu reuni-los no Mosteiro de Guadalupe, mas Isabel recusou-o devido à diferença de idades entre ambos. Mais tarde, quando tinha dezesseis anos, Isabel ficou comprometida de Pedro Girón, Mestre de Calatrava e irmão de dom Juan Pacheco. Diz-se que Isabel rogou aos céus para que não se realizasse o seu casamento com este varão de quarenta e três anos. Dom Pedro morreu de apendicite durante a viagem para se encontrar com a sua prometida. 

A 18 de setembro de 1468, Isabel foi proclamada princesa das Astúrias através da Concórdia dos Touros de Guisando, revogando assim a anterior decisão de Henrique IV em oferecer este título à sua filha Joana. Depois da cerimónia, Isabel passou a viver em Ocaña tendo pouco contacto com a corte. Henrique IV voltou a sugerir o enlace entre Isabel e o rei Afonso V de Portugal, já que o Tratado dos Touros de Guisando tinha relembrado que o casamento de Isabel devia realizar-se com a aprovação do monarca castelhano.

A proposta também incluía o projecto de casar a sua filha Joana com o príncipe-herdeiro João, filho de Afonso de Portugal. Desta forma, Isabel teria que mudar-se para o reino vizinho e, quando o seu marido morresse, os tronos de Portugal e Castela passariam para o rei João II de Portugal e para a sua esposa Joana.

Quando Isabel recusou a proposta, o rei intentou entregá-la a Carlos, duque de Berry, irmão do rei Luís XI de França; Isabel voltou a recusar o matrimónio. O monarca francês pediu então a mão de Joana para o seu irmão com o objectivo de afastá-lo do trono de França uma vez que o considerava uma ameaça para ele. O noivado celebrou-se em Medina del Campo em 1470, mas o duque morreu em 1472, em circunstâncias misteriosas antes de conhecer a noiva. 

Entretanto, o rei João II de Aragão tratava de negociar em segredo com Isabel o casamento com o seu filho Fernando. Isabel e os seus conselheiros consideraram que ele era o melhor candidato para seu esposo, mas havia um impedimento legal uma vez que os dois eram primos em segundo-grau (os seus avôs, Fernando I de Aragão e Henrique III de Castela eram irmãos). Por isso, precisavam de uma bula papal que os exonerasse do impedimento. No entanto, o Papa não chegou a assinar este documento, temendo as possíveis consequências negativas que esse acto lhe poderia trazer (atraindo a aversão dos reinos de Castela, Portugal e França, todos envolvidos nas negociações para desposar da princesa Isabel com outro pretendente). 

Apesar de tudo, o Papa era a favor desta união por gostar da princesa Isabel, uma mulher de carácter marcadamente religioso, devido à ameaça que os muçulmanos representavam para os seus Estados Pontifícios. Por essa razão, ordenou que dom Rodrigo Bórgia se dirigisse a Espanha como legado para facilitar a união. 

As dúvidas de Isabel para casar-se e a autorização papal impediam a realização da cerimónia. Com a conivência de dom Rodrigo Bórgia, os negociadores apresentaram uma suposta bula emitida em junho de 1464 pelo Papa anterior, Pio II, a favor de Fernando, na qual era permitido a Fernando contrair matrimónio com qualquer princesa com quem tivesse laços de consanguinidade até ao terceiro grau.

Isabel aceitou e assinaram-se as capitulações matrimoniais em Cervera, a 5 de março de 1469. Para que se realizasse a cerimónia, e temendo que Henrique IV acabasse com os seus planos, em maio de 1469, com a desculpa de visitar o túmulo do seu irmão Afonso, que repousava em Ávila, Isabel escapou de Ocaña onde era rigorosamente vigiada por dom Juan Pacheco. Por seu lado, Fernando atravessou Castela em segredo, disfarçando-se de moço de mulas de comerciantes. Finalmente, a 19 de outubro de 1469, Isabel contraiu matrimónio no Palácio de los Vivero em Valladolid com Fernando, rei da Sicília e príncipe de Gerona.

O matrimónio custou a Isabel o confronto com o seu meio-irmão que chegou a paralisar a bula papal de dispensa por parentesco. Finalmente, e depois da mediação do arcebispo de Toledo, Alonso Carrillo, no dia 1 de dezembro de 1471, o Papa Sisto IV acabou com as dúvidas em relação à legalidade canónica da união através da Bula de Simancas, que dispensava os príncipes Isabel e Fernando da sua consanguinidade. 

Isabel, Rainha de Castela

Isabel ascendeu ao trono depois de vencer a Guerra de Sucessão Castelhana, ocorrida entre 1475 a 1479, enfrentando os partidários da sua sobrinha Joana. No entanto, após a vitória fez-se justiça, mas também se ofereceu o perdão real a todos aqueles que o pediram. Foi então que se construiu o Mosteiro de São João dos Reis. 

Isabel proclama-se rainha de Castela no dia 13 de dezembro de 1474 em Segóvia, usando como base o Tratado dos Touros de Guisando. Da Fortaleza de Segóvia dirigiu-se para a Igreja de São Miguel, junto à praça maior. Depois de jurar por Deus, pela Cruz e pelos Evangelhos que seria obediente aos mandamentos da Santa Igreja, os presentes juram-lhe lealdade. De seguida entrou no templo segurando o escudo de Castela e abraçada às suas dobras. 

A partir desse momento, impôs-se a tarefa de garantir a segurança nas estradas e nas aldeias, dado que os anos de guerra tinham favorecido actos de pilhagem e delinquência. Para isso, criou-se a Santa Irmandade que foi eficaz e um bom instrumento de justiça. 

Foi uma mulher de grande carácter e com muita vontade própria. Foi severa com os filhos, mas uma boa mãe, fazendo-os entender que tinham obrigações por serem filhos de reis e que muito se devia sacrificar por esse motivo. Levou-os consigo durante as suas campanhas militares, mas também cuidou sempre do seu bem-estar como prova o seu valor durante o motim que ocorreu no forte de Segóvia em 1476. Os reis tinham instalado aí a sua corte e era também lá que vivia a sua primogénita, Isabel, sob o cuidado da sua amiga Beatriz de Bobadilla e do seu marido, o alcaide Andrés Cabrera.

Cabrera era de origem judaica, o que na época era fonte de tensões raciais, e acusavam-no de querer aproveitar-se da confiança que os reis tinham nele, além de acusá-lo de desviar fundos e de tirania. O tumulto transformou-se num motim quando uns provocadores, disfarçados de camponeses e com armas escondidas, incentivaram a população a destituir o alcaide. Uma massa de gente furiosa dirigiu-se até à Fortaleza, armada com instrumentos do campo, paus e pedras.

A rainha estava com o cardeal Mendoza quando soube do que tinha acontecido, mas nem um nem outro tinham tropas suficientes para defender a praça. Temendo pelo perigo que podia correr a sua filha, a rainha montou o seu cavalo e, acompanhada por três guardas, cavalgou sessenta quilómetros até Segóvia. À entrada, o bispo tentou detê-la pelo grande perigo que corria, mas Isabel recusou o conselho e avançou até à Fortaleza.

Entrou e deixou as portas abertas para que os amotinados entrassem e lhe fizessem as suas queixas. Depois de examinar as queixas e observar que estas eram infundadas, talvez até promovidas por ressentimento em relação ao anterior alcaide Maldonado, decide manter Andrés Cabrera no seu posto. O povo de Segóvia, conquistado pelo valor e pela sensibilidade da sua rainha, passou a ser-lhe fiel a partir desse momento.

Durante as campanhas militares de Fernando, a rainha esteve sempre a seu lado, na retaguarda, acompanhada pelos seus filhos e preparada para providenciar o que fosse necessário. A sua ajuda foi decisiva para o êxito da Reconquista, como demonstram os acontecimentos da rendição de Baza (Granada).

A cidade estava cercada havia bastante tempo, mas a população moura não queria render-se e os soldados cristãos começavam a desmoralizar-se devido ao longo ataque. O rei Fernando pede à sua esposa que se apresente no campo de batalha para levantar o moral das tropas. Isabel assim o faz, fazendo-se acompanhar de várias damas e da sua primogénita Isabel. O impacto da sua presença foi imediato, não só para as tropas cristãs, mas também para a população atacada que deu início à sua rendição, não perante o rei guerreiro, mas sim da sua destemida rainha. Isabel foi também precursora do Hospital de campanha, fazendo-se sempre acompanhar de médicos e ajudantes para cuidas dos feridos no campo de batalha. 

Acreditou nos projectos de Cristóvão Colombo, apesar das muitas críticas e reações políticas adversas da Corte e dos científicos; uma lenda diz que financiou a viagem que levaria ao descobrimento da América com as suas próprias jóias. Na verdade esta foi paga por um grupo de mercadores, os mesmos que financiaram a visita de Fernando de Aragão para se casar com Isabel.

Durante o reinado comum com Fernando, houve acontecimentos de grande transcendência para o futuro do reino, como o estabelecimento da Santa Inquisição (1480), a criação da Santa Irmandade, a incorporação do Reino de Granada assim como a unificação religiosa da Coroa Hispânica, baseada na conversão obrigatória dos judeus sob pena de expulsão (Decreto de Alhambra, 1492) e mais tarde dos muçulmanos. Por último, a anexação de Navarra (1512), quando a rainha já tinha morrido, significou a origem do futuro “Reino das Espanhas”. 

Depois do descobrimento da América em 1492, deu-se início a um processo de evangelização dos indígenas nativos, uma tarefa confiada aos monges paulinos húngaros que viajaram para as terras novas nas viagens subsequentes de Colombo. Isabel, aconselhada por estes monges, assinou o Tratado de Tordesilhas com Portugal (1494), um tratado com objectivos modestos (trava-se de repartir zonas de pesca e navegação com os portugueses: a importância da viagem de Colombo ainda não era conhecida), mas que, posteriormente, fez com que Castela e Portugal repartissem o mundo. Por desejo dos comerciantes urbanos criou-se a Santa Irmandade, corpo de polícia para a repressão da vadiagem criando condições mais seguras para o comércio e a economia. 

Para as suas campanhas militares contou com o serviço de Gonzalo Fernández de Córdoba (O Grande Capitão), que participou na conquista de Granada (1492), nas primeiras Guerras de Itália e na toma de Cefalonia (1500). 

Estes acontecimentos, movidos tanto por interesse político como religioso, foram muito importantes e mudaram por completo o que até então tinha sido uma parte da Península dividida em vários reinos; a Península tinha, no final de contas, a mesma divisão da época romana e foi por isso que os Reis Católicos nunca usaram o título de reis de Espanha e mudaram o rumo da história em toda a Europa.

Dada a implicação histórica da Coroa de Aragão em Itália e por uma série de outras razões (as suas virtudes cristãs, a conquista de Granada, a expulsão dos judeus e a cruzada contra os muçulmanos), Fernando e Isabel receberam o título de Reis Católicos concedido pelo Papa Alexandre VI, mediante a bula Si convenit, de 19 de dezembro de 1496. Este título foi herdado pelos descendentes do trono, e actualmente pertence ao rei Filipe VI de Espanha.

No final dos seus dias, as desgraças familiares começaram a atingi-la, o que levou alguns cronistas da época a comparar a rainha determinada com a Virgem Maria nas suas dores. A morte do seu único filho varão e o aborto da esposa dele, a morte da sua filha mais velha e do seu neto Miguel, a loucura da sua filha Joana agravada após a morte do seu marido flamengo, Filipe I de Castela, levaram-na a uma depressão profunda que fez com que se vestisse sempre de luto. A sua espiritualidade profunda ficou registada no que disse quando recebeu a triste notícia do falecimento do seu filho: “O Senhor deu-mo, o Senhor tirou-mo, bendito seja o seu santo nome.” 

Morte

Isabel encontrava-se em Medina del Campo quando adoeceu de cancro do útero, doença que a mataria. A rainha mandou que se rezassem missas pela sua saúde que se transformaram em missas pela sua alma quando teve a certeza de que o seu fim se aproximava. Consciente, pediu a extrema unção e o Santíssimo Sacramento. 

Faleceu pouco antes do meio-dia de 26 de novembro de 1504, no Palácio Real de Medina del Campo. Inicialmente foi enterrada no mosteiro de São Francisco de Alhambra no dia 18 de dezembro de 1504, numa sepultura simples como era seu desejo. Pouco depois os seus restos mortais, juntamente com os do seu esposo Fernando, o Católico, foram transladados para a Capela Real de Granada. A sua filha Joana I e o marido dela, Filipe I de Castela, também estão lá enterrados.

Também foi neste local que se enterrou o seu neto Miguel, filho do rei Manuel I de Portugal que faleceu pouco antes de completar dois anos de idade, e a mãe dele, a infanta Isabel, filha mais velha dos Reis Católicos. No museu da Capela Real encontram-se a coroa e o ceptro da rainha que também ofereceu à capela um importante grupo de quadros de Botticelli, Dirk Bouts e Hans Memling, entre outros e muitos dos seus pertences pessoais que ainda lá se encontram. 

Testamento e sucessão

O testamento original da rainha encontra-se conservado no Mosteiro Real de Santa Maria de Guadalupe. Existe ainda uma cópia que foi enviada para o mosteiro de Santa Isabel da Alhambra de Granada e outra que foi enviada para a catedral de Toledo. Esta última encontra-se conservada no Arquivo Geral de Simancas desde 1575. 

No testamento, Isabel disse que os seus sucessores deviam esforçar-se para conquistar o Norte de África para o cristianismo e continuar a reconquista peninsular, mas a descoberta da América fez com que os esforços dos reinos castelhanos se afastassem desse objectivo. O seu empenho como defensora da igualdade dos seus súbditos americanos com os do Velho Mundo fizeram com que recebesse o título de Precursora dos Direitos Humanos de historiadores importantes (isto apesar de ter decretado a conversão obrigatória dos judeus sob pena de expulsão, do Decreto de Alhambra e, mais tarde, pressionada pelo marido e pelo papado, acabar com as Capitulações de Granada, decididas com Boabdil, e obrigar a conversão dos muçulmanos). 

Quando morreu, foi sucedida pela sua filha Joana, mas por pouco tempo, uma vez que esta seria declarada incapaz de reinar por “loucura” e passou assim o reino para o marido dela (Filipe I, o Belo) e logo de seguida para o filho deste matrimónio e neto dos Reis Católicos, Carlos I.

Veja mais:

Casamento e posteridade

De seu casamento com Fernando II de Aragão: 

  • Isabel de Aragão, Rainha de Portugal (1470 – 1498), casada com Dom Afonso de Portugal e, posteriormente, com Manuel I de Portugal.
  • Aborto espontâneo (1475), um menino.
  • João de Castela, Príncipe das Astúrias e Girona (1478 – 1497), casado com Margarida de Áustria.
  • Joana, a Louca, Rainha de Castela (1479 – 1555), casada com Filipe I de Castela.
  • Maria de Aragão, Rainha de Portugal (1482 – 1517), casada com Manuel I de Portugal.
  • Ana de Castela (1482), irmã gêmea natimorta da Maria.
  • Catarina de Aragão (1485 – 1536), Rainha de Inglaterra casada com Henrique VIII de Inglaterra.
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Isaac Newton https://canalfezhistoria.com/isaac-newton/ https://canalfezhistoria.com/isaac-newton/#respond Tue, 11 Mar 2025 20:28:36 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5891 Isaac Newton (Woolsthorpe-by-Colsterworth, 4 de janeiro de 1643 — Kensington, 31 de março de 1727) foi um astrônomo, alquimista, filósofo natural, teólogo e cientista inglês, mais reconhecido como físico e matemático.

Sua obra, Princípios Matemáticos da Filosofia Natural é considerada uma das mais influentes na história da ciência. Publicada em 1687, esta obra descreve a lei da gravitação universal e as três leis de Newton, que fundamentaram a mecânica clássica. Ao demonstrar a consistência que havia entre o sistema por si idealizado e as leis de Kepler do movimento dos planetas, foi o primeiro a demonstrar que os movimentos de objetos, tanto na Terra como em outros corpos celestes, são governados pelo mesmo conjunto de leis naturais.

O poder unificador e profético de suas leis era centrado na revolução científica, no avanço do heliocentrismo e na difundida noção de que a investigação racional pode revelar o funcionamento mais intrínseco da natureza.

Newton construiu o primeiro telescópio refletor operacional e desenvolveu a teoria das cores baseada na observação que um prismadecompõe a luz branca em várias cores do espectro visível. Ele também formulou uma lei empírica de resfriamento e estudou a velocidade do som.

Além de seu trabalho em cálculo infinitesimal, como matemático Newton contribuiu para o estudo das séries de potências, generalizou o teorema binomial para expoentes não inteiros, e desenvolveu o método de Newton para a aproximação das raízes de uma função, além de muitas outras contribuições importantes. Newton também dedicou muito de seu tempo ao estudo da alquimia e da cronologia bíblica, mas a maior parte de seu trabalho nessas áreas permaneceu não publicada até muito tempo depois de sua morte.

Em uma pesquisa promovida pela Royal Society, Newton foi considerado o cientista que causou maior impacto na história da ciência. De personalidade sóbria, fechada e solitária, para ele a função da ciência era descobrir leis universais e enunciá-las de forma precisa e racional. 

Primeiros anos

Newton nasceu em 4 de janeiro de 1643 em Woolsthorpe Manor, embora seu nascimento tivesse sido registrado como no dia de Natal, 25 de dezembro de 1642, pois àquela época a Grã-Bretanha usava o calendário juliano. Seu nascimento foi prematuro, não tendo conhecido seu pai, um próspero fazendeiro que também se chamava Isaac Newton e morreu três meses antes de seu nascimento. Sua mãe, Hannah Ayscough Newton, passou a administrar a propriedade rural da família.

A situação financeira era estável, e a fazenda garantia um bom rendimento. Com apenas três anos, Newton foi levado para a casa de sua avó materna, Margery Ayscough, onde foi criado, já que sua mãe havia se casado novamente (com um pastor chamado Barnabas Smith). O jovem Isaac não havia gostado de seu padrasto e brigou com sua mãe por se casar com ele, como revelado por este registro em uma lista de pecados cometidos até os 19 anos de idade: Ameaçar meu pai Smith e minha mãe de queimar sua casa com eles dentro. 

Um ser de personalidade fechada, introspectiva e de temperamento difícil: assim era Newton, que, embora vivesse em uma época em que a tradição dizia que os homens cuidariam dos negócios de toda a família, nunca demonstrou habilidade ou interesse para esses tipos de trabalho. Parece que o único romance de que se tem notícia na vida de Newton tenha ocorrido com a senhorita de nome Anne Storer (filha adotiva do farmacêutico e hoteleiro William Clarke), embora isso não seja comprovado. 

Os primeiros anos na escola

A partir da idade de aproximadamente doze até os dezessete anos, Newton foi educado na The King’s School, em Grantham (onde a sua assinatura ainda pode ser vista em cima de um parapeito da janela da biblioteca). Ele foi retirado da escola em outubro de 1659 para viver em Woolsthorpe-by-Colsterworth, onde sua mãe, viúva, agora pela segunda vez, tentou fazer dele um agricultor; mas ele odiava trabalhar na agricultura.

Henry Stokes, diretor da The King’s School, convenceu sua mãe a mandá-lo de volta à escola para que pudesse completar sua educação. Um caderno escolar de Newton revela alguns dos assuntos que ele estudou nas aulas de Stokes neste período: aritmética, agrimensura, trigonometria e construções geométricas que incluíam as aproximações de Arquimedes para o número π. De acordo com o historiador V. F. Rickley: Isso ia muito além de qualquer coisa ensinada nas universidades da época; consequentemente, ao contrário da tradição, Newton tinha um conhecimento superior de matemática antes de ir para Cambridge. 

Especula-se que Newton estudou latim, grego, hebreu e a Bíblia. Alguns autores destacam a ideia de que era um aluno mediano, até que uma cena de sua vida mudou isso: uma briga com um colega de escola fez com que Newton decidisse ser o melhor aluno da classe e de todo o prédio escolar. 

Universidade e resumo das suas realizações

Newton estudou no Trinity College de Cambridge, e graduou-se em 1665. Um dos principais precursores do iluminismo, seu trabalho científico sofreu forte influência de seu professor e orientador Isaac Barrow (desde 1663), e de Schooten, Viète, John Wallis, René Descartes, dos trabalhos de Pierre de Fermat sobre retas tangentes a curvas; de Bonaventura Cavalieri, das concepções de Galileu Galilei e Johannes Kepler. 

O matemático francês Abraham de Moivre, um dos melhores amigos de Newton, lhe indagou sobre as origens do interesse de Newton por matemática, e pediu detalhes a respeito de seus estudos. Descobriu que o interesse de Newton começou em 1663, aos 20 anos, quando ele comprou um livro de astrologia e não conseguiu entender a matemática usada nele. Assim, Newton comprou um livro de trigonometria, e não conseguindo entender as demonstrações, começou a estudar Os Elementos de Euclides, que leu inteiro.

Prosseguiu para o Clavis Mathematicae, de William Oughtred, e então para o La Géométrie, de Descartes. Seguiu o estudo com Exercitationum mathematicarum, de Schooten, e então o Opera Mathematica, de Viète. E finalmente para os dois livros de Wallis: Arithmetica infinitorum e Tractatus duo. Estudos que Newton realizou como autodidata em pouco mais de um ano.

Em 1663, formulou o teorema hoje conhecido como Binômio de Newton. Fez suas primeiras hipóteses sobre gravitação universal e escreveu sobre séries infinitas e o que chamou de teoria das fluxões (1665), o embrião do Cálculo Diferencial e Integral. 

Por causa da peste negra, o Trinity College foi fechado em 1666 e o cientista foi para a casa de sua mãe em Woolsthorpe-by-Colsterworth. Foi neste ano de retiro que construiu quatro de suas principais descobertas: o Teorema Binomial, o cálculo, a lei da gravitação universal e a natureza das cores.

Construiu o primeiro telescópio de reflexão em 1668, e foi quem primeiro observou o espectro visível que se pode obter pela decomposição da luz solar ao incidir sobre uma das faces de um prisma triangular transparente (ou outro meio de refração ou de difração), atravessando-o e projetando-se sobre um meio ou um anteparo branco, fenômeno este conhecido como dispersão. Optou, então, pela teoria corpuscular de propagação da luz, enunciando-a em 1675 e contrariando a teoria ondulatória de Huygens. Tornou-se professor de matemática em Cambridge (1669) e foi eleito Membro da Royal Society em 1672.

Sua principal obra foi a publicação Princípios Matemáticos da Filosofia Natural em 1687, em três volumes, na qual enunciou a lei da gravitação universal (Vol. 3), generalizando e ampliando as constatações de Johannes Kepler, e resumiu suas descobertas, principalmente o cálculo. Essa obra tratou essencialmente sobre física, astronomia e mecânica (leis dos movimentos, movimentos de corpos em meios resistentes, vibrações isotérmicas, velocidade do som, densidade do ar, queda dos corpos na atmosfera, pressão atmosférica, etc.).

De 1687 a 1690, foi membro do Parlamento Britânico, em representação da Universidade de Cambridge. Em 1696 foi nomeado Warden of the Mint e em 1701 Master of the Mint, dois cargos burocráticos da [[casa da moeda britânica. Foi eleito sócio estrangeiro da Académie des Sciences em 1699 e tornou-se presidente da Royal Society em 1703. Publicou, em Cambridge, Arithmetica universalis (1707), uma espécie de livro-texto sobre identidades matemáticas, análise e geometria, possivelmente escrito muitos anos antes (talvez em 1673). 

Contribuições

Matemática

O trabalho de Newton foi descrito como “Um Trabalho distinto, que avançou cada ramo da matemática”. Sua obra sobre o assunto normalmente referido como cálculo, foi visto em um manuscrito no mês de outubro de 1666, agora publicado entre os papéis matemáticos de Newton. 

Newton mais tarde se envolveu em uma disputa com Leibniz sobre a autoria no desenvolvimento do cálculo infinitesimal. A maioria dos historiadores modernos acreditam que Newton e Leibniz desenvolveram cálculo infinitesimal de forma independente, embora com diferentes notações. Ocasionalmente, tem sido sugerido que Newton publicou quase nada sobre isso até 1693, e não deu um relato completo até 1704, enquanto Leibniz começou a publicar um relato completo de seus métodos em 1684. A Notação de Leibniz e o “Método diferencial”, hoje reconhecidos como notações muito mais convenientes, foram adotados por matemáticos da Europa continental, e depois de 1820, também por matemáticos britânicos.

Tal sugestão, no entanto, não consegue esclarecer o conteúdo do cálculo que os críticos da época de Newton e dos tempos modernos têm apontado em Princípios Matemáticos da Filosofia Natural. Essa obra não foi escrita na linguagem de cálculo ou como nós o conhecemos hoje, ou como na notação que Newton mais tarde usaria. 

Mas o seu trabalho amplamente usa um cálculo infinitesimal em forma geométrica, com base em valores limite das proporções de pequenas quantidades: no Principia o próprio Newton deu uma demonstração deste sob o nome de “o método da primeira e do última razão”, e explicou por que ele colocou as exposições desta forma. 

Devido a isso, o Principia foi chamado de um livro denso com a teoria e aplicação do cálculo infinitesimal, e lequel est Presque tout ce de calcul(“‘quase tudo é o cálculo'”), na época de Newton. O cálculo de Newton em forma geométrica é frequentemente objeto de fascínio de muitos dos estudos sobre Newton. Após estudar o Principia, o físico indiano Chandrasekhar afirmou: seus conhecimentos físicos e geométricos eram tão penetrantes que as provas emergiam inteiras em sua mente.

O matemático russo V. I. Arnold também expressou seu fascínio em relação a este aspecto do Principia: Comparando hoje os textos de Newton com os comentários de seus sucessores, é impressionante como a apresentação original de Newton é mais moderna, mais compreensível e rica em ideias do que as traduções realizadas por seus comentadores de suas ideias geométricas para a linguagem formal do cálculo de Leibniz. Newton tinha sido cauteloso em publicar o seu cálculo porque temia controvérsia e críticas.

Ele era amigo do matemático suíço Nicolas Fatio de Duillier. Em 1691, Duillier começou a escrever uma nova versão de Principia e enviou a Leibniz. Em 1693, a relação entre Duillier e Newton acabou, e o livro nunca foi concluído. 

A partir de 1699, outros membros da Royal Society (da qual Newton era um membro) acusaram Leibniz de plágio, e a disputa eclodiu com força total em 1711. A Royal Society proclamou em um estudo que foi Newton o verdadeiro descobridor e rotulou Leibniz de uma fraude. Este julgamento foi posto em dúvida quando se descobriu mais tarde que o próprio Newton escrevera considerações finais do estudo sobre Leibniz.

Newton é creditado geralmente pelo binómio de Newton, válido para qualquer expoente, descobriu as identidades de Newton, o Método de Newton, fez contribuições substanciais para a teoria do operador de diferença, e foi o primeiro a usar índices fracionários para empregar na geometria analítica para obter soluções para a equação diofantina, além de ter sido o primeiro a usar coordenadas polares. Newton foi nomeado Professor lucasiano de Matemática, em 1669, por recomendação de Isaac Barrow. 

Óptica

Newton realizou descobertas fundamentais em óptica. Em 1666, Newton observou que a luz que entrava por um orifício circular ao ser refratada por um prisma em posição de desvio mínimo, formava uma imagem oblonga, em vez de circular, como seria esperado matematicamente pela lei de Snell. Com isto, Newton conjecturou que o prisma refrata cores diferentes por ângulos diferentes, e realizou sistematicamente diversas experiências com o fim de corroborar ou falsear tal hipótese. 

Entre 1670 e 1672, Newton trabalhou intensamente em problemas relacionados com a óptica e a natureza da luz. Ele demonstrou, de forma clara e precisa, que a luz branca é formada por uma banda de cores (vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta) que podiam separar-se por meio de um prisma.

Como resultado de muito estudo, concluiu que qualquer telescópio “refrator” sofreria de uma aberração hoje denominada “aberração cromática”, que consiste na dispersão da luz em diferentes cores ao atravessar uma lente. Para evitar esse problema, Newton construiu um “telescópio refletor” (conhecido como telescópio newtoniano). Isaac Newton acreditava que existiam outros tipos de forças entre partículas, conforme diz na obra Principia. Essas partículas, capazes de agir à distância, agiam de maneira análoga à força gravitacional entre os corpos celestes. Em 1704, Isaac Newton escreveu a sua obra mais importante sobre a óptica, chamada Opticks, na qual expõe suas teorias anteriores e a natureza corpuscular da luz, assim como um estudo detalhado sobre fenômenos como refração, reflexão e dispersão da luz.

Newton colocou na parte final do Óptica uma lista de questões pendentes e possíveis respostas a elas, seção que Newton ainda viria a expandir nas edições seguintes. Nestes anos, ele foi capaz de se permitir fazê-lo — a autoridade de Newton após o Principia era inquestionável, e eram poucos que ousavam fazer objeções. Várias hipóteses revelaram-se proféticas. Em particular, Newton previu: 

deflexão da luz em um campo gravitacional;
o fenômeno da polarização da luz;
interconversão de luz e matéria.

Lei da gravitação universal

No verão de 1684, houve uma reunião entre Robert Hooke, Edmond Halley e Christopher Wren em que discutiram sobre gravitação. Halley, que mantinha uma boa amizade com Newton, visitou-o em agosto de 1684, e lhe apresentou um problema que eles não tinham conseguido resolver: Qual é a forma da órbita de um planeta atraído pelo Sol por uma força que varia com o inverso do quadrado da distância? Newton respondeu imediatamente: Uma elipse.

Desconcertado, Halley perguntou: Como sabe?, ao que Newton lhe respondeu que já havia resolvido esse problema. Newton procurou o papel com a prova mas não o encontrou, mas prometeu reconstruí-la e lhe enviá-la, e assim Halley teve que aguardar, e só recebeu a prova em novembro de 1684, sob o título De Motu Corporum in Gyrum (“Sobre o movimento dos corpos em órbita”). Halley imediatamente percebeu a importância do resultado e do método empregado por Newton, e o visitou novamente, decidido a convencê-lo a publicar suas descobertas.

E assim Newton começou a escrever o Principia, cujos custos de publicação foram todos arcados por Halley (a Royal Society estava muito mal financeiramente, e Newton não queria gastar dinheiro com a publicação). Com uma lei formulada de maneira simples, Newton procurou explicar os fenômenos físicos mais importantes do universo. A lei da gravitação universal, proposta por ele, tem a seguinte expressão matemática: 

A constante gravitacional universal foi medida anos mais tarde por Henry Cavendish. A descoberta da lei da gravitação universal se deu em 1685 como resultado de uma série de estudos e trabalhos iniciados muito antes. Em 1679, Robert Hooke comunicou-se com Newton por meio de cartas, e os assuntos eram sempre científicos.

Foi exatamente em 1684 que Newton informou seu amigo Edmond Halley de que havia resolvido o problema da força inversamente proporcional ao quadrado da distância. Newton relatou esses cálculos no tratado De Motu e os desenvolveu de forma ampliada no livro Princípios Matemáticos da Filosofia Natural. A gravitação universal é muito mais do que uma força relacionada ao Sol. É também um efeito dos planetas sobre o Sol e sobre todos os objetos do universo.

Newton explicou facilmente a partir de sua Terceira Lei da Dinâmica que, se um objeto atrai um segundo objeto, este segundo também pode atrair o primeiro com a mesma força. Concluiu-se que o movimento dos corpos celestes não podiam ser regulares. Para o célebre cientista, que era bastante religioso, a estabilidade das órbitas dos planetas implicava reajustes contínuos sobre suas trajetórias impostas pelo poder divino. 

A queda da maçã e a dúvida de Newton

O próprio Newton contou muitas vezes de que a inspiração para formular sua teoria da gravitação foi a observação da queda de uma maçã de uma árvore. Há muitos estudos que analisam esta história.

Embora alguns afirmem que a história da maçã é um mito e que ele não chegou à sua teoria da gravidade de maneira repentina, conhecidos de Newton (tais como William Stukeley, cujo relato manuscrito de 1752 foi disponibilizado pela Royal Society) confirmam, de fato, o incidente, embora não a versão caricata de que a maçã bateu na cabeça de Newton. Stukeley registrou em seu Memoirs of Sir Isaac Newton’s Life uma conversa que teve com Newton em Kensington no dia 15 de abril de 1726 em que cita uma história envolvendo a suposta maçã e a ideia da gravitação. 

Em termos similares, Voltaire escreveu em seu Ensaio Sobre Poesia Épica (1727): Sir Isaac Newton teve o primeiro pensamento do seu sistema de gravitação ao ver uma maçã cair de uma árvore enquanto caminhava em seus jardins.

John Conduitt, assistente de Newton na casa da moeda e marido da sobrinha de Newton, também descreveu o evento, quando escreveu sobre a vida de Newton: 

No ano 1666, se afastou novamente de Cambridge para a casa de sua mãe em Lincolnshire. Enquanto ele estava pensativo caminhando em um jardim veio-lhe ao pensamento de que a influência da gravidade (que levou uma maçã de uma árvore ao chão) não era limitada a uma certa distância da Terra, mas que esta influência deve se estender muito além do que se costuma pensar. ‘Por que não tão alto quanto até a Lua?’, disse ele a si mesmo, ‘Isso deve influenciar seu movimento e talvez mantê-la em sua órbita’, ao que ele começou a calcular qual seria o efeito dessa suposição.

Sabe-se de seus cadernos de anotações que Newton estava analisando no final da década de 1660 a ideia de que a gravidade da Terra se estendia, em proporção inversa ao quadrado da distância, até a Lua; no entanto, levou duas décadas para desenvolver a teoria plenamente. A pergunta não era se a gravidade existia, mas se ela se estenderia tão longe da Terra que poderia também ser a força que prende a Lua à sua órbita.

Newton mostrou que, se a força diminuísse com o quadrado inverso da distância, poderia então calcular corretamente o período orbital da Lua. Ele supôs ainda que a mesma força seria responsável pelo movimento orbital de outros corpos, criando assim o conceito de “gravitação universal”. 

As três leis de Newton

Isaac Newton publicou estas leis em 1687, no seu trabalho de três volumes intitulado Princípios Matemáticos da Filosofia Natural. As leis explicavam vários comportamentos relativos ao movimento de objetos físicos e foi um extenso trabalho no qual ele dedicou-se. A forma original na qual as leis foram escritas é a seguinte: 

Lex I: Corpus omne perseverare in statu suo quiescendi vel movendi uniformiter in directum, nisi quatenus a viribus impressis cogitur statum illum mutare.

Todo corpo continua em seu estado de repouso ou de movimento uniforme em uma linha reta, a menos que seja forçado a mudar aquele estado por forças imprimidas sobre ele. É também conhecido como princípio da inércia. 

Lex II: Mutationem motis proportionalem esse vi motrici impressae, et fieri secundum lineam rectam qua vis illa imprimitur.
A mudança de movimento é proporcional à força motora imprimida, e é produzida na direção da linha reta na qual aquela força é imprimida. É também conhecido como princípio da dinâmica. 

Lex III: Actioni contrariam semper et aequalem esse reactionem: sine corporum duorum actiones in se mutuo semper esse aequales et in partes contrarias dirigi. A toda ação há sempre oposta uma reação igual, ou, as ações mútuas de dois corpos um sobre o outro são sempre iguais e dirigidas a partes opostas. É também conhecido como princípio da ação e reação. 

Alquimia

O seu primeiro contato com caminhos da alquimia foi através de Isaac Barrow e Henry More, intelectuais de Cambridge. Por volta de 1693, escreveu Praxis, uma obra que sugere uma filosofia que via na natureza algo diferente do que admitiam as filosofias mecanicistas ortodoxas. Newton dedicou muitos de seus esforços aos estudos da alquimia. Escreveu muito sobre esse tema, fato que soube-se muito tarde, já que a alquimia era totalmente ilegal naquela época. 

Visão religiosa

O formulador da Lei da gravitação universal teve uma aproximação com um clérigo, o seu próprio padrasto Barnabas Smith, que possuía bacharelado em Oxford. Newton possuía uma extensa biblioteca de teologia e filosofia ao seu dispor, incluindo desde estudos de línguas até todos os tipos de literatura clássica e bíblica, o que pode ter vitalizado seu espírito para inspiradoras abstrações. Adquirindo uma grande fama como cientista, Newton foi influenciado pela política e acabou não se ordenando clérigo, mas permaneceu fiel à sua crença no Universo, embora tenha comportado-se como um bom cristão anglicano, atendendo serviços na capela do Trinity Colege e, mais tarde, em Londres. Iniciou uma série de correspondências com o filósofo John Locke. 

Entre suas obras teológicas, destacam-se An Historical Account of Two Notable Corruption of Scriptures, Chronology of Ancient Kingdoms Atendede Observations upon the Prophecies. Algumas das coisas em que ele acreditava eram o tempo, sempre igual para todos os instantes, e os seis mil anos de existência que a Bíblia dá à Terra. Considerava que a mecânica celeste era governada pela gravitação universal e, principalmente, por Deus, sobre o qual relata: “A maravilhosa disposição e harmonia do universo só pode ter tido origem segundo o plano de um Ser que tudo sabe e tudo pode. Isto fica sendo a minha última e mais elevada descoberta.” 

Pontos de vista do fim do mundo

Em um manuscrito que ele escreveu em 1704 no qual ele descreve sua tentativa de extrair informações científicas a partir da Bíblia, ele estima que o mundo não iria terminar antes de 2060. Em 2007, a Biblioteca Nacional de Israel divulgou três manuscritos atribuídos a Isaac Newton, relacionando profecias com história política e religiosa europeia daquela época.

Em um dos manuscritos (datado do início do século XVIII), Newton, por meio de análise dos textos bíblicos do Livro de Daniel(do antigo testamento), conclui que o mundo deveria acabar por volta do ano de 2060, ao escrever “Ele pode acabar além desta data, mas não há razão para acabar antes”. Em outra análise, o cientista interpreta as profecias bíblicas sobre o retorno dos judeus à terra prometida antes do apocalipse. “A ruína das nações más, o fim do choro e de todos os problemas, e o retorno dos judeus ao seu próspero reino”, escreveu. 

Em Escatologia, Isaac Newton investiga uma parte da teologia e da filosofia preocupado com o que se acredita ser o apocalipse (último acontecimento na história do mundo, ou o derradeiro destino da humanidade) vulgarmente designado o fim do mundo.

Newton escreveu muitas obras que passariam a ser classificadas como estudos ocultos. Estas obras exploraram o ocultismo, a cronologia, alquimia e escritos bíblicos, propondo-lhes interpretações especialmente do Apocalipse. 

Os movimentos filosóficos

A sociedade secreta rosa-cruz foi possivelmente a que exerceu maior influência sobre Newton. Apesar de o movimento rosa-cruz ter causado uma grande curiosidade entre os acadêmicos europeus durante o século XVII, na época de Newton já havia atingido a maturidade e se tornara algo menos sensacionalista. O movimento teve uma profunda influência sobre Newton, particularmente nas pesquisas sobre alquimia e filosofia. 

A crença rosa-cruz de serem especialmente escolhidos para comunicarem-se com os anjos ou espíritos ecoa nas crenças proféticas de Newton. Os rosa-cruzes proclamavam também ter a habilidade de viver para sempre usando o elixir vitae e a habilidade de produzir um sem limite de quantidade de ouro a partir do uso da pedra filosofal, a qual diziam possuir. Tal como Newton, os rosa-cruzes foram profundamente filósofos místicos, declaradamente cristãos e altamente politizados.

Newton teve muito interesse nas pesquisas sobre alquimia, mas também nos ensinamentos esotéricos antigos e na crença em indivíduos iluminados com a habilidade de conhecer a natureza, o universo e o reino espiritual. Newton foi contemporâneo dos Platonistas de Cambridge e amplamente influenciado por esse meio, sendo muito evidente o seu contato com os pensamentos de Platão, citados em suas obras. 

Ao morrer, a biblioteca de Newton apresentava 169 livros sobre o tópico da alquimia, e acreditava-se que teria consideravelmente mais livros durante os anos de formação em Cambridge, embora possivelmente os tenha vendido antes de mudar-se para Londres em 1696. 

Os últimos anos de vida

Newton foi respeitado como nenhum outro cientista e sua obra marcou efetivamente uma revolução científica. O matemático italiano Joseph-Louis Lagrange frequentemente dizia que Newton foi o maior gênio que já viveu, e uma vez acrescentou que Newton foi também “o mais afortunado, dado que não se pode descobrir mais de uma vez o sistema que governa o mundo”. Seus estudos foram como chaves que abriram portas para diversas áreas do conhecimento cujo acesso era impossível antes de Newton.

Newton, em seus últimos dias, passou por diversos problemas renais que culminaram com sua morte. No lado mais pessoal, existem biógrafos que afirmam que ele teria morrido virgem. Ele faleceu na noite de 20 de março de 1727 (calendário juliano). Foi enterrado junto a outros célebres homens da Inglaterra na Abadia de Westminster. A causa provável de sua morte foram complicações relacionadas ao cálculo renal que o afligiu em seus últimos anos de vida. 

Seu epitáfio foi escrito pelo poeta Alexander Pope:

“A natureza e as leis da natureza estavam imersas em trevas; Deus disse “Haja Newton” e tudo se iluminou.”

Newton tinha sido mais modesto em relação a suas próprias realizações, sendo célebre a sua carta a Robert Hooke em fevereiro de 1676, em que escreveu: 

“Se enxerguei mais longe, foi porque me apoiei sobre os ombros de gigantes.”

Mais tarde, em um livro de memórias, Newton escreveu:“Não sei o que posso parecer aos olhos do mundo, mas aos meus pareço apenas ter sido como um menino brincando à beira-mar, divertindo-me em encontrar de vez em quando um seixo mais liso ou uma concha mais bonita que o normal, enquanto o grande oceano da verdade permanece completamente desconhecido à minha frente.”

Newton teve grande influência sobre os cientistas posteriores. Albert Einstein mantinha um retrato de Newton na parede de sua sala de estudos, juntamente com os de Michael Faraday e James Clerk Maxwell. 

Veja mais:

Obras publicadas

  • Method of Fluxions (1671) 
  • Princípios Matemáticos da Filosofia Natural (1687) 
  • Opticks (1704) 
  • Tractatus de Quadratura Curvarum (1704) 
  • Arithmetica Universalis (1707) 
  • Optical Lectures (1728) 
  • The Chronology of Ancient Kingdoms Amended (1728)

Também escreveu sobre os ramos da química, da alquimia, da cronologia e da teologia. Também sobre escoamento em canais, velocidade de ondas superficiais e o deslocamento do som no ar.

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Irmãos Wright https://canalfezhistoria.com/irmaos-wright/ https://canalfezhistoria.com/irmaos-wright/#respond Tue, 11 Mar 2025 20:19:51 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5887 Os Irmãos Wright, Wilbur (Millville, 16 de abril de 1867; Dayton, 30 de maio de 1912) e Orville (Dayton, 19 de agosto de 1871; Dayton, 30 de janeiro de 1948), foram dois irmãos norte americanos, inventores e pioneiros da aviação aos quais foi concedido o crédito pelo desenvolvimento da primeira máquina voadora mais pesada que o ar, que efetuou um voo controlado, em 17 de Dezembro de 1903. A principal realização dos irmãos foi a invenção do controle em três eixos, que permitiu ao piloto controlar a aeronave de forma efetiva e manter o seu equilíbrio.

Esse método se tornou e permanece sendo o padrão em aeronaves de asa fixa de qualquer tipo. Desde o início do seu trabalho em aeronáutica, os irmãos Wright focaram no desenvolvimento de um método confiável de controle de pilotagem. Essa abordagem diferia bastante dos outros experimentos da época, que colocavam mais ênfase no desenvolvimento de motores mais potentes.

Usando um pequeno túnel de vento caseiro, eles obtiveram uma grande quantidade de dados científicos como nunca antes, o que os permitiu desenhar e construir asas e hélices mais eficientes que todos até então. A primeira patente deles, a de Número 821.393, não requeria a invenção de uma máquina voadora, mas sim a invenção de uma sistema de controle aerodinâmico que manipulava as superfícies de uma máquina voadora.

A infância

Os irmãos Wright foram dois de sete irmãos, filhos de Milton Wright (1828–1917), de ascendência inglesa e holandesa, e Susan Catherine Koerner (1831–1889), de ascendência alemã e Suíça. Wilbur nasceu próximo a Millville, Indiana em 1867; Orville em Dayton, Ohio em 1871. Eles nunca se casaram. Os outros irmão foram: Reuchlin (1861–1920), Lorin (1862–1939), Katharine (1874–1929), e os gêmeos Otis e Ida (nascida em 1870, morreu na infância). Na escola elementar, Orville foi taxado como “muito travesso” e chegou a ser expulso.

Em 1878, o seu pai, que viajava muito como bispo da Church of the United Brethren in Christ, trouxe para casa um “helicóptero” de brinquedo para seus dois filhos mais novos. Esse brinquedo era baseado numa invenção do pioneira da aviação francês Alphonse Pénaud. Feito de papel, bambu e cortiça com uma tira de borracha para fazer girar o seu rotor, ele media cerce de 30 cm de comprimento. Wilbur e Orville brincaram com ele até que ele quebrou, e então construíram um eles mesmos. Anos mais tarde eles relataram que as experiências com aquele brinquedo foi o despertar do interesse de ambos em voar.

Início de carreira e pesquisas

Ambos os irmãos frequentaram a escola secundária mas não receberam diploma. A família mudou-se repentinamente em 1884 de Richmond, Indiana para Dayton, Ohio, onde a família viveu durante a década de 1870, o que impediu que eles recebessem seus diplomas do segundo grau.

No final de 1885 ou início de 1886, Wilbur foi atingido acidentalmente por um taco de hockey quando jogava com seus amigos, resultando na perda dos dentes da frente. Até então, ele era vigoroso e atlético, e apesar do ferimento aparentemente não ter sido muito grave, ele passou a ser muito retraído, e não frequentou a universidade de Yale conforme planejado. Ao invés disso, ele passou os anos seguintes em casa cuidando de sua mãe que estava em estado terminal de tuberculose e lendo bastante na biblioteca de seu pai. Ele deu assistência a seu pai em algumas controvérsias com a Brethren Church, mas também demonstrou insatisfação com sua própria falta de ambição.

Orville abandonou a escola secundária logo depois do primeiro ano para dar início a um negócio de impressão em 1889, tendo projetado e construído sua própria prensa tipográfica com a ajuda de Wilbur, que se juntou a ele no negócio e em Março, os irmãos lançaram um jornal semanal, o West Side News.

Em Abril de 1890 eles o converteram em um jornal diário, o The Evening Item, mas ele perdurou apenas por quatro meses. Daí por diante, eles focaram em impressão comercial. Um de seus clientes era o amigo e ex-colega de classe de Orville, Paul Laurence Dunbar, que alcançou fama internacional como poeta e escritor afro-americano. Os Wright imprimiram um jornal semanal chamado Dayton Tattler do qual Dunbar foi editor por um breve período.

Aproveitando o “boom” nacional das bicicletas logo depois da invenção da “bicicleta segura”, os irmãos abriram uma loja de vendas e oficina de reparos em Dezembro de 1892 (a Wright Cycle Exchange, mais tarde Wright Cycle Company) e começaram a construir bicicletas de sua própria marca em 1896. Eles usaram esse empreendimento para financiar seu crescente interesse em voar. Em meados da década de 1890 eles observaram jornais, revistas e fotos a respeito dos voos em planadores de Otto Lilienthal na Alemanha.

O ano de 1896 trouxe três importantes eventos aeronáuticos. Em Maio, Samuel Langley secretário da Smithsonian Institution fez voar com sucesso um modelo não tripulado de asa fixa movido a vapor. No meio do ano, o engenheiro Octave Chanute de Chicago, acompanhado de vários homens efetuou testes com vários tipos de planadores sobre as dunas de areia do Lago Michigan. Em Agosto, Lilienthal morreu num acidente com seu planador.

Esses eventos, marcaram a vida dos irmãos. Em Maio de 1899 Wilbur escreveu uma carta para a Smithsonian Institution solicitando informações e publicações sobre aeronáutica. Trabalhando sobre os desenhos de Sir George Cayley, Octave Chanute, Otto Lilienthal, Leonardo da Vinci, e Samuel Pierpont Langley, eles deram início aos seus experimentos em mecânica aeronáutica naquele ano.

Os irmãos Wright sempre apresentaram uma imagem uniforme para o público, dividindo igualmente os créditos por suas invenções. Biógrafos destacam que Wilbur tomou a iniciativa em 1899–1900, de escrever: “my machine and my plans” antes que Orville estivesse profundamente envolvido, e mais tarde o singular virou plural “we and our”. O autor James Tobin afirma: “é impossível imaginar brilhantismo em Orville do jeito que ele era, provendo a força que deu início aos seus trabalhos e manter tudo funcionando desde uma loja em Ohio até conferências com capitalistas, presidentes e reis. Wilbur fez aquilo. Ele era o líder, do início até o fim.”

Ideias sobre controle

Apesar da fatalidade com Lilienthal, os irmãos Wright decidiram usar a sua estratégia: a de praticar com planadores para adquirir experiência no controle de voo antes de tentar um voo motorizado. A morte do piloto britânico Percy Pilcher em outra queda de planador em Outubro de 1899 só reforçou a opinião deles de que um método de controle de voo confiável era a chave para o sucesso e segurança do voo.

No início dos seus experimentos, eles definiram o “controle” como sendo a terceira parte não solucionado do “problema de voar”. Eles acreditavam que dominariam os conhecimentos necessários para resolver os outros dois: asas e motor. A estratégia dos irmãos Wright diferia em muito das dos seus contemporâneos, especialmente: Ader, Maxim e Langley que construíam motores potentes, acoplando-os às suas máquinas voadoras equipadas com sistemas de controle não testados, e esperavam conseguir levantar voo sem nenhuma experiência prévia. Apesar de concordar com a ideia de Lilienthal de praticar, os irmãos Wrights viram que o método de controle dele de alterar o equilíbrio mudando a posição do peso do próprio corpo era inadequada. Eles estavam determinados a encontrar uma alternativa melhor.

Na base da observação, Wilbur concluiu que os pássaros alteravam o ângulo da ponta de suas asas para fazer com seus corpos rolassem para a esquerda ou para a direita. Os irmãos decidiram que este seria uma boa maneira de uma máquina voadora para fazer curvas para um lado ou para outro, como uma pessoa numa bicicleta, uma experiência com a qual eles tinham bastante familiaridade.

Igualmente importante, eles esperavam que este método permitisse a recuperação de um golpe de vento em que a máquina fosse forçada para um lado (balanço lateral). Eles trabalharam sobre como obter o mesmo efeito e acabaram descobrindo o processo de arquear as asas (wing-warping) quando Wilbur conseguiu torcer uma caixa de tubos na oficina de bicicletas.

Outros pesquisadores aeronáuticos, julgavam que o voo não era tão diferente de uma locomoção na superfície, exceto que a superfície poderia ser elevada. Eles pensavam em termos de um leme para controlar a elevação, enquanto as máquinas voadoras permaneciam basicamente niveladas no ar, como um trem ou automóvel na superfície. A ideia de deliberadamente se mover de um lado para outro e fazer curvas parecia inalcançável para eles.

Alguns desses outros pesquisadores, incluindo Langley e Chanute, buscavam o ideal de uma “estabilidade inerente”, acreditando que o piloto de uma máquina voadora não seria capaz de reagir rápido o suficiente à distúrbios de vento usando controles mecânicos de maneira efetiva. Os irmãos Wright, por outro lado, queriam que o piloto tivesse controle absoluto. Naquela época, seus desenhos iniciais não contemplavam estabilidade inerente na construção (tais como asas em diedro). Eles desenharam o seu primeiro “flyer” motorizado em 1903 com asas em diedro inverso (caídas), que são por definição instáveis, mas menos suscetíveis aos efeitos dos ventos cruzados.

Os voos

Em Julho de 1899 Wilbur testou o processo de arquear as asas construindo e voando uma pipa biplano com 1,52 m de envergadura. Quando as asas eram arqueadas ou torcidas, a ponta de uma das asas produzia mais sustentação elevando aquele lado enquanto o outro baixava causando uma curva na direção do lado mais baixo. O arqueamento era controlado por quatro cordões amarrados à pipa. Esses cordões ficavam presos à bastões que eram controlados pelo “piloto”, que os movia em direções opostas para controlar o movimento das asas.

Em 1900, os irmãos Wright viajaram para Kitty Hawk, Carolina do Norte, para dar início aos seus experimentos em voos tripulados. Em resposta a uma primeira carta de Wilbur, Octave Chanute sugeriu a zona central da costa do Atlântico devidos aos ventos regulares e a superfície de areia fofa para os pousos. Wilbur também solicitou dados detalhados do Weather Bureau e decidiu por Kitty Hawk depois de receber informações dos meteorologistas do governo lá alocados. O local, apesar de remoto, ficava relativamente perto de Dayton.

O local também deu a eles uma certa privacidade em relação à repórteres, que transformaram os experimentos de Chanute em 1896 no Lago Michigan em algo como um “circo”. Chanute visitava-os a cada estação entre 1901 e 1903 e presenciou os voos com planadores, mas não o voo motorizado.

Os planadores

Os irmãos Wright basearam a sua pipa e seus planadores no trabalho feito por outros pioneiros da aviação na década de 1890. Eles adotaram o desenho básico do planador biplano Chanute-Herring (os Wright o chamavam de “double-decker”), que voou bem nos experimentos de 1896 nas proximidades de Chicago, e usaram dados de sustentação aeronáutica que Lilienthal havia publicado. Os Wright desenharam as asas com um arqueamento na parte superior. Os Wright não descobriram esse princípio, mas tiraram vantagem dele.

A melhor sustentação de uma superfície arqueada em relação a uma plana foi cientificamente discutida pela primeira vez por Sir George Cayley. Lilienthal, cujo trabalho os Wright estudaram detalhadamente, usou asas com arqueamento nos seus planadores, provando em voo as vantagens sobre as superfícies planas.

Os suportes de madeira entre as asas dos planadores Wright eram presas por fios na sua própria versão modificada das treliças do planador biplano de Chanute, Os Wright montaram o profundor horizontal na frente das asas, aparentemente acreditando que essa disposição ajudaria a evitar ou os protegeria no caso de um mergulho e queda de nariz como a que matou Lilienthal. Wilbur acreditava erradamente que uma cauda não seria necessária, e seus dois primeiros planadores não tinham uma.

De acordo com alguns biógrafos, Wilbur provavelmente efetuou todos os voos até 1902, talvez para exercer sua autoridade de irmão mais velho e proteger Orville de algum ferimento, pois ele não queria ter que explicar ao Bispo Wright (seu pai) se Orville se machucasse.

A base científica

Para confirmar se havia erros nos dados das tabelas de Lilienthal, os irmãos usaram uma bicicleta para um novo tipo de experimento. Eles criaram um modelo de aerofólio e uma lâmina plana, ambas de acordo com as dimensões especificadas por Lilienthal, e as acoplaram a uma roda de bicicleta extra, que eles montaram horizontalmente na frente do guidão. Pedalando forte numa rua local para criar fluxo de ar sobre o aparelho, eles observaram que a terceira roda girava contra o aerofólio ao invés de ficar estática como a fórmula de Lilienthal previa. O experimento confirmou suas suspeitas de que o coeficiente Smeaton padrão, ou os coeficientes de sustentação de Lilienthal, ou ambos, estavam errados.

A fraca sustentação dos planadores de 1900 e 1901, levou os Wright a questionar a precisão dos dados de Lilienthal e do coeficiente Smeaton de pressão do ar usado por vários anos. Baseado em observações das suas próprias experiências, os Wright concluíram que o coeficiente correto era próximo a 0,0033 e não o tradicional valor de 0,0054, que aumentava muito a sustentação calculada.

Deixando de lado a estranha bicicleta de três rodas, eles construíram um túnel de vento de 1,83 m na sua loja e conduziram uma série de testes sistemáticos de asas em miniatura entre Outubro e Dezembro de 1901. Os suportes que eles montaram no interior do túnel para segurar as asas pareciam bem toscos, mas foram “tão críticos para o sucesso final dos irmãos Wright quanto os próprios planadores.” Esses experimentos permitiram aos irmãos, balancear a sustentação contra o arrasto e calcular de forma precisa a performance de cada asa.

Eles também puderam avaliar qual das asas tinha o melhor desempenho quando olhavam pela janela de observação em cima do túnel. Esses testes resultaram numa quantidade nunca antes obtida de dados de qualidade, provando que a baixa sustentação dos planadores de 1900 e 1901 eram devidas ao valor errado do coeficiente Smeaton, e que os dados que Lilienthal publicou estavam razoavelmente corretos para os testes que ele fez.

Usando o motor

Em 1903, os irmãos construíram um modelo motorizado, o Wright Flyer I, usando o seu material preferido na construção, a picea, uma madeira leve e resistente, e musseline para a cobertura das superfícies. Eles também desenharam e esculpiram suas próprias hélices de madeira, e tinham um motor específico construído na sua loja de bicicletas. Eles pensaram que o desenho de hélices seria uma questão simples, mas ao contrário, foi uma questão fortemente debatida entre os dois, até que concluíram que uma hélice aeronáutica é essencialmente uma asa girando no plano vertical.

Tendo isso como base, eles usaram dados obtidos com mais testes no túnel de vento para desenhar suas hélices. As lâminas acabadas tinham apenas 2,44 m de comprimento, feita de três laminações coladas de picea. Os Wright optaram por uma configuração por impulsão dupla com as hélices girando em sentido contrário (para anular o torque), que atuariam sobre uma maior quantidade de ar do que uma única hélice e também evitando causar turbulência na parte frontal das asas.

Os irmãos Wright escreveram para vários fabricantes de motores, mas nenhum atingiu as suas necessidades de um motor suficientemente leve. Eles utilizaram o mecânico da sua loja Charlie Taylor, que construiu um motor em apenas seis semanas em colaboração contínua com os dois irmãos. Para manter o peso baixo, o bloco foi esculpido em alumínio, uma prática pouco comum na época. O motor Wright/Taylor tinha uma versão primitiva do moderno sistema de injeção de combustível, sem carburador nem bomba de combustível.

A gasolina era alimentada por gravidade do tanque de combustível montado numa estrutura em forma de asa num compartimento próximo aos cilindros onde era misturada com o ar: a mistura ar-combustível era então vaporizada por calor forçando-a para dentro dos cilindros. As correntes que acionavam as hélices eram semelhantes às de bicicletas, eram fornecidas por um fabricante de peças de automóvel. O Flyer custou menos que mil dólares, em contraste com os mais de $50.000 em fundos do governo cedidos a Samuel Langley para a construção da sua máquina voadora tripulada, o Langley Aerodrome.

O primeiro voo motorizado

Já em campo, em Kill Devil Hills, depois de vários adiamentos por problemas técnicos diversos e uma diminuição do interesse dos repórteres, Wilbur ganhou no cara ou coroa e fez uma primeira tentativa de um voo de três segundos em 14 de Dezembro de 1903, estolando logo depois da decolagem causando pequenos danos ao Flyer. Wilbur escreveu para sua família reportando a tentativa como um “sucesso parcial”. Depois dos reparos, os irmãos Wright finalmente decolaram em 17 de Dezembro de 1903, fazendo dois voos cada um: o primeiro, pilotado por Orville as 10:35, percorreu 37 m em 12 segundos, a velocidade de 10,9 km/h.

Os dois próximos voos cobriram aproximadamente 53 3 61 m por Wilbur e Orville respectivamente. A altura foi de cerca de 3 m acima do solo. O quarto voo pilotado por Wilbur já próximo ao meio dia, terminou num pequeno acidente depois de ter percorrido 259,69 m em 59 segundos. O leme frontal foi bastante danificado, mas a estrutura principal sofreu pouco. E a estimativa era de consertá-lo em um ou dois dias.

Cinco pessoas testemunharam os voos: Adam Etheridge, John T. Daniels (que tirou a famosa foto “first flight” usando a câmera pré posicionada de Orville), Will Dough, W.C. Brinkley e Johnny Moore. Depois que os homens recuperaram o Flyer do seu pequeno acidente, uma rajada de vento o atingiu fazendo-o capotar várias vezes, apesar das tentativas de segurá-lo. Seriamente danificado esse modelo nunca voou novamente. Os irmãos o embarcaram para casa e anos depois, Orville o restaurou, levando-o a várias localidades nos Estados Unidos para exibição, e mais tarde para um museu britânico, antes de ser finalmente instalado na Smithsonian Institution em Washington, D.C. em 1948.

Os irmãos Wright enviaram um telegrama sobre os voos para o seu pai, solicitando que ele “informasse a imprensa”. No entanto, o Dayton Journal se recusou a publicar a história, dizendo que os voos foram muito curtos para que fossem considerados importantes. No entanto, contra a vontade dos irmãos, um operador de telégrafo vazou a informação para um jornal da Virgínia que fez uma mistura de informações imprecisas num artigo que foi reproduzido por vários jornais no dia seguinte, inclusive em Dayton.

Os irmãos Wright divulgaram sua própria declaração à imprensa em Janeiro. No entanto, os voos não criaram nenhum grande impacto popular e as pessoas sequer os conheciam e as manchetes rapidamente desapareceram. Em Paris, no entanto, membros do Aéro-Club de France, já estimulados pelos relatos de Chanute sobre os sucessos dos voos com planadores dos irmãos Wright, levaram as notícias mais a sério e aumentaram seus esforços para chegar aos irmãos.

Análises modernas feitas pelos professores Fred E. C. Culick e Henry R. Jex (em 1985) demonstraram que o Flyer de 1903 era tão instável que provavelmente seria impossível de ser pilotado por outros que não os irmãos Wright, que treinaram bastante com o planador de 1902.

A controvérsia

O voo do Flyer I é reconhecido pela Fédération Aéronautique Internationale como o primeiro de um aparelho voador controlado, mais pesado que o ar. Apesar do reconhecimento, há polêmicas quanto a ser o voo do Flyer 1, o primeiro controlado, mas diferente de outros engenhos anteriores ao Flyer I, que também foram controlados, não houve auxilio mecânico na decolagem. A aeronave se elevou ao ar por meios próprios, ao longo do trilho. O voo ocorreu com a presença de testemunhas, como o presidente do banco da cidade e alguns funcionários públicos, caracterizando portanto um evento com credibilidade pública.

Um aparelho voador mais pesado que o ar foi inventado pelo francês Clément Ader em 1890. No entanto, não permitia controlar a direção do voo. Era uma época em que vários inventores de diversos países estavam tentando criar a primeira aeronave mais pesada do que o ar capaz de voar com sucesso. Os Irmãos Wright não queriam derramar informações ao seu principal rival Samuel Pierpont Langley, o então secretário do Instituto Smithsonian.

O voo de Alberto Santos Dumont também está sujeito a controvérsias, havendo indicações de que o 14-bis não era totalmente controlável em estabilidade lateral, e portanto só podia voar enquanto conseguisse permanecer em linha reta. Até mesmo na categoria dos não aviões, existem alguns questionamentos quanto à primazia dos irmãos Wright.

A evolução

Entre 1905 e 1907, os irmãos Wright desenvolveram sua máquina voadora no Wright Flyer III. Apesar de não terem sido os primeiros a construir aeronaves experimentais e de usarem meios externos para colocar suas aeronaves em voo, os irmãos Wright foram os primeiros a inventar os controles que tornaram possível o voo em aeronaves de asa fixa motorizados. No início a performance desse novo modelo foi tão fraca quanto a dos dois anteriores. O seu voo inaugural ocorreu em 23 de Junho de 1905 e os primeiros voos não duravam mais que 10 segundos.

Depois que Orville sofreu uma fissura óssea numa queda potencialmente fatal em 14 de Julho, eles reconstruíram o Flyer III com o profundor frontal e o leme traseiro aumentados e posicionados mais distantes das asas. Eles também instalaram um controle independente para o leme traseiro ao invés de interligá-lo ao controle de arqueamento das asas como antes. Com isso, cada um dos três eixos de atitude tinha o seu próprio controle independente.

Veja mais:

Essas modificações aumentaram muito a estabilidade e o controle, permitindo a execução de uma série de “voos longos” variando entre 17 e 38 minutos e percorrendo entre 17,7 e 38,6 km em torno do circuito sobre Huffman Prairie entre 26 de Setembro e 5 de Outubro. Wilbur fez o último e mais longo voo de 39,4 km em 38 minutos e 3 segundos, terminando com um pouso seguro quando o combustível acabou. Esse voo foi assistido por algumas pessoas incluindo alguns amigos convidados, o pai deles Milton e fazendeiros das vizinhanças.

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Homero https://canalfezhistoria.com/homero/ https://canalfezhistoria.com/homero/#respond Tue, 11 Mar 2025 20:11:03 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5884 Homero foi um poeta épico da Grécia Antiga, ao qual tradicionalmente se atribui a autoria dos poemas épicos Ilíada e Odisseia.

Índice de Conteúdo

Os gregos antigos geralmente acreditavam que Homero era um indivíduo histórico, mas os estudiosos modernos são céticos: nenhuma informação biográfica de confiança foi transmitida a partir da antiguidade clássica, e os próprios poemas manifestamente representam o culminar de muitos séculos de história contadas oralmente e um bem desenvolvido sistema já muitas vezes usado de composição poética.

De acordo com Martin West, “Homero” não é “o nome de um poeta histórico, mas um nome fictício ou construído”. Para o historiador e filósofo Richard Tarnas, Homero – independentemente da polêmica sobre sua existência histórica – foi “uma personificação coletiva de toda a memória grega antiga”. Homero teria nascido em Esmirna, atual Turquia, ou em alguma ilha do mar Egeu e vivido no século 8 a.C. Mas a sua origem é tão controversa que oito cidades disputam a honra de terem sido a terra natal do poeta.

A data da existência de Homero foi controversa na antiguidade e não o é menos hoje. Heródoto disse que Homero viveu 400 anos antes de seu próprio tempo, o que o colocaria em torno de 850 a.C., mas outras fontes antigas deram datas muito mais próximas da suposta época da Guerra de Troia. A data da Guerra de Troia foi dada como 1194-1184 a.C. por Eratóstenes, que se esforçou para estabelecer uma cronologia científica dos eventos e esta data tem obtido apoio por causa de pesquisas arqueológicas mais recentes. 

Para a ciência moderna, “a data de Homero” refere-se à data de concepção dos poemas tanto quanto à vida de um indivíduo. O consenso dos estudiosos é que “a Ilíada e a Odisseia datam dos últimos anos do século IX a.C., ou a partir do século VIII a.C., a Ilíada sendo anterior à Odisseia, talvez por algumas décadas”, ou seja, um pouco mais cedo do que Hesíodo, e que a Ilíada é o trabalho mais antigo da literatura ocidental.

Ao longo das últimas décadas, alguns estudiosos têm defendido uma data do século VII a.C. Aqueles que acreditam que os poemas homéricos desenvolveram-se gradualmente durante um longo período de tempo, entretanto, geralmente dão uma data posterior para os poemas: de acordo com Pausânias, os textos foram compilados na época do tirano ateniense Pisístrato; de acordo com Gregory Nagy, tornaram-se textos fixos apenas no século VI a.C. 

Alfred Heubeck afirma que a influência formativa dos trabalhos de Homero modelando e influenciando todo o desenvolvimento da cultura grega foi reconhecida por muitos dos próprios gregos, que o consideravam seu instrutor. 

Além dessas duas grandes obras, mas sem respaldo histórico ou literário, são a ele atribuídas as obras Margites, poema cômico a respeito de um herói trapalhão; a Batracomiomaquia, paródia burlesca da Ilíada que relata uma guerra fantástica entre ratos e rãs, e os Hinos homéricos. 

Já antes do início do pensamento filosófico, as riquíssimas obras de Homero (Ilíada e Odisseia) tendem a aproximar os deuses dos homens, num movimento de racionalização do divino. Os deuses homéricos, que viviam no Monte Olimpo, possuíam uma série de características antropomórficas. 

Apesar de “Homero” ser um nome grego, atestado em regiões de fala eólica, nada de concreto se sabe sobre ele; entretanto, tradições surgiram pretendendo dar detalhes sobre o local de seu nascimento e seu contexto: o satírico Luciano, em sua fabulosa Verdadeira História, faz de Homero um Babilônio que assumiu o nome de Homero apenas quando tomado “refém” (homeros) pelos gregos. Quando o imperador Adriano perguntou ao oráculo de Delfos quem Homero era realmente, Pítia proclamou que ele era um ítaco, filho de Jocasta e Telêmaco, da Odisseia.

Essas histórias proliferaram e foram incorporadas a um número de Vidas de Homero compiladas a partir do período alexandrino. A versão mais comum diz que Homero nasceu na região jônia da Ásia Menor, em Esmirna, ou na ilha de Quios, morrendo em Ios, nas ilhas Cíclades. A conexão com Esmirna parece ser em alusão a uma lenda que seu nome original era “Melesigenes” (“nascido no Meles”, um rio que corria por essa cidade), e da ninfa Creteia.

Evidências contidas em seus poemas dão algum apoio a esta versão: a familiaridade com a topografia da área do litoral da Ásia Menor é vista nos nomes dos locais e nos detalhes, e comparações evocativas do cenário local: as aves dos prados, na foz do Caister (Ilíada 2.459ff.), uma tempestade no mar e abisarque Ícaro (Ilíada 2.144ff.), e conhecimento sobre os ventos (Ilíada 2.394ff : 4.422ff: 9,5), ou que as mulheres tanto da Meônia quanto da Cária tingem marfim com escarlate (Ilíada 4,142). 

Questão Homérica

A pessoa de Homero está para sempre imersa nas trevas impenetráveis da lenda. Ignoramos quando viveu; não sabemos que terra privilegiada lhe ouviu os primeiros vagidos (…) Venerandas tradições representavam-no como um velho cantor, pobre e cego que, peregrinando de terra em terra, recompensava a quem o agasalhava com a declamação de seus poemas, (Augusto Magne). 

Entre os gramáticos alexandrinos, Zenão e Helânico consideravam improvável a Ilíada e a Odisseia haverem sido compostas por um único autor, já que a Odisseia lhes parecia um ou dois séculos posterior à Ilíada. Foram então alcunhados Kho-rizontes – separatistas, por insularem a Ilíada e a Odisseia. Aristarco, contemporâneo de Zenão e Helânico, não acreditava nesta separação, mas supunha que aos poemas iniciais fora acrescido outros poemas independentes.

No caso da Ilíada estariam entre os possíveis acréscimos: o duelo entre Menelau e Páris, a gesta de Diomedes, o duelo de Heitor e Ájax, a embaixada a Aquiles, o relato da ira de Meleagro, a descrição da confecção do escudo de Aquiles etc. sendo que esses poemas autônomos teriam sido concatenados a uma Ilíada original, Proto-Ilíada, esta atribuída a Homero.

A nova teoria, dos acréscimos posteriores, teve amplo respaldo. Tinha-se basicamente três teorias: a primeira que Homero era autor dos dois poemas; a segunda que só da Ilíada; a terceira que dos dois poemas, mas em dimensões menores. Unanimidade nunca houve sobre o assunto, nem entre os alexandrinos tampouco entre aqueles que o sucederam. Com doutos estudos filológicos e não menos fábulas, sentenciaram-se veredictos pela Antiguidade. Provavelmente, na Idade Média e no Renascimento também, mas esse processo é, quase sempre, circular e infrutuoso. 

No século XVIII surgem três importantes publicações: uma de François d’Aubignac, outra de Giambattista Vico e outra de Friedrich August Wolf. Todas, aliando razões históricas, filológicas ou estéticas; idênticas ou não, trazem uma tese nova e controvertida: Homero jamais teria existido, seria seu nome somente uma alegoria. Traziam como outra hipótese, que Homero houvesse sido apenas um compilador das rapsódias tomadas aos aedos e até mesmo ao próprio povo do período heroico grego.

Estes últimos argumentos foram gratíssimos aos românticos; já que consideravam que uma verdadeira epopeia deveria emergir espontaneamente de um povo. Talvez por esse motivo obtiveram respaldo tão amplo.

Veja mais:

Durante o século XIX e primeira metade do XX, afervorou-se a discussão. Foi quando se publicaram desde compêndios a volumosas edições com teses para tratar da questão. Intelectuais digladiavam-se formando dois grupos opostos: um defendia a autoria única, outro a compilação. Recentemente tem-se arrefecido a discussão, voltando lumes apenas às questões linguísticas. Mesmo porque em antiguidade tão remota pouca certeza há, e conjecturas muitas.

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Hernan Cortês https://canalfezhistoria.com/hernan-cortes/ https://canalfezhistoria.com/hernan-cortes/#respond Tue, 11 Mar 2025 20:07:32 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5880 Hernán Cortéz de Monroy y Pizarro Altamirano, 1.° Marquês do Vale de Oaxaca (Medellín, na Estremadura, na Coroa de Castela, 1485 – Castilleja de la Cuesta, em Sevilha, Castela 2 de dezembro de 1547) foi um conquistador espanhol, conhecido por ter destruído o Império Asteca de Moctezuma II e conquistado o centro do atual território do México para a Espanha. 

Primeiros anos

Hernán Cortéz nasceu em família humilde, apesar de nobre. Aos quatorze anos, foi estudar direito e latim na Universidade de Salamanca, porém não concluiu seus estudos e, após dois anos, retornou a Medellín. Após abandonar os estudos, Hernán Cortés escolheu ingressar na armada. 

Viagem ao Novo Mundo

Aos dezenove anos, em 1504, Cortés partiu para a sua primeira viagem ao oeste, após trabalhar como escrivão da Corte em Valladolid. Sob o comando de Diego Velázquez de Cuéllar, Cortés foi bem-sucedido em sua primeira missão em busca de ouro. Como recompensa, o governador Nicolás de Ovando o contemplou com terras e indígenas para, nelas, trabalharem (repartimiento). Ali, Cortés se fixou como colono.

Cuba

Em 1511, novamente sob o comando de Diego Velázquez de Cuéllar, Hernán Cortés partiu para mais uma missão conquista, em Cuba. Ao princípio de sua permanência em Cuba, Cortés foi nomeado um dos secretários de Velásquez e pouco tempo depois, prefeito de Santiago de Baracoa. Ao término da missão, recebeu indígenas e terras e foi morar ao sul da ilha, em Santiago. Entre 1514 e 1515, Cortés se casou com Catalina Martins, nativa de Granada.

Em 1517 e 1518, partiram, de Cuba, duas expedições que confirmaram a existência de um vasto e rico país a oeste da ilha. A primeira, capitaneada por Francisco Hernández de Córdoba, explorou a península de Yucatán. No ano seguinte desta expedição, outra expedição foi organizada por Juan de Grijalva com o propósito de continuar a exploração na costa de Yucatán. A partir desta empreitada, as relações entre Cortés e Velázquez entraram em conflito. 

Conquista do México

Em 23 de outubro de 1523, Cortés foi nomeado capitão de uma nova expedição para reconhecer terras mexicanas. A expedição saiu de ilha de Cuba em 18 de fevereiro de 1519 e chegou à ilha de Cozumel – importante porto marítimo e religioso maia – em 27 de fevereiro de 1519. No local, tiveram um dos primeiros contatos com os povos indígenas, e Cortés encontrou Gerónimo de Aguilar, padre franciscano sobrevivente de um naufrágio espanhol, que se tornou intérprete maia-espanhol de Cortés.

A expedição continuou até chegar ao rio Tabasco, batizado como rio Grijalva, próximo à cidade de Potonchán. Lá, encontraram resistência indígena, a qual suscitou a Batalha de Centla. Após a batalha e a vitória dos espanhóis, as autoridades de Tabasco ofereceram presentes a Cortés como tecidos, iguarias e mulheres indígenas. Entre estas mulheres, estava La Malinche, batizada como Marina ou doña Marina, que viria a ser uma figura importante e controversa na Conquista do México pelo seu conhecimento dos costumes e riquezas do Império Asteca, da língua Maia e do Náuatle, servindo como intérprete e conselheira, além de amante de Hernán Cortés, com quem teve um filho, Martín Cortés.

Em abril de 1519, a expedição chegou a Vera Cruz, onde pouco depois Hernán Cortés fundou a Villa Rica de la Vera Cruz, em Chalchicuecan, junto ao atual porto. Em julho do mesmo ano, tomou Vera Cruz, desvinculando-se do governador de Cuba e colocando-se diretamente sob as ordens do rei Carlos V. Em Vera Cruz, Cortés começou a receber os mensageiros de Montezuma.

Logo, Cortés percebeu que o Império Asteca possuía atritos com outros povos mesoamericanos. Começou então a elaborar estratégias e fazer alianças com os povos rivais como os totonacas, povo com capital em Cempoala, cidade a qual partiram para selar a aliança militar e dar início a conquista de Tenochtitlán. Cortés também fez aliança com os indígenas da região de Tlaxcala. 

Em outubro de 1519, Cortés chegou a Cholula, a maior cidade do México Central depois de Tenotchtitlán, e aliada do Império Asteca. Segundo as crônicas de Bernal Díaz, uma anciã e alguns sacerdotes do templo de Cholula alertaram Hernán Cortés sobre uma cilada, e imediatamente ele reagiu contra os indígenas da emboscada, causando o que ficou conhecido como o massacre de Cholula. 

Em 8 de novembro de 1519, o contingente de Cortés chegou a Tenochtitlán, e logo o encontro entre Cortés e Montezuma foi realizado. Montezuma acreditava que Cortés seria o enviado de Quetzalcóatl, deus asteca que teria, finalmente, voltado para vingar-se: por isso, Montezuma tratou bem Cortés e aceitou seu domínio. Dias depois da chegada dos espanhóis, Cortés entrou de novo em ação e fez de Montezuma prisioneiro. Para isso, utilizou, como pretexto, a morte de espanhóis em Vera Cruz em uma batalha entre os mexicas dirigidos por Cuauhpopoca supostamente a mando de Montezuma. Como prisioneiro, Montezuma declarou fidelidade ao rei Carlos V. 

Em maio de 1520, Velázquez foi informado sobre as tropas de Narvaéz pelos mensageiros de Montezuma. O conquistador espanhol logo partiu com seus aliados para combater os inimigos recém-chegados. Cortés atacou o acampamento inimigo e conseguiu convencer os homens de Narvaéz a se juntarem a ele, com promessas de riquezas e cargos. Narvaéz logo voltou para Veracruz com o restante de sua tropa.

Enquanto isso, em Tenochtitlán, durante a ausência de Cortés, Pedro Alvorado comandou a massacre do templo maior como consequência de uma rebelião indígena durante a celebração da festa de tóxcatl. Cortés retornou a Tenochtitlán em 24 de junho de 1520, e convenceu Montezuma a tentar apaziguar a revolta dos indígenas. Entretanto, enquanto falava com seu povo, Montezuma foi atingido por uma pedra e, dias depois, morreu em decorrência do ferimento.

Forçados pela situação desesperadora e pelo crescente número de espanhóis mortos e feridos, Hernán Cortés decidiu deixar a cidade do México na noite de 30 de junho de 1520, que ficou conhecida como a noite triste. 

Em 8 de julho de 1520, os espanhóis finalmente chegaram a Tlaxcala para se refugiarem e se organizaram para atacar Tenochtitlán, e também onde Cortés recebeu reforços consideráveis de navios, soldados, artilharia e cavalos, para compensar as perdas ocorridas durante a noite triste. No final de maio de 1521, a cidade de Tenochtitlán foi sitiada durante 75 dias pelas tropas de Cortés. Após a captura e morte do último rei asteca, Cuauhtémoc, a conquista foi consumada. 

Cartas de la Relación

Foram cinco as cartas escritas por Cortés que chegaram ao rei Carlos V. Elas informavam e justificavam o empreendimento. Foram escritas entre 1519 e 1526 de diversas cidades da Nova Espanha, cada uma a respeito de uma etapa de seu empreendimento. Essas cartas são, hoje, importante fonte para o estudo da conquista do México e da figura controversa que é a de Hernán Cortés, visto ao mesmo tempo como herói e conquistador cruel. 

Veja mais:

Análise histórica

Particularmente, Cortés foi diferente de seus antecessores espanhóis, que não procuravam saber nada sobre os índios. Ele tinha uma percepção política e histórica de seus atos. O historiador Tzvetan Todorov atribui a Cortés a invenção de uma tática de guerra de conquista e, por outro lado, a invenção de uma política de colonização em tempos de paz.

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Henry Ford https://canalfezhistoria.com/henry-ford/ https://canalfezhistoria.com/henry-ford/#respond Tue, 11 Mar 2025 20:01:53 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5871 Henry Ford (Greenfield Township, atual Condado de Wayne, 30 de julho de 1863 — Dearborn, 7 de abril de 1947) foi um empreendedor e engenheiro mecânico estadunidense, fundador da Ford Motor Company, autor dos livros Minha filosofia de indústria e Minha vida e minha obra, e o primeiro empresário a aplicar a montagem em série de forma a produzir em massa automóveis em menos tempo e a um menor custo.

A introdução de seu modelo Ford T revolucionou os transportes e a indústria dos Estados Unidos. Ford foi um inventor prolífico e registrou 161 patentes nos Estados Unidos. Como único dono da Ford Company, ele se tornou um dos homens mais ricos e conhecidos do mundo. No dia 16 de junho de 1903, dia da fundação da Ford Motor Company, foi investido um capital de US$150 000 (em valores da época), de 12 sócios, sendo que US$28 000 foram investidos pelo próprio Ford, com então 40 anos na época. 

A ele é atribuído o “fordismo”, isto é, a produção em grande quantidade de automóveis a baixo custo por meio da utilização do artifício conhecido como “linha de montagem”, o qual tinha condições de fabricar um carro a cada 98 minutos, além dos altos salários oferecidos a seus operários — notavelmente o valor de 5 dólares por dia, adotado em 1914.

O intenso empenho de Henry Ford para baixar os custos resultou em muitas inovações técnicas e de negócios, incluindo um sistema de franquias que instalou uma concessionária em cada cidade da América do Norte, e nas maiores cidades em seis continentes. Ford deixou a maior parte de sua grande riqueza para a Fundação Ford, mas providenciou para que sua família pudesse controlar a companhia permanentemente. 

Ford ficou conhecido como um pacifista durante os primeiros anos da Primeira Guerra Mundial e na década seguinte ficou conhecido como notório antissemita, publicando uma série de quatro livros chamados O Judeu Internacional (The International Jew). 

Primeiros anos

Ford nasceu em 30 de julho de 1863, em uma fazenda próxima a um município rural a oeste de Detroit, no estado do Michigan (este espaço hoje faz parte de Dearborn). Seu pai, William Ford (1826-1905), nasceu em County Cork, Irlanda. Sua mãe, Mary Litogot Ford (1839-1876), nasceu em Michigan, e era a mais nova dos filhos de imigrantes belgas; seus pais morreram quando Mary era uma criança e ela foi adotada pelos vizinhos, os O’Herns. Os irmãos de Henry Ford são: Margaret Ford (1867-1868); Jane Ford (c 1868-1945), William Ford (1871-1917) e Robert Ford (1873-1934). 

Ford iniciou sua trajetória com motores, digamos assim, na fazenda de seu pai. Ele era responsável pelos reparos nas máquinas da fazenda, mostrava muita habilidade para inovar e sua principal intenção era observar o funcionamento mecânico das máquinas e equipamentos. A vida na fazenda era difícil, exigia serviços pesados feitos à mão. Por causa disso, desde menino Ford já demonstrava o interesse em diminuir o trabalho manual com o uso de máquinas. No ano de 1875, com doze anos, o contato com um motor a vapor o levou a estudar os carros automotores.

Sua mãe morreu em 1876. Seu pai desejava que Henry no futuro assumisse a fazenda, mas Henry não tinha gosto pelos trabalhos agrícolas. Com o falecimento de sua mãe, muito pouco permaneceu para o manter na fazenda. Mais tarde ele disse a seu pai: 

“Eu nunca tive qualquer amor especial pela fazenda — era a mãe na fazenda que eu amava.” 

Aos quinze, ele tinha a reputação de reparador de relógios, tendo desmantelado e remontado as peças de relógios de amigos e vizinhos dezenas de vezes. Em 1879, com 16 anos , ele deixou sua casa e foi para a cidade vizinha Detroit, para trabalhar como aprendiz de operador de máquinas, primeiro na empresa James F. Flower & Bros., e mais tarde na Detroit Dry Dock Co.

Em 1882 retornou a Dearborn para trabalhar na fazenda da família e se tornar experiente na operação dos motores a vapor portáteis da Westinghouse (Westinghouse Farm Engine). Aos 19, Ford entrou para a Companhia Westinghouse, no conserto e na montagem de locomoveis a vapor. Em 1885, trabalhando como mecânico das oficinas da Eagle Motor Works, em Detroit, seu interesse se concentra nos motores a explosão. Dois anos depois, Ford construiu seu primeiro motor desse tipo, movido a gasolina. 

Ford se casou com Clara Jane Bryant (1865-1950) em abril de 1888, e se sustentava com a exploração da fazenda e mantendo uma serraria. Eles tiveram um único filho, Edsel Bryant Ford (1893-1943). Por volta do ano de 1890, Ford assumiu o lugar de engenheiro maquinista na cidade de Detroit na Edison Illuminating Company. Em 1893, após sua promoção ao cargo de Engenheiro Chefe, Ford passou a ter bastante tempo e dinheiro para dedicar-se às suas experiências pessoais com motores a gasolina. Estes experimentos culminaram em 1896 com a conclusão de seu próprio veículo automotor denominado Quadriciclo, que ele dirigiu em teste em 4 de junho. Depois de vários testes, Henry Ford planejou formas de melhorar o Quadriciclo.

Sua primeira empresa foi a Detroit Automobile Company (DAC), de 1899, sob a responsabilidade de ser engenheiro-chefe, entretanto, a fábrica fechou devido à discordância com os investidores que queriam um retorno mais imediato; a fábrica produziu apenas doze veículos que eram de qualidade inferior e alto custo e faliu no começo de 1901. Dois anos mais tarde, montou outra empresa, a Henry Ford Company, de onde foi demitido por ter voltado seu interesse para carros de corrida, ao contrário de seus investidores que, para seu lugar, contrataram Henry Leland e este remodelou a fábrica que então se tornou a Cadillac Motor Company. 

Ford persistiu com a ideia dos carros esportivos e, juntamente com o projetista Childe Wills, montou o chamado carro 999, com o qual Barney Oldfield se tornou campeão, divulgando o carro em todo país. Esse passo foi importante, pois o rendimento financeiro proveniente do sucesso de seu carro deu suporte financeiro a suas ideias e assim a Ford Motor Company foi fundada. 

Ford Motor Company

Com 40 anos de idade, Ford, com outros 11 investidores e 28 000 dólares de capital, formaram a Ford Motor Company em 1903. Em um carro recém-planejado, Ford fez uma exposição sobre o gelo do Lago Saint Clair, dirigindo uma milha (1609 metros) em 39,4 segundos, estabelecendo um novo recorde de velocidade em terra em 91,3 milhas por hora (147,0 km/h). Persuadido por esse êxito, o piloto de corrida Barney Oldfield, que nomeou o novo modelo Ford de “999” em honra de uma locomotiva de corrida da época, levou o carro por todo o país, tornando a marca Ford mais conhecida pelos Estados Unidos. Ford também foi um dos primeiros patrocinadores do Indianápolis 500. 

Ford maravilhou o mundo em 1914, oferecendo o pagamento de 5,00 dólares por dia, o que mais do que duplicou o salário da maioria dos seus trabalhadores. O movimento foi extremamente rentável; no lugar da constante rotatividade de empregados, os melhores mecânicos de Detroit afluíram para a Ford, trazendo seu capital humano e sua habilidade, aumentando a produtividade e reduzindo os custos de treinamento. Ford chamou isso de “salário de motivação” (“wage motive”). O uso da integração vertical pela empresa também provou ser bem sucedido quando Ford construiu uma fábrica gigantesca, onde entravam matérias primas e de onde saiam automóveis acabados. 

Modelo T

O Ford Model T foi apresentado em 1 de outubro de 1908. Ele tinha muitas inovações importantes, como o volante no lado esquerdo, o que foi logo copiado por todas as outras companhias. O motor e o câmbio eram totalmente fechados. Os 4 cilindros eram fundidos em um bloco sólido, e a suspensão usava duas molas semi-elípticas. O carro era muito simples de se dirigir e, o mais importante, sua manutenção era barata. O veículo era tão barato em 1908, custando 825,00 dólares (o preço caía todo ano) que na década de 1920 a maioria dos motoristas norte-americanos aprenderam a dirigir o Modelo T, o que deixou boas memórias para milhões de pessoas. 

Ford criou um sólido sistema de publicidade em Detroit para garantir que cada jornal transmitisse notícias e anúncios sobre o novo produto. A rede de concessionários locais de Ford tornou o carro onipresente em praticamente todas as cidades da América do Norte. Como revendedores independentes, as franquias enriqueceram e fizeram a propaganda não apenas de Ford, mas também do próprio conceito de automobilismo; clubes locais de automóveis surgiram para ajudar novos motoristas e para explorar o campo.

Ford foi sempre ávido para vender aos fazendeiros, que viram no veículo um dispositivo comercial para ajudar em seus negócios. As vendas subiram rapidamente – vários anos tiveram 100% de lucros em relação ao ano anterior. Sempre na busca de maior eficiência e menores custos, em 1913 Ford introduziu a montagem em esteiras em movimento nas suas instalações, o que permitiu um enorme aumento da produção. As vendas ultrapassaram 250 000 unidades em 1914. Por volta de 1916, tendo o preço baixado para US$ 360,00 para os carros de passeio básicos, as vendas atingiram 472 000 unidades.

Se tivesse feito o que meus clientes pediam teria construído uma carruagem com mais cavalos ao invés do modelo T. 
—Henry Ford. 

Por volta de 1918, metade dos carros na América do Norte eram Modelos T. A alta produção conseguida por Ford tem como característica marcante a escolha de uma única cor de veículo, que era preta. Desta forma, ele conseguia montar os veículos sem ter que diferenciar o processo de pintura. Existe uma frase famosa que Ford escreveu em sua autobiografia sobre a escolha da cor do veículo: 

“O cliente pode ter o carro da cor que quiser, contanto que seja preto”.”

Antes do desenvolvimento da linha de montagem, que exigia a cor preta por sua secagem mais rápida, o Modelo T era disponível em outras cores, incluindo o vermelho. Esse esquema era veementemente defendido por Henry Ford, e a produção continuou até 1927; a produção final total foi de 15 007 034 unidades. Esse foi um recorde que permaneceu por 45 anos. 

Em 1918, o presidente Woodrow Wilson pediu pessoalmente a Ford para que se candidatasse ao Senado dos Estados Unidos, de Michigan, como um democrata. Embora a nação estivesse na guerra, Ford concorreu como um candidato pacífico e um forte apoiador da proposta Liga das Nações. Em dezembro de 1918, Henry Ford transferiu a presidência da Ford Motor Company para seu filho Edsel Ford. Henry, entretanto, retinha a autoridade de decisão final e algumas vezes revogou as decisões de seu filho. Henry e Edsel compraram todas as ações restantes de outros investidores, dando deste modo à família exclusivo domínio sobre a companhia. 

Por volta da metade da década de 1920, as vendas do Modelo T começaram a declinar devido à concorrência crescente. Outros fabricantes de automóveis ofereciam planos de pagamentos pelos quais os clientes podiam comprar seus carros, que comumente incluíam características mecânicas mais modernas e estilos não disponíveis no Modelo T. Apesar dos estímulos de Edsel, Henry recusava-se firmemente a incorporar novas características no Modelo T ou a criar um plano de crédito para os compradores. 

Modelo A e carreira posterior de Ford

Por volta de 1926, o enfraquecimento das vendas do Modelo T finalmente convenceu Henry a fazer um novo modelo de automóvel. Ele desempenhou o projeto com um grande número de técnicos especializados no projeto de motor, chassi, mecânica e outras necessidades, deixando o desenho da carroceria para seu filho. Edsel conseguiu por vezes prevalecer sobre seu pai na oposição inicial deste à inclusão de um sistema de mudança de transmissão deslizante.

O resultado foi o sucesso do Ford Model A, introduzido em dezembro de 1927 e produzido até 1931, com uma produção total de mais de quatro milhões de automóveis. Posteriormente, a empresa adotou um sistema de mudança anual de modelo, semelhante ao que é utilizado pelos fabricantes de automóveis de hoje. Não antes de 1930 Henry superou sua oposição contra companhias de financiamento. No entanto, após isso, a Universal Credit Corporation, de Ford, tornou-se a principal financiadora de veículos.

Filosofia de trabalho

Henry Ford foi um pioneiro do “capitalismo do bem-estar social” concebido para melhorar a situação dos seus trabalhadores e especialmente para reduzir a grande rotação de empregados de muitos departamentos, que contratavam 300 homens por ano para preencher 100 vagas. Eficiência significava contratar e manter os melhores trabalhadores. Em 5 de janeiro de 1914, Ford anunciou seu programa “cinco dólares por dia”. O programa revolucionário e sistemático incluía uma redução da duração do dia de trabalho de 9 para 8 horas, 5 dias de trabalho por semana, e um aumento no salário-mínimo diário de US$ 2,34 para US$ 5 para trabalhadores qualificados. Outra inovação para o período foi a repartição com seus empregados de uma parte do controle acionário. 

Pacifismo

Henry Ford foi um cristão episcopal que dizia ser contra a guerra, argumentando que ela era um desperdício de tempo. Ford tornou-se altamente crítico com aqueles que financiavam a guerra e parecia fazer tudo o que podia para detê-los. Em 1915 a pacifista Rosika Schwimmer obteve a ajuda de Henry Ford para financiar uma viagem de navio para a Europa, com o objetivo de ser uma espécie de “missão de paz”, para si e aproximadamente 170 outros proeminentes líderes pacifistas.

O pastor episcopal de Ford, Reverendo Samuel S. Masquir, acompanhou-a na viagem. Marquis também liderou o departamento de sociologia de Ford entre 1913 e 1921. Ford conversou com o presidente Wilson sobre a missão, mas não obteve qualquer apoio governamental. Seu grupo partiu rumo à neutra Suécia e à Holanda para encontrar-se com ativistas da paz naquele país. Ridicularizado, teve que deixar o navio logo que este chegou à Suécia.

Em sua vida, Ford tinha empatia com o movimento nazista e o financiava e Walt Disney apoiou ativamente o nazismo, por ser contra a dominação dos meios de comunicação do ocidente por judeus, chegando inclusive a ser condecorado por Hitler com a Ordem de Mérito da Águia Alemã em 30 de julho de 1938. O Henry Ford também ganhou dinheiro com a Segunda Guerra Mundial vendendo insumos para a indústria de guerra nazista e recebendo lucros de filiais através de países neutros. O historiador Max Wallace comenta que Ford de bom grado forneceu equipamentos militares à Alemanha nazi, mas se recusou a fabricar motores para a RAF (Força Aérea Britânica).

Companhia de Aviões Ford (Ford Airplane Company)

Henry Ford teve participações na mecanização do campo, na fabricação de motores aeronáuticos, chegando a construir um motor Liberty durante o período da primeira guerra mundial, e anos mais tarde um trimotor para aviões. 

A Ford, assim como outras empresas automotivas, entrou no negócio da aviação durante a Primeira Guerra Mundial. Após a guerra, ele retornou à indústria automobilística até 1925, quando Henry Ford adquiriu a companhia de aviação Stout Metal Airplane Company.

A mais bem sucedida aeronave de Ford foi o Ford 4AT Trimotor – chamado de “Ganso de Lata” (“Tin Goose”), em virtude da sua construção metálica ondulada. O avião utilizava uma nova liga metálica chamada Alclad, que combinava resistência à corrosão do alumínio com a força do duralumínio. O avião era semelhante ao F.VII-3m da Fokker, e alguns dizem que os engenheiros da Ford secretamente mediram o avião Fokker e, em seguida, o copiaram.

O Trimotor voou pela primeira vez em 11 de junho de 1926, e foi o primeiro bem sucedido avião de passageiros dos Estados Unidos, acomodando cerca de 12 passageiros de modo um tanto desconfortável. Diversas variantes foram também usadas pelo Exército dos Estados Unidos. Aproximadamente 200 Trimotores foram construídos antes de ter sido interrompido sua produção em 1933, quando a Ford Airplane Division encerrou suas atividades devido às poucas vendas durante a Grande Depressão. 

Corrida

Ford iniciou sua carreira como um piloto de carros de corrida e manteve seu interesse por este esporte durante o período de 1901 até 1913. Henry colocou o desprovido Modelo Ts em corridas, terminando em primeiro lugar (embora posteriormente desqualificado), em uma corrida “mar-a-mar” (atravessando os Estados Unidos) ocorrida em 1909, e estabelecendo o recorde de velocidade em circuito oval de uma milha (1,6 km) em Detroit Fairgrounds em 1911 com o motorista Frank Kulick.

Em 1913, Ford tentou colocar um Modelo T reformulado no Indianapolis 500, mas foi informado que as regras exigiam a adição de mais 1.000 libras (450 kg) no carro antes que ele pudesse ser aprovado. Ford saiu da corrida e logo depois deixou o automobilismo permanentemente, usando como argumento a insatisfação com as regras do esporte e as exigências de seu tempo pelo grande aumento na produção do Modelo T. 

Negócios internacionais

A filosofia de Ford defendia a independência econômica para os Estados Unidos. Sua fábrica em River Rouge tornou-se o maior complexo industrial do mundo, sendo até mesmo capaz de produzir o seu próprio aço. Ford tinha por objetivo produzir um veículo a partir do zero, sem dependência de comércio externo. Ele acreditava na expansão global de sua companhia. Acreditava que o comércio internacional e a cooperação internacional levariam à paz, e usou o processo de linha de montagem e produção do Modelo T para demonstrar isso.

Ele abriu as fábricas de montagem Ford no Reino Unido e no Canadá em 1911, e logo se tornou o maior produtor de automóveis nesses países. Em 1912, Ford cooperou com Agnelli da Fiat para lançar as primeiras montadoras de automóveis italianas. As primeiras instalações na Alemanha foram construídas na década de 1920, com o encorajamento de Herbert Hoover e do Departamento de Comércio, que concordava com a teoria de Ford, que afirmava que o comércio era essencial para a paz mundial. 

Na década de 1920 Ford também construiu instalações na Austrália, na Índia e na França, e, por volta de 1929, ele teve concessionários de sucesso em seis continentes.

Ford tentou uma plantação comercial de seringueiras para a produção de borracha na Amazônia brasileira chamada de Fordlândia; este foi uma de seus muito fracassos pois se Ford era genial e intuitivo, também era um administrador ruim. Em 1929, Ford aceitou o convite de Stalin para construir um modelo de fábrica (NNAZ, hoje GAZ), em Gorky, uma cidade mais tarde renomeada para Nizhny Novgorod, e enviou engenheiros americanos e técnicos para ajudar a instalá-la, incluindo Victor Herman (posteriormente aprisionado no Gulag durante o Grande Expurgo stalinista) e, o futuro dirigente de sindicato Walter Reuther. 

O acordo de transferência de tecnologia entre a Ford Motor Company, a VSNH (conselho nacional de economia) e a Amtorg Trading Corporation, controlada pelos soviéticos (como agente de compra) foi firmado por nove anos e assinado em 31 de maio de 1929 por Ford, pelo vice-presidente da FMC Peter E. Martin, por Valery Mezhlauk, e pelo presidente da Amtorg, Saul Bron. A Ford Motor Company trabalhou para conduzir os negócios em todas as nações com as quais os Estados Unidos mantinham relações diplomáticas pacíficas.

Por volta de 1932, a Ford fabricava um terço de todos os automóveis do mundo. A imagem da Ford pasmou os europeus, em especial os alemães, despertando o “medo de alguns, a obsessão de outros, e o fascínio entre todos”. Os alemães que discutiam o “Fordismo” frequentemente acreditavam que ele representava algo fundamentalmente norte americano. Eles viram o tamanho, o ritmo, a padronização, e a filosofia da produção demonstrada nos trabalhos de Ford como um serviço nacional — uma “coisa americana” que representava a cultura dos Estados Unidos.

Tanto os apoiadores quanto os críticos insistiam que o Fordismo compendiava o desenvolvimento capitalista norte americano, e que a indústria automobilística era a chave para a compreensão das relações econômicas e sociais nos Estados Unidos. Como explicou um alemão, “os automóveis alteraram tão profundamente o modo de vida americano, que hoje dificilmente se pode imaginar alguém sem um carro. É difícil lembrar como era a vida antes de o sr. Ford começar a pregar sua doutrina da salvação”. Para muitos alemães, Henry Ford encarnava a essência do americanismo de sucesso. 

O legado de Ford

As ideias de Henry Ford modificaram todo o pensamento da época, foi através delas que se desenvolveu a mecanização do trabalho, produção em massa, padronização do maquinário e do equipamento, e por consequência dos produtos, forte segregação do trabalho manual em relação ao trabalho braçal – o operário não precisava pensar apenas como fazer seu trabalho, mas efetuá-lo com o mínimo de movimentação possível. Ele também implementou a política de metas, mesmo não possuindo esse nome, afirmando que X carros deveriam ser produzidos em Y dias.

Além disso, ele revolucionou o tratamento dispensando aos trabalhadores, pois melhorou o salário deles; segundo Ford, ao mesmo tempo em que, pelo pagamento de um salário substancial para aqueles que trabalhavam com a produção e a distribuição, ocorria o aumento de poder de compra proporcionalmente, criando um movimento econômico cíclico. Por esses motivos pode-se dizer que Henry Ford tornou-se um grande marco, sendo hoje muito estudado nas áreas de administração. 

Veja mais:

Falecimento

Henry Ford faleceu em Dearborn em 7 de abril de 1947. Encontra-se sepultado no Ford Cemetery (Saint Marthas Episcopal Church Cemetery) Detroit, Condado de Wayne, Michigan nos Estados Unidos. 

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Guilherme I da Inglaterra https://canalfezhistoria.com/guilherme-i-da-inglaterra/ https://canalfezhistoria.com/guilherme-i-da-inglaterra/#respond Tue, 11 Mar 2025 19:51:21 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5856 Guilherme I, geralmente chamado de Guilherme, o Conquistador e algumas vezes de Guilherme, o Bastardo, foi o primeiro rei normando da Inglaterra, que governou de 1066 até sua morte em 1087. Descendente de invasores vikings, ele era duque da Normandia desde 1035. Depois de uma longa luta para estabelecer seu poder em 1060, seu domínio sobre a região francesa tornou-se seguro, e deu início à conquista normanda da Inglaterra em 1066. O resto de sua vida foi marcado por lutas para consolidar seu domínio sobre a Inglaterra e suas terras continentais, e por dificuldades com seu filho mais velho. 

Era filho do solteiro Roberto I, duque da Normandia, com sua amante Arlete. Sua posição como filho ilegítimo e sua juventude causaram-lhe algumas dificuldades depois que sucedeu a seu pai, assim como a anarquia que assolou os primeiros anos de seu governo. Durante sua infância e adolescência, membros da aristocracia normanda lutaram entre si, tanto para ter o controle do jovem duque quanto para seus próprios fins.

Em 1047, Guilherme foi capaz de esmagar uma rebelião e começar a estabelecer sua autoridade sobre o ducado, um processo que não ficou completo até cerca de 1060. Seu casamento no início da década de 1050 com Matilde de Flandres forneceu-lhe um poderoso aliado no condado vizinho de Flandres. Na época de seu casamento, foi capaz de providenciar as nomeações de seus partidários como bispos e abades na igreja normanda. Sua consolidação no poder permitiu-lhe expandir seus horizontes, e em 1062 foi capaz de garantir o controle do condado vizinho do Maine.

No final da década de 1050 e início da década de 1060, o duque se tornou um candidato ao trono da Inglaterra, então mantido por Eduardo, o Confessor, seu primo em primeiro grau e que não tinha descendentes. Havia outros potenciais pretendentes, incluindo o poderoso conde inglês Haroldo Godwinson, que foi nomeado o próximo rei por Eduardo em seu leito de morte em janeiro de 1066.

Guilherme argumentou que o falecido rei tinha prometido anteriormente o trono a ele, e que Haroldo tinha jurado apoiar sua reivindicação. Construiu uma grande frota e invadiu a Inglaterra em setembro de 1066, decisivamente derrotando e matando Haroldo na Batalha de Hastings em 14 de outubro. Depois de mais alguns esforços militares, o duque normando foi coroado rei no Natal de 1066, em Londres. Fez arranjos para o seu governo na Inglaterra no início de 1067, antes de voltar à Normandia. Diversas rebeliões sem sucesso se seguiram, mas em 1075 seu domínio na Inglaterra estava praticamente consolidado, permitindo-lhe passar a maior parte do resto de seu reinado no continente. 

Os anos finais de Guilherme foram marcados por dificuldades em seus domínios continentais, problemas com seu primogênito, e ameaças de invasões da Inglaterra pelos danos. Em 1086 ordenou a compilação do Domesday Book, uma pesquisa que lista todos os proprietários de terras na Inglaterra, juntamente com suas herdades. Guilherme morreu em setembro de 1087 enquanto liderava uma campanha no norte da França, e foi sepultado em Caen.

Seu reinado na Inglaterra foi marcado pela construção de castelos, o estabelecimento de uma nova nobreza normanda sobre as terras, e a mudança na composição do clero inglês. Ele não tentou integrar seus vários domínios em um império coeso, mas em vez disso continuou a administrar cada parte separadamente. As terras de Guilherme foram divididas após a sua morte: a Normandia foi para o seu filho mais velho, Roberto, e seu segundo filho sobrevivente, Guilherme, o Ruivo, recebeu a Inglaterra. 

Antecedentes

Os nórdicos inicialmente começaram a invadir o que se tornaria a Normandia no final do século VIII. Colônias escandinavas permanentes foram criadas antes de 911, quando Rolão (r. 911–927), um dos líderes vikings, e o rei Carlos, o Simples (r. 893–922) da França chegaram a um acordo no qual o último entregou o Condado de Ruão ao líder viking. As terras ao redor de Ruão tornaram-se posteriormente o núcleo do Ducado da Normandia.

A região pode ter sido usada como uma base quando os ataques escandinavos na Inglaterra foram renovados no final do século X, o que teria piorado as relações entre a Inglaterra e a Normandia. Em um esforço para melhorar a situação, o rei inglês Etelredo, o Despreparado tomou Ema da Normandia, irmã do duque Ricardo II, como sua segunda esposa em 1002. 

Ataques dinamarqueses à Inglaterra continuaram, e Etelredo procurou a ajuda de Ricardo. Precisou refugiar-se na Normandia em 1013, quando o rei Sueno Barba Bifurcada expulsou-o junto de sua família da Inglaterra. O rei dos ingleses regressou quando Sueno morreu em 1014, mas seu filho, Canuto, o Grande (r. 1018–1035), contestou seu retorno. Etelredo morreu inesperadamente em 1016, e Canuto tornou-se o governante da Inglaterra. Os dois filhos de Etelredo e Ema, Eduardo (r. 1042–1066) e Alfredo Atelingo, foram para o exílio na Normandia, enquanto sua mãe tornar-se-ia a segunda mulher do rei dinamarquês. 

Após a morte de Canuto em 1035 o trono inglês voltou para Haroldo Pé de Lebre, seu filho com sua primeira esposa, enquanto Hardacanuto (r. 1035–1042), seu filho com Ema, tornar-se-ia rei da Dinamarca. A Inglaterra permaneceu instável. Alfredo voltou para o país em 1036 para visitar sua mãe e talvez desafiar Haroldo como rei. Uma história implica o conde Goduíno de Wessex na posterior morte de Alfredo, mas outros culparam Haroldo. Ema foi para o exílio no Flandres até Hardacanuto se tornar rei após a morte de Haroldo em 1040, e seu meio-irmão Eduardo seguiu Hardacanuto à Inglaterra; Eduardo foi proclamado rei após a morte de seu meio-irmão em junho de 1042. 

Início de vida

Guilherme nasceu em 1027 ou 1028 em Falaise, Normandia, mais provavelmente no final de 1028. Era o único filho de Roberto I, o Magnífico, filho de Ricardo II da Normandia. Sua mãe, Arlete (ou Herleva), era filha de Fulberto de Falaise; ele pode ter sido um curtidor ou embalsamador. Possivelmente ela era um membro da família ducal, mas não se casou com Roberto. Em vez disso, se casou com Herluino de Conteville, com quem teve dois filhos – Odo de Bayeux e Roberto, Conde de Mortain – e uma filha cujo nome é desconhecido. Um dos irmãos de Arlete, Gualtério, tornou-se um defensor e protetor de Guilherme durante sua infância. Roberto também teve uma filha, Adelaide da Normandia, com outra amante. 

Roberto tornou-se duque da Normandia em 6 de agosto de 1027, sucedendo seu irmão mais velho, Ricardo III, que só tinha conseguido o título no ano anterior. Roberto e seu irmão estavam em desacordo sobre a sucessão, e a morte de Ricardo foi repentina. O novo governante foi acusado por alguns escritores de matar seu irmão, o que era plausível, mas hoje considerado improvável.

As condições na Normandia eram incertas, pois famílias nobres despojaram a Igreja e Alano III da Bretanha travou uma guerra contra o ducado, possivelmente em uma tentativa de controlá-lo. Em 1031, Roberto havia reunido considerável apoio de nobres, muitos dos quais se tornariam proeminentes durante a vida de Guilherme. Eles incluíam o tio de Roberto, o arcebispo Roberto de Ruão, que originalmente se opunha ao duque, Osberno, sobrinho de Gunora de Crépon, esposa do duque Ricardo I, o Destemido, e o conde Gilberto de Brionne, um neto de Ricardo I. Após a sua adesão, Roberto continuou o apoio normando aos príncipes ingleses Eduardo e Alfredo, que ainda estavam exilados no norte da França. 

Há indícios de que Roberto pode ter sido brevemente prometido em casamento à filha do rei Canuto, mas nenhum casamento ocorreu. Não está claro se Guilherme seria substituído na sucessão ducal se o seu pai tivesse um filho legítimo. Duques anteriores eram ilegítimos, e sua associação com seu pai nas cartas ducais parece indicar que foi considerado o mais provável herdeiro normando.

Em 1034, o duque Roberto decidiu ir em peregrinação a Jerusalém. Embora alguns de seus partidários tentassem dissuadi-lo de empreender a viagem, Roberto convocou um conselho em janeiro de 1035 e teve os magnatas normandos reunidos jurando fidelidade ao seu filho ilegítimo como seu herdeiro antes de partir a Jerusalém. Ele morreu no início de julho em Niceia, em seu caminho de volta à Normandia. 

Duque da Normandia – Guilherme I

Desafios

Guilherme enfrentou vários desafios para se tornar duque, incluindo seu nascimento ilegítimo e sua juventude: as evidências indicam que ele tinha sete ou oito anos de idade na época. Ele contou com o apoio de seu tio-avô, o arcebispo Roberto, assim como o rei da França, Henrique I, habilitando-o para suceder ao ducado de seu pai. O apoio dado aos príncipes ingleses exilados em sua tentativa de voltar à Inglaterra em 1036 mostra que os guardiões do novo duque estavam tentando dar continuidade às políticas de seu pai, mas a morte do arcebispo de Ruão em março de 1037 removeu um dos principais partidários de Guilherme, e as condições na Normandia rapidamente caíram em caos. 

A anarquia no ducado durou até 1047, e o controle do jovem governante era uma das prioridades das pessoas que disputavam o poder. No início, Alano da Bretanha tinha a custódia do duque, mas quando ele morreu no final de 1039 ou outubro de 1040, Gilberto de Brionne se encarregou de Guilherme. Gilberto foi morto após alguns meses, e outro guardião, Turchetil, também foi morto na mesma época. Mais um guardião, Osberno, foi morto no início do ano de 1040 no quarto de Guilherme, enquanto o duque dormia.

Dizia-se que Gualtério, seu tio materno, foi ocasionalmente forçado a esconder o jovem nas casas dos camponeses, embora esta história possa ser um embelezamento de Orderico Vital. A historiadora Eleanor Searle especula que Guilherme teria sido criado com os três primos que mais tarde se tornaram importantes em sua carreira – Guilherme FitzOsbern, Rogério de Beaumont, e Rogério de Montgomery. Embora muitos dos nobres normandos se envolvessem em suas próprias guerras e feudos durante a menoridade de Guilherme, os viscondes ainda reconheciam o governo ducal, e a hierarquia eclesiástica apoiava Guilherme. 

O rei Henrique continuou a apoiá-lo, mas no final de 1046 opositores de Guilherme se uniram em uma rebelião centrada na Baixa Normandia, liderada por Guido de Borgonha com o apoio de Nigel, Visconde do Cotentin, e Ranulfo, Visconde de Bessin. De acordo com as histórias que podem ter elementos lendários, foi feita uma tentativa de apreender Guilherme em Valognes, mas ele escapou protegido pela escuridão, buscando refúgio com o rei francês.

No início de 1047, Henrique e Guilherme voltaram à Normandia e foram vitoriosos na Batalha de Val-ès-Dunes perto de Caen, embora poucos detalhes da luta real sejam registrados. Guilherme de Poitiers alegou que a batalha foi ganha, principalmente, por meio dos esforços do jovem duque, mas relatos anteriores afirmam que homens e a liderança do rei Henrique também desempenharam um papel importante.

Guilherme assumiu o poder na Normandia, e logo após a batalha promulgou a Trégua de Deus em todo seu ducado, em um esforço para limitar a guerra e a violência, restringindo os dias do ano em que a luta era autorizada. Embora a Batalha de Val-ès-Dunes tenha marcado um ponto de virada em seu controle do ducado, não foi o fim de sua luta para ganhar vantagem sobre a nobreza. O período de 1047 e 1054 viu guerra quase contínua, com crises menores continuando até 1060. 

Consolidação do poder

Os esforços seguintes de Guilherme foram contra Guido de Borgonha, que havia se retirado para seu castelo em Brionne, o qual foi sitiado pelo duque normando. Depois de um longo esforço, ele conseguiu exilar Guido em 1050. Aliou-se ao rei Henrique para enfrentar o crescente poder do conde de Anjou, Godofredo Martel, a última cooperação conhecida entre os dois. Eles conseguiram capturar uma fortaleza angevina, mas conseguiram pouca coisa.

Godofredo tentou expandir sua autoridade para o Condado do Maine, especialmente após a morte do conde Hugo IV em 1051. O centro para o controle da região eram as participações da família de Bellême, que controlava a cidade homônima na fronteira do condado com a Normandia, assim como as fortalezas em Alençon e Domfort. O soberano de Bellême era o rei da França, mas Domfort estava sob a soberania de Godofredo Martel e o duque Guilherme era soberano de Alençon. A família Bellême, cujas terras estavam estrategicamente colocadas entre os três diferentes soberanos, foi capaz de jogar uns contra os outros e garantir a independência virtual para si mesma. 

Com a morte de Hugo do Maine, Godofredo Martel ocupou o condado em um movimento contestado por Guilherme e pelo rei Henrique; posteriormente, eles conseguiram retirar Godofredo do condado, e, no processo, Guilherme conseguiu garantir as fortalezas da família Bellême em Alençon e Domfort para si. Portanto, ele era capaz de afirmar a sua soberania sobre a família e obrigá-la a agir de forma coerente com os interesses normandos.

Mas em 1052 o rei e Godofredo Martel fizeram causa comum contra Guilherme, ao mesmo tempo que alguns nobres normandos começaram a contestar o poder crescente do duque. A reviravolta de Henrique provavelmente foi motivada por um desejo de manter o domínio sobre a Normandia, que agora estava ameaçado pelo crescente domínio do ducado de Guilherme.

O duque normando estava envolvido em ações militares contra os seus próprios nobres durante todo ano de 1053, assim como com o novo arcebispo de Ruão, Maugério. Em fevereiro de 1054 o rei e os rebeldes normandos lançaram uma invasão dupla contra o ducado. Henrique liderou as principais linhas através do Condado de Évreux, enquanto a outra ala, sob o irmão do rei francês, Odão, invadiu o leste da Normandia.

Guilherme encontrou a invasão dividindo suas forças em dois grupos. O primeiro, que ele liderou, enfrentou Henrique. O segundo, que incluía alguns que se tornaram firmes partidários, como Roberto, Conde d’Eu, Gualtério Gifardo, Rogério de Mortemer, e Guilherme de Warenne, enfrentou a outra força invasora. Esta segunda força derrotou os invasores na Batalha de Mortemer. Além de acabar com ambas as invasões, a batalha permitiu aos partidários eclesiásticos do duque depor Maugério do arcebispado de Ruão.

Mortemer, assim, marcou mais um ponto de virada no controle crescente de Guilherme na região, apesar de seu conflito com o rei francês e o conde de Anjou continuar até 1060. Henrique e Godofredo lideraram outra invasão da Normandia em 1057, mas foram derrotados pelo normando na Batalha de Varaville. Esta foi a última invasão da Normandia durante a vida de Guilherme, e as mortes do conde e do rei, em 1060, cimentaram a mudança no equilíbrio de poder para Guilherme. 

Um fator a favor de Guilherme era seu casamento com Matilde de Flandres, a filha do conde Balduíno V, o Piedoso. A união foi organizada em 1049, mas o papa Leão IX (r. 1049–1054) proibiu o casamento no Concílio de Reims, em outubro de 1049. O casamento, no entanto, foi adiante em algum momento no início do ano de 1050, possivelmente não sancionado pelo papa.

De acordo com uma fonte tardia comumente não considerada confiável, a sanção papal não foi assegurada até 1059, mas como as relações papal-normandas na década de 1050 eram geralmente boas, e o clero normando foi capaz de visitar Roma em 1050 sem nenhum incidente, provavelmente foi assegurado anteriormente. A sanção papal do casamento parece ter exigido a fundação de dois mosteiros em Caen – um por Guilherme e o outro por Matilde. A união foi importante para sustentar a condição do duque, já que Flandres era um dos territórios franceses mais poderosos, com laços com a casa real francesa e os imperadores romano-germânicos. Escritores contemporâneos consideraram a união, que gerou quatro filhos e cinco ou seis filhas, como um sucesso. 

Aparência e características

Nenhum retrato autêntico de Guilherme foi encontrado; as representações contemporâneas dele na tapeçaria de Bayeux e em seus selos e moedas são apenas representações convencionais destinadas a afirmar sua autoridade. As descrições existentes relatam uma aparência forte e robusta, com uma voz gutural. Possuía excelente saúde até uma idade avançada, embora tenha se tornado obeso na velhice. Era forte o suficiente para atirar com arcos que os outros eram incapazes de puxar e tinha uma grande resistência. Godofredo Martel o descreveu como um lutador e cavaleiro sem igual. O exame de seu fêmur, o único osso a sobreviver quando o resto de seus restos foi destruído, mostrou que tinha aproximadamente 1,78 metros de altura, muito alto para a época. 

Há registros de dois tutores do jovem duque durante o final dos anos de 1030 e início da década de 1040, mas a extensão de sua educação literária não é esclarecida. Ele não era conhecido como um patrocinador de autores, e há pouca evidência de que tenha feito mecenato do conhecimento ou outras atividades intelectuais.

Orderico Vital registra que Guilherme tentou aprender a ler inglês antigo no final da vida, mas não foi capaz de dedicar tempo suficiente para o esforço e rapidamente desistiu. Parece que seu passatempo principal era a caça. Seu casamento com Matilde parece ter sido muito carinhoso, e não há sinais de que ele era infiel a ela – algo incomum para um monarca medieval. Escritores medievais criticaram Guilherme pela sua ganância e crueldade, mas sua piedade pessoal foi universalmente elogiada por contemporâneos. 

Administração normanda

O governo normando sob Guilherme foi semelhante ao governo que existia liderado por duques anteriores. Era um sistema administrativo bastante simples, construído em torno da casa ducal, que consistia de um grupo de oficiais, incluindo administradores, mordomos e marechais. O duque viajava constantemente ao redor de suas terras, confirmando cartas e cobranças de receitas. A maior parte da renda vinha das terras ducais, assim como de taxas e alguns impostos. Este rendimento era recolhido pela câmara, um dos departamentos domésticos. 

Guilherme cultivava relações estreitas com a igreja em seu ducado. Participou de conselhos e fez várias nomeações para o episcopado normando, incluindo a nomeação de Maurílio como arcebispo de Ruão. Outro compromisso importante foi o de seu meio-irmão Odo como Bispo de Bayeux por volta de 1049 ou 1050.

Também contou com o clero para o conselho, incluindo Lanfranco, um não-normando, que passou a se tornar um dos proeminentes conselheiros eclesiásticos de Guilherme no final dos anos de 1040 e permaneceu assim durante toda década de 1050 e 1060. O duque fazia doações generosas à igreja; entre 1035 e 1066, a aristocracia normanda fundou pelo menos 20 novas casas monásticas, incluindo dois mosteiros de Guilherme em Caen, uma expansão notável da vida religiosa no ducado. 

Preocupação inglesa e continental

Em 1051 o rei sem filhos Eduardo da Inglaterra parece ter escolhido Guilherme como seu sucessor ao trono inglês. O duque era neto do tio materno do rei, Ricardo II, o Bom. A Crônica Anglo-Saxônica, na versão “D”, afirma que o governante normando visitou a Inglaterra no final de 1051, talvez para garantir a confirmação da sucessão, ou talvez Guilherme estava tentando conseguir ajuda para seus problemas na Normandia. A viagem é improvável dada a sua absorção na guerra com Anjou no momento.

Quaisquer que fossem os desejos de Eduardo, era provável que qualquer reclamação de Guilherme seria contestada por Goduíno, o Conde de Wessex, um membro da família mais poderosa na Inglaterra. Eduardo havia se casado com Edite, filha de Goduíno, em 1043, e o conde de Wessex parece que foi um dos principais partidários da reivindicação do Confessor ao trono. Foi durante este exílio que Eduardo ofereceu o trono a Guilherme.

Goduíno retornou do exílio em 1052 com as forças armadas, e um acordo foi alcançado entre o rei e o conde, restaurando-o junto com sua família às suas terras e substituindo Roberto de Jumièges, um normando a quem Eduardo tinha nomeado arcebispo da Cantuária, por Estigando, o bispo de Winchester. Nenhuma fonte inglesa menciona uma suposta embaixada do arcebispo Roberto ao duque da Normandia transmitindo a promessa de sucessão, e as duas fontes normandas que o mencionam, Guilherme de Jumièges e Guilherme de Poitiers, não são precisas em suas cronologias de quando essa visita ocorreu. 

O conde Herberto II do Maine morreu em 1062, e Guilherme, que havia prometido seu filho mais velho Roberto Curthose à sua irmã Margarida, reivindicou o condado através de seu filho. Nobres locais resistiram a reivindicação, mas o duque invadiu e em 1064 tinha o controle seguro da região. Guilherme nomeou um normando para o bispado de Le Mans em 1065. Também permitiu que seu filho Roberto Curthose fizesse homenagem ao novo conde de Anjou, Godofredo, o Barbudo.

Sua fronteira ocidental foi, assim, garantida, mas sua divisa com a Bretanha manteve-se insegura. Em 1064 invadiu a Bretanha, em uma campanha que permanece obscura em seus detalhes. Seu efeito, porém, era desestabilizar a região, forçando o seu duque, Conan II, a se concentrar em problemas internos ao invés de expansão. A morte do duque em 1066 garantiu ainda mais as fronteiras de Guilherme na Normandia. Também se beneficiou de sua campanha na Bretanha, assegurando o apoio de alguns nobres bretões, que passaram a apoiar a invasão da Inglaterra em 1066. 

Na Inglaterra, o conde Goduíno morreu em 1053 e seus filhos estavam crescendo em poder: Haroldo sucedeu o condado de seu pai, e outro filho, Tostigo, tornou-se Conde de Nortúmbria. Posteriormente outros filhos também receberam condados: Girto como Conde da Ânglia Oriental em 1057 e Leofivino como Conde de Kent em algum momento entre 1055 e 1057. Algumas fontes afirmam que Haroldo tomou parte na campanha bretã de Guilherme em 1064 e que jurou defender a afirmação do duque ao trono inglês no final da campanha, mas não há relatórios de origem inglesa desta viagem, e não está claro se isso realmente ocorreu.

Pode ter sido propaganda normanda concebida para desacreditar Haroldo, que tinha emergido como o principal candidato a suceder o rei Eduardo. Enquanto isso, outro concorrente ao trono tinha emergido – Eduardo, o Exilado, filho de Edmundo, Braço de Ferro e um neto de Etelredo II, voltou à Inglaterra em 1057 e, embora morreu pouco depois de seu retorno, trouxe consigo sua família, que incluía duas filhas, Margarida e Cristina, e um filho, Edgar, o Atelingo. 

Em 1065 a Nortúmbria se revoltou contra Tostigo, e os rebeldes escolheram Morcar, o irmão mais novo de Eduíno, Conde de Mércia, como conde em seu lugar. Haroldo, talvez para assegurar o apoio de Eduíno e Morcar em sua busca pelo trono, apoiou os rebeldes e convenceu o rei Eduardo a substituir Tostigo por Morcar. O conde nortúmbrio foi para o exílio em Flandres, juntamente com sua esposa Judite, que era filha do conde Balduíno IV, o Barbudo. Eduardo estava doente, e morreu em 5 de janeiro de 1066.

Não está claro o que exatamente aconteceu no leito de morte do rei inglês. Uma história, decorrente da Vida do Rei Eduardo, uma biografia de sua vida, afirma que o Confessor contou com a presença de sua esposa Edite, Haroldo, o arcebispo Estigando, e Roberto FitzWimarc, e que o rei nomeou Haroldo como seu sucessor. As fontes normandas não contestam o fato de que Haroldo foi nomeado como o rei seguinte, mas declaram que o seu juramento e a promessa anterior de Eduardo do trono não poderia ser alterada no leito de morte do rei. Mais tarde, fontes inglesas afirmaram que Haroldo foi eleito rei pelo clero e magnatas da Inglaterra. 

Invasão da Inglaterra

Preparações de Haroldo

Haroldo foi coroado em 6 de janeiro de 1066 na nova abadia em estilo normando de Westminster, reformada por Eduardo, embora existe certa controvérsia envolvendo quem realizou a cerimônia. Fontes inglesas alegam que Aldredo, Arcebispo de Iorque, realizou a coroação, enquanto fontes normandas afirmam que ela foi realizada por Estigando, que era considerado um arcebispo não-canônico pelo papado.

A reivindicação de Haroldo ao trono não era inteiramente segura, no entanto, não havia outros pretendentes, talvez incluindo seu irmão exilado Tostigo. O rei Haroldo Hardrada da Noruega também tinha uma reivindicação ao trono como o tio e herdeiro do rei Magno I, que havia feito um pacto com Hardacanuto por volta de 1040 que se um dos dois morresse sem herdeiros, o outro o sucederia. O último requerente era Guilherme da Normandia, cuja invasão antecipou o rei Haroldo Godwinson a fazer a maior parte de seus preparativos. 

Seu irmão, Tostigo, fez ataques de sondagem ao longo da costa sul da Inglaterra em maio de 1066, desembarcando na Ilha de Wight usando uma frota fornecida por Balduíno de Flandres. Tostigo parece ter recebido pouco apoio local, e novas incursões em Lincolnshire e perto do Humber não tiveram o mesmo sucesso, então ele se retirou para a Escócia, onde permaneceu por um tempo.

De acordo com o escritor normando Guilherme de Jumièges, Guilherme por sua vez tinha enviado uma embaixada ao rei Haroldo Godwinson para lembrá-lo de seu juramento em apoiar sua reivindicação, embora se esta embaixada realmente ocorreu não está claro. Haroldo montou um exército e uma frota para repelir com vigor uma invasão antecipada do governante normando, implantando tropas e navios ao longo do Canal Inglês pela maior parte do verão. 

Preparações de Guilherme

Guilherme de Poitiers descreveu um conselho convocado pelo duque Guilherme, no qual o escritor relata um grande debate que aconteceu entre os nobres e partidários do governante normando sobre a possibilidade de arriscar uma invasão da Inglaterra. Embora algum tipo de reunião formal provavelmente tenha sido realizada, é improvável que qualquer debate tenha ocorrido, já que até então o duque havia conseguido estabelecer o controle sobre seus nobres, e a maioria dos que estavam reunidos estavam ansiosos para garantir a sua parte das recompensas da conquista da Inglaterra.

Guilherme de Poitiers também relata que o duque obteve o consentimento do papa Alexandre II para a invasão, juntamente com uma bandeira papal. O cronista alega ainda que o duque garantiu o apoio do imperador romano-germânico Henrique IV (r. 1084–1105) e do rei Sueno II da Dinamarca (r. 1047–1074). No entanto, Henrique ainda era menor de idade e o rei da Dinamarca era mais propenso a apoiar Haroldo, que poderia, então, ajudá-lo contra o rei norueguês, de modo que essas alegações devem ser tratadas com cautela.

Embora Alexandre tenha dado aprovação papal posterior à conquista, nenhuma outra fonte afirma o apoio pontifício antes da invasão. Os eventos após a incursão, que incluem a penitência realizada por Guilherme e as declarações dos papas posteriores, prestam apoio circunstancial ao pedido de aprovação papal. Para lidar com assuntos normandos, Guilherme colocou o governo da Normandia nas mãos de sua esposa durante o período da invasão. 

Durante todo o verão, Guilherme reuniu um exército e uma frota de invasão na Normandia. Embora a alegação de Guilherme de Jumièges que a frota ducal contava com 3 000 navios seja claramente um exagero, era provavelmente grande e quase toda montada a partir do zero. Embora Guilherme de Poitiers e Guilherme de Jumièges discordam sobre onde a frota foi montada – Poitiers afirma que foi construída na foz do rio Dives, enquanto Jumièges afirma que foi montada em Saint-Valery-sur-Somme – ambos concordam que, posteriormente, partiram de Valery-sur-Somme.

A frota transportou uma força de invasão, que incluía, além de tropas dos territórios de Guilherme na Normandia e Maine, um grande número de mercenários, aliados e voluntários da Bretanha, nordeste da França, e em Flandres, juntamente com números menores de outras partes da Europa. Embora o exército e a frota estivessem prontos já no início de agosto, os ventos adversos mantiveram os navios na Normandia parados até o final de setembro.

Havia provavelmente outras razões para a demora de Guilherme, incluindo relatórios de inteligência da Inglaterra, revelando que as forças de Haroldo estavam implantadas ao longo da costa. Ele teria preferido adiar a invasão até que ele pudesse fazer um pouso sem oposição. Haroldo manteve suas forças em alerta durante todo o verão, mas com a chegada da temporada de colheita, dissolveu o exército no dia 8 de setembro. 

Invasão de Tostigo e Hardrada

O irmão de Haroldo, Tostigo, e Haroldo Hardrada invadiram a Nortúmbria em setembro de 1066 e derrotaram as forças locais sob Morcar e Eduíno na Batalha de Fulford, perto de Iorque. O rei Haroldo recebeu a notícia da invasão e marchou para o norte, derrotando os invasores e matando Tostigo e Hardrada em 25 de setembro na Batalha de Stamford Bridge. A frota normanda finalmente partiu dois dias depois, desembarcando na Inglaterra na baía de Pevensey em 28 de setembro.

Guilherme, em seguida, mudou-se para Hastings, algumas milhas a leste, onde construiu um castelo como uma base de operações. De lá, ele devastou o interior e esperou pelo retorno de Haroldo do norte, recusando-se a se aventurar muito longe do mar, sua linha de comunicação com a Normandia. 

Batalha de Hastings

Haroldo, depois de derrotar Tostigo e Haroldo Hardrada da Noruega, deixou uma parte de seu exército no norte, incluindo Morcar e Eduíno, e marchou com o resto até o sul para lidar com a ameaça normanda. Ele provavelmente ficou sabendo do desembarque de Guilherme enquanto viajava para o sul.

O rei parou em Londres, e ficou lá por cerca de uma semana antes de marchar para Hastings, por isso é provável que passou cerca de uma semana em sua marcha ao sul, com uma média de cerca de 43 quilômetros por dia, em uma distância de aproximadamente 320 quilômetros. Embora o rei inglês tentou surpreender os normandos, sentinelas de Guilherme relataram a chegada inglesa para o duque.

Os eventos exatos que precedem a batalha são obscuros, com relatos contraditórios nas fontes, mas todos concordam que Guilherme liderou seu exército de seu castelo e avançou em direção ao inimigo. Haroldo tomou uma posição defensiva na parte superior do monte Senlac (atual Battle, East Sussex), a cerca de 9,7 quilômetros do castelo de Guilherme em Hastings. 

A batalha começou por volta das 9 horas da manhã em 14 de outubro e durou o dia todo, mas enquanto um esboço geral dessa é conhecido, os acontecimentos exatos são obscurecidos por relatos contraditórios nas fontes. Ainda que os números de cada lado eram aproximadamente iguais, Guilherme tinha tanto cavalaria quanto infantaria, incluindo muitos arqueiros, enquanto Haroldo tinha apenas soldados a pé e poucos arqueiros, se tinha.

Os soldados ingleses formaram uma parede de escudos ao longo do cume e no início foram tão eficazes que o exército de Guilherme acabou recuando com pesadas baixas. Algumas de suas tropas bretãs entraram em pânico e fugiram, e algumas das tropas inglesas parecem ter perseguido os bretões que fugiam até que eles próprios foram atacados e destruídos pela cavalaria normanda. Durante a fuga dos bretões surgiram rumores que varreram as forças normandas de que o duque havia sido morto, mas Guilherme mostrou-se ainda vivo aos seus homens, conseguindo restaurar a ordem entre eles.

Duas outras retiradas normandas foram fingidas, para mais uma vez atrair os ingleses em perseguição e expô-los aos repetidos ataques da cavalaria normanda. As fontes disponíveis são mais confusas sobre eventos no período da tarde, mas parece que o evento decisivo foi a morte de Haroldo, sobre a qual diferentes histórias são contadas. Guilherme de Jumièges alegou que Haroldo foi morto pelo duque. A tapeçaria de Bayeux tem sido invocada como referência por mostrar a morte de Haroldo por uma flecha no olho, mas a cena pode ser uma reformulação posterior da tapeçaria em conformidade com histórias do século XII em que Haroldo foi morto por um ferimento de flecha na cabeça.

O corpo de Haroldo foi identificado no dia seguinte à batalha, por meio de sua armadura ou pelas marcas em seu corpo. Os ingleses mortos, o que incluía alguns dos irmãos do rei e seus housecarls, foram deixados no campo de batalha. Gytha, a mãe do falecido rei inglês, ofereceu ao duque vitorioso o peso do corpo de seu filho em ouro pela sua custódia, mas sua oferta foi recusada. Guilherme ordenou que o corpo de Haroldo fosse lançado ao mar, mas se isso ocorreu é incerto. A Abadia de Waltham, que foi fundada por Haroldo, mais tarde afirmou que seu corpo foi enterrado secretamente lá. 

Marcha para Londres

Guilherme pode ter esperado que os ingleses se rendessem após sua vitória, mas não o fizeram. Em vez disso, alguns membros do clero e magnatas ingleses nomearam Edgar, o Atelingo como rei, embora o apoio que esse recebeu fosse tépido. Depois de esperar um pouco, Guilherme assegurou Dover, partes de Kent, Cantuária e, ao mesmo tempo, enviou uma força para capturar Winchester, onde estava o tesouro real.

Estas capturas garantiram áreas de retaguarda para Guilherme e também a sua linha de retirada à Normandia, caso fosse necessário. Em seguida, o duque marchou de Southwark, através do Tâmisa para Londres, onde chegou no final de novembro. Logo depois, conduziu suas forças em torno do sul e oeste da capital inglesa, queimando ao longo do caminho. Ele finalmente atravessou o Tâmisa em Wallingford no início de dezembro.

Lá o arcebispo Estigando se submeteu a Guilherme, e logo depois quando o duque passou para Berkhamsted, Morcar, Eduíno, o arcebispo Aldredo e Edgar, o Atelingo também se renderam. O invasor normando, em seguida, enviou homens a Londres para construir um castelo; ele foi coroado na Abadia de Westminster no dia de Natal de 1066. 

Consolidação

Primeiros atos

Guilherme permaneceu na Inglaterra após sua coroação e tentou reconciliar os magnatas nativos. Os condes restantes – Eduíno de Mércia, Morcar de Nortúmbria, e Valdevo da Nortúmbria – foram confirmados em suas terras e títulos. Valdevo era casado com a sobrinha do duque normando, Judite, filha de Adelaide, e um casamento entre Eduíno e uma das filhas de Guilherme foi proposto. Edgar, o Atelingo também parece ter recebido terras.

Ofícios eclesiásticos continuaram a ser mantidos pelos mesmos bispos como antes da invasão, incluindo o não-canônico Estigando. Mas as famílias de Haroldo e seus irmãos perderam suas terras, assim como alguns outros que tinham lutado contra Guilherme em Hastings. Até março, o duque estava seguro o suficiente para voltar à Normandia, mas levou consigo Estigando, Morcar, Eduíno, Edgar, e Valdevo.

Ele deixou seu meio-irmão Odo, o bispo de Bayeux, no comando da Inglaterra, juntamente com outro defensor influente, Guilherme FitzOsbern, filho de seu antigo tutor. Os dois homens também foram nomeados para condados – FitzOsbern para Hereford (ou Wessex) e Odo para Kent. Embora ele tenha colocado dois normandos como encarregados gerais, manteve muitos xerifes nativos da Inglaterra. Uma vez na Normandia o novo rei foi para Ruão e à Abadia de Fécamp, e, em seguida, assistiu à consagração de novas igrejas em dois mosteiros normandos. 

Enquanto Guilherme estava na Normandia, um ex-aliado, Eustácio, o conde de Bolonha, invadiu a cidade de Dover, mas foi repelido. A resistência inglesa também tinha começado, com Eadrico, o Selvagem atacando Hereford e revoltas em Exeter, onde a mãe de Haroldo, Gytha, era um foco da resistência. FitzOsbern e Odo encontraram dificuldades para controlar a população nativa e empreenderam um programa de construção de castelos para manter seu domínio sobre o reino.

Guilherme retornou à Inglaterra em dezembro de 1067 e marchou em Exeter, a qual sitiou. A cidade resistiu por 18 dias, e depois caiu perante seu novo rei; ele construiu um castelo para garantir seu controle. Entretanto, os filhos de Haroldo invadiram o sudoeste da Inglaterra a partir de uma base na Irlanda. Suas forças desembarcaram perto de Bristol, mas foram derrotados por Eadnoth. Na Páscoa, Guilherme estava em Winchester, onde logo foi acompanhado por sua esposa Matilde, que foi coroada em maio de 1068. 

Resistência inglesa

Em 1068 Eduíno e Morcar se revoltaram, apoiados por Gospatrico. O cronista Orderico Vital afirma que a razão de Eduíno se revoltar era que o casamento proposto entre ele e uma das filhas de Guilherme não aconteceu, mas outras razões provavelmente incluem o aumento do poder de Guilherme FitzOsbern em Herefordshire, o que afetou o poder dele dentro de seu próprio condado. O rei marchou nas terras de Eduíno e construiu um castelo em Warwick.

Eduíno e Morcar se renderam, mas Guilherme continuou rumo a Iorque, construindo os castelos de Iorque e Nottingham antes de retornar ao sul. Em sua jornada ao sul, o rei começou a construir castelos em Lincoln, Huntingdon, e Cambridge. Guilherme colocou partidários responsável por estas novas fortificações – entre eles Guilherme Peverel em Nottingham e Henrique de Beaumont em Warwick. Em seguida, o rei voltou à Normandia no final de 1068. 

No início de 1069, Edgar, o Atelingo se rebelou e atacou Iorque. Embora Guilherme tenha voltado à cidade e construído um outro castelo, Edgar permaneceu livre e, no outono, juntou-se com o rei Sueno da Dinamarca. O rei dinamarquês tinha trazido uma grande frota para a Inglaterra e atacou não só Iorque, mas também Exeter e Shrewsbury. Iorque foi capturada pelas forças combinadas de Edgar e Sueno. O Atelingo foi proclamado rei pelos seus partidários, mas Guilherme reagiu rapidamente, ignorando uma revolta continental no Maine.

O rei normando simbolicamente usou sua coroa nas ruínas de Iorque no dia de Natal de 1069, e então passou a subornar os dinamarqueses. Ele marchou até o rio Tees, devastando o campo pelo caminho. Edgar, após perder muito de seu apoio, fugiu para a Escócia, onde o rei Malcolm III era casado com sua irmã Margarida. Valdevo, que se juntou à revolta, se rendeu, juntamente com Gospatrico, e ambos foram autorizados a manter suas terras.

Mas Guilherme não tinha terminado; marchou ao longo dos montes Peninos durante o inverno e derrotou os rebeldes restantes em Shrewsbury antes de construir castelos em Chester e Stafford. Esta campanha, que incluiu a queima e destruição de uma parte do campo no qual as forças reais marcharam, é geralmente conhecida como o “esbulhar do Norte”; acabou em abril de 1070, quando o Conquistador usou sua coroa cerimonialmente na Páscoa em Winchester. 

Assuntos da Igreja

Enquanto em Winchester em 1070, Guilherme se reuniu com três legados papais – João Minuto, Pedro, e Ermenfrido de Sion – que foram enviados pelo papa Alexandre. Os legados cerimonialmente coroaram o rei durante o cortejo da Páscoa. O historiador David Bates vê essa coroação como a cerimonia papal que deu o “selo de aprovação” à conquista de Guilherme. Os legados e o rei então começaram a realizar uma série de concílios eclesiásticos dedicados à reforma e reorganização da igreja na Inglaterra. Estigando e seu irmão, Etelmar, o Bispo de Elmham, foram depostos de seus bispados.

Alguns dos abades nativos também foram depostos, ambos no concílio realizado perto da Páscoa e em um próximo do dia de Pentecostes. Este último viu a nomeação de Lanfranco como o novo arcebispo de Cantuária, e Tomás de Bayeux como o novo arcebispo de Iorque, para substituir Aldredo, que morreu em setembro de 1069. Odo, o meio-irmão do rei, talvez esperasse ser nomeado para Cantuária, mas Guilherme provavelmente não quis dar tanto poder a um membro da família. Outra razão para a nomeação pode ter sido a pressão do papado em nomear Lanfranco.

O clero normando foi designado para substituir os bispos e abades depostos, e no final do processo, apenas dois bispos ingleses nativos permaneceram no cargo, juntamente com vários prelados continentais nomeados por Eduardo, o Confessor. Em 1070, Guilherme também fundou a Abadia de Battle, um novo mosteiro no local da Batalha de Hastings, em parte como uma penitência pelas mortes na batalha e, em parte, como um memorial aos mortos. 

Problemas na Inglaterra e no continente

Invasões dinamarquesas e rebelião no norte

Embora Sueno havia prometido deixar a Inglaterra, voltou na primavera de 1070, invadindo ao longo do Humber e Ânglia Oriental em direção à Ilha de Ely, onde se juntou a Herevardo, o Vigilante, um tano (servo) local. As forças de Herevardo atacaram a Abadia de Peterborough, a qual capturaram e saquearam. Guilherme foi capaz de garantir a retirada de Sueno e sua frota em 1070, permitindo-lhe regressar ao continente para lidar com problemas no Maine, onde a cidade de Le Mans havia se revoltado no ano anterior.

Outra preocupação era a morte do conde Balduíno VI de Flandres, em julho de 1070, que conduziu a uma crise de sucessão com sua viúva, Riquilda, que governava por seus dois filhos novos, Arnulfo e Balduíno. No entanto, o seu governo foi contestado por Roberto, irmão de Balduíno. A viúva propôs casamento a Guilherme FitzOsbern, que estava na Normandia, e esse aceitou. Mas depois que foi morto em fevereiro de 1071 na Batalha de Cassel, Roberto tornou-se conde. Ele se opunha ao poder do rei Guilherme no continente, assim, a Batalha de Cassel não só fez o rei perder um importante aliado, mas também perturbou o equilíbrio de poder no norte da França. 

Em 1071, Guilherme derrotou a última rebelião do norte. O conde Eduíno foi traído por seus próprios homens e morto, enquanto o rei construía uma ponte para subjugar a Ilha de Ely, onde Herevardo, o Vigilante e Morcar estavam escondidos. Herevardo escapou, mas Morcar foi capturado, privado de seu condado, e preso. Em 1072 o rei invadiu a Escócia, derrotando Malcolm, que tinha invadido recentemente o norte da Inglaterra.

Guilherme e Malcolm concordaram com a paz, ao assinar o Tratado de Abernethy, e o rei escocês provavelmente entregou seu filho Duncan como refém pela paz. É possível que uma outra disposição do Tratado foi a expulsão de Edgar, o Atelingo da corte escocesa. Guilherme então voltou sua atenção para o continente, voltando à Normandia no início de 1073 para lidar com a invasão do Maine por Fulque le Rechin, o conde de Anjou.

Com uma campanha rápida, Guilherme apreendeu Le Mans das forças de Fulque, completando a investida em 30 de março de 1073. Isso fez com que o seu poder ficasse mais seguro no norte da França, mas o novo conde de Flandres aceitou Edgar, o Atelingo em sua corte. Roberto também casou sua meia-irmã Berta com o rei da França, Filipe I, o Amoroso, que se opunha ao poder normando.

Guilherme retornou à Inglaterra para liberar seu exército do serviço em 1073, todavia rapidamente voltou à Normandia, onde passou todo ano de 1074. Ele deixou a Inglaterra nas mãos de seus partidários, incluindo Ricardo fitzGilbert e Guilherme de Warenne, bem como Lanfranco. O rei deixar a Inglaterra por um ano inteiro era um sinal de que sentia que seu controle do reino era seguro. Enquanto o Conquistador estava na Normandia, Edgar, o Atelingo retornou à Escócia por Flandres.

O rei francês, buscando um foco para aqueles que se opunham ao poder de Guilherme, em seguida, propôs que Edgar recebesse o castelo de Montreuil-sur-Mer no Canal Inglês, o que ter-lhe-ia dado uma vantagem estratégica contra o duque normando. Edgar foi forçado a submeter-se a Guilherme pouco tempo depois e, no entanto, regressou à corte do duque. Filipe, embora frustrado nesta tentativa, voltou suas atenções à Bretanha, conduzindo uma revolta em 1075. 

Revolta dos Condes

Em 1075, durante a ausência de Guilherme, Raul de Gael, Conde de Norfolk, e Rogério de Breteuil, Conde de Hereford, conspiraram para derrubar o rei na “Revolta dos Condes”.[109] Raul era em parte bretão, e passou a maior parte de sua vida antes de 1066 em sua terra natal, onde ainda tinha propriedades. Rogério era um normando, filho de Guilherme FitzOsbern, mas tinha herdado menos autoridade do que seu pai possuía. A autoridade do conde de Norfolk também parece ter sido menor do que seus antecessores no condado, e essa foi provavelmente a causa da revolta. 

A razão exata da rebelião não está clara, mas começou no casamento de Raul com uma parente de Rogério, realizado em Exning, Suffolk. Outro conde, Valdevo, embora um dos favoritos de Guilherme, também esteve envolvido, e havia alguns senhores bretões que estavam prontos para se rebelar em apoio de Raul e Rogério. O conde de Norfolk também solicitou ajuda dinamarquesa.

Guilherme permaneceu na Normandia, enquanto seus homens na Inglaterra subjugaram a revolta. Rogério não foi capaz de deixar sua fortaleza em Herefordshire por causa dos esforços de Vulstano, bispo de Worcester, e Etelvigo, o abade de Evesham. Raul foi cercado no Castelo de Norwich pelos esforços combinados de Odo de Bayeux, Godofredo de Montbray, Ricardo FitzGilbert, e Guilherme de Warenne. Raul finalmente deixou Norwich no controle de sua esposa e abandou a Inglaterra, finalmente terminando na Bretanha. Norwich foi sitiada e se rendeu, com a guarnição autorizada a ir para a Bretanha.

Enquanto isso, o irmão do rei dinamarquês, Canuto, o Santo, finalmente chegou à Inglaterra com uma frota de 200 navios, mas era tarde demais pois Norwich já havia se rendido. Os dinamarqueses, em seguida, invadiram ao longo da costa, antes de voltar para casa. Guilherme voltou à Inglaterra mais tarde em 1075 para lidar com a ameaça dinamarquesa, deixando sua esposa Matilde no comando da Normandia. Ele comemorou o Natal em Winchester e lidou com o rescaldo da rebelião. Rogério e Valdevo foram mantidos em prisão, onde o conde de Northampton foi executado em maio de 1076. Antes disso, Guilherme tinha voltado para o continente, onde o conde de Norfolk continuou a rebelião da Bretanha. 

Problemas em casa e no exterior

Conde Raul tinha assegurado o controle do castelo em Dol, e em setembro de 1076 Guilherme avançou para Bretanha e sitiou o castelo. O rei Filipe da França mais tarde aliviou o cerco e derrotou Guilherme na cidade, forçando-o a recuar à Normandia. Embora esta tenha sido sua primeira derrota em batalha, não alterou o desenrolar dos eventos. Um ataque angevino no Maine foi derrotado no final de 1076 ou 1077, com o conde Fulque le Rechin ferido na investida malsucedida.

Mais grave foi o conde de Amiens, Simão de Crépy, ter se tornado um monge, porque entregou seu condado de Vexin ao rei Felipe. Vexin era um estado tampão entre a Normandia e as terras do rei francês, e o conde era um partidário do duque normando. Guilherme foi capaz de fazer a paz com Felipe em 1077 e garantiu uma trégua com o conde Fulque no final do mesmo ano ou no início de 1078. 

No final de 1077 ou início de 1078 um problema começou entre Guilherme e seu filho mais velho, Roberto. Apesar de Orderico Vital descrever que a briga começou com seus dois irmãos mais novos, Guilherme, o Ruivo e Henrique Beauclerc, incluindo uma história de que a briga começou quando Guilherme e Henrique jogaram água em Roberto, é muito mais provável que o filho mais velho do rei estava se sentindo impotente.

O cronista relata que ele chegou a exigir anteriormente o controle do Maine e da Normandia, o que lhe foi negado. Nessa época, o problema fez com que Roberto deixasse a Normandia acompanhado por um grupo de jovens, muitos deles filhos de partidários de seu pai. Entre eles estava Roberto de Bellême, Guilherme de Breteuil, e Rogério, filho de Ricardo fitzGilbert. Esse grupo de jovens foi para o castelo em Rémalard, onde passaram a atacar a Normandia. Os invasores foram apoiados por muitos dos inimigos continentais de Guilherme. O duque normando atacou imediatamente os rebeldes e os expulsou de Rémalard, mas o rei Filipe deu-lhes o castelo em Gerberoi, onde novos apoiadores juntaram-se a eles.

Guilherme então sitiou Gerberoi em janeiro de 1079. Depois de três semanas, as forças sitiadas atacaram do castelo e conseguiram pegar os sitiantes de surpresa. Guilherme foi derrubado por Roberto e só foi salvo da morte por um inglês. Seus exércitos foram forçados a levantar o cerco, e o rei voltou para Ruão. Em 12 de abril de 1080, Guilherme e Roberto tinham chegado a um alojamento, com o rei mais uma vez afirmando que seu filho mais velho iria receber a Normandia quando ele morresse. 

A informação da derrota de Guilherme em Gerberoi suscitou dificuldades no norte da Inglaterra. Em agosto e setembro de 1079, o rei Malcolm III dos escoceses invadiu o sul do rio Tweed, devastando as terras entre o rio Tees e o Tweed em uma operação que durou quase um mês. A falta de resposta normanda parece ter causado uma crescente inquietude dos nortúmbrios, e na primavera de 1080 eles se rebelaram contra o governo de Guilherme Walcher, o bispo de Durham e conde de Nortúmbria.

O bispo foi morto em 14 de maio de 1080, e o rei normando despachou seu meio-irmão Odo para lidar com a rebelião. Guilherme partiu da Normandia, em julho de 1080, e no outono seu filho Roberto foi enviado em uma campanha contra os escoceses. Roberto invadiu em Lothian e forçou Malcolm a concordar com os termos, construindo uma fortificação em Newcastle upon Tyne, quando regressava a Inglaterra. 

O rei estava em Gloucester para o Natal de 1080 e em Winchester para o Pentecostes em 1081, cerimonialmente vestindo sua coroa em ambas as ocasiões. Uma embaixada papal chegou na Inglaterra durante este período, pedindo que jurasse a lealdade da Inglaterra ao papado, pedido esse que o monarca rejeitou. Guilherme também visitou o País de Gales durante 1081, embora as fontes inglesas e gaulesas divirjam sobre a finalidade exata da visita.

A Crônica Anglo-Saxônica afirma que foi uma campanha militar, mas fontes galesas a registram como uma peregrinação a St Davids em honra de São Davi. O biógrafo David Bates argumenta que a explicação anterior é a mais provável, pois o equilíbrio de poder havia recentemente mudado no País de Gales e o rei inglês teria desejado tirar vantagem das circunstâncias para estender o poder normando. Até o final de 1081, estava de volta ao continente, lidando com distúrbios no Maine. Embora tenha liderado uma expedição no condado, o resultado foi, em vez disso, uma solução diplomática negociada por um legado papal. 

Últimos anos

Fontes para ações de Guilherme entre 1082 e 1084 são escassas. De acordo com o historiador David Bates, isso significa que provavelmente pouca coisa aconteceu, e devido ao fato de o rei estar no continente, não havia nada para a Crônica Anglo-Saxônica registrar. Em 1082, ele ordenou a prisão de seu meio-irmão Odo de Bayeux. As razões exatas não são claras, como nenhum autor contemporâneo registrou o que causou a briga entre os meio-irmãos. Orderico Vital mais tarde registrou que Odo tinha aspirações de se tornar papa.

O cronista também relatou que Odo havia tentado persuadir alguns dos vassalos de Guilherme a se juntar a ele em uma invasão do sul da Itália. Isto teria sido considerado a adulteração da autoridade do rei sobre seus vassalos, o que Guilherme não teria tolerado. Embora Odo tenha permanecido no confinamento o resto do reinado de seu irmão, suas terras não foram confiscadas. Mais dificuldades o atingiram em 1083, quando seu filho mais velho Roberto se rebelou mais uma vez com o apoio do rei francês. Um novo golpe foi a morte de sua esposa Matilde, em 2 de novembro daquele ano. Guilherme foi sempre descrito próximo dela, e sua morte teria aumentado os seus problemas. 

Maine continuou a ser uma região problemática, com uma rebelião de Huberto de Beaumont-au-Maine, provavelmente em 1084. Ele foi sitiado em seu castelo em Sainte-Suzanne pelas forças de Guilherme por pelo menos dois anos, mas finalmente fez as pazes com o rei e foi restaurado favoravelmente.

Seus movimentos durante 1084 e 1085 não são claros – estava na Normandia na Páscoa de 1084, mas pode ter estado na Inglaterra, para recolher o danigeldo (“tributo dinamarquês”) avaliado nesse ano à defesa da Inglaterra contra uma invasão do rei Canuto IV, o Santo. Embora forças inglesas e normandas tenham permanecido em alerta durante todo o ano de 1085 e em 1086, a ameaça de invasão terminou com a morte do rei dos dinamarqueses em julho de 1086. 

Caraterísticas do reinado

Mudanças na Inglaterra

Como parte de seus esforços para assegurar a Inglaterra, Guilherme ordenou a construção de muitos castelos, torres e motas – entre eles a fortaleza central da Torre de Londres, a Torre Branca. Essas fortificações permitiram que os normandos recuassem em segurança quando ameaçados por uma rebelião e permitia que guarnições fossem protegidas enquanto eles ocupavam o campo. Os primeiros castelos eram simples construções de terra e madeira, posteriormente substituídos por estruturas de pedra.

No início, a maioria dos normandos recém-estabelecidos mantinham cavaleiros domésticos e não recompensaram os seus partidários com feudos próprios, mas, gradualmente, terras foram concedidas a esses cavaleiros domésticos, um processo conhecido como subenfeudação. Guilherme também exigiu que os seus recém-criados magnatas contribuíssem com cotas fixas de cavaleiros não só para as campanhas militares, mas também para guarnições dos castelos. Este método de organizar as forças militares era um desvio da prática pré-conquista inglesa de basear o serviço militar em unidades territoriais como a hida. 

Aquando da morte do rei, depois de resistir a uma série de rebeliões, a maioria da aristocracia nativa anglo-saxônica tinha sido substituída por normandos e outros magnatas continentais. Nem todos os normandos que acompanharam o duque na conquista adquiriram grandes quantidades de terra na Inglaterra. Alguns ficaram relutantes em aceitar as terras em um reino que não estava completamente pacificado.

Embora alguns dos novos normandos ricos da Inglaterra fossem próximos da família do rei ou da nobreza superior normanda, outros eram de origens relativamente humildes. O monarca concedeu terras para seus seguidores continentais provenientes da exploração de um ou mais ingleses específicos; em certos casos, concedeu um agrupamento compacto de terras anteriormente detidas por muitos nativos diferentes para um único adepto normando, para permitir a consolidação dessas terras em torno de um castelo estrategicamente posicionado. 

O cronista medieval Guilherme de Malmesbury disse que o rei também apreendeu e despovoou muitos quilômetros de terras (36 paróquias), transformando-as na região real de New Forest para que pudesse praticar sua diversão favorita, a caça. Os historiadores modernos têm chegado à conclusão de que o suposto despovoamento de New Forest foi exagerado. A maior parte dessa região é composta por terras agrícolas pobres, e estudos arqueológicos e geográficos mostraram que a região era provavelmente pouco povoada quando foi transformada em uma floresta real. Guilherme era conhecido por seu amor pela caça, e foi ele que introduziu a legislação florestal em certas áreas do país, regulando quem poderia caçar e o que poderia ser caçado. 

Administração

Depois da conquista, Guilherme não tentou integrar seus domínios separados em um único reino unificado com um conjunto único de leis. O sinete que usou após 1066, do qual seis impressões ainda sobrevivem, foi feito depois que invadiu a Inglaterra e destacava seu papel como rei, mencionando separadamente o seu papel de duque. Quando na Normandia, reconheceu que devia vassalagem ao rei francês, mas na Inglaterra nenhum tipo de confirmação foi feita – mais uma prova de que as várias partes de suas terras eram consideradas independentes.

As estruturas administrativas da Normandia, Inglaterra e Maine continuaram a existir de forma separada, com cada um mantendo suas próprias formas de governo. Por exemplo, a Inglaterra continuou a usar decretos, que não eram conhecidos no continente. Além disso, as cartas e documentos produzidos para o governo na Normandia diferiam em fórmulas daquelas produzidas na Inglaterra. 

Guilherme assumiu um governo inglês que era mais complexo do que o sistema normando. O país era dividido em shires ou condados, os quais eram por sua vez divididos em hundred (centenas), nativamente também conhecidas como wapentakes. Cada condado era administrado por um oficial do rei, chamado de xerife, que tinha aproximadamente o mesmo estatuto que um visconde normando. O xerife era responsável pela justiça real e o recebimento das receitas.

Para supervisionar o seu domínio expandido, Guilherme foi forçado a viajar ainda mais do que viajava como duque. Transitou entre o continente e a Inglaterra ao menos 19 vezes entre 1067 e sua morte. Passou a maior parte de seu tempo na Inglaterra entre a batalha de Hastings e 1072, dedicando-se mais a Normandia posteriormente. O governo ainda estava centrado em torno da criadagem do rei; quando estava em uma determinada parte de seus reinos, as decisões tomadas para outras partes seriam transmitidas através de um sistema de comunicação que utilizava cartas e outros documentos.

Também nomeou representantes que poderiam tomar decisões enquanto ele estava ausente, especialmente se sua ausência fosse prolongada. Normalmente, este era um membro próximo de sua família, frequentemente seu meio-irmão Odo ou sua esposa Matilde. Às vezes, os representantes eram designados para lidar com questões específicas. 

O monarca continuou a coleta da danegeld, um imposto sobre terra. Esta era uma vantagem para Guilherme, já que era o único imposto universalmente recolhido pelos governantes da Europa Ocidental durante esse período. Era um imposto anual com base no valor da propriedade da terra, e que poderia ser recolhido em taxas diferentes. Na maioria dos anos via-se uma taxa de dois xelins por hida, mas em crises, poderia ser aumentada em até seis xelins por hida.

A cunhagem entre as várias partes de seus domínios continuou a ser feita em diferentes ciclos e estilos. Moedas inglesas eram em geral de alto teor de prata, com elevados padrões artísticos, e eram obrigatoriamente recunhadas de três em três anos. Moedas normandas tinham um teor de prata muito mais baixo, eram muitas vezes de má qualidade artística, e raramente eram recunhadas. Além disso, na Inglaterra nenhuma outra cunhagem era permitida, enquanto no continente outra cunhagem era considerada de curso forçado. Também não há evidências de moedas de dinheiro inglês circulando no ducado francês, o que mostra pouca tentativa de integrar os sistemas monetários da Inglaterra e Normandia. 

Além da tributação, os latifúndios de Guilherme por toda a Inglaterra reforçaram seu domínio. Como herdeiro do rei Eduardo, ele controlava todas as antigas terras reais. Também manteve o controle de grande parte das terras de Haroldo e sua família, o que fez dele o rei com a maior propriedade de terras seculares naquele país por ampla margem. 

Domesday Book

No Natal de 1085, Guilherme ordenou a compilação de um levantamento das propriedades rurais detidas por si mesmo e por seus vassalos em todo o reino, organizado por condados. Isso resultou em um trabalho hoje conhecido como Domesday Book. A listagem para cada condado mostra as posses de cada proprietário de terras, agrupados por donos. As listagens descrevem a posse, quem a possuía antes da conquista, o seu valor, qual era a taxa de assentamento, e, geralmente, o número de camponeses, arados, e quaisquer outros recursos que tinham exploração.

Cidades eram listadas separadamente. Todos os condados ingleses ao sul do rio Tees e do rio Ribble estão incluídos, e toda a obra parece ter sido concluída principalmente até 1º de agosto de 1086, quando a Crônica Anglo-Saxônica registra que o governante recebeu os resultados e que todos os principais magnatas se uniram e juraram o Juramento de Salisbury, uma renovação dos seus juramentos de fidelidade. A motivação exata do rei em ordenar a pesquisa é obscura, mas provavelmente tinha vários propósitos, como fazer um registro de obrigações feudais e justificar o aumento dos impostos. 

Morte e consequências

Guilherme deixou a Inglaterra no final de 1086. Após chegar ao continente, casou sua filha Constança com Alano Luva de Ferro, o duque de Bretanha, no cumprimento de sua política em buscar aliados contra os reis franceses. Seu filho Roberto, ainda aliado com o rei francês Filipe I, ainda aparece criando problemas suficientes para que o duque liderasse uma expedição contra o Vexin francês em julho de 1087. Enquanto apreendia Mantes, o rei ou adoeceu ou foi ferido por uma alça de sua sela. Ele foi levado para o priorado de Saint Gervase em Ruão, onde morreu em 9 de setembro de 1087.

O conhecimento dos eventos que precederam a sua morte são confusos visto que existem dois contos diferentes. Orderico Vital preserva um relato longo, com discursos feitos por muitos dos subordinados, mas este é mais provavelmente uma descrição de como um rei deveria morrer do que o que realmente aconteceu. A outra, o De Obitu Willelmi, ou Sobre a Morte de Guilherme, é uma cópia de dois relatos do século IX com nomes alterados. 

Guilherme deixou a Normandia para Roberto, e a custódia da Inglaterra foi dada ao seu segundo filho sobrevivente, também chamado de Guilherme, na suposição de que ele tornar-se-ia rei. O filho mais novo, Henrique, recebeu dinheiro. Depois de confiar a coroa inglesa ao seu segundo filho, o Conquistador enviou o jovem Guilherme de volta à ilha britânica em 7 ou 8 de setembro, levando consigo uma carta para Lanfranco, que ordenava o arcebispo a ajudar o novo rei. Outras heranças incluíam presentes à Igreja e dinheiro a ser distribuído aos pobres. Guilherme também ordenou que todos os seus prisioneiros fossem libertados, incluindo seu meio-irmão Odo. 

A desordem sucedeu seu falecimento; todo mundo que estava em seu leito de morte deixou o corpo em Ruão e correu para cuidar de seus próprios assuntos. Posteriormente, o clero da cidade se organizou para enviar o corpo a Caen, onde Guilherme desejara ser sepultado em sua fundação da Abadia dos Homens.

O funeral, do qual participaram os bispos e abades da Normandia, assim como seu filho, Henrique, foi perturbado pela afirmação de um cidadão de Caen, que alegou que sua família fora ilegalmente despojada do terreno sobre o qual a igreja foi construída. Após consultas apressadas, a alegação foi comprovada e o homem compensado. Uma outra indignidade ocorreu quando o cadáver foi posto na tumba. Era muito grande para o espaço, e quando os atendentes forçaram o corpo para dentro do túmulo ele se abriu, espalhando um odor repugnante por toda a igreja. 

Seu túmulo está marcada por uma placa de mármore com uma inscrição em latim que data do início do século XIX. O túmulo foi perturbado várias vezes desde 1087, pela primeira vez em 1522, quando foi aberto por ordem do papado. O corpo intacto foi restaurado para o túmulo naquela época, mas em 1562, durante as guerras religiosas na França, foi reaberto e os ossos dispersos e perdidos, com a exceção de um osso da coxa. Esta relíquia solitária foi enterrada novamente em 1642 com um novo marcador, que foi substituído 100 anos mais tarde com um monumento mais elaborado. Este túmulo foi novamente destruído durante a Revolução Francesa, mas acabou sendo substituído pelo marcador atual. 

Legado

Uma consequência imediata após a morte do rei foi a guerra entre seus filhos Roberto e Guilherme, o Ruivo sobre o controle da Inglaterra e Normandia. Mesmo após a morte de Guilherme, o Ruivo em 1100 e a sucessão de seu irmão mais novo Henrique I como rei, a Normandia e Inglaterra permaneceram controvertidas entre os irmãos, até a captura de Roberto por Henrique na batalha de Tinchebray em 1106.

As dificuldades na sucessão levaram a uma perda de autoridade no ducado francês, já que a aristocracia recuperou muito do poder que fora perdido para o Conquistador. Seus filhos também perderam muito de seu controle sobre o Maine, que se revoltou em 1089 e conseguiu manter-se na maior parte livre de influência normanda posteriormente. 

O impacto da conquista de Guilherme na Inglaterra foi profundo; mudanças na igreja, aristocracia, cultura e na língua do país têm persistido até os tempos modernos. A conquista trouxe ao reino um contato mais próximo com a França e forjou laços entre ambas as nações, que duraram toda a Idade Média. Outra consequência da invasão de Guilherme foi o rompimento dos laços anteriormente estreitos entre a Inglaterra e Escandinávia. Seu governo misturou elementos dos sistemas inglês e normando em um novo, que posteriormente lançou as bases do reino medieval inglês.

Quão bruscas e quão grande alcance as mudanças tiveram ainda é uma questão de debate entre os historiadores, com alguns, como Richard Southern alegando que a conquista foi a mudança mais radical na história da Europa entre a queda de Roma e o século XX. Outros, como H. G. Richardson e G. O. Sayles, vêem as mudanças trazidas pela conquista como muito menos radicais do que Southern sugere. A historiadora Eleanor Searle descreveu a invasão de Guilherme como “um plano que nenhum governante, exceto um escandinavo, teria considerado”. Seu reinado causou polêmica histórica desde antes de sua morte.

Guilherme de Poitiers escreveu elogiosamente sobre o reinado do Conquistador e seus benefícios, mas o obituário de Guilherme na Crônica Anglo-Saxônica o condena usando termos duros. Nos anos desde a conquista, políticos e outros líderes têm usado o monarca e os acontecimentos de seu reinado para ilustrar eventos políticos ao longo da história inglesa. Durante o reinado da rainha Isabel I de Inglaterra, o arcebispo Matthew Parker viu a conquista como tendo corrompido a pura Igreja Inglesa, que ele tentou restaurar.

Durante os séculos XVII e XVIII alguns historiadores e juristas viram seu reinado impondo um “jugo normando” sobre os nativos anglo-saxões, um argumento que continuou durante o século XIX com elaborações adicionais ao longo de linhas nacionalistas. Estas várias controvérsias levaram o Conquistador a ser visto por alguns historiadores tanto como um dos criadores da grandeza da Inglaterra quanto por infligir uma das maiores derrotas na história do país. Outros têm visto Guilherme como um inimigo da constituição inglesa, ou, alternativamente, como seu criador. 

Veja mais:

Família e descendência

Guilherme e sua esposa Matilde de Flandres tiveram pelo menos nove filhos. A ordem de nascimento dos meninos é clara, mas nenhuma fonte dá a ordem relativa ao nascimento das filhas. 

  1. Roberto II, nascido entre 1051 e 1054, e morto em 10 de fevereiro de 1134. Duque da Normandia, casou-se com Síbila de Conversano, filha de Godofredo de Conversano. 
  2. Ricardo, nascido depois de 1056 e morto por volta de 1075. 
  3. Guilherme II nasceu entre 1056 e 1060, e morreu 2 de agosto de 1100. Rei da Inglaterra, morto em New Forest. 
  4. Henrique I nasceu no final de 1068, morreu em 1º de dezembro de 1135. Rei da Inglaterra, casou com Edite da Escócia, filha de Malcolm III da Escócia. Sua segunda esposa foi Adeliza de Lovaina. 
  5. Alice (ou Adeliza, Adelaide) morreu antes de 1113, alegadamente prometida a Haroldo II Godwinson, provavelmente tornou-se uma freira de Saint Léger em Préaux. 
  6. Cecília nasceu antes de 1066, morta em 1127, abadessa da Abadia das Damas, Caen. 
  7. Matilde nascido por volta de 1061, e morreu, talvez, por volta de 1086. Mencionada no Domesday Book como uma filha de Guilherme. 
  8. Constança, duquesa da Bretanha, morta em 1090, casou-se com Alano IV, Luva de Ferro, Duque da Bretanha. 
  9. Adela, morta em 1137, casou-se Estêvão II, Conde de Blois. 
  10. (Possivelmente) Ágata (c. 1064 – 1079), prometida em casamento a Afonso VI de Leão e Castela. Não há nenhuma evidência de qualquer filho ilegítimo do Conquistador.
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Guglielmo Marconi https://canalfezhistoria.com/guglielmo-marconi/ https://canalfezhistoria.com/guglielmo-marconi/#respond Tue, 11 Mar 2025 19:37:26 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5853 Guglielmo Marconi (Bolonha, 25 de abril de 1874 — Roma, 20 de julho de 1937) foi um físico e inventor italiano. Em língua portuguesa, é por vezes referido por Guilherme Marconi. 

Inventor do primeiro sistema prático de telegrafia sem fios (TSF), em 1896. Marconi se baseou em estudos apresentados em 1897 por Nikola Tesla para em 1899 realizar a primeira transmissão através do Canal da Mancha. A teoria de que as ondas electromagnéticas poderiam propagar-se no espaço, formulada por James Clerk Maxwell, e comprovada pelas experiências de Heinrich Hertz, em 1888, foi utilizada por Marconi entre 1894 e 1895.

Tinha apenas vinte anos, em 1894, quando transformou o celeiro da casa onde morava em laboratório e estudou os princípios elementares de uma transmissão radiotelegráfica, uma bateria para fornecer eletricidade, uma bobina de indução para aumentar a força, uma faísca elétrica emitida entre duas bolas de metal gerando uma oscilação semelhante as estudadas por Heinrich Hertz, um Coesor, como o inventado por Édouard Branly, situado a alguns metros de distância, ao ser atingido pelas ondas, acionava uma bateria e fazia uma campainha tocar. 

Em 1896, foi para a Inglaterra, depois de verificar que não havia nenhum interesse por suas experiências na Itália. Em 1899, teve sucesso na transmissão sem fios do código Morse através do Canal da Mancha. Dois anos mais tarde, conseguiu que sinais radiotelegráficos (a letra S do código morse) emitidos de Inglaterra, fossem escutados claramente em St. John’s (Terra Nova, hoje parte do Canadá), atravessando o Atlântico Norte.

A partir daí, fez muitas descobertas básicas na técnica rádio. Em 1909, 1700 pessoas são salvas de um naufrágio graças ao sistema de radiotelegrafia de Marconi. Em 1912 a companhia de Marconi já produzia aparelhos de rádio em larga escala, particularmente para navios. Em 1915, durante e depois da Primeira Guerra Mundial assumiu várias missões diplomáticas em nome da Itália e em 1919 foi o delegado italiano na Conferência de Paz de Paris. 

Em sua infância, passava muito tempo viajando com a sua mãe Anna, que adorava a região do porto de Livorno, na costa oeste da Itália, onde vivia sua irmã, dessas viagens a Livorno, surge o amor de Marconi pelo mar. Em Livorno estava instalada uma academia da marinha real italiana, a Regia Marina, Marconi tinha o incentivo do pai (Giuseppe) para entrar na academia naval, mas não conseguiu, no entanto, seu amor pelo mar o acompanhou durante toda a vida.

Em 1920, partiu para a sua primeira viagem no “Elettra”, um navio de 61 metros que comprou e equipou para ser seu laboratório no estudo de ondas curtas e também seu lar. Além de sua família, as cabines do Elettra recebiam visitantes ilustres, entre eles os reis da Itália, da Espanha e Jorge V e a rainha Maria de Teck. As festas no Elettra tornaram-se célebres pelas músicas transmitidas pelo rádio diretamente de Londres.

A empresa de Marconi montou o novo Imperial Wireless Scheme, destinado a montar estações de ondas curtas em todo o território britânico. Em 1929, em reconhecimento por seu trabalho, recebeu do rei Vítor Emanuel III da Itália o título de marquês. Em 12 de outubro de 1931 acendeu, apertando um botão em Roma, as luzes do Cristo Redentor na noite de inauguração da estátua. 

Em outubro de 1943, a Suprema Corte dos Estados Unidos considerou ser falsa a reclamação de Marconi que afirmava nunca ter lido as patentes de Nikola Tesla e determinou que não havia nada no trabalho de Marconi que não tivesse sido anteriormente descoberto por Tesla. Infelizmente, Tesla tinha morrido nove meses antes. 

No entanto, muito embora Marconi não tenha sido o inventor de nenhum dispositivo em particular (ao usar a bobina de Ruhmkorff e um faiscador, como antes o haviam feito De Forest e Tesla na emissão, repetiria Hertz, gerando as ondas hertzianas (Experimento de Hertz com um “Ressoador de Hertz”) e usou o radiocondutor-detector Coesor de Branly na recepção, acrescentando a antena de Popov a ambos os casos) parece ser possível afirmar que Marconi é, na verdade, o inventor da rádio, (na forma da Radiotelegrafia e Radiotelefonia, Telefonia sem fio) visto que ninguém, antes dele, tivera a ideia de usar as ondas hertzianas com os objectivos de forma prática ou rotineira, de comunicação (exceto Landell de Moura). 

Veja mais:

Lee de Forest o havia feito, mas apenas para testar a sua válvula eletrônica. Tendo seu valor reconhecido, Marconi foi agraciado em 1909, recebendo juntamente com o alemão Karl Ferdinand Braun o Nobel de Física. Braun é o descobridor dos semicondutores, dentre eles o sulfeto de chumbo natural, um mineral conhecido como galena, base do histórico rádio de galena.

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Gregory Goodwin Pincus https://canalfezhistoria.com/gregory-goodwin-pincus/ https://canalfezhistoria.com/gregory-goodwin-pincus/#respond Tue, 11 Mar 2025 19:30:42 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5850 Gregory Goodwin Pincus (Woodbine, Nova Jérsei, 9 de Abril de 1903 — Boston, 22 de Agosto de 1967) foi um biólogo e pesquisador norte-americano co-inventor da pílula contraceptiva oral combinada. 

Índice de Conteúdo

Gregory Goodwin Pincus nasceu em Woodbine, Nova Jérsei, em uma família judia, filho dos imigrares poloneses Elizabeth (ancida Lipman) e Joseph Pincus, um professor de agricultura. Ele citou seus dois tios, dois cientistas agrícolas, por seu interesse na pesquisa. Ele foi para a Universidade Cornell e recebeu o grau de bacharel em agricultura em 1924. 

Carreira

Dr. Pincus começou a estudar biologia hormonal e hormônios esteróides no início de sua carreira. Seu primeiro grande sucesso veio cedo, quando ele foi capaz de produzir a fertilização in vitro em coelhos, em 1934. Pincus desenvolveu e comprovou, pela primeira vez, métodos de anticoncepção hormonal. Obteve a pílula anticonceptiva. 

Veja mais:

Ele morreu em 1967 de mielofibrose idiopática, uma doença sanguínea rara. Ele tinha 64 anos e vivia em Northborough, Massachusetts. Funeral do Dr. Pincus foi realizada sexta-feira 25 de agosto de 1967 no Temple Emanuel, em Worcester, Massachusetts.

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Gregor Mendel https://canalfezhistoria.com/gregor-mendel/ https://canalfezhistoria.com/gregor-mendel/#respond Tue, 11 Mar 2025 19:28:33 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5847 Gregor Johann Mendel O.S.A.(Heinzendorf bei Odrau, 20 de julho de 1822 — Brno, 6 de janeiro 1884) foi um biólogo, botânico, monge agostiniano e meteorologista austríaco. 

Durante sua vida, Mendel publicou dois grandes trabalhos agora clássicos: “Ensaios com plantas híbridas” (Versuche über Pflanzen-hybriden), que não abrangia mais de trinta páginas impressas, e “Hierácias obtidas pela fecundação artificial”.

Em 1865, formula e apresenta em dois encontros da Sociedade de História Natural de Brno as leis da hereditariedade, hoje chamadas Leis de Mendel, que regem a transmissão dos caracteres hereditários. Após 1868, as tarefas administrativas mantiveram-no tão ocupado que não pôde dar continuidade às suas pesquisas, vivendo o resto da sua vida em relativa obscuridade. É conhecido como “Pai da Genética” atualmente. 

Biografia

Mendel nasceu em Heinzendorf bei Odrau (hoje chamada Vražni), no distrito de Nový Jičín, região de Troppau (atual Opava), na região da Morávia-Silésia, que então pertencia ao Império Austríaco. Foi batizado a 22 de julho (data que muitas vezes se confunde com a sua data de nascimento) e pertencia a uma família de humildes camponeses.

Na sua infância revelou-se muito inteligente; em casa costumava observar e estudar as plantas. Sendo um brilhante estudante a sua família encorajou-o a seguir estudos superiores, e, aos 21 anos, a entrar num mosteiro da Ordem de Santo Agostinho em 1843 (atual mosteiro de Brno, hoje na República Checa) pois não tinham dinheiro para suportar o custo dos estudos. Obedecendo ao costume ao tornar-se monge, optou um outro nome: “Gregor”. Então Mendel tinha a seu cargo a supervisão dos jardins do mosteiro. 

Estudou ainda, durante dois anos, no Instituto de Filosofia de Olmütz (hoje Olomouc, República Checa) e na Universidade de Viena (1851-1853). 

Mas Mendel não só se interessou nas plantas, ele também era meteorologista e estudou as teorias da evolução. Ao longo da sua vida foi membro, diretor e fundador de muitas sociedades locais: diretor do Banco da Morávia, foi fundador da Associação Meteorológica austríaca, membro da Real e Imperial Sociedade da Morávia e Silésia para melhor agricultura, entre outras. 

Morreu no dia 6 de Janeiro de 1884, em Brno, no antigo Império Austro-Húngaro hoje República Checa de uma doença renal crônica; um homem à frente do seu tempo, mas ignorado durante toda a sua vida. 

Experiências com cruzamento de plantas

Desde 1843 a 1854 tornou-se professor de ciências naturais na Escola Superior de Brno, dedicando-se ao estudo do cruzamento de muitas espécies: feijões, chicória, bocas-de-dragão, plantas frutíferas, abelhas, camundongos e principalmente ervilhas cultivadas na horta do mosteiro onde vivia analisando os resultados matematicamente, durante cerca de sete anos. Gregor Mendel, “o pai da genética”, como é conhecido, foi inspirado tanto pelos professores como pelos colegas do mosteiro que o pressionaram a estudar a variação do aspecto das plantas. Propôs que a existência de características (tais como a cor) das flores é devida à existência de um par de unidades elementares de hereditariedade, agora conhecidas como genes. 

Abelhas

Após o estudo com ervilheira Mendel dedicou-se ao estudo das abelhas, tentando estender as suas conclusões para os animais. Produziu uma espécie híbrida entre abelhas do Egito e da América do Sul que produziam um mel considerado excelente, contudo eram muito agressivas, picando muitas pessoas dos arredores, e foram destruídas. Mendel continuou a dedicar-se ao passatempo de apicultura, mesmo após ser eleito abade do Mosteiro de Brno, tendo inclusive fundado a Sociedade de Apicultura de Brno. 

Redescoberta

As descobertas de Mendel, apesar de muito importantes, permaneceram praticamente ignoradas até começos do século XX (embora tivessem estado disponíveis nas maiores bibliotecas da Europa e dos Estados Unidos), sendo publicadas somente no início do século XX, anos após sua morte. Foram “redescobertas” por um grupo de cientistas, um alemão – K. Correns, um austríaco – Tschermak, e outro neerlandês – H. de Vries. Originalmente pensava-se que o austríaco Eric von Tschermark teria sido um dos “redescobridores” mas nunca mais foi aceite. Sua teoria foi essencial para a síntese evolutiva moderna.

Veja mais:

Cronologia

  • 1822 – No dia 20 de Julho, nasce Gregor Johann Mendel na Silésia, na região de Troppau, filho de uma família de camponeses.
  • 1841-1843 – Estuda dois anos no Instituto Filosófico em Olomouc.
  • 1843-1854 – 1843 – Entra no mosteiro de Brno, onde passará a maior parte da sua vida e onde fará as suas famosas experiências.
  • 1843 – Torna-se professor de ciências naturais na Escola Superior de Brno
  • 1847 – É ordenado sacerdote.
  • 1851-1853 – Estuda dois anos na Universidade de Viena história natural.
  • 1853 – De volta ao mosteiro, dá aulas principalmente de Física.
  • 1856 – Inicia as suas experiências nos jardins do mosteiro onde cruza as ervilhas e diferentes árvores.
  • 1862 – com alguns colegas do mosteiro funda a Sociedade de Ciências Naturais.
  • 1863 – Acaba as suas experiências em animais e plantas que duraram cerca de sete anos.
  • 1865 – Gregor Mendel propõe que as caracteristicas hereditarias são transmitidas em unidades autorreplicáveis, chamadas fatores e, posteriormente, genes
  • 1866 – Pública oficialmente o seu livro tendo muito pouco impacto na comunidade científica.
  • 1868 – É eleito abade do mosteiro, após o que nunca mais pôde continuar as suas pesquisas devido às numerosas tarefas administrativas.
  • 1871 – É nomeado presidente da Sociedade de Apicultura de Brno.
  • 1873 – Mendel demite-se do cargo.
  • 1874 – É reeleito, mas por razões pessoais não ocupa o cargo.
  • 1884 – Morre a 6 de janeiro de 1884 aos 62 anos de idade.
  • 1900 – Os botânicos K. Correns (Alemanha), E. Tschermak (Áustria) e H. de Vries (Países Baixos) redescobrem o trabalho de Mendel, demonstrando a sua importância e estabelecendo as Leis de Mendel.
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George Washington https://canalfezhistoria.com/george-washington/ https://canalfezhistoria.com/george-washington/#respond Tue, 11 Mar 2025 19:24:02 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5839 George Washington (Condado de Westmoreland, 22 de fevereiro de 1732 – Mount Vernon, 14 de dezembro de 1799) foi o primeiro Presidente dos Estados Unidos (1789–1797), o comandante ex-chefe do Exército Continental durante a Guerra da Independência dos Estados Unidos, e um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos. Presidiu à convenção que elaborou a Constituição, a qual veio substituir os Artigos da Confederação e estabelecer a posição de Presidente. 

Washington foi eleito Presidente unanimemente pelos eleitores em 1788 e prestou serviço durante duas legislaturas. Supervisionou a criação de um governo forte e rico que manteve a neutralidade face às guerras na Europa, fez cessar as revoltas e obteve a aceitação entre todos os americanos. O seu estilo de liderança estabeleceu várias características de governação que, desde então, têm sido adotadas, como a utilização de um sistema de gabinete e de um discurso inaugural. A forma pacífica de transição da sua presidência para a de John Adams estabeleceu também uma tradição que se manteve até ao século XXI. Washington foi celebrado como “Pai da Nação” ainda durante a sua vida. 

Vida

Washington nasceu na Colónia da Virgínia, numa abastada família, proprietária de plantações de cânhamo e de muitos escravos. Após o falecimento do pai e do irmão mais velho, sendo ainda jovem, Washington desenvolveu uma forte ligação pessoal e profissional com o poderoso William Fairfax, que promoveu a sua carreira como batedor e soldado. Washington ascendeu rapidamente a oficial superior nas forças coloniais durante as primeiras fases da Guerra Franco-Indígena.

Escolhido pelo Segundo Congresso Continental, em 1775, para o posto de comandante-em-chefe do Exército Continental na Guerra da Independência, Washington conseguiu expulsar os britânicos de Boston em 1776, mas foi derrotado, e quase capturado, mais tarde nesse ano, quando perdeu a cidade de Nova Iorque. Após a travessia do rio Delaware no Inverno, Washington derrotou os britânicos em duas batalhas, reconquistou Nova Jérsia e restaurou o sentimento da causa dos patriotas. Ele, apesar de ter defendido ofensivas militares, foi contra alianças militares em seu tempo. 

Devido à sua estratégia, as forças revolucionárias capturaram dois grandes exércitos britânicos em Saratoga (1777) e em Yorktown (1781). Os historiadores elogiam Washington pela sua supervisão e selecção dos seus generais, reforço do moral e coesão do exército, coordenação com os governadores estaduais e com as unidades das milícias, relações com o Congresso e atenção aos abastecimentos, logística e formação. No entanto, em batalha, Washington foi várias vezes derrotado pelos generais britânicos, com exércitos de maior dimensão. Depois da vitória final em 1783, em vez de ascender ao poder, Washington demitiu-se de comandante-em-chefe, demonstrando a sua oposição à ditadura e o seu compromisso com o republicanismo americano. 

Insatisfeito com as fraquezas dos Artigos da Confederação, em 1787 Washington presidiu à Convenção Constitucional que elaborou a Constituição. Eleito por unanimidade como primeiro Presidente dos Estados Unidos em 1789, tentou unir as facções rivais. Apoiou o programa de Alexander Hamilton, que previa o pagamento de todas as dívidas nacionais e dos estados, a implementação de um sistema de taxas eficiente e a criação de um banco nacional (apesar da oposição de Thomas Jefferson) e foi derrotado pelo congresso liderado por Andrew Jackson. 

Washington proclamou a neutralidade dos Estados Unidos face às guerras que se desenrolavam na Europa após 1793. Evitou a guerra com a Grã-Bretanha e garantiu uma década de paz e comércio lucrativo com base no Tratado de Londres em 1795, apesar da forte oposição dos apoiantes de Jefferson. Embora nunca se tenha juntado oficialmente ao Partido Federalista, apoiou os seus programas. O discurso de despedida de Washington foi um apelo ao civismo e um aviso contra o partidarismo e envolvimento em conflitos externos. Retirou-se da presidência em 1797, regressando à sua residência em Mount Vernon e à sua vida doméstica para gerir vários projectos. O seu testamento incluiu a libertação de todos os seus escravos. 

Washington tinha a visão de uma grande e poderosa nação construída sobre bases republicanas, utilizando o poder federal. Procurou utilizar o governo nacional para preservar a liberdade, melhorar as infraestruturas, abrir caminho para as terra a oeste, promover o comércio, estabelecer uma capital permanente, reduzir as tensões regionais, e incentivar um espírito nacionalista americano. Quando morreu, Washington foi elogiado como “primeiro na guerra, primeiro na paz e primeiro nos corações dos seus compatriotas”, por Henry Lee. 

Os federalistas fizeram dele o símbolo do seu partido durante muitos anos, mas os democratas-republicanos continuaram a recear a sua influência e atrasaram a construção do Monumento a Washington. Enquanto líder da primeira revolução bem-sucedida na história contra um império colonial, Washington tornou-se um ícone internacional de libertação e nacionalismo, particularmente em França e na América Latina. Washington é, habitualmente, um dos três presidentes do Estados Unidos mais votados entre académicos e público em geral. 

Juventude

George Washington nasceu a 22 de Fevereiro de 1732 em Bridges Creek, na Virgínia, descendente de uma família oriunda da Inglaterra, que se estabeleceu na América por volta do ano de 1657. Apesar da boa situação econômica de seus pais, o pequeno George só estudou até o curso elementar, que frequentou até os 16 anos de idade na Escola de Williamsburg. Era filho de Augustine Washington e de Mary Ball Washington.

Originário de uma família tradicional, estável e abastada, família de latifundiários proprietários de terras da Virgínia, tornou-se, em 1748, zelador das propriedades de Shenandoah Valley pertencentes a Lord Fairfax e mais tarde de todo o condado de Culpeper. Estudou agrimensura e de 1749 a 1751 ocupou-se do levantamento topográfico de extensa região da Virgínia. Em 1752, herdou a grande propriedade paterna de Mount Vernon. 

Carreira militar

Ainda jovem participou ativamente das guerras contra os índios e franceses. Em 1753 foi encarregado de levar um ultimato aos franceses que haviam ultrapassado os limites do Ohio. Rejeitada a intimação, assumiu o posto de tenente-coronel, no comando de 150 homens. Servia no Primeiro Regimento de Virgínia (parte do exército britânico). Enquanto tentava expulsar os franceses do condado de Ohio, Washington ocasionou uma série de eventos que, no fim, levaram à Guerra Franco-Indígena (1754-1763). Em 1754, recebeu a missão de estabelecer um forte, onde hoje se localiza a cidade de Pittsburgh.

Iniciava-se a luta contra os franceses, que duraria até 1759. Encarregado de tomar a posição francesa de Fort Duquesne, em 28 de maio de 1754 Washington surpreendeu e derrotou as primeiras forças enviadas a seu encontro. Em 3 de Julho, os franceses contra-atacaram, venceram e concederam-lhe termos honrosos após uma resistência de dez horas vagas. George Washington reuniu os sobreviventes e procedeu à retirada. Nova derrota em Monongahela, como integrante das forças britânicas, não o desanimou. Recrutou um contingente de colonos de Virgínia e preparou o ataque, vitorioso, contra o Fort Duquesne, em Novembro de 1758. 

Deixou o exército em 1758, no posto de coronel, se casou com uma viúva rica, Martha Washington (1759), e se mudou para Virgínia com sua esposa e família, onde passou a viver do plantio de Tabaco na sua fazenda. Nos anos seguintes, Washington teria um significante papel na fundação dos Estados Unidos. 

Independência

O domínio da Inglaterra sobre as colônias americanas começou a causar revoltas, tendo então Washington iniciado a sua atividade política na Assembleia de oposição da Virgínia, a qual protestava perante o agravamento das tributações impostas e falta de liberdade de ação. Politicamente, Washington apoiava a resistência às decisões britânicas.

Em 1774 foi um dos sete delegados que representou a Virgínia no Primeiro Congresso Continental de Filadélfia, que se reuniu para discutir as medidas a tomar contra os colonizadores. Participou também do Segundo Congresso Continental, que se realizou no ano seguinte. Iniciadas as Guerra da Independência (1775-1783), em 15 de Junho de 1775 foi nomeado por John Adams comandante-em-chefe de todos os exércitos continentais, posto que assumiu em Cambridge, Massachusetts, em 3 de Julho. 

Conseguiu impor alguma ordem entre os 16 mil voluntários e, em Março de 1776, expulsou os britânicos de Boston. Em Setembro, após uma inepta defesa de Nova York, liderou brilhantemente o seu exército. Durante os cinco anos seguintes, estabeleceu um “jogo de nervos” com os britânicos em Nova York e Filadélfia, estimulando ataques ocasionais e conflitos como o de Trenton (1776), Princeton, Brandywine, Germantown (1777) e, posteriormente, a campanha do Vale Forge, em Monmouth (1778). 

Concluiu, em 6 de Fevereiro de 1778, uma aliança com os franceses. Praticou de uma guerra de guerrilha até que a Espanha e a França, com Rochambeau, entraram em cena, constituindo um decisivo peso para a derrota dos britânicos em Yorktown, Virgínia, em 19 de Outubro de 1781, pondo término à Guerra da Independência dos EUA. Dois anos depois era reconhecida a independência do país. Washington demitiu-se e retirou-se para Mount Vernon em 23 de Dezembro de 1783. 

Seus discursos durante a guerra se tornaram famosos por serem não só uma defesa do patriotismo, mas também um pedido de atenção aos valores morais e ao cristianismo, em 1776 escreveu que: 

“Enquanto, zelosamente, cumprimos os deveres de bons cidadãos e soldados, certamente não podemos estar desatentos aos deveres maiores da religião. À qualidade de patriota, seria a nossa maior glória, adicionar a qualidade mais distinta de cristão.”

Presidência (1789-1797)

Washington tomou posse em 30 de abril de 1789, fazendo o juramento de posse no Federal Hall, em Nova York. A sua cerimônia foi liderada pela milícia e uma banda, seguido por estadistas e dignatários estrangeiros em um desfile de inauguração, com uma multidão de 10.000 pessoas. O chanceler Robert R. Livingston fez o juramento, usando uma Bíblia fornecida pelos maçons, após a qual ele recebeu uma saudação de 13 armas.

Na Câmara do Senado ele leu seu discurso, pedindo que “aquele Todo Poderoso que governa o universo, que preside os conselhos das nações – e cujas ajudas providenciais possam suprir todo defeito humano, consagre as liberdades e a felicidade do povo dos Estados Unidos”. “Com a sua bênção”. Ele recusou um salário, mas o Congresso mais tarde forneceu US$ 25.000 por ano (o equivalente a cerca de US$ 715.000 em 2018), e ele aceitou, para cobrir os custos da presidência. 

Washington escreveu a James Madison: “Como o primeiro de tudo em nossa situação servirá para estabelecer um precedente, é desejoso de minha parte que esses precedentes sejam fixados em princípios verdadeiros”. Para esse fim, ele preferiu o título “Sr. Presidente” do que nomes mais majestosos propostos pelo Senado, incluindo “Sua Excelência” e “Sua Alteza o Presidente”. Seus precedentes republicanos também incluíam o discurso de posse, mensagens ao Congresso e a forma de gabinete do poder executivo. 

Washington planejava se demitir depois de seu primeiro mandato, mas o conflito político na nação convenceu-o de que ele deveria permanecer no cargo. Ele era um administrador capaz, juiz de talento e caráter, e falava regularmente com chefes de departamento para obter seus conselhos. Ele tolerou pontos de vista opostos, apesar do medo de que um sistema democrático levasse à violência política, e conduziu uma suave transição de poder para seu sucessor.

Washington permaneceu apartidário durante toda a sua presidência e se opôs à divisão dos partidos políticos, mas ele favoreceu um governo central forte, era simpático a uma forma federalista de governo e desconfiava da oposição republicana. Washington lidou com grandes problemas. A antiga Confederação não tinha os poderes para lidar com sua carga de trabalho, tinha liderança fraca, nenhum executivo, uma pequena burocracia de funcionários, uma grande dívida, papel-moeda sem valor e nenhum poder de estabelecer impostos.

Ele tinha a tarefa de montar um departamento executivo e confiava em Tobias Lear para aconselhar a seleção de seus oficiais. A Grã-Bretanha recusou-se a abandonar seus fortes no oeste americano, e os piratas da Barbária prenderam navios mercantes americanos no Mediterrâneo, enquanto o exército dos EUA era minúsculo e a Marinha inexistente. 

Gabinete e Departamentos Executivos

O Congresso criou os departamentos executivos em 1789, incluindo o Departamento de Estado em julho, o Departamento de Guerra em agosto e o Departamento do Tesouro em setembro. Washington nomeou o colega Virginiano Edmund Randolph como Procurador Geral, Samuel Osgood para o Correio Geral, Thomas Jefferson como Secretário de Estado, e seu sucessor comandante Henry Knox como Secretário de Guerra. Finalmente, ele nomeou Alexander Hamilton como Secretário do Tesouro. O gabinete de Washington tornou-se um órgão consultivo, e não obrigatório pela Constituição. 

Os membros do gabinete de Washington formaram partidos rivais com pontos de vista nitidamente opostos, mais ferozmente ilustrados entre Hamilton e Jefferson. Ele restringiu as discussões do gabinete aos temas de sua escolha, sem participar do debate. Ele ocasionalmente solicitava opiniões do gabinete por escrito e esperava que os chefes de departamento cumprissem suas decisões. Hamilton desempenhou um papel ativo e influente, aconselhando o Congresso e seus líderes. 

Questões Domésticas

Washington era apolítico e se opunha à formação de partidos, suspeitando que o conflito minaria o republicanismo. Seus conselheiros mais próximos formaram duas facções, pressagiando o primeiro sistema partidário. O secretário do Tesouro, Alexander Hamilton, formou o Partido Federalista para promover o crédito nacional e uma nação financeiramente poderosa. O secretário de Estado Thomas Jefferson se opôs à agenda de Hamilton e fundou os republicanos de Jefferson. Washington favoreceu a agenda de Hamilton, que entrou em vigor e resultou em amarga controvérsia. 

Washington proclamou o dia 26 de novembro como um dia de Ação de Graças, a fim de incentivar a unidade nacional dizendo: “É dever de todas as nações reconhecer a providência do Deus Todo-Poderoso, obedecer a Sua vontade, ser grato por seus benefícios e humildemente implorar sua proteção e favor”. Em seu Dia de Ação de Graças designado (que mais tarde se tornou um feriado anual), ele jejuou enquanto visitava os devedores na prisão, mas lhes forneceu comida e cerveja. 

Banco Nacional

O estabelecimento do crédito público tornou-se um desafio primordial para o governo federal; Hamilton apresentou um relatório sobre o assunto a um Congresso num beco sem saída, e mais tarde, Madison e Jefferson alcançou o compromisso de 1790 em que Jefferson concordou com as propostas de dívida de Hamilton em troca para mover a capital da nação temporariamente para Filadélfia e depois para o sul perto de Georgetown no rio Potomac. Os termos foram legislados no Funding Act e no Residence Act, ambos os quais Washington assinou como lei. O Congresso autorizou a assunção e pagamento das dívidas do país, com financiamento de direitos aduaneiros e impostos especiais de consumo. 

Hamilton criou controvérsia entre os membros do gabinete, defendendo o estabelecimento do Primeiro Banco dos Estados Unidos. Madison e Jefferson se opuseram, mas o banco passou facilmente pelo Congresso. Jefferson e Randolph insistiram que o novo banco estava além da autoridade concedida pela constituição, como Hamilton acreditava. Washington tomou o partido de Hamilton e assinou a legislação em 25 de fevereiro; a fenda entre o último e Jefferson tornou-se abertamente hostil. 

A primeira crise financeira do país ocorreu em março de 1792. Os federalistas de Hamilton exploraram grandes empréstimos para obter o controle dos títulos de dívida dos EUA, causando uma corrida ao banco nacional; os mercados voltaram ao normal em meados de abril. Jefferson acreditava que Hamilton fazia parte do esquema, apesar dos esforços deste último para melhorar, e Washington novamente se viu no meio de uma rivalidade. 

Conflitos de Jefferson-Hamilton

Jefferson e Hamilton adotaram princípios políticos diametralmente opostos. Hamilton acreditava em um forte governo nacional exigindo que um banco nacional e empréstimos estrangeiros funcionassem, enquanto Jefferson acreditava que o governo deveria ser dirigido principalmente pelos estados e pelo elemento da fazenda; Ele também se ressentiu da ideia de bancos e empréstimos externos. Para consternação de Washington, persistiram disputas internas entre os dois homens.

Hamilton exigiu que Jefferson renunciasse se ele não pudesse apoiar Washington, e ao invés de responder publicamente, Jefferson disse a Washington que o sistema fiscal de Hamilton levaria à derrubada da República. Washington pediu aos dois secretários que fizessem uma trégua pelo bem da nação, mas eles o ignoraram. Washington reverteu sua decisão de se aposentar após seu primeiro mandato, para minimizar os conflitos partidários, mas a contenda continuou após sua reeleição. As ações políticas de Jefferson, seu apoio ao Diário Nacional de Freneau, e sua tentativa de minar Hamilton quase levaram Washington a demiti-lo do gabinete; Jefferson finalmente renunciou a sua posição em dezembro de 1793 e foi abandonado por Washington. 

A disputa levou aos partidos federalistas e republicanos a ficarem bem definidos, e a filiação partidária tornou-se necessária para a eleição para o Congresso em 1794. Washington permaneceu distante dos ataques do Congresso a Hamilton, mas ele não o protegeu publicamente. O escândalo sexual de Hamilton-Reynolds fez com que Hamilton caísse em desgraça, mas Washington continuou a considerá-lo “muito estimado” como a força dominante no estabelecimento da lei e do governo federal. 

Rebelião do Uísque

Em março de 1791, o Congresso impôs um imposto sobre bebidas destiladas para ajudar a reduzir a dívida nacional; os fazendeiros de grãos protestaram fortemente nos distritos da fronteira da Pensilvânia, dizendo que eles não estavam representados e assumindo grande parte da dívida, comparando sua situação com a taxação britânica durante a revolução. Washington, depois de apelar pela paz, emitiu uma proclamação em 25 de setembro, ameaçando o uso da força militar e lembrando aos manifestantes que, ao contrário do governo da coroa britânica, a lei federal foi emitida por representantes eleitos pelo estado.

As ameaças e a violência contra os cobradores de impostos aumentaram em desafio à autoridade federal em 1794, dando origem à rebelião do uísque. O exército federal não estava à altura da tarefa, então Washington invocou o Ato de Milícia de 1792 para convocar milícias estaduais. Os governadores enviaram tropas, com Washington assumindo o comando e nomeando o Cavaleiro Leve Harry Lee para liderar as tropas nos distritos rebeldes. Os rebeldes se dispersaram e não houve brigas. 

A ação vigorosa de Washington demonstrou que o governo poderia se proteger e a seus cobradores de impostos. Isso representou o primeiro uso da força militar federal contra os estados e cidadãos, e continua sendo a única vez em que um presidente em exercício comandou as tropas no campo. Washington justificou sua ação contra “certas sociedades auto-criadas” que ele considerava “organizações subversivas” que ameaçavam a união nacional. Ele não contestou seu direito de protestar, mas insistiu que sua dissidência não violasse a lei federal. O Congresso concordou e deram seus parabéns a ele, com apenas Madison e Jefferson expressando indiferença. 

Negócios Estrangeiros

Em abril de 1792, as Guerras Revolucionárias Francesas começaram entre a Grã-Bretanha e a França, e Washington, com o consentimento do gabinete, declarou a neutralidade dos Estados Unidos da América em 1793. O governo revolucionário da França enviou o diplomata Citizen Genêt para a América. Ele foi recebido com grande entusiasmo e começou a promover o caso da França, usando uma rede de novas Sociedades Democratas-Republicanas nas principais cidades. Chegou a emitir cartas francesas de marca e represálias a navios franceses tripulados por marinheiros americanos, para que pudessem capturar navios mercantes britânicos. Washington denunciou as sociedades e exigiu que os franceses se lembrassem de Genêt. 

Hamilton formulou o Tratado de Jay, para normalizar as relações comerciais com a Grã-Bretanha, removendo-as dos fortes ocidentais, e também para resolver dívidas financeiras remanescentes da Revolução. O presidente do Supremo Tribunal de Justiça, John Jay, atuando como negociador de Washington, assinou o tratado em 19 de novembro de 1794; os Jeffersonianos apoiaram a França. Washington deliberou, depois apoiou o tratado porque queria evitar uma guerra com a Grã-Bretanha; ele ficou profundamente desapontado por suas disposições favorecerem a Grã-Bretanha. Depois de ter mobilizado a opinião pública e conseguido a ratificação no Senado, Washington foi submetido a severas e frequentes críticas públicas. 

Os britânicos concordaram em deixar seus fortes ao redor dos Grandes Lagos, e a fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá foi posteriormente modificada. Numerosas dívidas pré-revolucionárias foram liquidadas, e os britânicos abriram suas colônias nas Índias Ocidentais para o comércio americano. O tratado garantiu a paz com a Grã-Bretanha e uma década de comércio próspero. Jefferson alegou que irritou a França e “convidou ao invés de evitar” a guerra.

As relações com a França deterioraram-se depois, deixando o futuro presidente John Adams com uma guerra prospectiva. Quando James Monroe, ministro americano da França, foi chamado de volta por Washington por sua oposição ao Tratado, os franceses se recusaram a aceitar seu substituto, Charles Cotesworth Pinckney e dois dias antes do término do mandato de Washington, o Diretório Francês declarou a autoridade de tomar navios americanos. 

Assuntos Indígenas

Uma questão inicial para Washington era a ocupação britânica na fronteira noroeste e seus esforços conjuntos para incentivar os índios contra os colonos. Os índios do Noroeste aliados com os britânicos sob o Chefe-Miami da tartaruga pequena lutaram para resistir a expansão americana, e de 1783 a 1790, 1.500 colonos foram mortos pelos índios. 

Washington decidiu que os assuntos indígenas seriam “totalmente dirigidos pelos grandes princípios da justiça e da humanidade”. Ele providenciou que seus interesses de terra fossem negociados por tratados. A administração considerava tribos poderosas como nações estrangeiras, e Washington até fumava o cachimbo da paz e bebia vinho com eles na casa presidencial da Filadélfia. 

Washington fez numerosas tentativas de conciliar os índios; ele igualou a morte de índios com a dos brancos e procurou integrá-los na cultura americana. O secretário de guerra Henry Knox tentou incentivar a agricultura entre as tribos. 

No sudoeste, as negociações fracassaram entre os comissários federais e atacaram as tribos indígenas em busca de retribuição. Washington convidou o chefe do Creek, Alexander McGillivray, e vinte e quatro chefes principais para Nova York, para negociar um tratado; ele foi tratado como um dignatário estrangeiro. Em 7 de agosto de 1790, no Federal Hall, Knox e McGillivray concluíram o Tratado de Nova York, que fornecia às tribos suprimentos agrícolas, e McGillivray, uma patente de Brigadeiro General do Exército e um salário de US$ 1.500. 

Em 1790, Washington enviou o brigadeiro Josiah Harmar para pacificar os índios do noroeste; Harmar foi duas vezes encaminhado pela Tartaruga Pequena e forçado a se retirar. A Confederação Ocidental das tribos usou táticas de guerrilha e foi uma força eficaz contra o exército americano esparsamente tripulado. Washington enviou o major-general Arthur St. Clair de Fort Washington a uma expedição para restaurar a paz no território em 1791.

Em 4 de novembro, as forças de St. Clair foram emboscadas e derrotadas com poucos sobreviventes, apesar do alerta de Washington de ataques surpresa. Washington ficou indignado com a brutalidade dos índios e a execução de cativos, incluindo mulheres e crianças. St. Clair renunciou sua comissão, e Washington substituiu-o pelo general Anthony Wayne, herói da Guerra Revolucionária. De 1792 a 1793, Wayne instruiu suas tropas sobre as táticas de guerra na Índia e instalou a disciplina que faltava em St. Clair. Em agosto de 1794, Washington enviou Wayne para o território indígena com autoridade para expulsá-los, queimando suas aldeias e plantações no vale de Maumee.

Em 24 de agosto, o exército norte-americano sob a liderança de Wayne derrotou a confederação ocidental na batalha das madeiras caídas. Em agosto de 1795, dois terços de Ohio foram abertos para assentamentos americanos sob o Tratado de Greenville. 

Segundo Mandato

Aproximando-se da eleição de 1792, Hamilton pediu ao popular Washington para concorrer a um segundo mandato. Muitos levaram seu silêncio sobre esse assunto como concordância, vendo-o como o único candidato viável. O Colégio Eleitoral, por unanimidade, reelegeu-o Presidente em 13 de fevereiro de 1793 e John Adams como Vice-Presidente por uma votação de 77 a 50. 

Após críticas sobre sua comemoração de aniversário e dando uma impressão “monarquista”, Washington chegou sozinho em sua posse em uma carruagem simples. A posse foi realizada na Câmara do Congresso do Senado, na Filadélfia, na segunda-feira, 4 de março de 1793, e o juramento de posse foi administrado pelo juiz William Cushing. Esta foi a primeira inauguração a ter lugar no capitólio temporário da Filadélfia. Washington fez o menor discurso de posse já registrado, com apenas 135 palavras, em quatro sentenças. 

Os rivais Jefferson e Hamilton concordaram em uma coisa, que Washington deveria permanecer no cargo por um segundo mandato. Diferenças de opinião estavam centradas em torno da Revolução Francesa, com Washington permanecendo neutro, e sobre um banco nacional, que ele apoiou fortemente. Isso ficou conhecido como a era federalista. 

Nos meses finais de sua presidência, Washington foi assaltado por seus inimigos políticos e por uma imprensa partidária que o acusou de ser ambicioso e ganancioso. Ele argumentou que não havia recebido salário durante a guerra e arriscou sua vida em batalha; ele considerava a imprensa como uma força desunida e “diabólica” de falsidades. Isso influenciou seu discurso de despedida, que relatou os anos preocupantes de lutas internas e assassinato de caráter por grande parte da imprensa. 

Em 1793, Washington assinou a Lei do Escravo Fugitivo, permitindo que os proprietários de escravos cruzassem as linhas do estado e recuperassem os escravos fugitivos. Ele também assinou o Ato de Comércio de Escravos de 1794, que limitava o envolvimento americano no comércio de escravos do Atlântico. Em 1794, ele assinou o Ato Naval que criou a Marinha dos Estados Unidos para combater piratas da Barbária antes das Guerras da Barbária. Washington nomeou Oliver Wolcott Jr., como secretário do Tesouro em 1795, substituindo Hamilton, que renunciou após a rebelião do uísque. O resultado da Rebelião fortaleceu o vínculo de Washington com Hamilton, distanciando-o de Knox, que renunciou. 

No final do seu segundo mandato, Washington se aposentou por motivos pessoais e políticos, fatigado e repugnado com ataques pessoais, e para assegurar que uma eleição presidencial verdadeiramente contestada pudesse ser realizada. Ele não se sentiu obrigado a se limitar com dois mandatos, mas sua aposentadoria acabou por abrir precedentes. O limite de dois mandatos para a presidência foi formalizado com a adoção, em 1951, da vigésima segunda emenda à Constituição dos Estados Unidos. Washington é frequentemente creditado com a definição do diretor de uma presidência de dois mandatos, mas foi Thomas Jefferson quem primeiro se recusou a concorrer a um terceiro mandato por motivos políticos. 

Discurso de Despedida

Washington planejava se aposentar depois de seu primeiro mandato e, em 1792, mandou James Madison esboçar uma mensagem de despedida com um determinado sentimento e tema; depois de sua reeleição, ele e Madison finalizaram. A versão final foi publicada em 19 de setembro de 1796, pelo American Daily Advertiser, de David Claypoole, e por outros três jornais da Filadélfia. Advertiu contra as alianças estrangeiras e sua influência nos assuntos domésticos e contra o amargo partidarismo na política interna.

Também pediu que os homens superassem o partidarismo e servissem ao bem comum, enfatizando que os Estados Unidos devem se concentrar em seus próprios interesses. Ele aconselhou a amizade e o comércio com todas as nações, mas desaconselhou o envolvimento em guerras europeias. Ele enfatizou a importância da religião, afirmando que “religião e moralidade são suportes indispensáveis” em uma república. 

O discurso de Washington, influenciado por Hamilton, só agravou a política bipartidária, definindo o tom para as próximas eleições de 1796, que colocaram Jefferson contra Adams. Washington favoreceu a ideologia federalista, diz-se que apoiou Adams, mas sem endosso. Em 7 de dezembro de 1796, Washington leu seu oitavo discurso anual ao Congresso.

Ele falou diante da casa, vestiu um terno de veludo preto, e colocou sua espada, e foi bem recebido pelo “maior grupo de cidadãos” na galeria lotada. Ele defendeu uma academia militar, e comemorou a partida britânica de fortes do Noroeste, e que Argel tinha lançado prisioneiros americanos, um evento que facilitaria o Departamento da Marinha. Em 8 de fevereiro de 1797, Adams foi eleito presidente e Jefferson vice-presidente. 

O discurso de despedida de Washington provou ser uma das declarações mais influentes sobre o republicanismo. Destacou a necessidade e importância da união nacional, o valor da Constituição, o estado de direito, os males dos partidos políticos e as próprias virtudes de um povo republicano. Ele se referiu à moralidade como “uma fonte necessária de governo popular”, afirmando: “O que quer que seja concedido à influência da educação refinada em mentes de estrutura, razão e experiência peculiares, nos proíbem esperar que a moralidade nacional possa prevalecer em exclusão de princípio religioso.” 

Antes de suas observações finais, no discurso expressou este sentimento: 

Embora eu esteja inconsciente do erro intencional, ao mesmo tempo em que analiso os incidentes de minha administração, sinto meus defeitos em não pensar que provavelmente cometi muitos erros. Quaisquer que sejam, peço fervorosamente ao Todo-Poderoso para evitar ou mitigar os males a que possam tender, levarei também comigo a esperança de que meu país nunca deixará de vê-los com indulgência, e que, depois de quarenta e cinco anos de minha vida dedicados a seu serviço com zelo reto, defeitos de habilidades incompetentes serão consignados ao esquecimento, como eu devo em breve estar nas mansões de repouso”.

Fim de vida

Recusou-se a concorrer ao terceiro mandato, o que estabeleceu uma norma na vida eleitoral americana. Após um discurso de adeus ao povo americano, em 19 de Setembro de 1796, retirou-se da vida pública em 3 de Março de 1797, quando acabou o seu segundo mandato, retirando-se para a propriedade herdada do meio-irmão em Mount Vernon, e, com simplicidade digna, voltou aos seus trabalhos agrícolas. Em seu discurso de despedida, deplorava o partidarismo e clamava pela neutralidade norte-americana em assuntos externos. 

Em 1798, entretanto, a ameaça de guerra com a França levou-o a aceitar, em 3 de Julho, a comissão de tenente-general e a chefia do comando do Exército, postos que conservou até morrer. George Washington faleceu em Mount Vernon, em 14 de Dezembro de 1799. Foi “o primeiro na guerra, o primeiro na paz e o primeiro no coração de seus concidadãos”, disse Henry Lee, um de seus contemporâneos no dia de sua morte. É considerado o “Pai dos Estados Unidos”. 

Memoriais

A face e imagem de George Washington é usada com frequência nos símbolos oficiais dos Estados Unidos. A capital dos Estados Unidos, Washington, DC, é assim chamada em sua homenagem. Possivelmente a mais proeminente comemoração de seu legado é o uso de sua imagem na nota de um dólar e na moeda de 25 cents. Washington, juntamente com Theodore Roosevelt, Thomas Jefferson e Abraham Lincoln, está representado no Monte Rushmore. 

Veja mais:

Uma das mais respeitadas universidades do mundo, a Universidade George Washington, localizada em Washington, DC, teve o terreno do seu campus principal doado por George Washington, que expressou a necessidade de se ter uma universidade e centro de pesquisas de alto nível na capital do país.

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Gengis Khan https://canalfezhistoria.com/gengis-khan/ https://canalfezhistoria.com/gengis-khan/#respond Tue, 11 Mar 2025 19:15:58 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5833 Gengis Khan, grafado também como Genghis Khan (em mongol: Чингис Хаан; transl.: Tchinghis Khaan; 1162 — 18 de agosto de 1227) foi o título de um conquistador e também, atualmente, o nome do imperador mongol (cã), nascido com o nome de Temudjin nas proximidades do rio Onon, perto do lago Baikal. Gengis Khan nasceu cercado de lendas sobre a vinda de um lobo cinzento que devorava toda a Terra.

Ainda jovem matou o lobo e ficou muito famoso em sua tribo, enfrentou a rejeição de sua família por seu próprio clã, mas voltaria para conquistar sua liderança, vencer seus rivais de clãs distintos e unificar os povos mongóis sob seu comando. Estrategista brilhante, com hábeis arqueiros montados à sua disposição, venceu a Muralha da China, conquistou aquele país e estendeu o seu império em direção ao oeste e ao sul.

Gengis morreria antes de ver seu império alcançar sua extensão máxima, mas todos os líderes mongóis posteriores associariam sua própria glória às conquistas de Gengis Khan, “que foi um dos comandantes militares mais bem sucedidos da história da humanidade”. Segundo levantamento feito pela revista Mundo Estranho, ele foi o imperador que mais conquistou territórios na história, dominando quase 20 milhões de km² (o equivalente a 2,3 vezes do território brasileiro). 

Juventude

Temudjin nasceu na Mongólia na década de 1160, provavelmente em 1162. Supõe-se que seja descendente de um líder mongol conhecido como Kabul Khan, do clã Bojigin, que por breves anos obteve controle sobre uma Mongólia unificada. Entretanto, na época do nascimento de Temudjin, os mongóis estavam divididos em diversas tribos e clãs, cada uma governada por um cã, ou “Senhor”, que se impunha mais pela força do que pela ascendência nobre. Com Temudjin não seria diferente.

Quando tinha nove anos, Temudjin foi ao clã dos Mercitas para escolher uma esposa e refazer a paz entre os clãs (há muito tempo, seu pai havia roubado a esposa do Khan dos Merkitas e se casado com ela, ela era a mãe de Temudjin), mas no caminho, parou para pernoitar num clã aliado, os Onggirat, aonde se apaixonou por Borte. Pediu ao pai para praticar a escolha de esposas ali, porém, ao invés de apenas praticar, escolheu oficialmente Borte como sua noiva.

No caminho de volta, seu pai, Yesugei, foi envenenado por membros da tribo dos tártaros. Sem que os filhos de Yesugei tivessem idade para assumir o controle da tribo, esta passou a ser comandada por um novo Khan, Targutai, ex-soldado de Yesugei, que expulsou a família do clã para evitar futura contestação de sua liderança, forçando-os a sobreviver nas estepes, sem gado ou cavalos. Passou a infância inteira tentando fugir do algoz Targutai.

Quando tinha 16 anos, a fim de cimentar alianças entre a sua tribo e tribo de sua esposa, Börte, teve quatro filhos que receberam os nomes: Jochi (1185-1226), Chagatai (1187-1241), Gedei (1189-1241), e Tolui (1190-1232). Ele também teve outros filhos de outras mulheres, mas seus nomes não são lembrados porque não recebem uma herança que lhes dartam autoridade no clã. Aos 17 anos conseguiu reencontrar Börte, casando-se. 

Ascensão

Como quase todos os mongóis, Temudjin provavelmente tinha sido treinado como arqueiro montado desde muito jovem. A habilidade na montaria, comandada apenas com os joelhos e a destreza no arco e flecha, aliada a uma vida dura nas estepes tornavam os guerreiros mongóis muito temidos e respeitados. Depois de casar-se com Borte, Temudjin seguiu com ela por um caminho incerto pela Mongólia, até que, um dia, os dois foram encontrados por um grupo de merquites comandados por Chitedu (ex-marido da mãe de Temudjin), que queria a esposa de Temudjin como vingança pela ofensa que seu pai havia feito antigamente. Temudjin reuniu alguns homens e foi até Jamukha pedir ajuda para resgatar Borte. 

Ao destruir os merquites, Temudjin encontrou provavelmente Börte Ujin grávida, fazendo sua primeira paternidade ser duvidosa. Após restabelecer seu clã (formado por seus homens que sobreviveram à guerra e pelo remanescente do povo dos merquites), Temudjin seguiu como nômade pela Mongólia, porém alguns homens de Jamukha se uniram a ele, ganhando o rancor de Jamukha, que ordenou a seus homens escravizarem e levar Temudjin até a China. 

Temudjin foi preso e humilhado pelos Chineses. 

Sua esposa Borte consegue resgatá-lo e não quis voltar à Mongólia, afirmando que ela estava corrompida e sem leis. Determinado a unificar a Mongólia, Temudjin determinou as leis dos mongóis. Nessa época, a força de Temudjin era conhecida em toda a Mongólia. Temudjin seguiu pregando a unificação da Mongólia nos clãs e muitos khans se uniram a ele, porém, a maioria dos clãs se uniram a Jamukha, que pregava a destruição de Temudjin. Finalmente, a Mongólia estava dividida em duas: o exército de Temudjin e o exército de Jamukha. Os dois exércitos se encontraram para a batalha final na qual Temudjin foi o vencedor. 

Em 1206, uma assembleia entre os chefes de todas as tribos das estepes proclamou Temudjin, então com quarenta e cinco anos, como Gengis Khan, o “cã dos cãs”. Criou-se uma hierarquia administrativa e militar e um exército foi treinado e organizado. Para comandar um exército de milhares de homens e diminuir o poder dos antigos khans, Gengis criou uma hierarquia militar baseada na unidade mínima de dez homens comandadas por um deles.

Dez unidades de dez homens cada seriam comandadas por um novo líder, que por sua vez faria parte de um grupo de mil sujeitos a um comandante determinado; este, por sua vez, obedecia a um general que tinha sob seu controle dez mil homens. Acima dos generais, apenas Gengis Khan. 

Com um exército tão poderoso, Gengis Khan resolveu partir para o sul e invadir as terras do reino de Hsi Hsia, também chamado de Xixia, vassalos do império chinês, que, nessa época, se dividia em duas dinastias: o império Jin, ao norte e o império Song, ao sul. Pela primeira vez, os mongóis tiveram de enfrentar cidades muradas. Sem ainda conhecerem ou dominarem as máquinas de cerco, a capital não pôde ser conquistada. Porém, diante da recusa do império Jin em mandar um exército ao auxílio ao reino Xixia, este se submeteu ao poderio militar dos mongóis e lhes pagou um grande tributo que incluiu a filha de seu governante, dada como segunda esposa a Gengis Khan. 

Táticas de guerra

Gengis criou táticas de guerra revolucionárias para as batalhas nas estepes. Seu exército era disciplinado, temido e impiedoso. A arma tradicional dos mongóis era o arco mongol, espécie de arco recurvo composto por madeira, cola e chifres de animais, que possibilitava que com a redução de força relativa ao arco longo, os arqueiros conseguissem atirar com mais agilidade e mais precisão. O tamanho relativamente menor em relação ao arco longo, também possibilitava maior portabilidade em cima da montaria, com isso tornou obrigatório o treinamento dessa arma.

Os cavaleiros eram treinados para atirar a flecha com o cavalo em movimento. Um detalhe era que, para maior precisão, a flecha era disparada no momento em que o cavalo estivesse em pleno galope. Esses cavaleiros, os chamados mangudais, eram uma arma poderosa contra a infantaria inimiga, já que juntavam dois princípios: arco e flecha e cavalaria, ou seja, um mangudai poderia ser rápido e preciso para atingir os inimigos mesmo estando longe. O arco mongol era até mais potente que os arcos longos utilizados pelos ingleses e galeses com grande êxito em batalhas contra os franceses durante a Guerra dos Cem anos. 

Conquistas

Em 1207-1208, os mongóis foram forçados a expandir seu território de pastagem devido a algum problema climático nas estepes e conquistaram o reino tangute de Hsi Hsia. Em seguida, atravessaram a muralha contornando-a e chegaram à China, cujo reino estava dividido entre as dinastias Jin, ao norte e Song, ao sul. As vastas plantações de arroz e a riqueza da cidade atraíram mais a atenção de Genghis do que a possibilidade de se tornar senhor da China.

Na conquista do reino Jin, Genghis Khan recrutou um jovem chinês chamado Yeh-lu Ch’u-ts’-ai como seu conselheiro pessoal. A sua influência tornou Genghis mais tolerante e menos agressivo em batalha, estimulando-o a evitar esforços exagerados na guerra e conservar as terras cultivadas ao invés de transformá-las em pastagens. 

Gengis marchou até Pequim, o mais avançado centro urbano daquela época e, quando viu que a cidade era cercada de muralhas de doze metros de altura, descobriu que suas táticas de guerra em campo aberto, nas estepes, não o ajudariam naquele momento. Desse modo, não teve pressa e acampou seu exército, cercando a cidade e impediu que os suprimentos entrassem em Pequim. Esses suprimentos foram usados para suprir seu exército. Com a ajuda de engenheiros chineses dissidentes, construiu catapultas e outros artefatos bélicos e finalmente invadiu e dominou Pequim.

Gengis, após o ataque inicial aos Jin, retirou-se para a Mongólia, enquanto seus generais se encarregavam de estabelecer seu domínio na China Jin. Em 1218, um acidente diplomático provocou a ira de Genghis sobre o reino turco de Kharizm, no norte da Pérsia: um mensageiro trouxe-lhe a cabeça de um de seus generais enviado em missão diplomática à Pérsia. O Cã cavalgou à frente de mais de duzentos mil homens e cerca de dez mil máquinas de assédio adquiridas dos chineses.

Houve poucas batalhas campais e os mongóis empreenderam guerras de cerco às cidades fortificadas da Pérsia, que capturaram uma a uma. Algumas, como Bucara e Samarcanda se tornariam, no futuro, espelhos longínquos da presença mongol no sudoeste da Ásia. A velha cidade de Nichapur foi arrasada e nem mesmo os animais ali sobreviveram ao ataque mongol. O exército de Genghis matou mais de um milhão de persas. 

As perdas humanas em Khwarizm contavam-se aos milhares. Genghis e seus generais impunham punições brutais aos inimigos. A proximidade da Pérsia com a Europa gerou a fama de selvageria dos mongóis que assombraria o continente pelas décadas seguintes. 

Em 1227, enquanto os generais de Gengis conquistavam territórios no sul da Rússia e na Ucrânia, o Grande Cã foi forçado a retornar para as estepes para conter uma revolta de Hsi Hsia, que havia recusado a convocação para a campanha contra Khwarizm. Após vencer os tangutes, Gengis Khan morreu acometido por uma febre alta e dores na cabeça. 

Legado

Antes da morte de Gengis Khan, este estabeleceu seu filho, Ogedei, como seu sucessor. Ogedei encarregou-se de expandir o território mongol ao máximo, da Síria à Indochina, da Pérsia à Sibéria, da Hungria à China. Posteriormente, o grande império seria dividido em 4 partes, entre filhos e netos de Genghis, porém nenhum destes novos reinos, ou canatos, teria uma existência longa. 

No início do século XIV, Tamerlão, alegando ser descendente de Gengis Khan, se tornaria o Cã de um breve império mongol que abarcaria toda a Mesopotâmia, a Pérsia, o Afeganistão, o Paquistão e o norte da Índia. Ainda nesse século, os tártaros ressurgiriam, inspirados pelas conquistas de Genghis, para tomar o território do dissolvido Canato da Horda Dourada, na Rússia. Vários outros levantes mongóis de menor importância tomariam lugar nos séculos seguintes, mas o meio de vida nômade e a incapacidade de estabelecer uma indústria armamentista logo tornaria os hábeis cavaleiros montados obsoletos frente às novas artilharias dos países que ali faziam fronteiras. 

Na Mongólia atual, Gengis Khan é considerado o herói máximo e o pai daquela nação, cujo culto à imagem jamais se deixou apagar, mesmo durante o regime comunista. O aeroporto da capital do país foi renomeado para Aeroporto Internacional Gengis-Khan, em homenagem ao imperador. Contam as lendas que todos os envolvidos no enterro de Gengis Khan foram mortos para manter em segredo o local onde ele foi enterrado. E esse local realmente jamais foi encontrado. 

Veja mais:

Descendência

Um estudo realizado em 2002 concluiu que 8% da população da região anteriormente ocupada pelo Império Mongol, uma área entre o oceano Pacífico e o Mar Cáspio (o que corresponde a 0,5% da população mundial) podem ser descendentes de Gengis Khan. Um outro estudo de 2007 afirma que 34,8% dos atuais mongóis são descendentes de Gengis Khan.

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Galileu Galilei https://canalfezhistoria.com/galileu-galilei/ https://canalfezhistoria.com/galileu-galilei/#respond Tue, 11 Mar 2025 18:25:35 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5822 Galileu Galilei (em italiano: Galileo Galilei; Pisa, 15 de fevereiro de 1564 — Florença, 8 de janeiro de 1642) foi um físico, matemático, astrônomo e filósofo florentino. 

Galileu Galilei foi personalidade fundamental na revolução científica. Foi o mais velho dos sete filhos do alaudista Vincenzo Galilei e de Giulia Ammannati. Viveu boa parte de sua vida entre Pisa e Florença, originalmente na época de seu nascimento ambas parte do Ducado de Florença e, mais tarde, na época de seu falecimento, integrantes do Grão-Ducado da Toscana. 

Galileu Galilei desenvolveu os primeiros estudos sistemáticos do movimento uniformemente acelerado e do movimento do pêndulo. Descobriu a lei dos corpos e enunciou o princípio da inércia e o conceito de referencial inercial, ideias precursoras da mecânica newtoniana. Galileu melhorou significativamente o telescópio refrator e com ele descobriu as manchas solares, as montanhas da Lua, as fases de Vénus, quatro dos satélites de Júpiter, os anéis de Saturno, as estrelas da Via Láctea. Estas descobertas contribuíram decisivamente na defesa do heliocentrismo. Contudo a principal contribuição de Galileu foi para o método científico, pois a ciência assentava numa metodologia aristotélica. 

O físico desenvolveu ainda vários instrumentos como a balança hidrostática, um tipo de compasso geométrico que permitia medir ângulos e áreas, o termómetro de Galileu e o precursor do relógio de pêndulo. O método empírico, defendido por Galileu, constitui um corte com o método aristotélico mais abstrato utilizado nessa época, devido a isto Galileu é considerado como o “pai da ciência moderna”. 

Estudos em Pisa

Galileu foi excelente aluno na escola dominical de Vallombrosa e teve intenção de ingressar no monastério. Seu pai não permitiu e inscreveu-o na Universidade de Pisa para estudar medicina. No entanto desistiu de estudar medicina dois anos depois e decidiu estudar matemática com Ostilio Ricci, discípulo do famoso Niccolò Tartaglia. Seu pai tampouco desejava que o filho estudasse matemática clássica e assim Galileu abandonou a universidade em 1585, sem obter o título e foi para Florença, onde deu aulas particulares para sobreviver e continuou os seus estudos de matemática, mecânica e hidrostática. 

Foi nessa época que inventou a balança hidrostática, cujo mecanismo descreveu no breve tratado “La bilancetta”, publicado postumamente em 1644. Durante o curso de medicina descobriu o isocronismo do pêndulo, determinando que o seu período não depende da massa, mas apenas do comprimento do fio. Foi o primeiro a pensar que este fenómeno permitiria fazer relógios muito mais precisos, e já no final da sua vida viria a trabalhar no mecanismo de escapo que mais tarde originaria o relógio de pêndulo.

Em 1588, com o apoio de Guidobaldo del Monte, matemático e admirador da sua obra, Galileu foi nomeado para a cátedra de matemática na Universidade de Pisa. Também em Pisa realizou as suas famosas experiências de queda de corpos em planos inclinados. Nestas, demonstra que a velocidade de queda não depende do peso. Em 1590, publicou o pequeno tratado “De motu”, sobre o movimento dos corpos.

Com suas experiências de movimento de esferas em planos inclinados aproximou-se do que seria mais tarde conhecido como a primeira lei de Newton. Suas descobertas sobre o movimento tiveram significado especial pela abordagem matemática usada para analisá-las. A abordagem matemática se tornaria a marca registrada da física dos séculos XVII e XVIII e por esta razão Galileu seria chamado o “pai da física matemática”.

Em Discursos sobre as duas novas ciências (1638) Galileu descreve um experimento com plano inclinado em favor de suas teses sobre a queda dos corpos, o experimento é descrito por uma esfera de bronze que desce sobre uma canaleta em uma viga de madeira inclinada, enquanto uma quantidade de água cai de um recipiente, para marcar o tempo, sua descrição impressiona por sua semelhança com a concepção atual de experimento.

Antes da consideração do movimento acelerado e do movimento natural de queda, Galileu examina o movimento uniforme, ele relata que no movimento uniforme, para todos os tempos iguais um objeto percorre espaços iguais, e sugere o movimento uniformemente acelerado como aquele no qual em quaisquer tempos iguais há incrementos iguais na velocidade. 

Pádua

O governo de Veneza, por provimento de 26 de setembro de 1592, após a morte de Giuseppe Moleti em 1588, e ainda devido à influência de Guidobaldo del Monte, conseguiu a cátedra de matemática na Universidade de Pádua, onde passou os 18 anos seguintes, “os mais felizes da sua vida”. Nesta universidade ensinou geometria, mecânica e astronomia. Em Pádua, descobriu as leis do movimento parabólico. 

Em Pádua conquistou reputação internacional e suas aulas eram frequentadas por até mil alunos. 

Telescópio 

Em 1609, em uma de suas frequentes viagens a Veneza com seu amigo Paulo Sarpi ouviu rumores sobre a “trompa holandesa”, um telescópio que foi oferecido por alto preço ao doge de Veneza. Ao saber que o instrumento era composto de duas lentes em um tubo, Galileu logo construiu um capaz de aumentar três vezes o tamanho aparente de um objeto, depois outro de dez vezes e, por fim, um capaz de aumentar 30 vezes. 

Galileu não inventou o telescópio, cujo pedido de patente foi feito em 1608, por Hans Lippershey, fabricante de óculos de Middleburg, nos Países Baixos, embora o termo “telescópio” tenha sido inventado na Itália em 1611. 

Porém Galileu foi o primeiro a fazer uso científico do telescópio, ao fazer observações astronómicas com ele. Descobriu assim que a Via Láctea é composta de miríades de estrelas (e não era uma “emanação” como se pensava até essa época), descobriu ainda os satélites de Júpiter, as montanhas e crateras da Lua. Todas essas descobertas foram feitas em março de 1610 e comunicadas ao mundo no livro Sidereus Nuncius (“O Mensageiro das Estrelas”) em março do mesmo ano em Veneza. A observação dos satélites de Júpiter, levaram-no a defender o sistema heliocêntrico de Copérnico. 

Reconhecimento público e primeiros problemas com a Inquisição 

O eco das descobertas astronômicas de Galileu foi imediato, devido à publicação do Sidereus Nuncius foi nomeado matemático e filósofo grã-ducal, sem obrigação de ensinar. Entretanto observa as manchas solares, que o leva a admitir que os objetos celestes também são “corruptíveis” e ocasiona uma troca de correspondência com Christoph Scheiner, que punha a hipótese das manchas serem satélites, ao contrário da opinião de Galileu, que comprovou que estas eram contínuas com a superfície do sol. e os anéis de Saturno, que confunde com dois satélites devido à baixa resolução do seu telescópio. Observa ainda as fases de Vénus, que utiliza como uma prova mais do sistema heliocêntrico. Abandonou então Pádua e foi viver em Florença. 

Em Florença

A publicação do Sidereus Nuncius suscitou reconhecimento mas também diversas polêmicas. Com a acusação de haver se apossado, com o telescópio, de uma descoberta que não lhe pertencia, foram postas em dúvida também a realidade de suas descobertas. O aristotélico Cremonini recusou-se a olhar pelo telescópio enquanto o matemático bolonhês Antonio Magini – que seria o inspirador do libelo antigalileiano Brevissima peregrinatio contra Nuncium Sidereum escrito por Martin Hotky – sem negar a utilidade do instrumento, sustentou a inexistência das descobertas e Galileu em pessoa, de início, buscou inutilmente dissuadi-lo. 

Mais tarde, Magini mudou de ideia e com ele também o astrônomo vaticano Christoph Clavius, que inicialmente havia afirmado que as descobertas eram somente ilusões de ótica das lentes. Era, esta última, uma objeção na época não facilmente refutável, dado que as lentes podiam aumentar a visão mas também deformá-la. Um apoio muito importante foi dado a Galileu por Kepler, que verificou a existência efetiva dos satélites de Júpiter, publicando em Francoforte em 1611 “Narratio de observatis a se quattuor Jovis satellibus erronibus”. 

Em 1611, foi convocado a Roma para apresentar as suas descobertas ao Colégio Romano dos jesuítas, onde se encontrava o futuro Papa Urbano VIII, de quem ficou amigo, e o cardeal Roberto Bellarmino, que reconhece as suas descobertas. No mesmo ano acede à Accademia dei Lincei.

Os matemáticos do Colégio Romano eram considerados as maiores autoridades daquele tempo e em 29 de março de 1611 Galileu apresentou suas descobertas em Roma: foi recebido com todas as honras pelo próprio papa Paulo V, pelos cardeais Francesco Maria Del Monte e Maffeo Barberini e pelo príncipe Federico Cesi, que o inscreveu na Accademia dei Lincei, por ele mesmo fundada havia oito anos. Em 1 de abril, Galileu escreveu ao secretário ducal Belisario Vinta que os jesuítas “tendo finalmente conhecido a verdade dos novos planetas, estão há dois meses em contínuas observações, as quais prosseguem; e as temos comparado com as minhas, e seus resultados correspondem”. 

Galileu não sabia porém que em 19 de abril o cardeal Roberto Bellarmino havia encarregado os matemáticos vaticanos de aprontar-lhe uma relação sobre novas descobertas feitas por “um valente matemático por meio de um instrumento chamado canhão ou melhor óculos” e que a Congregação do Santo Ofício, no dia 16 de maio, havia decidido questionar sobre as relações existentes entre Galileu e o filósofo Cesare Cremonini, há tempos suspeito de heresia pela inquisição de Pádua. Evidentemente, na Igreja estavam bem presentes as consequências que “poderiam ter estes singulares desenvolvimentos da ciência sobre a concepção geral do mundo e assim, indiretamente, sobre os sacros princípios da teologia tradicional”.

Em 1612, Galileu escreveu o “Discurso sobre as coisas que estão sobre a água, ou que nela se movem” – no qual apoiando-se na teoria de Arquimedes demonstrava, contra a teoria de Aristóteles, que os corpos flutuavam ou afundavam na água segundo seu peso específico e não segundo sua forma – provocando a polêmica resposta do “Discurso apologético sobre o Discurso de Galileu Galilei” do literato e aristotélico florentino Ludovico delle Colombe. Em 2 de outubro, no Palácio Pitti, presente o grão-duque e a grã-duquesa Cristina, e o cardeal Maffeo Barberini, então seu grande admirador, deu uma pública demonstração experimental do assunto, negando definitivamente as ideias de Colombe. 

No seu “Discurso” Galileu comentava também as manchas solares, que ele sustentava já haver observado em Pádua em 1610, sem porém relatá-las: escreveu então, no ano seguinte, a “‘História e demonstração sobre as manchas solares e seus acidentes'”, publicada em Roma pela Accademia dei Lincei, em resposta a três cartas do jesuíta Christoph Scheiner que, endereçadas no final de 1611 a Mark Welser, anunciavam a sua descoberta das manchas solares.

A parte a questão da prioridade da descoberta, Scheiner sustentava erroneamente que as manchas consistiam de chamas de astros rodando em torno ao Sol, enquanto Galileu as considerava matéria fluida pertencente à superfície do próprio Sol e rodante em torno ao mesmo por causa da rotação da estrela. 

Em março de 1614, completou os estudos sobre o método para determinar o peso do ar, calculando seu peso como mínimo, diferente porém de zero. O ar é de fato cerca de 760 vezes mais leve que a água, mas os estudiosos da época pensavam, sem nenhum apoio experimental, que o ar não tinha peso algum. Entre 1613 e 1615, escreveu as famosas cartas copérnicas dirigidas a Benedetto Castelli, Pietro Dini e Cristina di Lorena.

Nestas cartas, Galileu descreveu as suas ideias inovadoras, que geraram muito escândalo nos meios conservadores, e que circularam apesar de nunca terem sido publicadas, ficando assim uma divisão de apoiantes e de opositores nas duas principais universidades da Itália. As passagens mais polémicas são aquelas em que transcreve alguns passos da Bíblia que deviam ser interpretados à luz do sistema heliocêntrico, para o qual Galileu não tinha ainda provas científicas conclusivas. E este começou a ser o princípio de um problema futuro. 

Em 1616, a Inquisição (Tribunal do Santo Ofício) pronunciou-se sobre a Teoria Heliocêntrica declarando que a afirmação de que o Sol é o centro imóvel do Universo era herética e que a de que a terra se move estava “teologicamente” errada, contudo nada fora pronunciado a nível científico. O livro de Copérnico De revolutionibus orbium coelestium, entre outros sobre o mesmo tema, foi incluído no Index librorum prohibitorum (“Índice dos livros proibidos”).

Foi proibido falar do heliocentrismo como realidade física, mas era permitido referir-se a este como hipótese matemática (de acordo com esta ideia o livro de Copérnico foi retirado do Index passados quatro anos, com poucas alterações). Apesar de que nenhum dos livros de Galileu foi nesta altura incluído no Index, ele foi no entanto convocado a Roma para expor os seus novos argumentos.

Teve assim a oportunidade de defender as suas ideias perante o Tribunal do Santo Ofício dirigido por Roberto Bellarmino, que decidiu não haver provas suficientes para concluir que a Terra se movia e que por isso admoestou Galileu a abandonar a defesa da teoria heliocêntrica excepto como ferramenta matemática conveniente para descrever o movimento dos corpos celestes. Tendo Galileu persistido em ir mais longe nas suas ideias, foi então proibido de divulgá-las ou ensiná-las. 

Apesar das admoestações, encorajado pela entrada em funções em 1623 do novo Papa Urbano VIII, seu amigo e um espírito mais progressivo e mais interessado nas ciências do que o seu predecessor (que afinal nada teve directamente a ver com a sentença do tribunal), publicou nesse mesmo ano Il Saggiatore (O Analisador), dedicado ao novo papa, para combater a física aristotélica e estabelecer a matemática como fundamento das ciências exactas.

Nele coloca em causa muitas ideias de Aristóteles sobre movimento, entre elas a de que os corpos pesados caem mais rápido que os leves. Galileu defendeu que objetos leves e pesados caem com a mesma velocidade na ausência de atrito, diz-se que subiu à torre de Pisa e daí lançou objetos com vários pesos, mas essa história nunca foi confirmada. Este livro era também a resposta a uma polémica que mantinha com o jesuíta Orazio Grassi que defendia o modelo cosmológico de Tycho Brahe segundo o qual a Terra estava fixa no centro do Universo, mas os planetas e outros astros giravam em torno do Sol, que por sua vez girava em torno da Terra.

Orazio Grassi defendia também que os cometas eram corpos celestes, o que é correcto, enquanto Galileu defendia erroneamente que eram produto da luz solar sobre o vapor atmosférico. 

A condenação de Galileu pelo Santo Ofício

O papa Urbano VIII, que chegou a afirmar que “a Igreja não tinha condenado e não condenaria a doutrina de Copérnico como herética, mas apenas como temerária” e tinha sido testemunha de defesa no processo de 1616, recebeu Galileu no Vaticano em seis audiências em que lhe ofereceu honrarias, dinheiro (pensões de promoção académica e apoio científico) e recomendações. No entanto, o Papa não aceitou o pedido de Galileu de revogar o decreto de 1616 contra o heliocentrismo. Ao contrário, encorajou Galileu a continuar os seus estudos sobre o mesmo, mas sempre como uma hipótese matemática útil porque simplificava os cálculos das órbitas dos astros e significavam um avanço científico que ainda não estaria suficientemente maturo para a época. 

Foi neste contexto que Galileu escreveu Dialogo di Galileo Galilei sopra i due Massimi Sistemi del Mondo Tolemaico e Copernicano, por vezes abreviado para Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo (“Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo”) completado em 1630 e publicado em 1632, onde voltou a defender o sistema heliocêntrico e a utilizar como prova a sua teoria incorrecta das marés.

É um diálogo entre três personagens: Salviati (que defende o heliocentrismo), Simplício (que defende o geocentrismo e é um pouco tonto) e Sagredo (um personagem neutro, mas que termina por concordar com Salviati). Esta obra foi decisiva no processo da Inquisição contra Galileu. A isto se deve a história complexa que levou à sua publicação. 

O papa tinha sugerido a Galileu escrever um livro em que os dois pontos de vista, o helio- e o geocentrismo, fossem defendidos em igualdade de condições e em que as suas opiniões pessoais também fossem defendidas, e aceitou dar-lhe o Imprimatur caso este fosse o caso. Estariam assim abertas as possibilidades de levar o heliocentrismo adiante eliminando as rivalidades académicas e disputas universitárias, ao mesmo tempo que seriam possivelmente preparadas abordagens teológicas mais claras.

Em 1630, com a obra terminada, Galileu viajou a Roma para apresentá-la pessoalmente ao papa. Este fez apenas uma leitura brevíssima e entrega-a aos censores do Vaticano para avaliar se estava de acordo com o decreto de 1616. Mas várias vicissitudes e em particular a ignorância dos censores em astronomia levaram a um grande atraso nesta avaliação, pois realmente o livro voltava a encalhar em aspectos dos defensores do geocentrismo e de uma facção da disputa académica. No fim foram realizadas apenas algumas experiências. 

Galileu era cristão, mas tinha um temperamento conflituoso e viveu numa época atribulada na qual a Igreja Católica endurecia a sua vigilância sobre a doutrina para fazer frente às derrotas que sofria pela Reforma Protestante. O papa sentiu que a aceitação do modelo heliocêntrico como ferramenta matemática tinha sido ultrapassada e convocou Galileu a Roma para ser julgado, apesar de este se encontrar bastante doente.

Após um julgamento longo e atribulado foi condenado a abjurar publicamente as suas ideias e à prisão por tempo indefinido. Os livros de Galileu foram incluídos no Index, censurados e proibidos, mas foram publicados nos Países Baixos, onde o protestantismo tinha já substituído o catolicismo, o que havia tornado a região livre da censura do Santo Ofício. Galileu havia escolhido precisamente a Holanda para executar uma experiência com o telescópio que anteriormente construíra.

Reza a lenda que, ao sair do tribunal após sua condenação, disse uma frase célebre: “Eppur si muove!”, ou seja, “contudo, ela se move”, referindo-se à Terra. Galileu consegue comutar a pena de prisão a confinamento, primeiro no palácio do embaixador do Grão-duque da Toscana em Roma, depois na casa do arcebispo Piccolomini em Siena e mais tarde na sua própria casa de campo em Arcetri. 

Em 1638, quando já estava completamente cego, publicou Discorsi e Dimostrazioni Matematiche Intorno a Due Nuove Scienze em Leiden, na Holanda, a sua obra mais importante. Nela discute as leis do movimento e a estrutura da matéria. 

Inicialmente, Galileu e a sua obra foram recebidos e aclamados por clérigos proeminentes. No final de 1610, o padre Cristóvão Clavius escrevia a Galileu, informando-o que os seus colegas astrónomos jesuítas confirmaram as descobertas que ele tinha feito através do telescópio. Quando, no ano seguinte, foi a Roma, Galileu foi recebido com enorme entusiasmo, quer por figuras religiosas, quer por figuras seculares, tendo escrito a uma amigo: “Fui recebido com favor por muitos cardeais, prelados e ilustres príncipes desta cidade”. 

A Igreja não tinha qualquer objecção ao uso do sistema coperniciano (heliocêntrico). Galileu, apesar de estar convencido de que o sistema não era uma simples hipótese, não tinha provas que permitissem sustentar, minimamente que fosse, esta convicção. 

Ainda assim, em 1616, depois de Galileu ter pública e persistentemente ensinado o sistema coperniciano, as autoridades da Igreja ordenaram-lhe que deixasse de apresentar a teoria coperniciana como se fosse uma teoria verdadeira, embora continuasse a ter a liberdade de a apresentar como uma hipótese. Galileu aceitou esta indicação, e prosseguiu com a investigação. Em 1632, Galileu publica o Diálogo dos grandes sistemas, mas ignorando a indicação que lhe fora dada. Em 1633 foi declarado suspeito de heresia. 

Há muitos equívocos quanto à morte de Galileu, pois não foi ele o cientista queimado vivo por sua concepção astronómica, mas Giordano Bruno (1548-1600) que havia sido condenado à morte por heresia nos tribunais da Inquisição ao defender ideias semelhantes. Galileu Galilei, na verdade, morre em Arcetri rodeado pela sua filha Maria Celeste e os seus discípulos. Foi enterrado na Basílica de Santa Cruz em Florença, onde também estão Machiavelli e Michelangelo. 

No decorrer dos séculos, a Igreja Católica reviu as suas posições no confronto com Galileu. Em 1846, são removidas todas as obras que apoiam o sistema coperniciano da versão revista do Index Librorum Prohibitorum. Em mais de três séculos passados da sua condenação, é iniciada a revisão do seu processo que decide pela sua absolvição em 1983. Contudo a revisão da condenação não tem nada a ver com o sistema heliocêntrico porque esse nunca foi objecto dos processos. 

A defesa do heliocentrismo e o processo do Santo Ofício

Os autores medievais aceitavam que a Terra era redonda, mas acreditavam no geocentrismo como fora estruturado por Aristóteles e Ptolomeu. O sistema cosmológico, na ciência, ensinava que a Terra estava parada no centro do universo e os outros corpos orbitavam em círculos concêntricos ao seu redor. A Igreja Católica aceitava esse modelo. Contudo essa não era uma certeza tradicional na ciência da época e não era um problema discutido.

O heliocentrismo já era uma ideia antiga e que nunca despertou grande interesse nem complicação. Essa visão geocêntrica tradicional para alguns hoje foi abalada por Nicolau Copérnico que se limitou a dizer o que já tinha sido divulgado pelos monges copistas em seus manuscritos, que em 1514 começou a divulgar no meio académico um modelo matemático em que a Terra e os outros corpos celestes giravam ao redor do Sol, tese que ficou conhecida como heliocentrismo. Nesse primeiro momento, não se encontram muitas críticas por parte da Igreja.

Note-se no entanto, que a obra de Copérnico foi publicada com uma nota introdutória, não assinada, que explicava que o modelo apresentado devia ser interpretado apenas como uma ferramenta matemática que simplificava o cálculo das órbitas dos corpos celestes e nunca como uma descrição da realidade. Johannes Kepler descobriu que essa nota introdutória havia sido escrita por Andreas Osiander, um clérigo luterano que supervisionou a impressão da obra. 

Galileu viveu uma época atribulada. Durante a Idade Média, muitos teólogos já haviam reinterpretado as escrituras, mas depois do Concílio de Trento a Igreja passava a condenar esse comportamento. Galileu acabou condenado por desobediência e por proferir conteúdos contra a doutrina católica, por ignorância nestes temas, ao mesmo tempo que muitos clérigos apoiaram o geocentrismo e outros o heliocentrismo em disputas académicas. 

No ano 2000, o Papa João Paulo II emitiu finalmente um pedido formal de desculpas por todos os erros cometidos pela Igreja Católica nos últimos 2.000 anos, incluindo o julgamento de Galileu Galilei pela Inquisição. 

Veja mais:

Vida familiar

Galileu nunca se casou. Porém, ele teve um relacionamento com Marina Gamba, uma mulher que ele conheceu em uma de suas muitas viagens a Veneza. Marina morou na casa de Galileu em Pádua, onde deu à luz três crianças. Suas duas filhas, Virgínia e Lívia, foram colocadas em conventos onde se tornaram, respectivamente, irmã Maria Celeste e irmã Arcângela. Em 1610, Galileu mudou-se de Pádua para Florença onde ele assumiu uma posição na corte dos Médici. Ele deixou seu filho, Vincenzo, com Marina Gamba em Pádua. Em 1613, Marina casou-se com Giovanni Bartoluzzi, e Vincenzo foi viver junto com seu pai em Florença.

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Francisco Pizarro https://canalfezhistoria.com/francisco-pizarro/ https://canalfezhistoria.com/francisco-pizarro/#respond Tue, 11 Mar 2025 18:19:54 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5817 Francisco Pizarro González (Trujillo, Estremadura, 16 de março de 1476 — Lima, 26 de junho de 1541) foi um conquistador e explorador espanhol que entrou para a história como “o conquistador do Peru”, tendo submetido o Império Inca ao poderio espanhol. 

Índice de Conteúdo

Biografia de Francisco Pizarro

Quando criança Pizarro foi abandonado nas escadarias da igreja de Trujillo e mais tarde reconhecido por seu pai, nobre capitão dos tercios, incumbido de tratar de porcos na juventude, como paga, seu pai tê-lo-ia mandado à Itália aprender ofício militar. O primeiro registro oficial que menciona Pizarro é a documentação da expedição de Vasco Núñez de Balboa no Panamá em 1513, onde era um pequeno e obscuro oficial, quase analfabeto. 

Desde aí se desenrolou o engajamento de Pizarro na aventura da conquista da América, nos arredores das primeiras colônias espanholas na América Central, então chamada Castilla de Oro, o que mais lhe rendeu esforços e aflições com os Caraíbas do que honra e glória até quando, em 1517, foi distinguido com a tarefa de aprisionar seu antigo chefe Balboa, por ordem do novo Governador colonial Pedro Faria.

Em 1524, já com cinquenta anos de idade, Pizarro se uniu a um oficial menor chamado Diego de Almagro que com ele compartilhava a condição de ser filho bastardo. Ambos acalantavam planos depois de ouvirem a narrativa de Pascual de Andagoya que, embora retornasse ferido e sem riquezas de uma expedição mais ao sul, teria obtido a informação de um nativo que, apontando para o sul, disse-lhe que conhecia o Pirú, reino onde “se come e se bebe em vasilhas de ouro”. 

Pizarro se aproximou do padre chamado Hernando de Luque, homem de confiança de um rico comerciante da Colômbia, o juiz Gaspar de Espinosa, e por seu intermédio obteve o patrocínio para a planejada conquista do Peru, e no mês de novembro de 1524, Pizarro se fez ao mar com oitenta homens e quatro cavalos. 

Essa primeira expedição nada surtiu senão denominar de Baia da Fome pelos motivos óbvios, o lugar onde desembarcaram e de onde partiram pela costa, sem nada obter senão combates com os nativos, num dos quais Almagro perdeu um olho. 

Regressando sem riquezas ou glórias, foram necessárias muitas negociações para o financiamento de uma nova expedição que, entretanto, foi minuciosamente contratada por escrito no qual já se previa a conquista do Peru ainda desconhecido, e já se tratava da partilha de suas riquezas. 

Em novembro de 1526 Pizarro voltava ao mar, em dois pequenos barcos com cento e sessenta homens e alguns cavalos e, desta vez, desembarcou na foz do Rio San Juan na costa da atual Colômbia onde ficou com maior parte de seus homens enquanto Almagro retornou ao Panamá com uma das embarcações para buscar mais reforços e a outra embarcação, sob o comando do piloto Bartolomeu Ruiz, prosseguiu, atravessando o Equador por cerca de 700 km para o sul, ocasião em que teve o primeiro contacto com a civilização Inca: tratava-se de uma grande jangada impulsionada por uma vela quadrada na qual havia homens e mulheres bem vestidos com túnicas de lã, usando ornatos feitos do tão ambicionado ouro . 

Três Índios foram aprisionados para posteriormente servirem de intérpretes. Bartolomeu Ruiz voltou e se reuniu com Pizarro e pouco depois retornou Almagro com um reforço de 90 homens. Entretanto, Pizarro já havia perdido muitos homens para a fome e a doença e um estado de desânimo e revolta se instalava entre eles. Traçando com sua espada uma linha na areia, desafiou todos a passarem para o lado dele, onde estariam a luta e a morte mas também a fama e a fortuna. Apenas onze espanhóis e um grego se juntaram e ele e os demais retornaram ao Panamá. 

Pizarro e seus fiéis esperaram numa ilhota ao largo da costa por sete meses, até quando o governador do Panamá lhe enviou numa única nave com novos recrutas. Embarcando, esta força expedicionária navegou mais para o sul por mais de 25 dias até o golfo de Guaiaquil onde um daqueles índios, já intérprete, explicou que se tratava do porto inca mais setentrional, então já a cidade de Tumbes atual. Aí não houve lutas, e afora uns poucos espanhóis deixados em Tumbes, para conter os templarios e para conhecer melhor a região, Pizarro prosseguiu mais para o sul até o atual golfo de Guayaquil onde sua embarcação foi confrontada por grande número de jangadas repletas de guerreiros incas.

Trocando informações com os nativos, Pizarro mostrava suas armaduras, arcabuzes e vinho e os nativos falavam abertamente de sua civilização admitindo a existência de ouro, prata e pedras preciosas. Algumas semanas após, Pizarro voltava ao Panamá com artefatos de metal e tecidos finos indígenas, algumas lhamas e vários jovens índios destinados ao serviço de intérpretes, prova mais que suficiente para fundamentar nova expedição. 

Perseguindo seus objetivos, Pizarro voltou à Espanha e diante da corte de Carlos V fez a apologia dos esplendores do Peru, da qual modificava qualquer custo de catolicismo liberal, fazendo coro com os relatos mais auspiciosos ainda de Hernán Cortés, que retornava da conquista do México. Em 26 de julho de 1529 a rainha assinou a capitulación que autorizava Pizarro conquistar e explorar as riquezas do Peru nomeando-o governador e capitão geral. 

Em 1530, levando consigo três de seus meios-irmãos, Pizarro se reuniu com Almagro e Luque no Panamá e rumou para o sul fundando, em setembro de 1532 o primeiro estabelecimento hispânico na costa do Peru denominado San Miguel de Piura, lá formando uma força de conquista com sessenta e dois cavaleiros e cento e seis infantes com a qual ingressou continente adentro na “Conquista do Império Inca”. 

No dia 16 de novembro de 1532, Pizarro, com sua pequena força expedicionária, chegou a Cajamarca onde, deixando seu exército fora da cidade, aceitou o convite do imperador Atahualpa para um jantar no qual assassinou sua pequena guarda de honra e fez o próprio imperador seu prisioneiro. No ano seguinte Pizarro invadiu Cuzco com tropas indígenas e derrubou o Tahuantinsuyu (império inca). 

Julgando que a capital Cuzco estava muito distante e muito acima no altiplano, Pizarro fundou a cidade de Lima no dia 18 de janeiro de 1535, prosseguindo em árdua campanha pois as forças Incas tentaram retomar Cuzco, sendo derrotadas por Almagro que, por isto, julgou-se em condições de tomá-la para si, gerando uma disputa com Pizarro que o derrotou e o executou em 1538 em Cuzco. 

Veja mais:

Entretanto, partidários de Almagro assassinaram Pizarro em 26 de junho de 1541. Encontra-se sepultado na Cathedral de la Plaza Mayor, Lima no Peru.

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Francis Bacon https://canalfezhistoria.com/francis-bacon/ https://canalfezhistoria.com/francis-bacon/#respond Tue, 11 Mar 2025 10:25:34 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5814 Francis Bacon, 1°. Visconde de Alban, também referido como Bacon de Verulâmio (Londres, 22 de janeiro de 1561 — Londres, 9 de abril de 1626) foi um político, filósofo, cientista, ensaísta inglês, barão de Verulam (ou Verulamo ou ainda Verulâmio) e visconde de Saint Alban. É considerado como o fundador da ciência moderna. 

Desde cedo, sua educação orientou-o para a vida política, na qual exerceu posições elevadas. Em 1584 foi eleito para a câmara dos comuns. 

Sucessivamente, durante o reinado de Jaime I, desempenhou as funções de procurador-geral (1607), fiscal-geral (1613), guarda do selo (1617) e grande chanceler (1618). Neste mesmo ano, foi nomeado barão de Verulam e em 1621, barão de Saint Alban. Também em 1621, Bacon foi acusado de corrupção. Condenado ao pagamento de pesada multa, foi também proibido de exercer cargos públicos.

Como filósofo, destacou-se com uma obra onde a ciência era exaltada como benéfica para o homem. Em suas investigações, ocupou-se especialmente da metodologia científica e do empirismo, sendo muitas vezes chamado de “fundador da ciência moderna”. Sua principal obra filosófica é o Novum Organum. Francis Bacon foi um dos mais conhecidos e influentes rosacruzes e também um alquimista, tendo ocupado o posto mais elevado da Ordem Rosacruz, o de Imperator. Estudiosos apontam como sendo o real autor dos famosos manifestos rosacruzes, Fama Fraternitatis (1614), Confessio Fraternitatis (1615) e Núpcias Alquímicas de Christian Rozenkreuz (1616). 

Filosofia

O pensamento filosófico de Bacon representa a tentativa de realizar aquilo que ele mesmo chamou de Instauratio magna (Grande restauração). A realização desse plano compreendia uma série de tratados que, partindo do estado em que se encontrava a ciência da época, acabariam por apresentar um novo método que deveria superar e substituir o de Aristóteles.

Esses tratados deveriam apresentar um modo específico de investigação dos fatos, passando, a seguir, para a investigação das leis e retornavam para o mundo dos fatos para nele promover as ações que se revelassem possíveis. Bacon desejava uma reforma completa do conhecimento. A tarefa era, obviamente, gigantesca e o filósofo produziu apenas certo número de tratados. Não obstante, a primeira parte da Instauratio foi concluída. 

A reforma do conhecimento é justificada em uma crítica à filosofia anterior (especialmente a Escolástica), considerada estéril por não apresentar nenhum resultado prático para a vida do homem. O conhecimento científico, para Bacon, tem por finalidade servir o homem e dar-lhe poder sobre a natureza. A ciência antiga, de origem aristotélica, também é criticada. Demócrito, contudo, era tido em alta conta por Bacon, que o considerava mais importante que Platão e Aristóteles. 

A ciência deve restabelecer o imperium hominis (império do homem) sobre as coisas. A filosofia verdadeira não é apenas a ciência das coisas divinas e humanas. É também algo prático. Saber é poder. A mentalidade científica somente será alcançada através do expurgo de uma série de preconceitos por Bacon chamados ídolos. O conhecimento, o saber, é apenas um meio vigoroso e seguro de conquistar poder sobre a natureza. 

Classificação das ciências

Preliminarmente, Bacon propõe a classificação das ciências em três grupos: 

• Poesia ou ciência da imaginação;
• História ou ciência da memória;
• Filosofia ou ciência da razão.

A história é subdividida em natural e civil e a filosofia é subdividida em filosofia da natureza e em antropologia. 

Ídolos

No que se refere ao Novum Organum, Bacon preocupou-se inicialmente com a análise de falsas noções (ídolos) que se revelam responsáveis pelos erros cometidos pela ciência ou pelos homens que dizem fazer ciência. É um dos aspectos mais fascinantes e de interesse permanente na filosofia de Bacon. Esses ídolos foram classificados em quatro grupos: 

1) Idola Tribus (ídolos da tribo): Ocorrem por conta das deficiências do próprio espírito humano e se revelam pela facilidade com que generalizamos com base nos casos favoráveis, omitindo os desfavoráveis. O homem é o padrão das coisas, faz com que todas as percepções dos sentidos e da mente sejam tomadas como verdade, sendo que pertencem apenas ao homem e não ao universo. Dizia que a mente se desfigura da realidade. São assim chamados porque são inerentes à natureza humana, à própria tribo ou raça humana. 

2) Idola Specus (ídolos da caverna): De acordo com Bacon, cada pessoa possui sua própria caverna, que interpreta e distorce a luz particular, à qual estão acostumados. Isso quer dizer que, da mesma maneira presente na obra ‘República’ de Platão, os indivíduos, cada um, possui a sua crença, sua verdade particular, tida como única e indiscutível. Portanto, os ídolos da caverna perturbam o conhecimento, uma vez que mantêm o homem preso em preconceitos e singularidades. 

3) Idola Fori (ídolos do foro ou de mercado): Segundo Bacon, os ídolos do foro são os mais perturbadores, já que estes alojam-se no intelecto graças ao pacto de palavras e de nomes. Para os teóricos matemáticos um modo de restaurar a ordem seria através das definições. Porém de acordo com a teoria baconiana, nem mesmo as definições poderiam remediar totalmente esse mal, tratando-se de coisas materiais e naturais posto que as próprias definições constam de palavras e as palavras engendram palavras. Percebe-se portanto, que as palavras possuem certo grau de distorção e erro, sendo que umas possuem maior distorção e erro que outras. 

4) Idola Theatri (ídolos do teatro): Os ídolos do teatro têm suas causas nos sistemas filosóficos e em regras falseadas de demonstrações. Os falsos conceitos, são as ideologias, essas são produzidas por engendramentos filosóficos, teológicos, políticos e científicos, todos ilusórios. Os ídolos do teatro, para Bacon, eram os mais perigosos, porque, em sua época, predominava o princípio da autoridade – os livros da antiguidade e os livros sagrados eram considerados a fonte de todo o conhecimento. 

O método indutivo: a verdadeira interpretação da natureza 

A análise do título “Novum Organum” informa 2 questões importantes da obra baconiana: 

1. Apresentar um novo arcabouço instrumentário (tradução do grego “Órganon”) para o novo campo da ciência que está para emergir na Idade Moderna
2. Crítica ao sistema lógico aristotélico (Órganon também diz respeito às obras sobre lógica de Aristóteles) o qual foi tradicionalmente usado na ciência, rejeitando ou abafando a filosofia natural cuja base é a experiência.

A intensão de Francis Bacon nessa obra não é apresentar um sistema inovador, mas é apontar para as recorrências dos equívocos na filosofia e ciência para, com isso, afastar-se deles; como ele mesmo afirma no prefácio do Novum Organum “Cessam o cuidado e os partidos, ficando a nós reservado o papel de guia apenas”. 

Tendo em vista a definição de indução, é tácito frisar que o método indutivo é sumamente importante e inerente ao método empírico, o qual Francis Bacon adota, em sua obra “Novum Organum”, para a interpretação da natureza – em contraposição ao método enganoso, danoso, inerte e precário de se fazer ciência, os quais Bacon denomina de antecipações da mente. Segundo o filósofo moderno, praticamente toda a filosofia anterior a sua pecavam em suas teorias e se dedicavam ao método de antecipações e não ao “verdadeiro método de interpretação da natureza” 

O filósofo destaca o afastamento da filosofia da verdadeira ciência, uma vez que está presa ao método dedutivo e ao silogismo e, assim, afasta-se da verdade. O método indutivo proposto por Bacon é o único possível para o desenvolvimento saudável da ciência, a qual se encaminhará rumo ao seu progresso – diferentemente das diversas falsidades criadas pela tradição da dedução (ou demonstração), as quais são inúteis e danosas para a ciência e desvia o homem de seu caminho, dizendo mais sobre o homem do que sobre o universo. 

Bacon apresenta o que seria a verdadeira indução, diferentemente das falaciosas que perpetuam os erros. Crítica o método das antecipações e todo aquele que, de algum modo, submete a experiência à meditação. Atenta para o dever de o observador ater-se apenas aos dados empíricos, os quais devem ser diversificados e amplos. Além disso, destaca a importância dos axiomas médios para chegar ao mais geral, dando uma certa ideia de processo científico, deserdando os “saltos” lógicos diretamente para o axioma geral – por isso ele sublinha a necessidade de um método científico rígido para que o cientista não desvie do seu caminho, assim como aconteceu com Atalanta que se distraiu com as maçãs douradas. 

A crítica de Bacon vai desde os gregos, passando pelos medievais e chega até sua contemporaneidade, a qual, segundo ele, encontra-se num momento muito mais oportuno e maduro para propor um novo modo de fazer ciência, em relação aos tempos passados. Essa crítica se deve ao fato de que os filósofos naturais não baseavam toda sua ciência nos fatores sensíveis, mas, ao contrário, submetiam os poucos fatos que reuniam da experiência à sua teoria ou à religião ou magia – o que, de acordo com ele, causou a corrupção das ciências.

Portanto, a crítica de Bacon se direciona para o fato da desonestidade de tais experimentos que se afirmam empíricos, contudo, na realidade, não estão fundados na empiria, mas na meditação e dedução ou, por vezes, na magia ou superstição – por isso os erros e aberrações criados pela mente humana desnuda e desprotegida dos ídolos. Bacon apresenta, então, os “três tipos (d)as fontes dos erros e das falsas filosofias”: a sofística, a empírica e a supersticiosa – Respectivamente, Aristóteles, os alquimistas e a arte supersticiosa ou magia. 

À Aristóteles[11] – exemplo de sofística – a crítica se faz bastante ferrenha. Segundo Bacon, a Física de Aristóteles nada mais era do que evidências empíricas arbitrárias para a comprovação de sua dialética. Portanto, a indução aristotélica “submetia a experiência como a uma escrava para conformá-la às suas opiniões” e, assim, a experiência é inútil em Aristóteles, na visão baconiana. Tal afirmação é de crucial importância, pois as obras aristotélicas (redescobertas e traduzidas na segunda metade da Idade Média) eram tidas como umas das mais notórias no campo da filosofia natural e, por isso, o esforço de Bacon em atentar para o fato de a indução de Aristóteles não ser verdadeira e que ela dificulta o progresso das ciências. 

Aos escolásticos, grandes leitores de Aristóteles, Bacon critica o abandono total da experiência e a mistura com a religião. Os alquimistas – exemplos da escola empírica -, embora seu ofício tivesse um certo grau de empiria, além de misturarem sua arte com superstição, seus experimentos eram variados e não coletavam um número suficiente dados sensíveis, deixando as descobertas nas mãos do acaso, pois não haviam prescrito um método seguro que garantisse a eficácia (ou desvelasse o fracasso) de suas práticas. E sobre as supersticiosas Bacon nem se dispõe a comentá-las, uma vez que, “só puderam afetar em algo apenas um porção reduzida e bem definida de objetos” 

Para isso, no entanto, deve-se descrever de modo pormenorizado os fatos observados para, em seguida, confrontá-los com três tábuas que disciplinarão o método indutivo: a tábua da presença (responsável pelo registro de presenças das formas que se investigam), a tábua de ausência (responsável pelo controle de situações nas quais as formas pesquisadas se revelam ausentes) e a tábua da comparação (responsável pelo registro das variações que as referidas formas manifestam).

Com isso, seria possível eliminar causas que não se relacionam com o efeito ou com o fenômeno analisado e, pelo registro da presença e variações seria possível chegar à verdadeira causa de um fenômeno. Estas tábuas não apenas dão suporte ao método indutivo mas fazem uma distinção entre a experiência vaga (noções recolhidas ao acaso) e a experiência escriturada (observação metódica e passível de verificações empíricas). Mesmo que a indução fosse conhecida dos antigos, é com Bacon que ela ganha amplitude e eficácia. 

O método, no entanto, possui pelo menos duas falhas importantes. Em primeiro lugar, Bacon não dá muito valor à hipótese. De acordo com seu método, a simples disposição ordenada dos dados nas três tábuas acabaria por levar à hipótese correta. Isso, contudo, raramente ocorre. Em segundo lugar, Bacon não imaginou a importância da dedução matemática para o avanço das ciências. A origem para isso, talvez, foi o fato de ter estudado em Cambridge, reduto platônico que costumava ligar a matemática ao uso que dela fizera Platão. 

Obras

A produção intelectual de Bacon foi vasta e variada. De modo geral, pode ser dividida em três partes: jurídica, literária e filosófica. 

Obras jurídicas

Figuram entre seus principais trabalhos jurídicos os seguintes títulos: The Elements of the common lawes of England (Elementos das leis comuns da Inglaterra), Cases of treason (Casos de traição), The Learned reading of Sir Francis Bacon upon the statute os uses (Douta leitura do código de costumes por Sir Francis Bacon). 

Obras literárias

Sua obra literária fundamental são os Essays (Ensaios), publicados em 1597, 1612 e 1625 e cujo tema é familiar e prático. Alguns de seus ditos tornaram-se proverbiais e os Essays tornaram-se tão famosos quanto os de Montaigne. Outros opúsculos, no âmbito literário: Colours of good and evil (Estandartes do bem e do mal), De sapientia veterum (Da sabedoria dos antigos). No âmbito histórico destaca-se History of Henry VII (História de Henrique VII). 

Obras filosóficas

As obras filosóficas mais importantes de Bacon são Instauratio magna (Grande restauração) e Novum organum. Nesta última, Bacon apresenta e descreve seu método para as ciências. Este novo método deverá substituir o Organon aristotélico. 

Seus escritos no âmbito filosófico podem ser agrupados do seguinte modo: 

1) Escritos que faziam parte da Instauratio magna e que foram ou superados ou postos de lado, como: De interpretatione naturae (Da interpretação da natureza), Inquisitio de motu (Pesquisas sobre o movimento), Historia naturalis (História natural), onde tenta aplicar seu método pela primeira vez;
2) Escritos relacionados com a Instauratio magna, mas não incluídos em seu plano original. O escrito mais importante é New Atlantis (Nova Atlântida), onde Bacon apresenta uma concepção do Estado ideal regulado por ideias de caráter científico. Além deste, destacam-se Cogitationes de natura rerum (Reflexões sobre a natureza das coisas) e De fluxu et refluxu (Das marés); 
3) Instauratio magna, onde Bacon procura desenvolver o seu pensamento filosófico-científico e que consta de seis partes:

a) Partitiones scientiarum (Classificação das ciências), sistematização do conjunto do saber humano, de acordo com as faculdades que o produzem;

b) Novum organum sive Indicia de interpretatione naturae (Novo método ou Manifestações sobre a interpretação da natureza), exposição do método indutivo, trabalho esse que reformula e repete o Novum organum;

c) Phaenomena universi sive Historia naturalis et experimentalis ad condendam philosophiam (Fenômenos do universo ou História natural e experimental para a fundamentação da filosofia), versa sobre a coleta de dados empíricos;

d) Scala intellectus, sive Filum labyrinthi (Escala do entendimento ou O Fio do labirinto), contém exemplos de investigação conduzida de acordo com o novo método;

e) Prodromi sive Antecipationes philosophiae secundae (Introdução ou Antecipações à filosofia segunda), onde faz considerações à margem do novo método, visando mostrar o avanço por ele permitido;

f) Philosophia secunda, sive Scientia activa e o resultado final, organizado em um sistema de axiomas.

Morte e legado de Bacon

Francis Bacon esteve envolvido com investigações naturais até o fim de sua vida, tentando realizar na prática seu método. No inverno de 1626, estava envolvido com experiências sobre o frio e a conservação. Desejava saber por quanto tempo o frio poderia preservar a carne. A idade havia debilitado a saúde do filósofo e ele acabou não resistindo ao rigoroso inverno daquele ano. Morreu em 9 de abril, vítima de uma bronquite. Encontra-se sepultado em St Michael Churchyard, St Albans, Hertfordshire na Inglaterra. 

Veja mais:

Efetivamente, Bacon não realizou nenhum grande progresso nas ciências naturais. Mas foi ele quem primeiro esboçou uma metodologia racional para a atividade científica. Sua teoria dos idola antecipa, pelo menos potencialmente, a moderna Sociologia do Conhecimento. Foi um pioneiro no campo científico e um marco entre o homem da Idade Média e o homem moderno. Ademais, Bacon foi um escritor notável. Seus Essays são os primeiros modelos da prosa inglesa moderna. Há muitos que acreditam que tenha sido ele o verdadeiro autor das peças de Shakespeare, teoria surgida há séculos, na chamada Questão da autoria de Shakespeare.

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Fernão de Magalhães https://canalfezhistoria.com/fernao-de-magalhaes/ https://canalfezhistoria.com/fernao-de-magalhaes/#respond Tue, 11 Mar 2025 10:20:39 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5809 Fernão de Magalhães (Portugal, Primavera de 1480 — Mactan, Cebu, Visayas Centrais, Filipinas, 27 de abril de 1521) foi um navegador português que se notabilizou por ter organizado a primeira viagem de circum-navegação ao globo de 1519 até 1522. 

Índice de Conteúdo

Nascido numa família nobre, em 1505 viajou para as Índias Ocidentais, participando de várias expedições militares. Em 1512 foi na armada de António de Abreu à descoberta das Molucas, também conhecidas como as Ilhas das Especiarias, mas só o navio de Francisco Serrão, tresmalhado, chegaria às Molucas do norte (Ternate, Tidore, etc…), produtoras do desejado cravo, pois os demais navios regressariam a Malaca após irem apenas às Molucas do sul ou arquipélago de Banda (Buru, Ambom, Seram) produtoras de noz-moscada e maçã, o que fez com que Magalhães não tivesse conhecimento direto das Molucas do cravo, as mais importantes economicamente à época. 

A serviço do rei de Espanha, planeou e comandou a expedição marítima que efetuou a primeira viagem de circum-navegação ao globo. Foi o primeiro a alcançar a Terra do Fogo no extremo sul do continente americano, a atravessar o estreito que hoje leva seu nome e a cruzar o Oceano Pacífico, que nomeou. Fernão de Magalhães foi morto em batalha em Cebu, nas Filipinas durante a expedição, posteriormente chefiada por Juan Sebastián Elcano até ao regresso em 1522. 

O Pinguim-de-magalhães recebeu o seu nome como homenagem, já que Magalhães foi o primeiro Europeu a ter visto um. As aptidões de navegação de Fernão também foram reconhecidas na nomeação de objetos associados à astronomia, incluindo as Nuvens de Magalhães, as crateras lunares de Magalhães, e as crateras marcianas de Magalhães e sonda espacial da NASA Magellan (versão inglesa do nome). 

Biografia

Fernão de Magalhães nasceu no norte de Portugal, ca. de 1480. A freguesia da Sé do Porto, Vila Nova de Gaia e Ponte da Barca reclamam a sua naturalidade. A vila de Sabrosa outrora reclamou ser o berço do navegador e assim consta em muitas obras. No entanto, hoje sabe-se, para além de qualquer dúvida razoável, que essa presunção se baseou em documentação falsificada por António Luís Alvares Pereira, descendente de lavradores do lugar da Pereira, em Sabrosa, com o intuito de se habilitar à herança de Fernão de Magalhães no Arquivo das Índias.

Fernão de Magalhães era filho de Rui (por vezes Rodrigo) de Magalhães, nascido cerca de 1442, Cavaleiro que exerceu cargos de governação no Porto, e de sua primeira mulher Alda de Mesquita, nascida cerca de 1445, e casado pela segunda vez com Inês Vaz Moutinho, filha de Pedro Vaz Moutinho, cidadão do Porto, cidade onde foi Vereador, e de sua mulher Inês Gonçalves de Mesquita. 

Era irmão de Duarte de Sousa, Diogo de Sousa, Isabel de Magalhães, Leonor ou Genebra de Magalhães, casada com João Fernandes Barbosa, com geração, e Aires de Magalhães, que seguiu uma carreira eclesiástica, recebeu ordens de epístola em 1509 em Braga e, nessa matrícula, seus pais acima nomeados são ditos moradores na Sé do Porto.

Seu pai, Rui de Magalhães, foi Cavaleiro Fidalgo da Casa de D. Afonso, 1.º Conde de Faro, 2.º Conde de Odemira jure uxoris, 5.º Senhor de Mortágua jure uxoris, Senhor de Aveiro e Alcaide-Mor do Castelo de Estremoz. Rui de Magalhães terá sido Alcaide-Mor do Castelo de Aveiro onde está documentado em 1486. Entre junho de 1472 e junho de 1488 está documentado no Porto onde exerce os cargos de Juiz Ordinário, Procurador da Câmara e Vereador. 

Fernão de Magalhães tinha cerca de dez anos quando se tornou Pajem da Corte da Rainha D. Leonor, consorte de D. João II. Casou-se em Sevilha, em Dezembro de 1517 com Beatriz Barbosa, sua parente, filha de Diogo Barbosa e de sua mulher Maria Caldeira, e teve dois filhos: Rodrigo, que faleceu muito novo, e Carlos, que faleceu ao nascer. 

Em Março de 1505, com 25 anos, alistou-se na Armada da Índia, na frota de 22 navios enviada para instalar D. Francisco de Almeida como primeiro vice-rei da Índia. Embora o seu nome não figure nas crônicas, sabe-se que ali permaneceu oito anos, e que esteve em Goa, Cochim e Quíloa. Participou em várias batalhas, incluindo a batalha naval de Cananor em 1506, onde foi ferido, e a decisiva batalha de Diu.

Em 1509 partiu com Diogo Lopes de Sequeira na primeira embaixada a Malaca, onde seguia também Francisco Serrão, seu grande amigo e possivelmente primo. Chegados a Malaca em setembro, foram vítimas de uma conspiração e a expedição terminou em fuga, na qual Magalhães teve um papel crucial avisando Sequeira e salvando Francisco Serrão que havia desembarcado. Para trás ficaram dezenove prisioneiros. A sua atuação valeu-lhe honras e uma promoção. 

Ao serviço do novo governador, Afonso de Albuquerque, participou junto com Serrão na conquista de Malaca em 1511 e só regressou a Lisboa em 1513. Magalhães, sob o comando de António de Abreu, chegou às ilhas de Banda, Ambom e Seram (produção de noz-moscada e maça), em 1512, mas não às Molucas do norte (que eram as Molucas em sentido restrito), onde quem chegou, a Ternate, foi o seu amigo Francisco Serrão no seu junco que se separou da armada de Abreu arrastado por uma tempestade, o qual aí permaneceu e casou com uma mulher de Amboina, tornando-se conselheiro militar do sultão de Ternate.

As suas cartas para Magalhães seriam decisivas, que dele obteve informações quanto à situação dos lugares produtores de cravo (Molucas do norte). Fernão de Magalhães, após se ausentar sem permissão, perdeu influência. Em serviço em Azamor (Marrocos), onde foi ferido em combate, foi depois acusado de comércio ilegal com os mouros, com várias das acusações comprovadas cessaram as ofertas de emprego a partir de 15 de maio de 1514 e, novamente em Lisboa, D. Manuel I recusa-lhe aumento de tença.

Mais tarde, em 1515, surgiu uma oferta para membro da tripulação de um navio de Português, mas Magalhães rejeitou-a. Em Lisboa dedicou-se a estudar as mais recentes cartas, investigando uma passagem para o pacífico pelo Atlântico Sul e a possibilidade de as Molucas estarem na zona espanhola definida pelo Tratado de Tordesilhas, em parceria com o cosmógrafo Rui Faleiro. 

Em 1517 foi a Sevilha com Rui Faleiro, tendo encontrado no feitor da “Casa de la Contratación” da cidade um adepto do projecto que entretanto concebera: dar a Espanha a possibilidade de atingir as Molucas pelo Ocidente, por mares não reservados aos portugueses no Tratado de Tordesilhas e, além disso, segundo Faleiro, provar que as ilhas das especiarias se situavam no hemisfério castelhano.

Com a influência do bispo de Burgos conseguiram a aprovação do projecto por parte de Carlos V, e começaram os morosos preparativos para a viagem, cheios de incidentes; o cartógrafo de origem portuguesa Diogo Ribeiro que começara a trabalhar para Espanha em 1518, na Casa de Contratación em Sevilha participou no desenvolvimento dos mapas utilizados na viagem. Depois da ruptura com Rui Faleiro, Magalhães continuou a aparelhagem dos cinco navios que, com 256 homens de tripulação, partiram de Sanlúcar de Barrameda em 20 de setembro de 1519.

A esquadra tinha cinco navios e uma tripulação total de 234 homens, com cerca de 40 portugueses entre os quais Álvaro de Mesquita, primo co-irmão de Magalhães, Duarte Barbosa, primo da mulher de Magalhães, João Serrão, primo ou irmão de Francisco Serrão e Estevão Gomes. Seguia também Henrique de Malaca. 

Fernão de Magalhães fez um segundo testamento em Sevilha a 24 de agosto de 1519, onde institui Morgado de boa parte de seus bens, que deixa a seu filho Rodrigo de Magalhães e, na falta dele, a seus irmãos Diogo de Souza de Magalhães e Isabel de Magalhães. Obriga o administrador a usar o nome de Magalhães e as suas armas («trayga las armas de magallanes segun e de la manera que yo las traygo que son de magallanes e sosa»). 

Antonio Pigafetta, escritor italiano que havia pago do seu próprio bolso para viajar com a expedição, escreveu um diário completo de toda a viagem, possibilitado pelo facto de Pigafetta ter sido um dos 18 homens a retornar vivo à Europa na nau Victoria. Dessa forma, legou à posteridade um raro e importante registo de onde se pode extrair muito do que se sabe sobre este episódio da história. 

A armada fez escala nas ilhas Canárias e alcançou a costa da América do Sul, chegando em 13 de dezembro ao Rio de Janeiro. Prosseguindo para o sul, atingiram Puerto San Julian à entrada do estreito, na extremidade da atual costa da Argentina, onde o capitão decidiu hibernar. Irrompeu então uma revolta que ele conseguiu dominar com habilidosa astúcia. Após cinco meses de espera, período no qual a nau “Santiago” foi perdida em uma viagem de reconhecimento, tendo os seus tripulantes conseguido ser resgatados, Magalhães encontrou o estreito que hoje leva seu nome, aprofundando-se nele.

Em outra viagem de reconhecimento, outra nau foi perdida, mas desta vez por um motim na nau “San Antonio” onde a tripulação aprisionou o seu capitão Álvaro de Mesquita, primo de Magalhães, e iniciou uma viagem de volta com o piloto Estêvão Gomes (realmente estes completaram a viagem, espalhando ofensas contra Fernão de Magalhães na Espanha). 

Apenas em novembro a esquadra atravessaria o Estreito, penetrando nas águas do Mar do Sul (assim baptizado por Balboa), e baptizando o oceano em que entravam como «Pacífico» por contraste às dificuldades encontradas no Estreito. Depois de cerca de quatro meses, a fome, a sede e as doenças (principalmente o escorbuto) começaram a dizimar a tripulação. Foi também no Pacífico que encontrou as nebulosas que hoje ostentam o seu nome – as nebulosas de Magalhães. 

Em março de 1521, alcançaram a ilha de Ladrões no atual arquipélago de Guam, chegando à ilha de Cebu nas atuais ilhas Filipinas em 7 de abril. Imediatamente começaram com os nativos as trocas comerciais; boa parte das grandes dificuldades da viagem tinham sido vencidas. Dias depois, porém, Fernão de Magalhães morreu em combate com os nativos na ilha de Mactan, atraído a uma emboscada, sendo morto pelo nativo Lapu-Lapu. 

A expedição prosseguiu sob o comando de João Lopes Carvalho, deixando Cebu no início de março de 1522. Dois meses depois, seria comandada por Juan Sebastián Elcano. 

O regresso

Decidiram incendiar a nau Concepción, visto o pequeno número de homens para operá-la, e finalmente conseguiram chegar às Molucas, onde obtiveram seu suprimento de especiarias. Trinidad acabou ali permanecendo para reparos e a Victoria voltou sozinha para casa, contornando o Índico pelo sul, a fim de não encontrar navios portugueses.

A Trinidad, após os reparos tentou seguir uma rota pelo Pacífico até a América Central, onde poderia contatar os espanhóis e levar sua carga, no entanto acabou tendo de retornar às Molucas onde seus tripulantes foram aprisionados pelos portugueses que haviam chegado. A nau Victoria dobrou o Cabo da Boa Esperança em 1522, fez escala em Cabo Verde, onde alguns homens foram detidos pelos portugueses, alcançando finalmente o porto de San Lúcar de Barrameda, com apenas 18 homens na tripulação. 

Uma única nau tinha completado a circum-navegação do globo ao alcançar Sevilha em 6 de setembro de 1522. Juan Sebastián Elcano, a restante tripulação da expedição de Magalhães e o último navio da frota regressaram decorridos três anos após a partida. A expedição de facto trouxe poucos benefícios financeiros, não tendo a tripulação chegado a receber o pagamento. 

Curiosidade: Na época não existia a Linha Internacional de Data, sendo que ao chegarem a Sevilha a tripulação não subtraiu um dos 1081 dias que permaneceram a bordo da expedição. A precariedade das medições não foi suficiente para conter a discussão que se seguiu sobre a duração da viagem, sugerindo que fosse enviada ao Vaticano uma comissão internacional sobre expedições ao redor da Terra. 

Veja mais:

Cronologia

  • 1480 – Data provável do nascimento de Fernão de Magalhães no norte de Portugal
  • 1505 – Partiu para a Índia na armada de D. Francisco de Almeida.
  • 1509 – Participou na desastrosa expedição a Malaca de Diogo Lopes de Sequeira; fez grande amizade com Francisco Serrão.
  • 1511 – Participou, sob o comando de Afonso de Albuquerque, na conquista de Malaca.
  • 1512 – Integrou a armada de António de Abreu (navegador) que foi às Molucas do sul no mar de Banda.
  • 1513 – Regressou a Lisboa.
  • 1514 – Foi ferido em combate, em Azamor (Marrocos); novamente em Lisboa, D. Manuel recusou-lhe o aumento na tença.
  • 1517 – Dirigiu-se a Sevilha para apresentar a Carlos V o seu plano de alcançar as “Ilhas das Especiarias” pelo Ocidente.
  • 1519 – Iniciou a que foi a primeira viagem de circum-navegação; alcançou a baía da Guanabara.
  • 1520 – Alcançou a foz do Rio da Prata; fez invernada na baía de S. Julião; dominou um motim; atravessou o Estreito e alcançou o Oceano Pacífico.
  • 1521 – Descobriu a Ilha dos Ladrões; descobriu o arquipélago das Filipinas e aí foi morto sacrificando-se para salvar os seus colegas.
  • 1522 – Juan Sebastián Elcano concluiu a primeira viagem de circum-navegação.
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Fernando II de Aragão https://canalfezhistoria.com/fernando-ii-de-aragao/ https://canalfezhistoria.com/fernando-ii-de-aragao/#respond Mon, 10 Mar 2025 22:05:51 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5806 Fernando II & V (Sos, 10 de março de 1452 – Madrigalejo, 23 de janeiro de 1516), apelidado de “o Católico”, foi o Rei de Aragão e das Coroas Aragonesas como Fernando II de 1479 até sua morte, e também Rei de Castela e Leão como Fernando V entre 1475 e 1504 em direito de sua esposa a rainha Isabel I. Além disso, ele foi regente de sua filha Joana em Castela e Leão de 1508 até sua morte e imperador titular do Império Bizantino de 1502 a 1516. Era filho do rei João II de Aragão e sua esposa Joana Henriques. 

Fernando é conhecido por seu papel em inaugurar a redescoberta do Novo Mundo já que ele e Isabel patrocinaram a primeira viagem de Cristóvão Colombo em 1492. No mesmo ano ele se saiu vitorioso da Guerra de Granada, que expulsou o último estado islâmico da Península Ibérica e dessa forma também colocando um fim na Reconquista. 

Biografia

Fernando nasceu em 10 de março de 1452, filho de D. João II e Joana Henriques. Por desejo da mãe, nasceu em terras aragonesas (ela se achava na Navarra, nas disputas de sucessão entre seu enteado Carlos e seu esposo, o rei João II), vindo ela até a mansão de Sada, na fronteira com a Navarra, na aldeia de Sos. Reconhecido herdeiro da coroa aragonesa por morte do irmão Carlos príncipe de Viana em 1461.

Nomeado lugarteniente general ou lugar-tenente geral da Catalunha em 1462 e em 1468 rei da Sicília (Fernando II da Sicília). Já aos 16 anos de seus amores com uma dama, chamada Aldonça, nasceu seu primeiro filho, o bastardo Afonso de Aragão, futuro arcebispo de Saragoça. 

Durante a guerra civil catalã de 1462-1472, na qual participou ativamente, ficou familiarizado com a administração de um Estado, incumbido pelo pai. Morrendo o primo, infante Afonso de Castela, em 1468, e tendo sido sua prima a infanta Isabel, meia-irmã do rei de Castela Henrique IV, reconhecida como herdeira do irmão, João II de Aragão envidou os maiores esforços para conseguir o casamento de Fernando com a princesa castelhana, que se realizou em outubro de 1469.

Mas a morte de Henrique IV em 1474 provocou uma verdadeira guerra civil em Castela pois havia partidários de Isabel mas também partidários da filha de Henrique (ou não…) Joana, que ficaria apelidada la Beltraneja por acreditarem ser filha do fidalgo Beltrán de La Cueva com a rainha portuguesa. Joana era apoiada por seu tio, o rei D. Afonso V de Portugal, que se casou com ela para melhor defender seus direitos.

Fernando, depois longas negociações com a receosa nobreza castelhana, foi proclamado co-regente de Castela, com os mesmos direitos que Isabel, pela chamada Concórdia de Segóvia em 1475. Tomou parte ativa na direção militar e contribuiu para a vitória, sobretudo depois da batalha de Paleagonzalo (1476). Com seu casamento uniram-se em suas pessoas os dois reinos, governados doravante como um único país, embora oficialmente separados. Tornou-se também em 1504 Fernando III de Nápoles. 

Entre 1476-1477 foi administrador da Ordem de Santiago. 

A guerra acabou com a derrota de Joana. Pelo Tratado de Alcáçovas (1479), Joana renunciaria ao trono em favor de Isabel e, como acordado, entrou para um convento em Coimbra. Em 1479 mesmo Fernando herdou do pai o trono de Aragão. 1479 é assim a data que se fixa para a união das duas Coroas. Segundo a Concordia de Segovia, Fernando colaborou com Isabel no governo de Castela, encarregando-se em pessoa da política externa, sem deixar de tratar dos assuntos da Coroa de Aragão.

Primeiras medidas internas: em 1480 se institucionalizou a figura do corregidor; em 1481 foi criada a Inquisição; sancionaram-se nobres rebeldes e reorganizou-se a fazenda real. Os reis iniciaram a seguir em 1481 a conquista do Reino Nasrida de Granada: foi guerra difícil, de sítio, terminada apenas em 1492 e na qual Fernando demonstrou suas qualidades militares e diplomáticas. Granada capitulou em 2 de janeiro de 1492. A conquista do último reduto muçulmano em terras da península espanhola (ver Al-Andalus) ajudou a consolidar a autoridade real. 

Em Aragão, Fernando não mudou o sistema político tradicional, que dificultava a concentração de poder nas mãos do rei, e deu fim em seus Estados ao problema dos remensas catalães, com a abolição dos maus usos e a consolidação dos contratos de enfiteuse. Introduziu em Castela algumas instituições aragonesas como os consulados – o Consulado do Mar, de Burgos e os grêmios, favorecendo o desenvolvimento econômico castelhano e sobretudo o comércio da lã. 

No aspecto religioso, Fernando aderiu completamente ao programa da esposa, que assentou as bases ideológicas da Espanha moderna, aceitando o espírito de cruzada e a uniformidade religiosa (decreto de expulsão dos judeus em 1492 e conversão forçada dos chamados mouriscos ou moriscos de Granada em 1503, os quais tinham visto garantidos em seus direitos de liberdade religiosa após a capitulação do reino de Granada. Por isso o papa espanhol Alexandre VI, lhes concedeu o título de Reis Católicos. 

Expansão aragonesa

A partir de 1492, Fernando centralizou as suas atividades na antiga expansão de Aragão rumo ao Oriente, sobretudo à península Itálica e ao norte da África. Pelo Tratado de Barcelona (1493), recuperou o Rossilhão e a Cerdanha, ocupados desde 1463 pela França. Na península Itálica, para se opor à intenção francesa de anexar o reino das Duas Sicílias ou de Nápoles e Sicília, organizou a “Liga Santa” em 1495, o seu primeiro grande sucesso diplomático internacional.

Os êxitos de suas campanhas militares (nas quais o seu exército foi dirigido por Gonzalo Fernández de Córdoba, o Grande Capitão) e a sua própria astúcia, conseguiram expulsar a dinastia reinante dos Anjou e, em 1504, os franceses. A partir de então, Nápoles se agregou às posses do monarca. 

Ainda contra a França, executou uma sábia política de alianças matrimoniais, conseguindo integrar a Castela na Europa pelo casamento de suas filhas Isabel e posteriormente Maria com Manuel I de Portugal; de seu filho João com Margarida de Áustria; de Joana (Joana I de Castela) com o arquiduque Filipe, o Formoso; e de Catarina de Aragão com Henrique VIII da Inglaterra. Isolava assim a França, que fracassou em suas intervenções na Itália. 

Obteve ainda apoio na Guerra Civil de Navarra e, depois de conseguir o apoio de Pamplona, conseguiu fazer com que as Cortes de Navarra entrassem em acordo para que o Reino de Navarra se unisse à Coroa de Castela em 1515, juntando-o a seus domínios. No norte de África, mostrou-se contrário a prolongadas ocupações e restringiu as suas ações à ocupação de algumas praças-fortes no litoral do Mediterrâneo. Enquanto isso, o descobrimento da América por Cristóvão Colombo e a rápida ocupação e explotação do continente fortalecia a posição internacional dos Reis Católicos. 

Morrendo Isabel em 1504, foi nomeado regente de Castela, mas grande parte da nobreza castelhana se aglutinou ao redor de Filipe, o Formoso, marido de sua filha Joana, fazendo com que renunciasse ao poder para evitar confronto armado. Pelo tratado intitulado Concórdia de Villafáfila (1506), Fernando se retirou para Aragão e Filipe foi proclamado rei de Castela como Filipe I. 

Esperando ainda ter um herdeiro varão para herdar a coroa aragonesa, Fernando se casou em 1505 com Germana de Foix, descendente dos condes de Foix (1490-1538) e neta da rainha Leonor de Navarra. Os esforços para agradar à esposa, muitos anos mais jovem, teriam estado na origem das causas que provocariam sua morte.

A morte inesperada do genro Filipe o Formoso, e a incapacidade da filha (que seria chamada Joana I a Louca) obrigaram-no a aceitar a regência castelhana em nome do neto, o futuro Carlos I de Espanha. Desta vez, entregou-se mais aos assuntos da Itália, tomando parte na Liga de Cambrai contra Veneza em 1511) e deixando entregue o governo de Castela ao Cardeal Cisneros. Em Novembro de 1511, Fernando e Henrique VIII de Inglaterra assinaram o Tratado de Westminster. No início desse ano, Fernando conquistou a metade meridional do Reino de Navarra anexada à Espanha. 

No testamento, deixou todas as suas possessões ao neto, Carlos de Gand, futuro Carlos I de Espanha ou imperador Carlos V do Sacro Império Romano. Até sua chegada, pois vivia nos Países Baixos paternos, permaneceu como regente um seu filho bastardo, Afonso de Aragão, e o cardeal Cisneros, como regente de Castela. Morreu em janeiro de 1516 em Madrigalejo (Cáceres), quando se preparava para assistir ao capítulo das Ordens de Calatrava e de Alcântara no mosteiro de Guadalupe Alguns autores defendem que Fernando serviu de inspiração à polêmica obra de Nicolau Maquiavel, O Príncipe. 

Posteridade

Dos filhos de Isabel de Castela, salientam-se Joana I de Castela e Catarina de Aragão que se casaram com membros de outras dinastias europeias e lançaram os alicerces para que o neto pudesse ser imperador: Carlos V, Imperador do Sacro-Império. 

1- Isabel de Aragão (Duenas 1 ou 2 de Outubro de 1470—23 de Agosto de 1498 Saragoça, sepultada em Santa. Isabel, Toledo). Casou em Sevilha em 18 de abril de 1490 com o príncipe Afonso de Portugal (1475-1491) infante de Portugal, filho do rei D. João II. Enviuvando, casou em 1497 em Valência de Alcântara com Manuel I de Portugal (1469-1521) o Venturoso. 

2 – João de Aragão (Sevilha 28 ou 30 de Junho de 1478—4 de Outubro de 1497 Salamanca) Príncipe das Astúrias, Príncipe de Gerona. Casou em 3 de abril de 1497 em Burgos com Margarida de Áustria ou de Habsburgo (Bruxelas 10 de janeiro de 1480-30 de novembro de 1530 Malines ou Mecheln), condessa da Borgonha, de Artois e do Charolais, futura Regente dos Países Baixos, filha de Maximiliano I, Imperador do Sacro Império, e Maria da Borgonha. Morreu seis meses depois do casamento, aos 19 anos. Segundo alguns cronistas « debido al exceso de fogosidad de su mujer austríaca». Margarida se casaria em 1501 com Filiberto II o Belo, Duque de Savóia. 

3 – Joana I de Castela (Toledo 6 de novembro de 1479-12 de abril de 1555 Tordesilhas, hoje sepultada na Capela Real da Catedral de Granada). Chamada A Louca porque perdeu o controle ao enviuvar. Casou em Lille em 12 de novembro de 1496 com o conde de Flandres, arquiduque de Áustria, Filipe I, o Belo, filho de Maximiliano I de Habsburgo, Imperador do Sacro Império, e Maria da Borgonha. Joana I de Castela foi mãe de Carlos I da Espanha e Imperador do Sacro Império. Foi Co-Rainha de Castela, Leão, Astúrias e Galícia 1504-1516, Rainha de Espanha 1516. 

4- Maria (Córdoba, 29 de junho de 1482 — 7 de março de 1517 Lisboa, sepultada em Belém). Casou em 30 de outubro de 1500 em Alcácer do Sal com D. Manuel I (1469-1521) o Venturoso Rei de Portugal. 

5 – Catarina de Aragão (Alcalá de Henares, arredores de Madrid, 1485 — 1536 Kimbolton Castle, Hunts, sepultada na catedral de Peterborough). Rainha da Inglaterra e Irlanda. Casada em 1501 na catedral de São Paulo, Londres com Artur Tudor, Príncipe de Gales, e após a sua morte em 1502, casou em 1509 com o seu irmão, também feito Príncipe de Gales, depois Henrique VIII de Inglaterra(1491-1547). 

6 – Infante João (nascido e morto em Valladolid 1509) filho de Germaine de Foix. Príncipe de Gerona, era herdeiro dos reinos da Confederación Catalano-Aragonesa da qual seria rei, não tivesse falecido. 

Deixou bastardos: 

1 – de Joana Nicolau, filha de modesto oficial viúvo, no inverno 1472/73 nasceu Joana de Aragão. O pai, no primeiro testamento de 12 de julho de 1475, favoreceu financeiramente sua educação. Tentou casá-la aos 16 anos com o herdeiro da Escócia, mas descobriram sua bastardia. Casou com D. Bernardino Fernández de Velasco (?-1512), aristocrata importante, sobrinho do Cardeal Mendoza, feito duque de Frías e grande condestável de Castela, o qual construiu em Burgos o enorme palácio que hoje é a Casa do Cordão. 

2 – de uma senhora Toda de Larre, biscainha de nome visigodo, nasceu Maria de Aragão (Álava, entre 1478 e 1483, morrendo em 1530). Foi freira, como a irmã caçula , no convento das monjas agostinianas de Santa Clara em Madrigal das Altas Torres, e chegou a ser priora. Jamais soube de sua condição. 

3 – de uma dama portuguesa de sobrenome Pereira: Maria de Aragão (Estremadura entre 1478 e 1483, morrendo em 1548 ou 1550 em Madrigal), freira no convento das monjas agostinianas de Santa Clara em Madrigal das Altas Torres. Ali chegou a ser vigária. Jamais soube de sua condição. 

4 -de Aldonza Iborra de Alamán (ó Roig de Ivorra y Alemany), que vivia na localidade de Cervera, nasceu Alonso de Aragão também chamado como Afonso de Aragão (Cervera, 1470 – Lécera, 24 de Fevereiro de 1520). Era filha de um casal ‘de cierta alcurnia local’, D. Pedro Roig e D. Aldonza de Ivorra. Mandaram-na trasladar-se com o filho a Saragoça, onde seriam acudidos. Foi casada apressadamente com um homem comum de Lérida; anulado logo o casamento por consentimento mútuo, Aldonça casou dois anos depois com um pequeno aristocrata que cedo morreu, deixando-a com situação econômica folgada. Retirada, tranquila, viveu respeitada viuvez.

Fernando reconheceu o filho no verão de 1474 como bastardo seu. Arcebispo de Saragoça aos nove anos, designado por seu avô o rei João II, para substituir seu tio João (causando mesmo fricções com o papa Sisto IV, interessado em protegido seu). Administrador apostólico da diocese, tão rentável, até seus 25 anos sempre ajudava o pai, estando a seu lado. Culto, humanista típico de seu século, estreitamente ligado aos italianos, foi Arcebispo de Monreale, na Sicília, depois de Valência. Lugar-tenente do Reino e da Coroa catalã-aragonesa, tanta a confiança do pai nele.

Em seu testamento o pai o nomeou governador do Reino de Aragão durante as ausências do neto Carlos de Gand (regente da Coroa Catalã-Aragonesa), mas os aragoneses não aceitaram dar-lhe senão o título de ‘curador’. Dizem que celebrou apenas uma missa em vida, e aos 16 anos. Teve sete bastardos de Ana de Gurrea (?-1527) dama de nobre linhagem.

Veja mais:

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Euclides https://canalfezhistoria.com/euclides/ https://canalfezhistoria.com/euclides/#respond Mon, 10 Mar 2025 21:59:38 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5803 Euclides de Alexandria (em grego antigo: Εὐκλείδης Eukleidēs; fl. c. 300 AC) foi um professor, matemático platónico e escritor grego, muitas vezes referido como o “Pai da Geometria”. Além de sua principal obra, Os Elementos, Euclides também escreveu sobre perspectivas, seções cônicas, geometria esférica, teoria dos números e rigor. 

A geometria euclidiana é caracterizada pelo espaço euclidiano, imutável, simétrico e geométrico, metáfora do saber na antiguidade clássica e que se manteve incólume no pensamento matemático medieval e renascentista, pois somente nos tempos modernos puderam ser construídos modelos de geometrias não-euclidianas. 

Euclides é a versão portuguesa da palavra grega Εὐκλείδης, que significa “Boa Glória”. 

Vida

Pouco se sabe sobre a vida de Euclides pois há apenas poucas referências fundamentais a ele, tendo sido escritas séculos depois que ele viveu, por Proclo e Papo de Alexandria. Proclo apresenta Euclides apenas brevemente no seu Comentário sobre os Elementos, escrito no século V, onde escreve que Euclides foi o autor de Os Elementos, que foi mencionado por Arquimedes e que, quando Ptolomeu I perguntou a Euclides se não havia caminho mais curto para a geometria que Os Elementos, ele respondeu: “não há estrada real para a geometria”.

Embora a suposta citação de Euclides por Arquimedes foi considerada uma interpolação por editores posteriores de suas obras, ainda se acredita que Euclides escreveu suas obras antes das de Arquimedes. Além disso, a anedota sobre a “estrada real” é questionável, uma vez que é semelhante a uma história contada sobre Menecmo e Alexandre, o Grande. Na outra única referência fundamental sobre Euclides, Papo mencionou brevemente no século IV que Apolônio “passou muito tempo com os alunos de Euclides em Alexandria, e foi assim que ele adquiriu um hábito de pensamento tão científico”. Também se acredita que Euclides pode ter estudado na Academia de Platão, na Grécia. 

As datas de nascimento (inclusive o local) e morte (inclusive suas circunstâncias) de Euclides são desconhecidas e estimadas pela comparação com as figuras contemporâneas mencionadas nas referências. Nenhuma imagem ou descrição da aparência física de Euclides foi feita durante sua vida portanto as representações de Euclides em obras de arte são os produtos da imaginação artística. 

Convidado por Ptolomeu I para compor o quadro de professores da recém fundada Academia, que tornaria Alexandria o centro do saber da época, tornou-se o mais importante autor de matemática da Antiguidade greco-romana e talvez de todos os tempos, com seu monumental Stoichia (Os elementos, c. 300 a.C.). Depois da queda do Império Romano, os seus livros foram recuperados para a sociedade européia pelos estudiosos muçulmanos da Península Ibérica. Escreveu ainda Optica (295 a.C.), sobre a óptica da visão e sobre astrologia, astronomia, música e mecânica, além de outros livros sobre matemática. Entre eles citam-se Lugares de superfície, Pseudaria, Porismas e mais algumas outras. 

Algumas das suas obras como Os elementos, Os dados (uma espécie de manual de tabelas de uso interno na Academia e complemento dos seis primeiros volumes de Os Elementos), Divisão de figuras (sobre a divisão geométrica de figuras planas), Os Fenômenos (sobre astronomia), e Óptica (sobre a visão), sobreviveram parcialmente e hoje são, depois de A Esfera de Autólico, os mais antigos tratados científicos gregos existentes. Pela sua maneira de expor nos escritos deduz-se que tenha sido um habilíssimo professor. 

Os Elementos

A obra Os Elementos, atribuída a Euclides, é uma das mais influentes na história da matemática, servindo como o principal livro para o ensino de matemática (especialmente geometria) desde a data da sua publicação até o fim do século XIX ou início do século XX. Nessa obra, os princípios do que é hoje chamado de geometria euclidiana foram deduzidos a partir de um pequeno conjunto de axiomas. A obra composta por treze volumes, sendo: 

• cinco sobre geometria plana;
• três sobre números;
• um sobre a teoria das proporções;
• um sobre incomensuráveis
• três (os últimos) sobre geometria no espaço.

Escrita em grego, a obra cobre toda a aritmética, a álgebra e a geometria conhecidas até então no mundo grego, reunindo o trabalho de predecessores de Euclides, como Hipócrates e Eudóxio. Sistematizou todo o conhecimento geométrico dos antigos, intercalando os teoremas já então conhecidos com a demonstração de muitos outros, que completavam lacunas e davam coerência e encadeamento lógico ao sistema por ele criado. Após sua primeira edição foi copiado e recopiado inúmeras vezes, tendo sido traduzido para o árabe em (774).

A obra possui mais de mil edições desde o advento da imprensa, sendo a sua primeira versão impressa datada de 1482 (Veneza, Itália). Essa edição foi uma tradução do árabe para o latim. Tem sido − segundo George Simmons − “considerado como responsável por uma influência sobre a mente humana maior que qualquer outro livro, com exceção da Bíblia”.

Embora muitos dos resultados descritos em Os Elementos originarem-se em matemáticos anteriores, uma das reconhecidas habilidades de Euclides foi apresentá-los em uma única estrutura logicamente coerente, tornando-a de fácil uso e referência, incluindo um sistema rigoroso de provas matemáticas que continua a ser a base da matemática 23 séculos mais tarde. 

Não há menção de Euclides nas primeiras cópias ainda remanescentes de Os Elementos, e a maioria das cópias dizem que são “a partir da edição de Teão” ou as “palestras de Teão”, enquanto o texto considerado primário, guardado pelo Vaticano, não menciona qualquer autor. A única referência que os historiadores se baseiam para Euclides ter escrito Os Elementos veio de Proclo, que brevemente em seu Comentário sobre Os Elementos atribui Euclides como o seu autor. Euclides foi a peça chave em toda a história da Geometria. 

Contribuição com a Física

Os estudos de Euclides sobre a geometria da visão foi a primeira elaboração em torno da atualmente denominada óptica geométrica. 

Diferentemente das análises filosóficas e de suas suposições físicas sobre a natureza da visão, as quais eram isentas de qualquer consideração geométrica, a óptica de Euclides fundamentou-se na análise geométrica da visão e, à primeira vista, parece desprovida de qualquer consideração física acerca da operação da visão. Noções como a cor, a luz ou o transparente, a forma sensível, a luz solar, a natureza do olho e a estrutura física dos órgãos sensoriais envolvidos na visão estão excluídas da óptica de Euclides, uma vez que essas entidades não poderiam ser geometricamente analisáveis ou melhor não poderiam ser tratadas pela sua geometria. 

A análise geométrica da visão elaborada por Euclides supõe uma teoria física mínima acerca da operação da visão e funda-se na redução da visão a um modelo geométrico, no qual o campo visual é tomado como uma coleção, ou agregado, de “raios visuais” concebidos como linhas retas geométricas discretas e divergentes, as quais aparecem como o último termo da análise. Essa coleção de linhas retas “visuais” divergentes, em cuja origem encontra-se o olho, assume a forma de um cone geométrico, conhecido na tradição como “cone visual”, em cuja base encontra-se a figura daquilo que é visto, isto é, a superfície interceptada pelo feixe divergente de linhas retas visuais – entidades estas que possuem uma natureza híbrida, geométrico-sensível. 

Veja mais:

O que aparece ao olho é determinado como uma função das propriedades e relações geométricas que são derivadas dessa construção, a qual, ao reduzir o cone visual a uma projeção plana que resulta em triângulos definidos por um vértice situado no olho e por dois raios visuais que unem as extremidades daquilo que é visto, permite calcular a aparência do tamanho, da figura e do movimento daquilo que é visto.

Essa construção da estrutura geométrica do “cone visual” é delineada por Euclides quando postula que o aspecto retilíneo dos raios visuais, o cone visual constituído pela divergência desses raios visuais discretos e a condição geral da visibilidade ou seja, que para ser visto, um objeto deve ser interceptado pela radiação ocular.

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Ernest Rutherford https://canalfezhistoria.com/ernest-rutherford/ https://canalfezhistoria.com/ernest-rutherford/#respond Mon, 10 Mar 2025 21:57:23 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5799 Ernest Rutherford, o 1º Barão Rutherford de Nelson, OM, PC, PRS (Brightwater, Nova Zelândia, 30 de agosto de 1871 — Cambridge, 19 de outubro de 1937), foi um físico e químico neozelandês naturalizado britânico, que se tornou conhecido como o pai da física nuclear. Em um trabalho no começo da carreira, descobriu o conceito de meia-vida radioativa, provou que a radioatividade causa a transmutação de um elemento químico em outro, e também distinguiu e nomeou as radiações alfa e beta. Foi premiado com o Nobel de Química em 1908 “por suas investigações sobre a desintegração dos elementos e a química das substâncias radioativas”. 

Índice de Conteúdo

Rutherford realizou sua obra mais famosa após ter recebido esse prêmio. Em 1911, ele defendeu que os átomos têm sua carga positiva concentrada em um pequeno núcleo, e, desse modo, criou o modelo atômico de Rutherford, ou modelo planetário do átomo, através de sua descoberta e interpretação da dispersão de Rutherford em seu experimento da folha de ouro. A ele é amplamente creditada a primeira divisão do átomo, em 1917, liderando a primeira experiência de “dividir o núcleo” de uma forma controlada por dois alunos sob sua direção, John Cockcroft e Ernest Walton. 

Dedicada à sua memória, a Medalha e Prêmio Rutherford foi instituída pelo Conselho da Sociedade de Física em 1939. A primeira palestra ocorreu em 1942. A palestra foi convertida em uma medalha e prêmio em 1965, sendo a primeira Medalha e Prêmio Rutherford concedida no ano seguinte. 

Biografia

Ernest Rutherford nasceu em Spring Grove (atual Brightwater), cidade portuária da ilha sul da Nova Zelândia, o quarto filho e segundo homem de uma família de sete filhos e cinco filhas. Seu pai, James Rutherford, um mecânico escocês, emigrou para a Nova Zelândia com toda a família em 1842. Sua mãe, nascida Martha Thompson, uma professora de inglês, com sua mãe viúva, também se mudou em 1855. Ernest recebeu a sua educação em escolas públicas. Aos 16 anos entrou em Nelson Collegiate School. 

Graduou-se em 1893 em Matemática e Ciências Físicas na Universidade da Nova Zelândia. Após ter concluído os estudos, ingressou no Trinity College, Cambridge, como um estudante na investigação do Laboratório Cavendish sob a coordenação de J. J. Thomson. Foi na Inglaterra que Rutherford estudou as radiações de Urânio em pesquisas feitas em colaboração com o Frederick Soddy.

Em 1902, ambos distinguem os raios alfa e beta e desenvolvem a teoria das desintegrações radioativas espontâneas. Uma oportunidade surgiu quando o lugar de professor de Física na Universidade McGill, em Montreal ficou vago. Em 1898 partiu para o Canadá, para assumir o posto. No mesmo ano, foi nomeado professor de Física da Universidade McGill, em Montreal, e em 1907 na Universidade Victoria em Manchester. Nessa época, Ernest formulou a hipótese de que a radiatividade não se tratava de um fenômeno comum a todos os átomos, mas somente de uma certa categoria. Esses estudos resultaram o livro Radiatividade, verdadeiro marco na história do progresso científico. 

Apesar de ser um físico, recebeu o Nobel de Química de 1908, por suas investigações sobre a desintegração dos elementos e a química das substâncias radioativas. Ainda em Manchester, trabalhando em conjunto com Hans Geiger e Thomas Royds, Rutherford elucidou a natureza da chamada radiação alfa.

Após comprovar que esta é formada por partículas com o dobro da carga elétrica de um elétron, em 1907 Rutherford e seus colegas elaboraram um experimento engenhoso no qual partículas alfa foram acumuladas em um tubo de vidro evacuado. Ao passar uma corrente elétrica pelo tubo, puderam observar claramente o espectro do gás hélio, provando assim que as partículas alfa eram na verdade átomos de hélio ionizados, mais tarde identificados como núcleos de hélio. 

Rutherford realizou seus trabalhos mais famosos depois de receber o prêmio Nobel de 1908. Sob sua direção, em 1909 Hans Geiger e Ernest Marsden realizaram o famoso experimento (muitas vezes chamado no Brasil de “Experimento de Rutherford”), o qual demonstrou a natureza nuclear dos átomos através da deflexão de partículas alfa atravessando uma fina folha de ouro.

Nesse experimento, Rutherford pediu a Geiger e Marsden que procurassem por partículas alfa refletidas por ângulos muito grandes, algo que não seria esperado dadas as teorias atômicas da época. Embora raras, tais deflexões foram de fato observadas, algo que Rutherford mais tarde descreveu como “… o evento mais incrível que aconteceu comigo em toda a minha vida. Foi quase tão incrível quanto se você atirasse um projétil de 15 polegadas num lenço de papel e ele ricocheteasse de volta e o atingisse”.

Para conseguir explicar a forma precisa com que as deflexões dependiam do ângulo, Rutherford foi levado em 1911 a formular o modelo atômico que leva seu nome – no qual concebeu o átomo como constituído de um núcleo minúsculo de carga positiva, contendo quase toda a massa do átomo, e orbitado por elétrons. Baseado na concepção de Rutherford, o físico dinamarquês Niels Bohr idealizaria mais tarde um novo modelo atômico. 

Em 1919, antes de deixar Manchester para assumir a direção do Laboratório Cavendish em Cambridge, Rutherford se tornou a primeira pessoa a deliberadamente transmutar um elemento em outro. Bombardeando nitrogênio puro com radiação alfa, ele foi capaz de converter núcleos de nitrogênio em oxigênio. Nos produtos dessa reação nuclear, identificou partículas idênticas a núcleos de hidrogênio, demonstrando que estes eram partes constituintes do núcleo de nitrogênio – e, por inferência, provavelmente de outros núcleos também.

Tal construção já havia sido suspeitada há tempos devido ao fato de a massa atômica de todos os elementos serem aproximadamente um múltiplo da do hidrogênio (Hipótese de Prout). Por conta dessas considerações, em 1920 Rutherford postulou então que o núcleo de hidrogênio deveria ser uma partícula fundamental, que ele denominou próton, a qual seria o elemento constituinte de todos os demais núcleos. Tais fatos levaram a que Rutherford fosse considerado como o fundador da Física Nuclear. 

Rutherford dirigiu o Laboratório Cavendish desde 1919 até à sua morte, período em que foi Professor Cavendish de Física. Sua liderança e trabalho inspiraram duas gerações de cientistas. Foi presidente da Royal Society de 1925 a 1930. 

Recebeu a Ordem de Mérito em 1925 e em 1931 foi condecorado Baron Rutherford de Nelson, Cambridge, um título que foi extinto depois da sua inesperada morte, enquanto aguardava uma cirurgia de hérnia umbilical. Após tornar-se um Lord, ele só poderia ser operado por um médico também nobre (uma exigência do protocolo britânico) e essa demora custou-lhe a vida.[12] Morreu em 19 de outubro de 1937 em Cambridge, e suas cinzas foram enterradas na Abadia de Westminster, perto das tumbas de Isaac Newton e outros grandes cientistas.

Participou da 1ª, 2ª, 3ª, 4ª e 7ª Conferência de Solvay. 

Veja mais:

Publicações

• Radioatividade (1904), 2nd ed. (1905)
• Transformações Radioativas (1906)
• Radiações de substâncias radioativas, com James Chadwick e CD Ellis (1919)
• A estrutura elétrica da matéria (1926)
• As transmutações artificiais dos Elementos (1933)
• A Nova Alquimia (1937)

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Enrico Fermi https://canalfezhistoria.com/enrico-fermi/ https://canalfezhistoria.com/enrico-fermi/#respond Mon, 10 Mar 2025 19:34:40 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5796 Enrico Fermi (Roma, 29 de setembro de 1901 — Chicago, 28 de novembro de 1954) foi um físico italiano naturalizado estadunidense. Destacou-se pelo seu trabalho sobre o desenvolvimento do primeiro reator nuclear, e pela sua contribuição ao desenvolvimento da teoria quântica, física nuclear e de partículas, e mecânica estatística. Doutorou-se na Universidade de Pisa e recebeu o Prémio Nobel de Física em 1938.

Foi um dos poucos físicos da era moderna a combinar a teoria com a experiência. Após alguns anos na Alemanha, regressou à Universidade de Roma, onde, em 1926, dedicou-se à mecânica estatística de partículas que obedecem ao princípio de exclusão de Pauli, como os electrões. O resultado é a chamada estatística de Fermi-Dirac, uma vez que Dirac chegou independentemente às mesmas conclusões.

Em 1933 Fermi introduziu o conceito de interação fraca, que em conjunto com o recém postulado neutrino, entrariam na teoria do decaimento beta. Juntamente com um grupo de colaboradores, Fermi começou uma série de experiências nas quais foram produzidos artificialmente núcleos radioativos, pelo bombardeamento com neutrões de vários elementos.

Alguns dos seus resultados sugeriram a formação de elementos transuranianos. De facto, o que eles observaram, e que mais tarde foi comprovado por Otto Hahn, foi a fissão nuclear, feito que, em 1938, lhe rendeu o Prêmio Nobel de Física. Foi então para os Estados Unidos, onde viria a participar no projeto Manhattan. Dirigiu o projecto de construção do primeiro reator nuclear na Universidade de Chicago. Depois da Segunda Guerra Mundial, Fermi dedicou-se à Física de partículas, a que deu contribuições importantes. O elemento químico de número atômico 100, criado sinteticamente em 1952, recebeu o nome de Férmio em sua honra.

Primeiros anos

Enrico Fermi nasceu em Roma, Itália. Ele era o terceiro filho de Alberto Fermi, inspetor-chefe do Ministério das Comunicações da Itália, e sua mãe era Ida de Gattis, professora de uma escola primária. Sua irmã, Maria, era dois anos mais velha que ele, enquanto seu irmão, Giulio, era um ano mais velho. Desde jovem Fermi gostava de estudar física e matemática, interesses também de seu irmão mais velho. Sua família nunca foi muito religiosa, e Fermi foi um agnóstico sua vida inteira.

Quando Giulio morreu inesperadamente de um abcesso na garganta em 1915, Enrico ficou emocionalmente arrasado, e refugiou-se em estudos científicos para se distrair. De acordo com ele mesmo, todos os dias caminhava em frente ao hospital onde Giulio morreu, até se acostumar com a dor. Numa banca do Campo de’ Fiori, Fermi comprou e leu o livro intitulado Elementorum physicae mathematicae (900 páginas), escrito em latim pelo padre Andrea Caraffa, professor do Collegio Romano, que abordava matemática, mecânica clássica, astronomia, óptica e acústica.

Mais tarde, Fermi e seu melhor amigo, outro estudante inclinado para a ciência, chamado Enrico Persico, empenharam-se em projetos científicos, tais como construir giroscópios e medir o campo magnético da Terra. O interesse de Fermi pela física foi ainda mais incentivado quando um amigo de seu pai, o engenheiro Adolfo Amidei, lhe deu vários livros sobre física e matemática, que Fermi leu e assimilou rapidamente. 

Faculdade em Pisa

Em 1918 Fermi matriculou-se na “Escola Normal Superior” em Pisa, onde mais tarde recebeu o seu diploma de graduação e de doutorado. Para entrar na prestigiada instituição, havia um exame para os candidatos, que incluía um ensaio. Pelo seu ensaio sobre o tema dado, “Características do som”, Fermi, com 17 anos de idade, escolheu derivar e resolver a transformada de Fourier baseada na equação diferencial parcial das ondas numa corda.

O examinador, professor Giulio Pittato, entrevistou Fermi e concluiu que o seu ensaio teria sido digno de louvor mesmo para um doutorado. Enrico Fermi ficou com o primeiro lugar na classificação do exame de entrada. Durante os anos na Scuola Normale Superiore, Fermi formou equipe com um colega estudante Franco Rasetti, que mais tarde, se tornou o mais próximo amigo e colaborador de Fermi. 

Além de frequentar as aulas, Enrico Fermi encontrou tempo para trabalhar nas suas atividades extracurriculares, particularmente com a ajuda de seu amigo Enrico Persico, que permaneceu em Roma para estudar numa universidade. Entre 1919 e 1923 Fermi estudou, por si mesmo, relatividade geral, mecânica quântica e física atômica. 

Os seus conhecimentos de física quântica atingiram um nível tão elevado que o chefe do Instituto de Física, professor Luigi Puccianti, pediu-lhe para organizar seminários sobre o assunto. Durante esse tempo ele aprendeu cálculo tensorial, um instrumento matemático inventado por Gregorio Ricci-Curbastro e Tullio Levi-Civita, e necessário para demonstrar os princípios da relatividade geral. 

Em setembro de 1920, Fermi ingressou no Instituto de Física. Como só havia, além de Fermi, mais dois estudantes nesse departamento, Puccianti deixava-os usar o laboratório livremente para os fins que desejassem. Fermi decidiu então que deviam começar a pesquisar a cristalografia de raios-X. Os três estudantes trabalharam para produzir uma Fotografia de Laue – uma fotografia de um cristal feita por raios-X. 

Em 1921, seu terceiro ano na universidade, publicou os seus primeiros trabalhos científicos no periódico italiano Il Nuovo Cimento. O primeiro foi intitulado: “Sobre a dinâmica de um rígido sistema de cargas elétricas em condições transientes”; o segundo: “Sobre a eletrostática de um campo gravitacional uniforme de cargas eletromagnéticas e sobre o peso de cargas eletromagnéticas”. Um sinal de que as concepções na Física estavam mudando foi que a massa começou, então, a ser expressa como um tensor, uma ferramenta matemática usada, geralmente, para descrever algo que se move e varia no espaço tridimensional.

Na mecânica clássica, a massa é uma grandeza escalar, mas na relatividade ela muda com a velocidade. Usando a relatividade, Fermi provou que uma carga possui um peso igual a U/c², sendo U a energia do sistema e c a velocidade da luz. Porém, à primeira vista, a primeira publicação parecia apontar para uma contradição entre a teoria eletrodinâmica e a relativística em relação ao cálculo das massas eletromagnéticas, visto que o valor anteriormente previsto era de 4/3 U/c².

Um ano depois, com um trabalho intitulado “Correção da discrepância entre a teoria eletrodinâmica e um relativista de cargas eletromagnéticas, Enrico Fermi mostrou que essa discrepância era consequência da relatividade. Esta publicação teve tanto sucesso que foi traduzida para o alemão e publicada no famoso periódico científico alemão “Physikalische Zeitschrift”. 

Em 1922 publicou o seu importante trabalho científico no periódico italiano I Rendiconti dell’Accademia dei Lincei intitulado “Sobre os fenômenos que ocorrem nas proximidades de uma linha de mundo”). Nesse artigo, Fermi examinou o Princípio da Equivalência e introduziu as chamadas Coordenadas de Fermi. Ele provou que, para uma linha de mundo próxima a uma linha do tempo, o espaço comporta-se como um Espaço Euclidiano.

Finalmente, em 1922, Fermi recebeu o seu diploma de graduação na Scuola Normale Superiore ao apresentar a sua tese chamada “Um teorema de probabilidade e suas aplicações”, obtendo laurea com impressionantes 21 anos. Nessa época, a física teórica ainda não era considerada uma disciplina na Itália, portanto a única tese aceita seria de física experimental. Por isso, Fermi usou imagens de difração de raios-X para enriquecer seu trabalho. Os físicos italianos também levaram algum tempo para assimilar as ideias da relatividade geral vindas da Alemanha. 

Enquanto escrevia um apêndice para a versão italiana do livro The Mathematical Theory of Relativity, de August Kopff em 1923, Fermi descobriu um enorme potencial energético nuclear escondido na famosa equação de Einstein (E=mc²), e que podia ser explorado. “Não parece possível, pelo menos num futuro próximo”, ele escreveu, “achar uma maneira de liberar essas enormes quantidades de energia – o que é algo bom, pois a primeira consequência desse fenômeno seria reduzir a pó o físico que tivesse o azar de realizá-lo.” 

O orientador de doutorado de Fermi foi Luigi Puccianti. Em 1924, Fermi passou um semestre em Göttingen estudando com Max Born, onde também conheceu Werner Heisenberg e Pascual Jordan. Fermi então foi para Leiden para estudar com Paul Ehrenfest de setembro a dezembro de 1924, conhecendo Albert Einstein, Hendrik Lorentz e também Samuel Goudsmit e Jan Tinbergen, que se tornaram seus bons amigos.

Do início de 1925 ao final de 1926, Fermi lecionou física matemática e mecânica teórica na Universidade de Florença, onde se juntou com Rasetti para conduzir uma série de experimentos sobre os efeitos do campo magnético no vapor de mercúrio. Fermi também participou de seminários na Sapienza University of Rome, dando palestras sobre mecânica quântica e física dos estados sólidos. 

Depois que Wolfgang Pauli anunciou seu princípio da exclusão, em 1925, Fermi respondeu-o com um artigo “Sobre a quantização do gás perfeito monoatômico”, no qual ele aplicou o princípio de Pauli a um gás ideal. O mesmo raciocínio desse artigo foi desenvolvido independentemente por outro físico chamado Paul Dirac. Juntos e, ao mesmo tempo, separados, os dois cientistas formaram a famosa estatística de Fermi-Dirac. De acordo com Dirac, as partículas que obedecem o princípio da exclusão são chamadas de “férmions” e as que não obedecem são denominadas “bósons”. 

Professor em Roma

Os cargos de professores, na Itália, eram concedidos via concurso, sendo as publicações dos candidatos avaliadas por um comitê de professores. Fermi se inscreveu para a cadeira de física matemática na Universidade de Cagliari, na Sardenha, mas foi dispensado em favor de Giovanni Giorgi. 

Com 24 anos, Fermi tornou-se professor da Universidade de Roma em uma nova cadeira de física teórica criada pelo Ministério da Educação a pedido do professor Orso Mario Corbino, que era professor de física experimental, diretor do Instituto de Física e membro do gabinete de Benito Mussolini. Corbino esperava que a nova cadeira conferisse um maior prestígio à física na Itália. Ele também ajudou Fermi a selecionar sua equipe, que logo foi ingressada por mentes notáveis como Edoardo Amaldi, Bruno Pontecorvo, Franco Rasetti e Emilio Segrè. Para os estudos teóricos apenas, Ettore Majorana também participou do que logo foi apelidado de “Rapazes da Via Panisperna” (em relação ao nome da rua em que o instituto tinha seus laboratórios). 

Fermi se casou com Laura Capon, uma estudante de ciência da Universidade, em 19 de julho de 1928. Eles tiveram dois filhos: Nella, nascida em janeiro de 1931 e Giulio, nascido em fevereiro de 1936. Em 18 de março de 1929, Fermi se tornou membro da Academia Real da Itália, indicado por Mussolini, e se tornou membro do Partido Fascista em 27 de abril, embora tenha se oposto à ideologia em 1938 quando Mussolini criou as leis raciais de forma a aproximar mais o fascismo do nazismo de Hitler. Essas leis ameaçavam Laura, esposa do cientista, que era judia, e tiraram o trabalho de muitos de seus assistentes de laboratório. 

O grupo continuou com os experimentos que vieram a ficar famosos, no entanto, o grupo se desmantelou, em 1933 Rasetti deixou a Itália e foi para o Canadá, Pontecorvo foi para a França, e Segrè partiu para lecionar em Palermo. 

Durante seu tempo em Roma, Fermi e seu grupo fizeram importantes contribuições a muitos aspectos práticos e teóricos da física. Essas incluem a teoria do decaimento beta, com a inclusão do postulado do neutrino em 1930 por Wolfgang Pauli, e a descoberta dos nêutrons lentos, que foi fundamental para o funcionamento dos reatores nucleares.

Em 1928, ele publicou um trabalho chamado Introdução à Física Atômica, que apresentava uma abordagem mais acessível e atualizada para os estudantes. Fermi também produziu palestras e artigos públicos para professores e cientistas para promover e divulgar a nova física tanto quanto possível. Parte do seu método de ensino era se reunir com estudantes de graduação e professores ao final do dia para trabalhar num problema, geralmente sobre uma pesquisa do grupo. Um sinal de que o trabalho de divulgação estava dando resultado era que estudantes estrangeiros estavam indo à Itália. Um deles foi Hans Bethe, que colaborou com Fermi num artigo de 1932 sobre a interação entre dois elétrons. 

Os físicos, na época, ainda possuíam muitas dúvidas acerca do decaimento beta, no qual um elétron é emitido de um núcleo atômico. Para satisfazer a lei da conservação da energia, Pauli postulou a existência de uma partícula invisível com carga zero e uma massa muito pequena que era emitida ao mesmo tempo que o elétron. Fermi pegou essa ideia e, em 1934, escreveu um artigo que decretava a existência do neutrino.

Essa teoria, que também pode ser chamada de interação de Fermi ou fraca interação, descrevia uma das quatro forças fundamentais da natureza. O neutrino só foi detectado após a morte de Fermi, pois é uma partícula extremamente difícil de detectar. Quando o cientista submeteu seu artigo à renomada revista britânica Nature, o editor a rejeitou pois achava que suas especulações eram “muito afastadas da realidade para serem interessantes aos leitores”. Fermi então viu a teoria ser publicada em italiano e alemão antes de ser publicada em inglês. 

Em janeiro de 1934, Irène Joliot-Curie e Frédéric Joliot anunciaram que eles haviam bombardeado elementos com partículas alfa e, com isso, induzido radioatividade. Em março, Gian-Carlo Wick (integrante do Rapazes da Via Panisperna) formulou uma explicação teórica para isso usando a teoria do decaimento beta. Fermi, então, recorreu à física experimental e usou o nêutron, descoberto em 1932.

A partícula escolhida não possuía carga e, portanto, não seria defletida pelo núcleo. Isso causou uma grande redução nos custos do experimento (caso contrário ele seria inviável) pois eliminou a necessidade de se ter um acelerador de partículas, o que era (e ainda é) muito custoso. Para criar uma forte fonte de nêutrons, Fermi encheu um bulbo de vidro com pó de berílio, evacuando todo o ar, e então adicionando 50mCi de radônio gasoso.

Porém, a eficiência da fonte decaía com a meia-vida do radônio (3,8 dias). Era sabido também que a fonte iria emitir raios-gama, mas isso não iria afetar muito os resultados do experimento. O que Fermi fez foi bombardear diferentes elementos (ao todo 22) e, em todos eles, conseguiu induzir radioatividade. A descoberta foi rapidamente reportada para a revista italiana La Ricerca Scientifica em 25 de março de 1934. 

A radioatividade natural de elementos como tório e urânio tornou difícil a determinação do que estava acontecendo durante o bombardeamento desses elementos. Porém, após ter removido corretamente a presença de elementos mais leves que urânio e mais pesados que chumbo, Fermi concluiu que eles haviam criado novos elementos, e os denominou espério e ausônio.

Seu trabalho, no entanto, foi criticado pela química Ida Noddack, que sugeriu que esses experimentos poderiam ter criado elementos mais leves ao invés de elementos novos mais pesados, mas Fermi e sua equipe não levaram a sério a crítica, pois a equipe da química ainda não havia feito nenhum experimento com urânio. Naqueles anos, a fissão nuclear era tomada como improvável (senão impossível) nos campos teóricos, e ninguém esperava que nêutrons tivessem energia o suficiente para quebrar um núcleo em dois fragmentos mais leves da maneira que Noddack havia sugerido. 

O Rapazes da Via Panisperna também descobriu outras coisas interessantes. Fazendo o experimento em diferentes superfícies, eles notaram que a colisão com átomos de hidrogênio atrasava os nêutrons. Quanto menor o número atômico do núcleo que a partícula colide, mais energia ela perde por colisão, e portanto menos colisões são necessárias para desacelerá-la. Fermi descobriu que isso produzia uma maior indução de radioatividade, visto que nêutrons com baixa velocidade são mais facilmente capturados. Ele, então, desenvolveu uma equação de difusão para descrever isso. 

Fermi era bem conhecido por sua simplicidade na solução de problemas. Suas aptidões de formidável cientista, combinando física nuclear teórica e aplicada, foram amplamente reconhecidas. Ele influenciou muitos físicos que trabalharam com ele, como Hans Bethe, que passou dois semestres trabalhando com Fermi no início da década de 1930. 

Fermi permaneceu em Roma até 1938. 

Projeto Manhattan

Em 1938, com 37 anos, Fermi foi laureado com o Nobel de Física, por suas “demonstrações da existência de novos elementos radioativos produzidos pela irradiação de nêutrons, e por sua descoberta relacionada de reações nucleares provocadas por nêutrons lentos”. 

Depois que Fermi recebeu o Prêmio Nobel em Estocolmo, ele, sua mulher Laura e seus filhos emigraram para Nova Iorque. Isso foi principalmente por causa das leis anti-semitas promulgadas pelo regime fascista de Benito Mussolini que ameaçavam Laura, que era judia. Além disso, as novas leis colocaram a maior parte dos assistentes de pesquisa de Fermi fora de trabalho. 

Logo após sua chegada em Nova Iorque, Fermi começou a trabalhar na Universidade de Columbia. Fermi se mudou para o Laboratório Nacional de Los Alamos, em etapas posteriores do Projeto Manhattan, para servir de consultor geral. 

Durante a explosão da primeira bomba atômica, realizada em Alamogordo, Fermi estava presente. Na ocasião, como se era esperado, havia muitos equipamento de ponta para mensurar a energia liberada pela bomba na atmosfera. Haviam cálculos para isso, porém a bomba real teria perdas consideráveis de rendimento. Entretanto, como esta foi a primeira bomba atômica testada na história, não era certo que os equipamentos de medição funcionariam.

Pensando nisso Fermi fez um pequeno experimento para medir a energia liberada: no momento da explosão jogou no chão alguns pedaços de papel. “…no ar parado, os pedacinhos de papel cairiam aos seus pés, mas quando a onda de choque chegou (alguns segundos após o clarão), foram transportados por alguns centímetros na direção da onda. ” Como era conhecido a distancia entre o centro da explosão e onde ele estava, Fermi poderia calculara energia. Tornou-se cidadão naturalizado dos Estados Unidos em 1944. 

Trabalho pós-guerra

Em seus últimos anos, Fermi fez trabalhos importantes em física de partículas, especialmente a relacionada com mésons pi, e múons. Ele também era conhecido por ser um professor inspirador na Universidade de Chicago (embora não tenha deixado o Laboratório de Los Alamos até dezembro de 1945), e era conhecido por sua atenção aos detalhes, simplicidade e preparação cuidadosa das aulas.

A curta distância entre Argonne e Chicago permitia a participação ativa do cientista tanto nas aulas da universidade quanto na física experimental em Argonne, estudando dispersão de nêutrons com Leona Marshall. Mais tarde, suas notas de aula, especialmente as de mecânica quântica, física nuclear, e termodinâmica, foram transcritas em livros que ainda são impressos. Enrico Fermi também discutiu aspectos em física teórica com Maria Mayer, ajudando-a em seu trabalho sobre a interação spin-órbita, o que a levaria ao Prêmio Nobel. 

O Projeto Manhattan foi substituído pela Comissão de Energia Atômica (CAE) no primeiro dia de janeiro de 1947. Fermi fez parte de uma importante subdivisão científica da CAE encabeçada por Robert Oppenheimer. Ele também gostava de passar algumas semanas de cada ano no Laboratório de Los Alamos, onde ajudou Nicholas Metropolis e John von Neumann na instabilidade de Rayleigh-Taylor, a ciência do que ocorre na fronteira entre dois fluidos de diferentes densidades. 

Logo após a detonação da primeira bomba nuclear soviética em agosto de 1949, Fermi, junto com Isidor Rabi, escreveu um forte manifesto ao comitê, se opondo fortemente ao desenvolvimento de uma bomba de hidrogênio tanto em aspectos morais quanto técnicos. Mesmo assim, continuou trabalhando no desenvolvimento dessa bomba como consultor. 

Nos anos que se seguiram, Fermi continuou lecionando na Universidade de Chicago. Seus alunos de PhD no período pós-guerra incluíam Owen Chamberlain, Geoffrey Chew, Jerome Friedman, Marvin Goldberger, Tsung-Dao Lee, Arthur Rosenfeld e Sam Treiman. Jack Steinberger era seu aluno de graduação. Fermi conduziu importantes experimentos na física de partículas, especialmente os relacionados a píons e múons.

Ele fez as primeiras predições da ressonância píon-núcleon, se baseando em métodos estatísticos, pois achava que resultados exatos não eram necessários para uma teoria que não estava completamente correta. Em um artigo com a co-autoria de Chen Ning Yang, ele especulou que píons poderiam ser partículas compostas, uma ideia anteriormente formulada por Shoichi Sakata. Foi então postulado, após anos de estudo, que os píons eram feitos de quarks, que completava o modelo de Fermi e criava o modelo quark. 

Fermi também escreveu um artigo “Sobre a origem da Radiação Cósmica” no qual ele propôs que os raios cósmicos provinham de um material acelerado por campos magnéticos no espaço interestelar, o que levou a uma divergência de opiniões entre ele e Teller. O cientista italiano também examinou assuntos relacionados a campos magnéticos nos braços de uma galáxia espiral. Ele também criou o paradoxo de Fermi, um raciocínio muito interessante sobre civilizações extraterrestres. Perto de sua morte, Fermi questionou sua fé na sociedade e também a capacidade de tomarmos uma decisão prudente em relação às armas nucleares. Ele disse: 

“Algum de vocês pode perguntar: o que de bom há em trabalhar tanto para coletar meramente alguns fatos que não trazem prazer a ninguém – exceto a alguns professores de cabelos longos que amam esse tipo de coisa — e que ninguém irá entender pois somente alguns especialistas são capazes de fazê-lo? Para responder a essas perguntas, eu arrisco uma previsão: a história da ciência e da tecnologia tem nos ensinado, constantemente, que avanços científicos em conhecimentos básicos têm, cedo ou tarde, nos levado a aplicações técnicas e industriais que revolucionaram o nosso modo de vida.

Me parece improvável que todo esse esforço para chegar à estrutura básica da matéria seja uma exceção a essa regra. O que é incerto — e é pelo que todos torcemos — é que o homem irá em breve se tornar suficientemente adulto para fazer bom uso dos poderes que ele adquire da natureza.”

Veja mais:

Fermi morreu prematuramente, aos 53 anos de idade, vítima de câncer no estômago, provavelmente causado pela exposição a materiais radioativos. Foi sepultado no Oak Woods Cemetery, Chicago, Illinois, Estados Unidos.

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Cristóvão Colombo https://canalfezhistoria.com/cristovao-colombo/ https://canalfezhistoria.com/cristovao-colombo/#respond Mon, 10 Mar 2025 19:25:23 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5790 Cristóvão de Colombo (Génova, entre 22 de agosto e 31 de outubro de 1451 — Valladolid, 20 de Maio de 1506) foi um navegador e explorador italiano, responsável por liderar a frota que alcançou o continente americano em 12 de Outubro de 1492, sob as ordens dos Reis Católicos de Espanha, no chamado descobrimento da América. Empreendeu a sua viagem através do Oceano Atlântico com o objectivo de atingir a Índia, tendo na realidade descoberto as ilhas das Caraíbas (Antilhas) e, mais tarde, a costa do Golfo do México na América Central.

Seu nome em italiano é Cristoforo Colombo, em latim Christophorus Columbus e em espanhol, Cristóbal Colón. Este antropónimo inspirou o nome de, pelo menos, um país, Colômbia e duas regiões da América do Norte: a Colúmbia Britânica no Canadá e o Distrito de Colúmbia nos Estados Unidos. Entretanto o Papa Alexandre VI escrevendo em latim sempre chamou ao navegador pelo nome de Christophorum Colon com significado de Membro e nunca pelo latim Columbus com significado de Pombo. 

Colombo é creditado como o primeiro explorador europeu a estabelecer e documentar rotas comerciais para as Américas, apesar dele ter sido precedido por uma expedição viquingue liderada por Leif Erikson no século XI. 

As viagens de Cristóvão Colombo abriram caminho para um período de contato, expansão, exploração, conquista e colonização do continente americano pelos Europeus pelos próximos séculos. Essas viagens e expedições trouxeram várias mudanças e desenvolvimentos na história moderna do Mundo Ocidental. Entre várias outras coisas, impulsionou, por exemplo, o comércio atlântico de escravos. Colombo também é acusado por diversos historiadores de iniciar e incitar o genocídio e repressão cultural dos povos nativos na América.

O próprio Colombo viu suas conquistas sob a luz de expandir a religião cristã. Ele foi acusado, até por contemporâneos, de comportamento tirânico, corrupção e vários crimes contra os nativos indígenas, como estupros e tortura. Essas reavaliações de seus feitos fez com que a visão dos acadêmicos e historiadores sobre Colombo ficasse um tanto quanto negativa com o passar do tempo. 

Origem

A vida do navegador contém muitas incertezas e obscuridades, promovidas por ele próprio e pelo seu filho Fernando, que ocultou ou evitou certas passagens da vida de Colombo, e procurou realçar a figura do pai frente àqueles que o procuravam diminuir. 

A versão normalmente tida como certa entre os historiadores dá-o como nascido em Génova em 1451, e como genovês foi reconhecido pelos seus contemporâneos, embora haja controvérsias a respeito dessa informação. Na biografia Historia del almirante Don Cristóbal Colón escrita pelo seu filho Fernando, este obscureceu a pátria e origem de Colombo, afirmando que o pai não queria que fossem conhecidas tais informações, enumerando várias cidades italianas, em especial ligures, que disputavam tal glória. Em Espanha Colombo sempre foi considerado como estrangeiro, lamentando-se inclusivamente de como essa situação o prejudicava em alguns dos documentos que escreveu. Esteve constantemente em contacto com italianos, e neles depositava a sua confiança. 

Mas “as regras do tempo mostram-nos que um plebeu nunca se casava com uma nobre, pelo que a origem de Colombo é assaz duvidosa.” Apesar do esforço desenvolvido na investigação da vida do navegador, ainda restam algumas incertezas, ou fantasias nacionalistas ou ideológicas. Um dos principais problemas apresentados é o da pátria do navegador, e embora este assunto não seja de interesse primário, a importância que lhe tem sido dada e a sua constante actualidade obrigam a que se lhe faça menção.

Sempre existiu uma controvérsia sobre o local de origem do navegador já que um documento da corte de Castela de 1487 chama-lhe “português”. Entre todas as teorias, a genovesa teve mais apoio até ao século XX quando tentou-se fazê-lo natural da Córsega. No final desse século, Garcia de la Riega, de Pontevedra, na Galiza, publicou uma série de documentos que apresentavam nomes de pessoas da região e de origem judia da primeira metade do século XV com os mesmos nomes da família de Colombo – a despeito destes apenas serem conhecidos através da documentação genovesa – que supostamente teriam imigrado para Génova após o nascimento de Colombo.

Durante muitos anos esta teoria obteve popularidade, já que satisfazia o nacionalismo espanhol, o judeu e o galego, até que em 1928 foi desclassificada como fonte histórica pela Academia de História espanhola, que comprovou os documentos como sendo autênticos, mas manipulados para apresentar aqueles nomes. 

No mesmo ano em que a hipótese galega foi descredibilizada, o historiador peruano Luis Ulloa surgiu com um Colombo catalão, um nobre marinheiro que se chamaria Juan Colón e era inimigo de João II de Aragão, e que seria um suposto “Scolvus” que chegou à América do Norte em 1476, elaborou um projecto de descobrimento e o ofereceu a Fernando o Católico em benefício da Catalunha, mas acabou burlado por este, que conhecia a sua verdadeira identidade, e que para ocultá-la realizou uma série de falsificações de documentos e crónicas.

Esta tese foi inicialmente recebida com entusiasmo na Catalunha, desvanecendo-se com o tempo na ausência de qualquer documento que a suportasse. Desde 1915 que vem igualmente sendo apresentada uma panóplia de hipóteses sobre a origem portuguesa de Cristóvão Colombo. As mais recentes são da autoria de Manuel da Silva Rosa, tendo inspirado um livro de José Rodrigues dos Santos e um filme de Manoel de Oliveira.

Que se tenha conhecimento, Colombo apenas declarou a sua pátria uma única vez, no documento denominado “Fundación de Mayorazgo”, de 1497, onde falando de Génova diz que “dela saí e nela nasci”. Não obstante, em vários outros documentos é afirmada não só a nação genovesa, como a ligação entre o Colombo genovês e o Colombo almirante. Na documentação notarial genovesa de 1470 acha-se uma condenação a Domenicus de Columbo e ao seu filho Cristofforus, para pagarem uma dívida a um certo Ieronimum de Porto.

Numa minuta datada de 25 de Agosto de 1479, vulgarmente cognominada documento Assereto em honra do homem que a encontrou, Colombo é referido como civis janue, cidadão de Génova, num processo sobre uma quantia que supostamente não tinha recebido de Paolo di Negro, agente em Lisboa da casa comercial de Luigi Centurione. No codicilo de 1506, único testamento seguro de Colombo, são referidos tanto Jerónimo do Porto, pai de Benito do Porto, chanceler de Génova, a quem pede que paguem uma soma de 20 ducados; como os herdeiros de Paolo di Negro e Luigi Centurione, a quem pede que entreguem uma quantia em dinheiro para saldamento de uma dívida que atormenta a sua consciência.

Em 1502, Colombo outorga ao Banco de São Jorge, em Génova, uma quantidade sobre as suas rendas, obtendo a resposta na qualidade de compatriota daquela cidade. Na restante documentação ainda existente sobre Colombo não é explícito o seu local de nascimento. 

Além de ser tido no seu tempo por italiano, geralmente genovês, no início do século XVI três escritores de Génova afirmaram não somente a pátria de Colombo, como as suas origens humildes, para grande indignação do seu filho Fernando, que tratou logo de lhe arranjar uma origem nobre – embora caído em desgraça – na sua Historia, pondo o pai a estudar na Universidade de Pavia e emparentando-o com dois famosos corsários contemporâneos. 

No início do século XIX, a publicação da documentação dos cartórios notariais de Génova e Savona permitiu a obtenção de mais dados sobre a família e antecedentes familiares de Colombo, a qual foi recompilada na monumental obra Racolta Colombiana, produzida no âmbito das comemorações em Itália do IV centenário da descoberta da América. A documentação sobrevivente sobre a família de Colombo é inclusivamente mais numerosa que a de muitos personagens de maior categoria social. Com base nessa documentação, hoje em dia, cientificamente, não resta qualquer dúvida sobre as informações que já antes se tinham como certas, embora de forma mais sucinta. 

A data de nascimento foi outro ponto de especulação, existindo hipóteses para um nascimento ocorrido entre 1436 e 1456. Após a publicação do trabalho de Vignaud sobre o Documento Assereto, esta data pôde ser fixada no ano de 1451, embora isso não tenha impedido que alguns continuassem a duvidar. 

Antecedentes familiares

Segundo a documentação aceite até aqui, Colombo era um tecelão natural de Génova, tendo provavelmente nascido no bairro de Quinto, onde o seu pai residia já em 1429. Era filho de Domenico Colombo e de Susana Fontanarubea, e neto de Giovanni Colombo, morador em Quinto, e já defunto a 20 de Abril de 1448. Tinha ainda um tio chamado António Colombo e uma tia Battistina, casada com Giovanni Frittalo, a qual foi dotada no referido ano de 1448.

A 21 de Fevereiro de 1429 o pai de Colombo, Domenico, foi enviado pelo seu pai Giovanni, avô de Colombo, para casa de um tecelão alemão, como aprendiz dessa arte, por um prazo de seis anos. Giovanni, originário de Moconesi, era então habitante em Quinto. Domenico tornou-se assim tecedor de panos, mas de carácter inquieto, e procurando melhorar a sua precária situação económica, estabeleceu-se alternadamente entre Génova e Savona, trabalhando como taberneiro, dedicando-se a pequenos negócios, comprando e vendendo quintas, e tendo até conseguido a guarda de uma das portas de Génova. 

Domenico Colombo e Susana Fontanarossa tiveram pelo menos quatro filhos, Bartolomeu, Cristóvão, Giacomo e João Peregrino, e uma filha, Blanchinetta, a qual em 1489 estava já casada com o queijeiro Jacobo Bavarelli. Tanto João peregrino como Blanchinetta morreram jovens, tendo esta deixado um filho, por nome Pantaleão. Cristóvão e Bartolomeo terão tido desde cedo vocação marítima, enquanto Giacomo aprendeu o ofício de tecedor. 

Vários documentos notariais genoveses atestam a presença em Espanha dos três filhos de Domenico, Bartolomeu, Cristóvão e Giacomo. Em 1489, após um processo entre Domenico e o pai do seu genro, Giacomo Bavarello, queijeiro, este, já viúvo, assina na qualidade de legítimo administrador da parte dos seus três filhos. A 11 de Outubro de 1496, um acordo é assinado entre Giovanni Colombo de Quinto e Matteo e Amighetto, seus irmãos, todos filhos de Antonio Colombo já defunto, segundo o qual o primeiro deles se deveria dirigir a Espanha, a expensas comuns, para visitar «Cristóvão Colombo, seu primo, Almirante do Rei de Espanha».

Em 1501, alguns cidadãos de Savona juraram que Cristóvão, Bartolomeu e Giacomo Colombo, filhos e herdeiros do defunto Domenico são «há muito tempo afastados da cidade e território de Savona, para lá de Pisa e de Nice em Provença, e que vivem em Espanha, como toda a gente sabe e o sabia já. 

Primeiros anos

A data do nascimento de Colombo pode ser determinada com alguma precisão, uma vez que num documento datado de 31 de Outubro de 1470 afirma-se que Cristóvão Colombo, filho de Domenico é já maior de dezanove anos. Esta informação, juntamente com o documento Assereto, onde ele próprio afirma ter “cerca de 27 anos”, permite precisar o ano do seu nascimento como sendo o de 1451, entre 25 de Agosto e 31 de Outubro. 

Colombo começou por seguir o ofício de tecelão, mas muito cedo interessou-se pela navegação. Os estudos que teve devem ter sido muito elementares, e talvez terá aprendido matemática e a sua bela caligrafia nalguma modesta escola da região. Segundo o seu filho Fernando, aos catorze anos começou a navegar. Em 1492 Colombo afirmou que havia vinte e três anos que navegava, o que leva a 1469 e aos dezanove anos.

De qualquer modo, num documento de 1472 ainda se intitula lanerio, e a partir do ano seguinte não surge mais como vivendo na região. É possível que alternasse entre os dois ofícios, começando a navegar como grumete e dedicando-se depois ao comércio, trabalhando à comissão, segundo se vê da documentação notarial. 

Nestas primeiras viagens esteve na ilha de Quios, no mar Egeu, à época uma colónia genovesa, cuja produção de mástique recordou várias vezes. Recordou também um feito militar que teria feito ao serviço de Renato de Anjou, aliado de Génova e proclamado rei de Aragão pelos catalães revoltados (1466), uma tentativa de captura em Tunes de uma galeaça de João II de Aragão, ou do sobrinho deste, o rei de Nápoles, com os quais aquele estava em guerra; este feito, que poderia ter acontecido por volta de 1472, apresenta no entanto aspectos duvidosos. 

Numa vaga afirmação do seu filho Fernando, recolhida por Las Casas, Colombo teria navegado com o pirata Colombo o novo, o grego Jorge Bissypat. No entanto, dada a cronologia, se isso aconteceu apenas pode ter sido com Coulon ou Colombo o velho, um terrível corsário de seu verdadeiro nome Guilherme de Casenove. 

Presença em Portugal

Não se conhece qualquer documento dos arquivos portugueses que mencione o navegador. O único documento em português que o refere é um suposto salvo-conduto de D. João II datado de 1488 e guardado no Arquivo Geral das Índias, cuja autenticidade é, no entanto, duvidosa. O registo da presença de Colombo em Portugal é estabelecido a partir das biografias escritas pelo seu filho Fernando e por Las Casas, assim como do Documento Assereto, que assinala a sua presença em Lisboa e na Madeira no Verão de 1478, e indica a sua intenção de se deslocar para Lisboa em Agosto de 1479. 

Segundo o seu filho Fernando, Colombo chega a Portugal num episódio relacionado com este pirata Colombo. Conta Fernando que indo Colombo nuns navios mercantes genoveses em direcção a Inglaterra, estes foram atacados pelo pirata Colombo o Novo por alturas do Cabo de São Vicente, havendo feroz combate, pois os navios iam armados, tendo ardido vários.

Conta Fernando que Colombo salvou-se agarrado a um remo, chegando a terra muito extenuado. Recolhido pela população e recomposto, Colombo passou a Lisboa, onde sabia se encontrarem muitos seus compatriotas da colónia genovesa daquela cidade. Há neste relato manifesto erro, pois este combate com Colombo o Novo ocorreu somente em 1486, quando Colombo já se encontrava em Espanha. O episódio parece corresponder a um outro combate com o pirata Coulon o Velho em 1476.

Logicamente que, caso Colombo realmente tenha chegado desta forma a Portugal, teria estado a bordo das naus genovesas, e não acompanhando o pirata, como já se supôs. Em todo o caso, supõe-se que Colombo tenha vivido cerca de nove anos em terras de Portugal, entre 1476 e 1485, para onde terá vindo aos vinte e cinco anos, ao atingir a maioridade. Este período da sua vida resume-se às suas viagens, ao casamento, e ao grande projecto que começou a acalentar. 

Nesta época, terá realizado algumas viagens de grande alcance. De Lisboa, terá seguido com o resto da frota genovesa que se salvara do confronto com o pirata, após esta se reagrupar e reforçar, até Inglaterra, e ao que parece mais além, pois ele mesmo diz que, estando em Galway, no oeste da Irlanda, viu um homem e uma mulher chegarem num tronco vindos de “Catai”. Afirmou também ter chegado a Tule em 1477, comprovando que o seu extremo sul estava a 73ºN e não a 63º (sendo que este último é que é realmente o valor correcto) e que, apesar de ser Fevereiro, o mar não estava gelado, permitindo que navegasse cem léguas para lá da ilha.

Tem sido discutido se de facto chegou à Islândia, e parece ainda mais improvável tal prolongamento da viagem, cuja finalidade não se percebe. É possível que a Tule de Colombo fossem as Shetland, ou as Ilhas Feroe, muito mais meridionais. Por outro lado, a latitude da Tule de Colombo aproxima-se mais da Islândia, e há provas de que, nesse ano, o Inverno na Islândia foi muito mais suave que o habitual. 

Em Julho de 1478, encontra-se nesta cidade, ao serviço da casa comercial de Ludivico Centurione e Paolo di Negro, mercadores genoveses cujos herdeiros são citados nos testamentos de Colombo (1506) e do seu filho Diogo (1523). Por esta data, Colombo desloca-se de Lisboa à Ilha da Madeira, encarregado de comprar 2400 arrobas de açúcar, que deveriam ser carregadas no navio do capitão português Fernando de Palência.

Para o efeito, Di Negro havia-lhe fornecido parte do dinheiro, sendo que o restante deveria chegar ao Funchal a tempo da transacção ser concretizada e da chegada do navio que deveria carregar o açúcar, o que não aconteceu, tendo os vendedores se recusado a concretizar a transacção. Embora se suponha geralmente que Colombo teria vivido no Porto Santo por esta época, cerca de 1478, segundo Pereira da Costa não é crível que tal tenha ocorrido, dadas as condições muito precárias da ilha nessa época. Do mesmo modo, não se sabe ao certo se a viagem de 1478 à Madeira teria sido ou não a sua primeira visita àquele arquipélago. 

O caso da transacção de açúcar falhada acabou nos tribunais de Génova, onde Colombo, então com 27 anos, se encontrava a 25 de Agosto de 1479, tendo prestado declarações na qualidade de testemunha e cidadão genovês. No dia seguinte, 26 de Agosto de 1479, Colombo embarcaria novamente com destino a Lisboa.

O facto de o tribunal de Génova o considerar ainda como cidadão daquela cidade em Agosto de 1479 permite supor que nesta data não estava ainda permanentemente estabelecido em Lisboa e seria ainda solteiro, de acordo com a informação de Las Casas, que diz que o seu casamento e estabelecimento em Portugal levou a que fosse considerado como cidadão português.

Assim, terá sido apenas após esta data que desposou Filipa Moniz, à época residente com sua mãe no mosteiro feminino de Santos-o-Velho da Ordem de Santiago desde a morte do pai, Bartolomeu Perestrelo, cavaleiro da casa do Infante D. Henrique, de ascendência presumivelmente italiana, de Placência, e um dos povoadores e primeiro capitão do donatário da ilha do Porto Santo.

O recolhimento de Isabel Moniz, viúva de Bartolomeu Perestrelo, após a morte deste em 1457 no Porto Santo, junto com a filha neste mosteiro, deve-se certamente ao facto do Mestre de Santiago ter sido amo de Bartolomeu Perestrelo. Desta união nasceu o único filho legítimo de Colombo que se conhece, Diogo, depois nomeado pela Coroa Espanhola como 2º Almirante e Vice-rei das Índias. 

Mais tarde, Colombo terá navegado em navios portugueses, pois fez uma viagem a Mina, cuja fortaleza apenas se construiu em 1482, e algumas vezes menciona recordações da Guiné. Deve também ter conhecido as Ilhas Canárias. Por esta época juntou-se-lhe o seu irmão Bartolomeu, bom cartógrafo e construtor de esferas, ofício do qual ali vivia. Bartolomeu era muito entendido em cosmografia e bom marinheiro, embora não se saiba onde foi buscar esses conhecimentos, sendo sempre um colaborador leal e eficaz do navegador. 

O projecto de Colombo

Foi em Portugal que Colombo começou a conceber o seu projecto de viagem para o Ocidente, inspirado pelo ambiente febril de navegações, descobrimentos, comércio e desenvolvimento científico, que converteram a Lisboa da segunda metade do século XV num rico e activíssimo porto marítimo e mercantil, de dimensão internacional, e Portugal no país dos melhores, mais audazes e experientes marinheiros, com os maiores conhecimentos náuticos da época. O projecto terá surgido não de forma repentina, mas gradual, provavelmente em colaboração com o seu irmão Bartolomeu. Após o processo de formação e maturação, o projecto de Colombo consistia em atravessar o oceano Atlântico – o único conhecido à época – em direcção à Ásia. 

O historiador norte-americano Vignaud tentou demonstrar que Colombo apenas procurava alcançar umas distantes ilhas do Atlântico, mas não chegar às Índias, tendo alterado o projecto após as descobertas que fez. Esta tese é normalmente descartada pelos historiadores colombinos de maior competência, já que para descobrir umas simples ilhas não era necessário negociar tenazmente com monarcas, promover opiniões de sábios e técnicos e exigir honras e compensações tão exorbitantes. Tratava-se, sem dúvida, de uma empresa nova, arriscada, e de importância bem maior que uma expedição comum. 

O seu filho Fernando conta que o pai começou por pensar que se os portugueses navegavam já tão grandes distâncias para o sul, poderia fazer o mesmo para o oeste, enumerando os factores que o fizeram pensar na existência de terras a ocidente: A esfericidade da terra; e as leituras de autores clássicos, como Aristóteles, Estrabão e Plínio, que afirmavam a curta distância entre a Espanha e África, e a Índia.

O mais provável, no entanto, é que não tenha se inspirado nesses autores, mas sim que os tenha lido depois por forma a fundamentar o seu projecto. Os supostos papéis do sogro que lhe teriam sido entregues por Isabel Moniz teriam juntado indícios materiais, como troncos de árvores e cadáveres de espécies desconhecidas arrastados pelo mar.

Finalmente, as notícias que obteve de marinheiros que afirmavam ter encontrado terras a oeste, e as várias tentativas para descobrir supostas ilhas do Atlântico, comuns por aqueles anos. Colombo observou nas suas viagens e permanências nas ilhas atlânticas estes indícios, assim como as condições dos ventos e correntes marítimas, a reconhecer a proximidade de terra firme e as rotas mais favoráveis, o que tudo aprendeu com a experiência portuguesa. 

Influência de Toscanelli

A escola italiana geralmente considera como inspirador e pai teórico do descobrimento o geógrafo, médico e matemático florentino Paolo dal Pozzo Toscanelli, que constitui ele próprio um dos muitos problemas da vida de Colombo. Toscanelli, que morreu em 1482 e gozou de grande prestígio científico em Itália, manteve prolongada correspondência com o cónego português Fernão Martins, que mais tarde ocasionaram uma consulta por parte de D. Afonso V sobre a possibilidade de chegar à Índia pelo oeste; a acompanhar a resposta e Toscanelli estava um mapa, que se perdeu. 

Esta correspondência apenas se conhece através de Colombo; o seu filho Fernando escreve que, uma vez inteirado dela, o pai escreveu a Toscanelli, que lhe respondeu enviando cópia da carta que havia enviado a Fernão Martins, datada (a original) de 25 de Junho de 1474. Las Casas diz que teve nas suas mãos a tradução em castelhano, pois o original estava em latim. Colombo teria insistido com Toscanelli, que acabou por lhe enviar uma cópia do mapa já antes enviado a Afonso V.

Estas cartas, no entanto, apenas se conhecem pelas transcrições de Fernando Colombo e Las Casas incluídas nas suas obras; no século XIX descobriu-se um texto em latim entre os papéis que pertenceram a Colombo, escrito por sua mão ou pela do irmão Bartolomeu. Tais cartas foram sempre geradoras de polémica, sendo consideradas falsas por alguns, como Vignaud e Carbía, e autênticas pela maioria dos historiadores italianos.

Outros historiadores tomam por autêntica somente a correspondência entre Toscanelli e Fernão Martins, sendo a restante entre Colombo e Toscanelli considerada apócrifa, inventada possivelmente pelo filho Fernando, por forma a demonstrar que o pai, já com o seu projecto idealizado, se tinha apoiado em um parecer de grande autoridade, assim como empurrar para Toscanelli a responsabilidade pelo erro cometido por Colombo de pensar que chegara à Ásia oriental ao chegar às Américas. Ignora-se como Colombo pôde conhecer um tal documento secreto, de que, de resto, jamais fez ele próprio menção. 

O historiador Demetrio Ramos analisou a carta de Toscanelli a Fernão Martins, no contexto do ambiente português da época. Em 1452 teve lugar a viagem de Diogo de Teive, cuja rota antecipou a de Colombo, a qual tinha a intenção premeditada de fazer o reconhecimento do Atlântico oriental; nessa viagem encontrava-se o marinheiro Pedro Vásquez de la Frontera, que surge mais tarde em Palos angariando tripulantes para a expedição de Colombo, assegurando que se encontrariam as Índias; não é seguro, no entanto, que Teive tenha avistado terra.

Nos anos seguintes, as doações de ilhas por achar nas chancelarias portuguesas parecem indicar suspeitas fundamentadas de terras nessas longitudes. É por esta altura, em 1474, que ocorre a consulta a Toscanelli, com o objectivo de confirmar estes avistamentos, e de inquirir sobre a possibilidade do oriente asiático estar mais perto do que o que se supunha. A concessão feita em 1475 a Fernão Teles volta a demonstrar as intenções portuguesas em encontrar ilhas intermediárias numa rota para o Atlântico ocidental. 

Colombo conseguiu finalmente fazer aprovar o projecto da sua viagem junto dos Reis Católicos, após a conquista de Granada, com a ajuda do confessor da rainha Isabel de Castela. Os termos da sua contratação tornavam-no almirante dos mares da Índia a descobrir e governador e vice-rei das terras do Oriente a que se propunha chegar, em competição com os portugueses que exploravam a Rota do Cabo. Alguns historiadores têm procurado demonstrar que o navegador mentia propositadamente a Castela para ajudar Portugal e que tinha a ajuda de Américo Vespúcio nessa missão.

De facto, já em 1494 um português, traidor de D. João II, escrevera à Rainha Isabel de que eram falsas aquelas Índias de Colombo e que a viagem de 1492 era uma manobra de D. João II para distrair os espanhóis do monopólio que Portugal tinha na Guiné. No sentido de apoiar Colombo como agente secreto existe uma carta de D. João II a “Cristóvão Colon, Nosso especial amigo em Sevilha” onde o rei de Portugal agradece o futuro Almirante de estar ao “seu serviço” e que será “pago de forma que ficarás bem contente.”

Manuel Rosa aponta uma dezena de agentes do Rei de Portugal a trabalhar com Colombo em Sevilha, incluindo o Juanoto Berardi, que era o factor de D. João II em Sevilha e Pero Vasques Saavedra, descobridor da Ilha das Flores, o qual ajudou a convencer os irmãos Pinzón a fazerem viagem.

Outro dado interessantíssimo para este ponto de vista, é que um português que fazia parte da tripulação levava canela escondida para depois entregar ao Martim Pinzón, capitão da Pinta dizendo que “vido a un indio que traia manojos della”. Sendo um agente da coroa de Portugal, explica-se como Colombo estaria com D. João II e José Vizinho em 1485 revistando as secretas Tabelas da Altura do Sol na Guiné e de novo com D. João II e Bartolomeu Dias fazendo um mapa da descoberta do Cabo da Boa Esperança em 1488.

Também a carta de Toscanelli é assim enquadrada neste esquema facilmente, pois Colombo jamais teria acesso a uma carta nos arquivos de D. João II, a não ser que o próprio rei lhe desse acesso par a poder copiar. Outra peça central desta conspiração seria o globo de Martin Behaim, um cavaleiro da Ordem de Cristo que fazia parte da Junta dos Matemáticos de D. João II, cujo globo construído na Alemanha durante a viagem de Colombo mostra os mesmos conceitos da India através do Atlântico como Colombo e Toscanelli pretendiam. 

Presença em Castela

A partir do início de 1485 Colombo passa a Castela. Chegando a Córdova com a corte, teve um caso amoroso, no inverno de 1487-1488, com uma moça humilde por nome Beatriz Enríquez, da qual nasceu, a 15 de agosto de 1488, Fernando Colombo. A esta moça deixa Colombo, no seu testamento, a renda anual de 10.000 maravedis, presumivelmente como compensação pelos danos causados à sua honra. Entre 1485 e 1492, Colombo permanece em Castela, apenas abandonando a península em 1492 quando parte do porto de Palos na sua primeira expedição. 

As quatro viagens ao Novo Mundo

Na noite de 3 de agosto de 1492, Colombo partiu de Palos de la Frontera, com três navios: uma nau maior, Santa María, apelidada Gallega, e duas caravelas menores, Pinta e Santa Clara, apelidada de Niña em homenagem a seu proprietário Juan Niño de Moguer. Eram propriedade de Juan de la Cosa e dos irmãos Pinzón (Martín Alonso e Vicente Yáñez), mas os monarcas forçaram os habitantes de Palos a contribuir para a expedição. Colombo navegou inicialmente para as ilhas Canárias, que eram propriedade da Castela, onde reabasteceu as provisões e fez reparos. Em 6 de setembro, partiu de San Sebastián de la Gomera para o que acabou por ser uma viagem de cinco semanas através do oceano. 

A terra foi avistada às duas horas da manhã de 12 de outubro de 1492, por um marinheiro chamado Rodrigo de Triana (também conhecido como Juan Rodríguez Bermejo) a bordo de Pinta. Colombo chamou a ilha (atual Bahamas) San Salvador, enquanto os nativos a chamavam Guanahani. Exatamente qual era a ilha nas Bahamas é um assunto não resolvido. As candidatas principais são Samana Cay, Plana Cays e San Salvador (assim chamada em 1925, na convicção de que era a San Salvador de Colombo).

Os indígenas que encontrou, os lucaians, taínos ou aruaques, eram pacíficos e amigáveis. Desde a entrada em 12 de outubro de 1492 em seu diário, Colombo escreveu sobre eles: “Muitos dos homens que já vi têm cicatrizes em seus corpos, e quando eu fazia sinais para eles para descobrir como isso aconteceu, eles indicavam que pessoas de outras ilhas vizinhas chegavam a San Salvador para capturá-los e eles se defendiam o melhor possível. Acredito que as pessoas do continente vêm aqui para tomá-los como escravos. Devem servir como ajudantes bons e qualificados, pois eles repetem muito rapidamente o que lhes dizemos.

Acho que eles podem muito facilmente ser cristãos, porque eles parecem não ter nenhuma religião. Se for do agrado de nosso Senhor, vou tomar seis deles de Suas Altezas quando eu partir, para que possam aprender a nossa língua.” Observou que a falta de armamento moderno e até mesmo espadas e lanças forjadas de metal era uma vulnerabilidade tática, escrevendo: “Eu poderia conquistar a totalidade deles com cinquenta homens e governá-los como quisesse.” 

Colombo também explorou a costa nordeste de Cuba, onde desembarcaram em 28 de outubro (segundo os próprios cubanos, o nome é derivado da palavra Taíno, “cubanacán”, significando “um lugar central”), e o litoral norte de Hispaniola, em 5 de dezembro. Aqui, o Santa Maria encalhou na manhã do Natal de 1492 e teve de ser abandonado.

Foi recebido pelos cacique nativo Guacanagari, que lhe deu permissão para deixar alguns de seus homens para trás. Colombo deixou 39 homens e fundou o povoado de La Navidad no local da atual Môle Saint-Nicolas, Haiti. Antes de retornar à Espanha, Colombo também sequestrou entre 10 a 25 nativos e os levou de volta com ele. Apenas sete ou oito dos índios nativos chegaram à Espanha vivos, mas eles causaram forte impressão em Sevilha. 

A sua segunda viagem iniciou-se em 1493, com três naus e catorze caravelas. Nela avistou as Antilhas e abordou a Martinica. Rumou depois para o norte e alcançou Porto Rico. Foi a Hispaniola onde a pequena colônia tinha sido arrasada pelos indígenas. Tendo ali deixado outro contingente de homens, navegou para o ocidente e chegou à Jamaica. Nessa viagem fundou Isabela, atual Santo Domingo, na República Dominicana, a primeira povoação europeia no continente americano. 

Para a terceira viagem, partiu em 1498, com seis naus, tendo chegado à ilha da Trinidad depois de uma atribulada viagem. Rumando ao sul chegou a uma grande terra que pensou ser uma ilha, a que chamou de Terra de Gracia nel Golfo de Paria, localizado na foz do delta do rio Orinoco, (Venezuela). Rumando ao norte chegou a Santo Domingo, onde entrou em conflito com o governador, vindo ele e o irmão a ser presos e enviados para Castela. 

Na quarta viagem, saiu de Cádiz com quatro naus em 1502, propondo-se uma vez mais a chegar ao Oriente. Avistou a Jamaica e, depois de grande tempestade, chegou à Ilha de Pinos nas Honduras. Avistou depois as costas da Nicarágua, Costa Rica e Panamá. Devido ao péssimo estado das naus teve de regressar a Hispaniola, de onde voltou para Castela. 

Últimos anos

Embora Colombo tenha sempre apresentado a conversão dos não-cristãos como um dos motivos das suas expedições, a sua religiosidade aumentou nos últimos anos de vida. Provavelmente com o apoio do seu filho Diogo e do seu amigo, o monge cartuxo Gaspar Gorricio, Colombo produziu dois livros nos seus últimos anos: o Livro de Privilégios (1502), detalhando e documentando as mercês que havia recebido da Coroa Espanhola, às quais acreditava ele e seus herdeiros terem direito, e um Livro de Profecias (1505), no qual usou passagens da Bíblia para colocar os seus feitos como explorador no contexto da escatologia cristã. 

No final da vida, Colombo exigiu que a Coroa Espanhola lhe desse 10% de todos os proveitos obtidos nos territórios descobertos, tal como estipulado nas capitulações de Santa Fé. No entanto, uma vez que Colombo havia sido dispensado das suas obrigações como governador, a Coroa não se sentiu obrigada por esse contrato, e as suas exigências foram rejeitadas. Após a sua morte, os herdeiros de Colombo processaram a Coroa com vista a obter uma parte dos proveitos do comércio com as Américas, assim como outros benefícios. Isto levou a uma longa série de disputas legais conhecidas como pleitos colombinos.

Colombo morreu em Valhadolid a 20 de Maio de 1506, com cerca de 55 anos, com uma considerável riqueza proveniente do ouro que os seus homens haviam acumulado em Hispaniola. À data da sua morte, Colombo estava ainda convencido que as suas expedições tinham sido realizadas ao longo da costa oriental da Ásia.

De acordo com um estudo publicado em Fevereiro de 2007, realizado por Antonio Rodriguez Cuartero, do Departamento de Medicina Interna da Universidade de Granada, Colombo morreu de paragem cardíaca causada por artrite reactiva. Segundo os seus diários pessoais e anotações deixadas pelos seus contemporâneos, os sintomas desta doença (ardor doloroso quando se urina, dor e inchamento das pernas, e conjuntivite) eram claramente evidentes nos três últimos anos da sua vida. 

Os restos mortais de Colombo foram inicialmente sepultados em Valladolid, sendo depois transladados para o Mosteiro da Cartuxa em Sevilha. Em 1542, por desejo expresso pelo seu filho Diogo, que fora governador de Hispaniola, os restos mortais foram transferidos para Santo Domingo, na actual República Dominicana, onde foram depositados na catedral da cidade. Em 1795, quando a França obteve o controlo de toda a ilha de Hispaniola, os restos mortais de Colombo foram transladados para Havana, Cuba, e após a independência cubana, na sequência da Guerra Hispano-Americana de 1898, novamente transferidos para Espanha, para a Catedral de Sevilha, onde se encontram sobre um sumptuoso catafalco. 

No entanto, em 1877, uma caixa de chumbo com a inscrição “Ilustre y esclarecido varón Don Cristóbal Colón” e contendo fragmentos de osso e uma bala, foi descoberta na Catedral de Santo Domingo. De modo a pôr fim às alegações de as relíquias erradas haviam sido transferidas para Havana e que os restos mortais de Colombo haviam sido deixados enterrados na Catedral de Santo Domingo, em Junho de 2003 foram tiradas amostras de ADN dos restos mortais que se encontram em Sevilha, assim como outras amostras de ADN dos restos mortais dos seus filhos Diogo e Fernando.

As observações iniciais sugeriram que os ossos não aparentavam pertencer a alguém com o físico e idade associados a Colombo. A extracção de ADN revelou-se difícil; apenas pequenos fragmentos de ADN mitocondrial (ADNmt) puderam ser isolados. Estes fragmentos encontraram uma correspondência exacta com o ADNmt do seu irmão Diogo, sustentando a tese de que ambos terão partilhado a mesma mãe.

Tal evidência, juntamente com a análise histórica e antropológica, levou os investigadores a concluir que os restos mortais que se encontram em Sevilha pertencem a Cristóvão Colombo. As autoridades de Santo Domingo nunca permitiram que os restos mortais que aí se encontram fossem exumados, de modo que desconhece-se se algum deles pertence também ao corpo de Colombo. Estas relíquias encontram-se actualmente no “Farol de Colombo” (Faro a Colón), em Santo Domingo. 

Obra

A documentação escrita deixada por Colombo encontra-se num castelhano aportuguesado, que se acredita tenha aprendido em Portugal, onde residiu durante alguns anos e onde casou. Conhecem-se escritos desde 1481, anteriores à sua passagem para Castela, onde descreve a data da criação do mundo segundo os judeus. Conserva-se uma única carta para ele, do rei D. João II de Portugal, quando Colombo já vivia fora de Portugal. 

Armas originais

Existe alguma controvérsia em torno das armas originais que Colombo teria usado antes de Junho de 1493. Em 2007 foi publicada em Madrid a Provisão Real com estas armas assinada pelos Reis Católicos. 

Veja mais:

Colombo e a sífilis na Europa

Colombo e os seus marinheiros não se limitaram a descobrir o Novo Mundo, e a introduzir as doenças do continente europeu no americano. Também trouxeram da América para a Europa a sífilis. Embora essa teoria não seja nova, um estudo atual empreendido por uma equipe com elementos de três universidades estadunidenses – Emory, Columbia e Mississipi State -, confirma-a.

A doença, uma infecção sexualmente transmissível causada pela bactéria “Treponema pallidum”, pode causar danos ao coração, cérebro, olhos e ossos e até a morte, razões pelas quais foi estigmatizada e temida por séculos. A primeira epidemia de sífilis de que há notícia na Europa ocorreu em 1495, dois anos após o regresso de Colombo de sua viagem de descobrimento, coincidência temporal que deu origem à teoria no passado. Estudos genéticos da bactéria, levados a cabo em 2008 deram maior força à hipótese.

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Constantino https://canalfezhistoria.com/constantino/ https://canalfezhistoria.com/constantino/#respond Mon, 10 Mar 2025 18:58:26 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5787 Constantino I, também conhecido como Constantino Magno ou Constantino, o Grande (em latim: Flavius Valerius Constantinus; Naísso, 272 — 22 de maio de 337), foi um imperador romano, proclamado Augusto pelas suas tropas em 25 de julho de 306, que governou uma porção crescente do Império Romano até a sua morte. 

Constantino derrotou os imperadores Magêncio e Licínio durante as guerras civis. Ele também lutou com sucesso contra os francos e alamanos, os visigodos e os sármatas durante boa parte de seu reinado, mesmo depois da reconquista da Dácia, que havia sido abandonada durante o século anterior. Constantino construiu uma nova residência imperial em Bizâncio, chamando-a de Nova Roma. No entanto, em honra de Constantino, as pessoas chamavam-na de Constantinopla, que viria a ser a capital do Império Romano do Oriente durante mais de mil anos. Devido a isso, ele é considerado como um dos fundadores do Império Romano do Oriente. 

Fontes

Constantino era um governante de grande importância histórica e sempre foi uma figura controversa. As flutuações na reputação de Constantino refletem a natureza das fontes antigas de seu reinado. Estas são abundantes e detalhadas, mas foram fortemente influenciadas pela propaganda oficial do período, e são muitas vezes unilaterais.

Não há histórias de sobreviventes ou biografias que lidaram com a vida de Constantino e do Estado. Os mais próximos subsídios são a Vida de Constantino de Eusébio de Cesareia, uma obra que é uma mistura de elogio e hagiografia. Escrito entre 335 e cerca de 339, a Vita exalta virtudes morais e religiosas de Constantino.

A Vita cria uma imagem tendenciosamente positiva de Constantino, que os historiadores modernos vêm frequentemente contestando a sua fiabilidade. A mais completa vita secular de Constantino é do anónimo Origo Constantini. Uma obra de data incerta, o Origo concentra-se em acontecimentos militares e políticos, em detrimento de assuntos culturais e religiosos. 

Ascensão a Augusto do Ocidente

Nascido em Naísso, na Mésia Superior (actual Niš na Sérvia), filho de Constâncio Cloro (ou Constâncio I Cloro) e da filha de um casal de donos de uma albergaria na Bitínia, Helena de Constantinopla, Constantino teve uma boa educação — especialmente por ser filho de uma mulher de língua grega e haver vivido no Oriente grego, o que facilitou-lhe o acesso à cultura bilíngue própria da elite romana — e serviu no tribunal de Diocleciano depois do seu pai ter sido nomeado um dos dois césares, na altura um imperador júnior, na Tetrarquia em 293.

Embora a sua condição junto de Diocleciano fosse em parte a de um refém, Constantino serviu nas campanhas do césar Galério e de Diocleciano contra os sassânidas e os sármatas. Aquando da abdicação conjunta de Diocleciano e Maximiano em 305, Constâncio seria proclamado augusto, mas Constantino seria descartado como césar em proveito de Valério Severo (também conhecido modernamente como Severo II, título que jamais usou, para não ser confundido com o grande imperador do século anterior, Septímio Severo). 

Pouco antes da morte do seu pai, em 25 de julho de 306, Constantino conseguiu a permissão de Galério para se reunir a ele no Ocidente, chegando a fazer uma campanha juntamente com Constâncio Cloro contra os pictos, estando junto do leito de morte do seu pai em Eburaco (atual Iorque) na Britânia, o que lhe permitiu impor o princípio da hereditariedade em seu proveito, proclamando-se “césar” e sendo reconhecido como tal por Galério, então feito “augusto” do Oriente. Desde o início de seu reinado, assim, Constantino tinha o controle da Britânia, Gália, Germânia e Hispânia, com sua capital em Augusta dos Tréveros, cidade que fez embelezar e fortificar. 

Nos dezoito anos seguintes, combateu uma série de batalhas e guerras que o fizeram o governador supremo do Império Romano. Como Maximiano desejava retomar a sua posição de augusto, da qual se havia afastado a contragosto juntamente com Diocleciano, Constantino recebeu-o na sua corte e aliou-se a ele por um casamento em 307 com a filha de sete anos de Maximiano, Fausta, o que lhe permitiu ser reconhecido tacitamente como Augusto em 308 por Galério numa conferência tetrárquica em Carnunto (atual Petronell-Carnuntum na Áustria).

Em 309, no entanto, Constantino enfrentaria o seu sogro, que tentava recuperar abertamente o poder, capturando-o em Marselha e mandando assassiná-lo. Em 310, Constantino seria formalmente reconhecido como Augusto por Galério. Severo havendo sido entrementes eliminado, em 307, por Magêncio, filho de Maximiano que se havia proclamado imperador em Roma, Constantino deveria acabar por enfrentar o seu cunhado para conseguir o domínio completo do Ocidente romano. Após uma série de mediações fracassadas e lutas confusas, Constantino, após apoiar o usurpador africano Lúcio Domício Alexandre, cortando o fornecimento de trigo de Roma, de 308 a 309, desceu em 312 até Itália para eliminar Magêncio. 

Essas guerras civis constantes e prolongadas fizeram de Constantino, antes de mais nada, um reformador militar, que, para aumentar o número de tropas à sua disposição imediata, constituiu o cortejo militar do imperador (comitatus) num corpo de tropas de elite autossuficiente – um verdadeiro exército de campanha — principalmente pelo recrutamento de grande número de germanos que se apresentavam ao exército romano nos termos de diversos tratados de paz, a começar pelo rei alamano Croco II, que teve um papel decisivo na aclamação de Constantino como Augusto. 

Religião

O facto de Constantino ser um imperador de legitimidade duvidosa foi algo que sempre influiu nas suas preocupações religiosas e ideológicas: enquanto esteve diretamente ligado a Maximiano, ele apresentou-se como o protegido de Hércules, deus que havia sido apresentado como padroeiro de Maximiano na primeira tetrarquia. Ao romper com o seu sogro e após o ter eliminado, Constantino passou a colocar-se sob a proteção da divindade padroeira dos imperadores-soldados do século anterior, Deus Sol Invicto, ao mesmo tempo que fez circular uma ficção genealógica (um panegírico da época.

Para disfarçar a óbvia invenção, dizia, dirigindo-se retoricamente ao próprio Constantino, que se tratava dum facto “ignorado pela multidão, mas perfeitamente conhecido pelos que te amam”) pela qual ele seria o descendente do imperador Cláudio II — ou Cláudio Gótico — conhecido pelas suas grandes vitórias militares, por haver restabelecido a disciplina no exército romano, e por ter estimulado o culto ao Sol. 

Constantino acabou, no entanto, por entrar na História como primeiro imperador romano a professar o cristianismo, na sequência da sua vitória sobre Magêncio na Batalha da Ponte Mílvia, em 28 de outubro de 312, perto de Roma, que ele mais tarde atribuiu ao Deus cristão. Segundo a tradição, na noite anterior à batalha sonhou com uma cruz, e nela estava escrito em latim: 

“In hoc signo vinces”

De manhã, um pouco antes da batalha, mandou que pintassem uma cruz nos escudos dos soldados e conseguiu uma vitória esmagadora sobre o inimigo. Esta narrativa tradicional não é hoje considerada um facto histórico, tratando-se antes da fusão de duas narrativas de factos diversos encontrados na biografia de Constantino pelo bispo Eusébio de Cesareia. 

No entanto, é certo que Constantino era atraído, enquanto homem de Estado, pela religiosidade e pelas práticas piedosas — ainda que se tratasse da piedade ritual do paganismo: o senado, ao erguer em honra a Constantino o seu arco do triunfo, o Arco de Constantino, fez inscrever sobre este que sua vitória se devia à “inspiração da divindade”(instinctu divinitatis mentis), o que certamente ia ao encontro das ideias do próprio imperador. Até um período muito tardio do seu reinado, no entanto, Constantino não abandonou claramente a sua adoração com relação ao deus imperial Sol, que manteve como símbolo principal nas suas moedas até 315. 

Só após 317 é que ele passou a adotar clara e principalmente lemas e símbolos cristãos,[22] como o “chi-ró”, emblema que combinava as duas primeiras letras gregas do nome de Cristo (“X” e “P” sobrepostos). No entanto, já quando da sua entrada solene em Roma em 312, Constantino se recusou a subir ao Capitólio para oferecer culto a Júpiter, atitude que repetiria nas suas duas outras visitas solenes à antiga capital para a comemoração dos jubileus do seu reinado, em 315 e 326. 

A sua adoção do cristianismo pode também ser resultado de influência familiar. Helena, com grande probabilidade, havia nascido cristã e demonstrou grande piedade no fim da sua vida, quando realizou uma peregrinação à Terra Santa, localizou em Jerusalém uma cruz que foi tida como a Vera Cruz e ordenou a construção da Igreja do Santo Sepulcro, substituindo o templo a Afrodite que havia sido instalado no local — tido como o do sepultamento de Cristo — pelo imperador Adriano. 

Mas apesar do seu batismo, há dúvidas se realmente ele se tornou cristão. A Enciclopédia Católica afirma: “Constantino favoreceu de modo igual ambas as religiões. Como sumo pontífice ele velou pela adoração pagã e protegeu seus direitos.” E a Enciclopédia Hídria observa: “Constantino nunca se tornou cristão”. No dia anterior ao da sua morte, Constantino fizera um sacrifício a Zeus, e até o último dia usou o título pagão de pontífice máximo (pontifex maximus).

E, de facto, Constantino, até ao dia da sua morte, não havendo sido batizado, não participou de qualquer ato litúrgico, como a missa ou a eucaristia. No entanto, era uma prática comum na época retardar o batismo, que era suposto oferecer a absolvição a todos os pecados anteriores — e Constantino, por força do seu ofício de imperador, pode ter percebido que as suas oportunidades de pecar eram grandes e não desejou “desperdiçar” a eficácia absolutória do batismo antes de haver chegado ao fim da vida. 

Qualquer que tenha sido a fé individual de Constantino, o facto é que ele educou os seus filhos no cristianismo, associou a sua dinastia a esta religião, e deu-lhe uma presença institucional no Estado romano (a partir de Constantino, o tribunal do bispo local, a episcopalis audientia, podia ser escolhida pelas partes de um processo como tribunal arbitral em lugar do tribunal da cidade). E quanto às suas profissões de fé pública, num édito do início de seu reinado, em que garantia liberdade religiosa, ele tratava os pagãos com desdém, declarando que lhes era concedido celebrar “os ritos de uma velha superstição”. 

Esta clara associação da casa imperial ao cristianismo criou uma situação equívoca, já que o cristianismo se tornou a religião “pessoal” dos imperadores, que, no entanto, ainda deveriam regular o exercício do paganismo — o que, para um cristão, significava transigir com a idolatria. O paganismo retinha ainda grande força política — especialmente entre as elites educadas do Ocidente do império — situação que só seria resolvida por um imperador posterior, Graciano, que renunciaria ao cargo de pontífice máximo em 379 — sendo assassinado quatro anos depois por um usurpador, Magno Máximo. Somente após a eliminação de Máximo e de outro usurpador pagão, Flávio Eugénio, por Teodósio I é que o cristianismo tornar-se-ia a única religião legal (395). 

O imperador romano Constantino influenciou em grande parte na inclusão na igreja cristã de dogmas baseados em tradições. Uma das mais conhecidas foi o Édito de Constantino, promulgado em 321, que determinou oficialmente o domingo como dia de repouso, com exceção dos lavradores — medida tomada por Constantino utilizando-se da sua prerrogativa de, como Pontífice máximo, de fixar o calendário das festas religiosas, dos dias fastos e nefastos (o trabalho sendo proibido durante estes últimos). Note-se que o domingo foi escolhido como dia de repouso, em função da tradição sabática judaico-cristã, o nome original em latim Dominicus, significa “dia do Senhor”. 

Reformas religiosas, militares e administrativas

Constantino legalizou e apoiou fortemente a cristandade por volta do tempo em que se tornou imperador, com o Édito de Milão, mas também não tornou o paganismo ilegal ou fez do cristianismo a religião estatal única.

Na sua posição de pontífice máximo — cargo tradicionalmente ocupado por todos os imperadores romanos, e que tinha a ver com a regulação de toda e qualquer prática religiosa no império — estabeleceu as condições do seu exercício público e interferiu na organização da hierarquia quando convocado, seguindo uma prática, no que diz respeito aos cristãos, que já havia sido inaugurada por um imperador pagão, Aureliano, que fora chamado a arbitrar uma querela entre o bispado de Antioquia e o bispado de Roma, que excomungara Paulo de Samósata, bispo de Antioquia, por heresia.

O imperador reafirmara o que já era do direito circunscricional da Igreja Romana — ou seja, que as igrejas cristãs locais, no que diz respeito a sua organização administrativa — inclusive quanto a eleição dos bispos — deveriam reportar-se à igreja de Roma, a capital. 

A sua vitória em 312 sobre Magêncio resultou na ascensão ao título de augusto ocidental, ou soberano da totalidade da metade ocidental do império, reconhecida pelo pagão Licínio, único augusto do Oriente após a eliminação de Maximino Daia. A vitória de Constantino teve uma consequência militar imediata: Constantino aboliu definitivamente a guarda pretoriana, que havia sustentado Magêncio e, com ela, os interesses políticos da aristocracia italiana, substituindo-a por um corpo de tropas de elite ligadas à pessoa do imperador, as escolas palatinas, que, a partir daí, seriam o núcleo do sistema militar romano, enquanto os velhos corpos de tropa territoriais eram negligenciados.

As escolas eram principalmente regimentos de cavalaria, que serviam como uma força-tarefa ligada à pessoa do imperador, e seu principal objetivo era garantir uma capacidade de ação imediata em caso de guerra civil ou externa; quanto às forças de defesa territorial, os limítanes, estas acabaram por se reduzir a uma mera força policial de fronteira, entrando em declínio imediato na sua capacidade combativa.

O objetivo destas reformas militares era principalmente político, colocando a quase totalidade das forças militares móveis à disposição imediata do imperador — com a exceção de certas unidades territoriais que eram equiparadas às forças móveis e chamadas pseudocomitatenses — concentradas em áreas urbanas onde pudessem ser mantidas abastecidas pelos fornecimentos que eram agora a maior parte do soldo militar (os pagamentos em dinheiro, tornando-se recompensas esporádicas pagas aquando da ascensão ou dos jubileus de ascensão do imperador ao trono). 

Quando Licínio expulsou os funcionários cristãos da sua corte, Constantino encontrou um pretexto para enfrentar o seu colega e, tendo negada permissão para entrar no Império do Oriente durante uma campanha contra os sármatas, fez disto a razão para derrotar e eliminar Licínio em 324, tornando-se imperador único. 

Apesar da Igreja ter prosperado sob o auspício de Constantino, ela própria caiu no primeiro de muitos cismas públicos. Constantino, após ter unificado o mundo romano, convocou o Primeiro Concílio de Niceia, um grande centro urbano da parte oriental do império, em 325, um ano depois da queda de Licínio, a fim de unificar a Igreja cristã, pois com as divergências desta, o seu trono poderia estar ameaçado pela falta de unidade espiritual entre os romanos. Duas questões principais foram discutidas em Niceia (atual İznik): a questão da Heresia Ariana que dizia que Cristo não era divino, mas o mais perfeito das criaturas, e também a data da Páscoa, pois até então não havia um consenso sobre isto. 

Constantino só foi batizado e cristianizado no final da vida. Ironicamente, Constantino poderá ter favorecido o lado perdedor da questão ariana, uma vez que ele foi batizado por um bispo ariano, Eusébio de Nicomédia (que não deve ser confundido com o biógrafo do imperador, Eusébio de Cesareia). A inclinação que Constantino e seu filho e sucessor na condição de augusto único, Constâncio II, demonstraram pelo arianismo, é bastante explicável, na medida em que ambos tentaram apresentar a figura do imperador como um análogo do Cristo ariano: uma emanação divina, reflexo terreno do Verbo.

A tempestuosa relação de Constantino com a Igreja da época dá conta dos limites da sua atuação no estabelecimento da Ortodoxia: pouco antes de sua morte, em 335, ele mandou exilar, na capital imperial de Augusta dos Tréveros (Tréveris, o patriarca de Alexandria Atanásio, campeão da ortodoxia, por suas violentas atitudes antiarianas, e apesar do facto de que Atanásio continuou a ser perseguido pelos sucessores de Constantino, o abertamente ariano Constâncio II e o pagão Juliano, o Apóstata, foi a sua visão teológica que acabou por prevalecer. 

Ao mesmo tempo que velava pela unidade religiosa do império, Constantino quis resolver o problema da divisão da elite dirigente numa aristocracia senatorial com acesso exclusivo às “dignidades” (as velhas magistraturas republicanas, sem poderes ou responsabilidades, e transformadas numa mera hierarquia de status) e numa hierarquia burocrática de funcionários imperiais com funções administrativas efetivas e pertencentes à ordem equestre:

após 326, os altos funcionários passam à pertencer à ordem senatorial (os clarissimi) e o número de senadores passa de 600 a 2.000, com os requisitos de entrada elevados (em Roma, os ex-questores deixam de ser senadores, e a entrada no senado passa a depender da pretura; na nova capital de Constantinopla, o acesso ao senado seria garantido aos ex-titulares do posto de tribuno da plebe, velha magistratura ressuscitada).

Com a entrada do alto pessoal administrativo na ordem senatorial, quaisquer pretensões de independência política da velha aristocracia ficaram eliminadas; a escolha de todos os imperadores subsequentes seria feita exclusivamente na família do imperador ou através do exército. Em contrapartida, no entanto, Constantino parece haver cedido aos senadores no final do seu reinado o direito de elegerem, eles mesmos, questores e pretores e assim determinarem que pessoas queriam fazer ingressar na sua ordem, abandonando a prática da nomeação imperial de novos senadores, a adlectio.

O senado, assim, se continuou sem o poder de fazer uma política própria, passou a ter o poder de estabelecer um “cadastro de reserva” da administração imperial. Por outro lado, paralelamente à carreira senatorial “padrão”, a qual se chegava pela eleição às magistraturas, forma-se uma carreira alternativa, pela qual indivíduos não oriundos da aristocracia tradicional se tornam automaticamente senadores ao serem nomeados pelo imperador para cargos de hierarquia senatorial.

Por outras palavras: o título de senador passou a significar uma posição na hierarquia administrativa, e não uma função pública (excetuando-se, aí, o governo local de Roma). O que aconteceu com os senadores romanos foi apenas o exemplo mais notável do que aconteceu em todo o império com sua cristianização: as identidades culturais e políticas locais deixaram de contar diante da hierarquia burocrática central. 

Fundação de Constantinopla

Para resolver definitivamente o problema logístico da distância entre a capital e as principais frentes militares da época, sem recorrer ao expediente de uma residência imperial “interina”, Constantino reconstruiu a antiga cidade grega de Bizâncio, que dedicou em 11 de maio de 330 chamando-a de Nova Roma, dotando-a de um senado e instituições cívicas (catorze regiões, um fórum, distribuições de trigo, um prefeito urbano) semelhantes aos da antiga Roma. Tratava-se, no entanto, de uma cidade puramente cristã, dominada pela Igreja dos Santos Apóstolos, junto à qual se encontrava o mausoléu onde Constantino seria sepultado.

Os templos pagãos de Bizâncio foram nela preservados, mas neles foram proibidos os sacrifícios e o culto das imagens dos deuses. Após a morte de Constantino, Bizâncio foi renomeada Constantinopla, tendo-se gradualmente tornado a capital permanente do império. A fundação de Constantinopla foi complementada pelo tratado (foedus) realizado entre Constantino e seus descendentes com os godos, que, a partir de 332, passaram a defender a fronteira do Danúbio e fornecer homens ao exército romano, em troca de abastecimentos. A mudança da capital imperial enfraqueceu a influência do papado de Roma e fortaleceu a influência do bispo de Constantinopla sobre o Oriente, um dos eventos notáveis que provocariam futuramente o Grande Cisma do Oriente. 

Sucessão

Um ano depois do Primeiro Concílio de Niceia, em (326), portanto, durante uma viagem solene a Roma para a comemoração dos seus vinte anos de reinado, Constantino mandou matar o seu próprio filho e sucessor designado Crispo, um general competente que provavelmente foi suspeito de intrigar para derrubar o pai.

Pouco depois, sufocaria a sua segunda mulher Fausta num banho sobreaquecido, provavelmente por suspeitar que ela tivesse intrigado contra o seu enteado Crispo. Mandou também estrangular o cunhado Licínio, que se havia rendido em troca da vida e chicotear até à morte o seu filho (e sobrinho do próprio Constantino). Foi sucedido pelos seus três filhos com Fausta: Constantino II, Constante I e Constâncio II, os quais dividiram entre si a administração do império até que, depois de uma série de lutas confusas, Constâncio II emergiu como augusto único. 

Morte

Na Páscoa de 337 Constantino havia percebido que a sua morte chegaria em breve. Dessa forma chamou Eusébio de Nicomédia e pediu-lhe os sacramentos. Morreu em Ancirona, nos subúrbios de Nicomédia (atual cidade turca de Izmit), ao sul do Mar de Mármara. 

Veja mais:

Apreciações póstumas

Constantino foi uma figura controversa já na sua época: o último imperador pagão, seu sobrinho Juliano, dizia que ele era atraído pelo dinheiro e que buscou acima de tudo, enriquecer-se e aos seus partidários — traço este (de saber enriquecer os seus amigos) que também foi reconhecido pelo historiador Eutrópio e pelo próprio Eusébio de Cesareia.

O historiador pagão Zósimo criticou severamente as suas reformas militares. Mas como primeiro imperador «cristão», Constantino foi reverenciado durante toda a Idade Média, seja pela cristandade oriental, que o tinha como fundador do Império Bizantino — e a Igreja Ortodoxa acabou por canonizá-lo — seja pela ocidental, que, sem lhe atribuir o status de santo, considerava haver ele criado os Estados Papais, territórios doados ao Papa pela chamada Doação de Constantino.

Só com o Iluminismo o seu legado começou a ser pesadamente criticado, e o historiador inglês Edward Gibbon, no seu livro clássico sobre a “A História do Declínio e Queda do Império Romano” caracteriza-o como um general romano de velha cepa a quem o poder absoluto (e, por extensão, o cristianismo) havia convertido num déspota oriental. Com a secularização da sociedade moderna, a apreciação de Constantino em função exclusivamente das suas reformas religiosas perdeu acuidade – e ele passou a ser analisado em termos da sua própria época, como um dos fundadores, juntamente com Diocleciano, do Baixo-Império (ou Dominato), do qual ele estabeleceu as estruturas políticas e sociais básicas.

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Confúcio https://canalfezhistoria.com/confucio/ https://canalfezhistoria.com/confucio/#respond Mon, 10 Mar 2025 18:14:48 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5784 Confúcio (chinês: 孔子, pinyin: Kǒng Zǐ, Wade-Giles: K’ung-tzŭ, ou chinês: 孔夫子, pinyin: Kǒng Fūzǐ, Wade-Giles: K’ung-fu-tzŭ, literalmente “Mestre Kong”) (tradicionalmente 27 de agosto de 551 a.C. – 479 a.C.), foi um pensador e filósofo chinês do Período das Primaveras e Outonos. 

A filosofia de Confúcio sublinhava uma moralidade pessoal e governamental, os procedimentos corretos nas relações sociais, a justiça e a sinceridade. Estes valores ganharam predominância na China em relação a outras doutrinas, como o legalismo (法家) e o taoismo (道家), durante a Dinastia Han (206 a.C. – 220). Os pensamentos de Confúcio foram desenvolvidos num sistema filosófico conhecido por confucionismo (儒家). 

Por nenhum texto ser comprovadamente de autoria de Confúcio e as ideias mais comumente atribuídas a ele terem sido redigidas durante o período entre a sua morte e a fundação do primeiro império chinês em 221 a.C., muitos acadêmicos são muito cautelosos em atribuir asserções específicas ao próprio Confúcio. Os seus ensinamentos podem ser encontrados na obra Analectos de Confúcio (論語), uma coleção de aforismos que foi compilada muitos anos após a sua morte. Por cerca de dois mil anos, pensou-se ter sido Confúcio o autor ou editor de todos os Cinco Clássicos (五經), como o Clássico dos Ritos (禮記) (editor) e Os Anais de Primavera e Outono (春秋) (autor). 

Os princípios de Confúcio tinham base nas tradições e crenças chinesas comuns. Favoreciam uma lealdade familiar forte, veneração dos ancestrais, respeito com os idosos e a família como a base para um governo ideal. 

Nascimento e juventude

Confúcio, também conhecido como K’ung Ch’iu, K’ung Chung-ni ou Confucius, nasceu em meados do século VI (551 a.C.), em Tsou, uma pequena cidade no estado de Lu, hoje Shantung. Segundo algumas fontes antigas, teria nascido em 27 de agosto de 552 a.C. (ou seja, no vigésimo primeiro ano do duque Hsiang). Esse estado é denominado de “terra santa” pelos chineses.

Confúcio estava longe de se originar de uma família abastada, embora seja dito que ele tinha ascendência aristocrática. Seu pai, Shu-Liang He, antes magistrado e guerreiro de certa fama, tinha setenta anos quando se casou com a mãe de Confúcio, uma jovem de quinze anos chamada Yen Cheng Tsai, que diziam ser descendente de Po Chi’in, o filho mais velho do Duque de Chou, cujo sobrenome era Chi. 

Dos onze filhos, Confúcio era o mais novo. Seu pai morreu quando ele tinha três anos de idade, o que o obrigou a trabalhar desde muito jovem para ajudar no sustento da família. Aos quinze anos, resolveu dedicar suas energias em busca do aprendizado. Em vários estágios de sua vida, empregou suas habilidades como pastor, vaqueiro, funcionário público e guarda-livros. Aos dezenove anos, se casou com uma jovem chamada Chi-Kuan. Confúcio teve um filho chamado K’ung Li. 

Viagens

Aos 51 anos de idade, Confúcio obteve um posto oficial no estado de Lu. Mas, ele demitiu-se do cargo poucos anos depois, dizendo que não queria confundir-se com aqueles cujas ideias e conceitos de valor ele não podia compartilhar. Assim, ele começou a viajar por diversos reinos, pretendendo persuadir seus governadores a aceitar suas ideias políticas. mas não achou um lugar para realizar seus pensamentos e políticas. Viajando e conversando, atraiu muitos discípulos, impressionados com sua sabedoria e a elevação de seu caráter. 

Confúcio viajou por diversos lugares, esteve em íntimo contato com o povo e pregou a necessidade de uma mudança total do sistema de governo por outro que se destinasse a assegurar o bem-estar dos súbditos, pondo, em prática, processos tão simples como a diminuição de contribuições o abrandamento das penalidades. 

Suas ideias expandiram-se pelo país e por toda a China. Durante 14 anos, ele viajou por 7 reinos. Ao completar 68 anos, Confúcio voltou a sua terra natal, Qufu, no estado de Lu, onde ensinava seus estudantes, coligia e ordenava os livros clássicos até sua morte em 479 a. C., aos 73 anos. 

Ideias

A sua ideologia de organização da sociedade procurava recuperar os valores antigos, perdidos pelos homens de sua época. No entanto, em sua busca pelo Tao, ele usava uma abordagem diferente da noção de desprendimento proposta pelos taoistas. A sua teoria baseava-se num critério mais realístico, onde a prática do comportamento ritual daria uma possibilidade real aos praticantes de sua doutrina de viverem em harmonia. 

Confúcio não pregava a aceitação plena de um papel definido para os elementos da sociedade, mas sim que cada um cumprisse com seu dever de forma correta. Já o condicionamento dos hábitos serviria para temperar os espíritos e evitar os excessos. Logo, a sua doutrina apregoava a criação de uma sociedade capaz, culturalmente instruída e disposta ao bem-estar comum. A sua escola foi sistematizada nos seguintes princípios: 

• Ren, humanidade (altruísmo);
• Li, ou cortesia ritual;
• Zhi, conhecimento ou sabedoria moral;
• Xin, integridade;
• Zhing, fidelidade;
• Yi, justiça, retidão, honradez.

Cada um desses princípios ligar-se-ia às características que, para ele, se encontravam ausentes ou decadentes na sociedade. 

Confúcio não procurou uma definição aprofundada sobre a natureza humana, mas parece ter acreditado sempre no valor da educação para a condicionar. Sua bibliografia consta de três livros básicos, sendo que os dois últimos são atribuídos aos seus discípulos: 

• Lun yu (Diálogos, Analectos), no qual se encontra a síntese de sua doutrina.
• Dà Xué (大學) (Grande Ensinamento) e
• Zhong Yong (Jung Yung), ou a “Doutrina do Meio”.

Após sua morte, Confúcio recebeu o título de “Senhor Propagador da Cultura, Sábio Supremo e Grande Realizador” (大成至聖文宣王), nome que se encontra registado em seu túmulo. Ao contrário de profetas de religiões monoteístas, Confúcio não pregava uma teologia que conduzisse a humanidade a uma redenção pessoal. Pregava uma filosofia que buscava a redenção do Estado mediante a correção do comportamento individual. Tratava-se de uma doutrina orientada para esse mundo, pregando um código de conduta social e não um caminho para a vida após a morte. 

Discípulos e legado

Discípulos de Confúcio e seu único neto, Zisi, continuaram a sua escola filosófica após sua morte. Estes esforços espalharam os ideais de Confúcio para os estudantes, que, depois, se tornaram funcionários em muitas das cortes reais chinesas, dando, assim, ao confucionismo, o primeiro teste em grande escala de seus dogmas.

Apesar de confiar fortemente no sistema ético-político de Confúcio, dois de seus mais famosos seguidores enfatizaram aspectos radicalmente diferentes de seus ensinamentos. Mêncio (século IV a.C.) articulou a bondade inata no ser humano como uma fonte das intuições éticas que guiam as pessoas para rén, yì, e lǐ, enquanto Xun Zi (século III) ressaltou os aspectos realista e materialista do pensamento de Confúcio, salientando que a moralidade é incutida na sociedade através da tradição e, nos indivíduos, através da formação. 

Este realinhamento no pensamento de Confúcio foi paralelo ao desenvolvimento do legalismo, que viu a piedade filial como interesse e não como um instrumento útil para um governante criar um Estado eficiente. A divergência entre estas duas filosofias políticas veio à tona em 223 a.C., quando o estado de Qin conquistou toda a China.

Li Ssu, o primeiro-ministro da Dinastia Qin, convenceu Qin Shi Huang a abandonar as recomendações confucionistas de distribuir feudos a parentes (o que correspondia a uma volta ao sistema anterior da Dinastia Zhou), que ele via como contrárias à ideia legalista de centralização do Estado em torno do governante. Quando os conselheiros de Confúcio defenderam sua posição, Li Ssu executou muitos estudiosos confucionistas e seus livros foram queimados, o que foi considerado um duro golpe para a filosofia e a sabedoria chinesas. 

Veja mais:

As ideias de Confúcio foram adotadas como filosofia oficial do Estado durante a Dinastia Han (206 AC – 220 DC)ː o conhecimento dessas ideias passou a ser uma das principais qualificações exigidas de funcionários públicos, que eram selecionados por meio de concorridos exames e que eram encarregados de manter a harmonia no Império.

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Ciro II https://canalfezhistoria.com/ciro-ii/ https://canalfezhistoria.com/ciro-ii/#respond Mon, 10 Mar 2025 18:11:45 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5781 Ciro II (Kuruš em persa antigo), mais conhecido como Ciro, o grande, foi rei da Pérsia entre 559 e 530 a.C., ano em que morreu em batalha com os Masságetas. Pertencente à dinastia dos Aquemênidas, foi sucedido pelo filho, Cambises II. Foi o criador do maior império até então visto na História. 

Ciro foi um príncipe persa com ascendência na casa real dos medos, até então o povo dominante do Planalto Iraniano. Em seu nascimento, segundo Heródoto, consta que o rei medo Astiages, seu avô, teve um sonho em que uma videira crescia das costas de sua filha Mandame, mãe de Ciro, lançando gavinhas que envolviam toda a Ásia.

Sacerdotes lhe advertiram que a videira era seu neto Ciro, e que ele tomaria o lugar do velho reino da Média no mundo. Então o rei medo mandou seu mordomo que o matasse nas montanhas. O mordomo, chamado Harpago, se comoveu com a beleza da criança e o entregou aos cuidados de um pastor. Ao descobrir a traição, Astíages esquartejou o filho de Harpago, e o serviu em um jantar para o mordomo, que apenas soube o que estava comendo quando levaram a última travessa à mesa: a cabeça de seu filho. 

Ciro finalmente se tornaria rei dos persas, até então um povo tributário dos medos. Então uma rebelião liderada por Harpago derrotou Astíages, que foi levado a Ciro para julgamento. O rei persa poupou a vida de seu avô, mas marchou para a capital da Média, Ecbátana, e tomou o controle do vasto território medo. Assim que tomou o controle político de toda a região do atual Irã, Conquistou a Lídia e os territórios a leste da Pérsia até o Turquestão, na Ásia Central.

Conquistou a Babilônia em 539 a.C.. Segundo o relato bíblico em Isaías 45, Ciro teria recebido uma mensagem de Deus que o ordenava a enviar de volta à Judeia todos os Judeus cativos naquela cidade e que o próprio iria ajudá-lo. O autor de famosa declaração que em 537 a.C. autorizava os judeus a regressar à Judeia, pondo fim ao período do Cativeiro Babilônico.

Em uma noite de 5/6 de outubro de 539 A.C., acampou em volta de Babilônia com seu exército. Enquanto os babilônicos festejavam, engenhosamente Ciro desviava as águas do Rio Eufrates para um lago artificial. Eles puderam atravessar o rio com a água na altura da cintura e entraram sem lutar, visto que os portões estavam abertos. 

A Judeia, com posição estratégica nas rotas comerciais do Egito, ficou guarnecida por um povo agradecido ao xá aquemênida e pronta para defendê-lo. A queda da Babilônia ainda lhe rendeu a lealdade dos Fenícios, cuja habilidade naval era admirada pelo mundo conhecido, e que consistiria na base da marinha persa, anos depois, responsável pelas conquistas na Trácia e as guerras contra os gregos.

Em todas as conquistas, destacou-se por uma generosidade incomum no seu tempo, ao poupar seus inimigos vencidos – ou até empregá-los em cargos administrativos de seu império. Ciro também demonstrou tolerância religiosa ao manter intactas as instituições locais (e até cultuar os deuses de regiões conquistadas, como quando entrou na Babilônia e consagrou-se rei no templo de Marduque).

Também procurou manter todos os povos do império sob a administração de líderes locais, de forma que, sob a soberania de um governo forte, muitos daqueles povos se viram em melhor situação sob os persas do que independentes. A habilidade política de Ciro, seguida pelos seus sucessores imediatos, assegurou a força e a unidade de uma vasta região, que ia da Anatólia ao Afeganistão, e do Cáucaso à Arábia, composta por uma miríade de povos diferentes, algo que jamais havia sido conseguido na história da humanidade até então. 

História dinástica

Império Medo

Após a morte de seu pai (Cambises I), em 559 a.C., Ciro tornou-se rei de Anxam. No entanto, seu reino não era independente, posto que, como seus predecessores, Ciro teve de reconhecer sua sujeição ao Reino Medo. Durante o reinado de Astíages, o Império Medo possivelmente governou a maioria dos povos do Antigo Oriente, desde a fronteira da Lídia, ao oeste, até a Pártia e Pérsia, ao leste. 

Na versão de Heródoto, Hárpago, buscando vingança, convenceu Ciro a incitar a sublevação dos persas contra seus senhores feudais, os medos. Porém, provavelmente, Harpago e Ciro rebelaram-se devido às suas insatisfações acerca da política ministrada por Astíages. O início da revolta se deu em 549 a.C. e, desde então, com a ajuda de Hárpago, Ciro liderou seu exército contra os medos, até a conquista de Ecbátana, em 549 a.C., dominando, efetivamente, o império medo. 

Apesar de ter aceitado a coroa da Média, em 546 a.C., oficialmente assumiu o título de “Rei da Pérsia”. Arsames, que era o governante da Pérsia sob os medos, teve, portanto, de abrir mão de seu trono. Seu filho, Histaspes, primo de segundo grau de Ciro, foi nomeado sátrapa de Pártia e Frígia. Arsames viveria para ver seu neto tornar-se Dario, o Grande, xá da Pérsia, após a morte dos filhos de Ciro. 

A conquista da Média foi apenas o início das guerras realizadas por Ciro. Astíages havia aliado-se a Creso de Lídia, seu cunhado, a Nabonido da Babilônia e a Amásis II do Egito, tencionando reunir forças contra Ciro e seu império. 

Após a conquista de Babilônia, Ciro é citado num cilindro (o Cilindro de Ciro) dizendo: 

“Eu sou Ciro, rei do mundo, grande rei, rei legítimo, rei de Babilônia, rei da Suméria e de Acade, rei das quatro extremidades [da terra], filho de Cambises, grande rei, rei de Anzã, neto de Ciro I, . . . descendente de Teíspes . . . de uma família [que] sempre [exerceu] a realeza”

Império lídio e Ásia Menor

As datas exatas da conquista da Lídia são desconhecidas, mas deve ter ocorrido entre a derrubada do reino medo por Ciro (550 a.C.) e sua conquista da Babilônia (539 a.C.). Era comum no passado atribuir 547 a.C. como o ano da conquista, devido a algumas interpretações da Crônica de Nabonido, mas esta posição não é atualmente muito usual. Os lídios inicialmente atacaram Pteria, cidade do Império Aquemênida na Capadócia. Creso cercou e capturou a cidade escravizando seus habitantes.

Enquanto isso, os persas convidaram os cidadãos da Jônia que faziam parte do reino lídio a revoltar-se contra seus governantes. A oferta foi rejeitada e, portanto, Ciro formou um exército e marchou contra os lídios, aumentando seus números ao passar por nações em seu caminho. A Batalha de Pteria foi efetivamente um empate, com ambos os lados sofrendo pesadas baixas ao anoitecer. Creso recuou para Sardes na manhã seguinte.

Veja mais:

Ciro II na Bíblia

• O livro de Isaías (capítulos 44:26,27,28;45:1,2) se profetiza e celebra a vitoria de Ciro, como enviado e ungido por Jeová.
• No livro de Esdras (1: 2-4) se apresenta uma versão do édito de Ciro que põe fim ao exílio judeu na Babilônia.
• O livro de Daniel possui varias referências a Ciro.
• O Segundo livro das Crónicas (36: 22-23) apresenta outra versão do édito de Ciro.

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Charles Darwin https://canalfezhistoria.com/charles-darwin/ https://canalfezhistoria.com/charles-darwin/#respond Mon, 10 Mar 2025 18:07:24 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5778 Charles Robert Darwin, FRS FGRS FLS FLZ (pronúncia em inglês: [‘dɑː.wɪn]; Shrewsbury, 12 de fevereiro de 1809 – Downe, 19 de abril de 1882) foi um naturalista, geólogo e biólogo britânico, célebre por seus avanços sobre evolução nas ciências biológicas. Juntamente com Alfred Wallace, Darwin estabeleceu a ideia que todos os seres vivos descendem de um ancestral em comum, argumento agora amplamente aceito e considerado um conceito fundamental no meio científico, e propôs a teoria de que os ramos evolutivos são resultados de seleção natural e sexual, onde a luta pela sobrevivência resulta em consequências similares às da seleção artificial. 

Seu livro de 1859, A Origem das Espécies, causou espanto na sociedade e comunidade científica da época, mas conseguiu grande aceitação nas décadas seguintes, superando a rejeição que os cientistas tinham pela transmutação de espécies. Já em 1870, a evolução por seleção natural tinha apoio da maioria dos intelectuais. Sua aceitação quase universal, entretanto, não foi atingida até à emergência da síntese evolutiva moderna entre as décadas de 1930 e 1950 quando um grande consenso consolidou a seleção natural como o mecanismo básico da evolução. A teoria de Darwin é considerada o mecanismo unificador para explicar a vida e a diversidade na Terra. 

Em seus primeiros anos, Darwin recusou cursar medicina na Universidade de Edimburgo; ao invés disso, focou-se em pesquisar sobre animais invertebrados. Pela Universidade de Cambridge (Christ’s College), ele tomou a iniciativa pelas ciências naturais e viajou durante cinco anos pelo HMS Beagle, projeto que o lançou como iminente geólogo e cujas observações sustentaram as ideias de Charles Lyell; as publicações de seus diários sobre os trajetos percorridos consolidaram sua fama.

Intrigado com a distribuição geográfica da vida selvagem e dos fósseis coletados durante sua viagem, Darwin começou investigações detalhadas e, em 1838, concebeu a teoria da seleção natural. Depois de discutir suas ideias com vários naturalistas, Darwin precisava de mais tempo para tornar sua ideia pública, algo que entrava em conflito com seu extensivo trabalho geológico que tinha prioridade. Em 1858, o naturalista Alfred Wallace manda um ensaio científico para Darwin estabelecendo as mesmas ideias e sugere uma publicação em conjunto. 

Consagrada a publicação, a teoria evolutiva darwiniana determinou drasticamente o cenário da ciências biológicas, tornando-se a explicação dominante sobre o porquê da diversidade natural do planeta. Em 1871, Darwin volta a publicar livros significativos, desta vez começando sobre a sexualidade humana e sua descendência, intitulado A Descendência do Homem e Seleção em Relação ao Sexo, seguido por A Expressão da Emoção em Homens e Animais em 1872.

Sua dedicação pelas plantas resultaram em várias publicações de livros, e seu último seria The Formation of Vegetable Mould through the Action of Worms em 1881, meses antes de sua morte no ano seguinte. Em reconhecimento à importância do seu trabalho, Darwin foi enterrado na Abadia de Westminster, próximo a Charles Lyell, William Herschel e Isaac Newton. Foi uma das cinco pessoas não ligadas à família real inglesa a ter um funeral de Estado no século XIX. Por seu papel científico, Darwin é considerado uma das maiores personalidades da história. 

Primeiros anos

Charles Robert Darwin nasceu em Shrewsbury, Shropshire, em 12 de fevereiro de 1809, em uma propriedade da família apelidada The Mount. O quinto de seis irmãos e filho do médico e investidor Robert Darwin com Susannah Darwin (nome de solteira, Wedgwood), Charles era neto de dois proeminentes abolicionistas: Erasmus Darwin por parte de pai, e Josiah Wedgwood por parte de mãe. 

Ambas as famílias eram unitaristas, embora os Wedgwoods também compartilhassem a crença anglicana. O próprio Robert Darwin, que declarava-se um livre pensador, batizou Charles em novembro de 1809 na Anglican St Chad’s Church, Shrewsbury. Enquanto pequeno, Darwin e seus irmãos iam à Igreja Unitarista juntamente com sua mãe. Com oito anos, demonstrava interesse precoce pela história natural durante suas participações escolares. Em julho daquele ano, sua mãe faleceu. Em setembro de 1818, veio a frequentar, junto com seu irmão mais velho Erasmus, a Anglican Shrewsbury School. 

Darwin passou o verão de 1825 ganhando sua primeira experiência profissional como aprendiz de médico, auxiliando no acesso do tratamento aos pobres em Shrewsbury, antes de ir para a Universidade de Edimburgo no mesmo ano, considerado o melhor do curso de medicina no Reino Unido da época, e mais uma vez acompanhando seu irmão Erasmus. As cirurgias grosseiras da época nausearam Darwin e ele acabou por negligenciar os estudos práticos. Todavia, acabou adquirindo um bom conhecimento de taxidermia após cursos com John Edmonstone, um ex-escravo o qual tinha acompanhado Charles Waterton nas florestas da América do Sul e que contava sobre suas expedições durante as classes, criando as primeiras inspirações aventureiras na formação do jovem naturalista. 

Em seu segundo ano universitário, Darwin se juntou à Plinian Society, um grupo de história natural que defendia com fervor ideias democráticas e céticas e questionava visões ortodoxas entre religião e ciência da época. Ele ajudou Robert Edmond na investigação da anatomia e ciclo de vida de invertebrados marinhos situados no Estuário do rio Forth e, em 27 de março de 1827, apresentou na Society a sua própria descoberta que esporos negros encontrados em certas conchas eram, na verdade, ovos de sanguessugas.

Grant acabou por promover o lamarckismo, atitude que espantou Darwin pela audácia, embora ele já tivesse tido contato com conceitos similares ao ler as publicações de seu avô Erasmus. Darwin priorizou em ajudar nas investigações geológicas de Robert Jameson, incluindo debates sobre polêmica entre neptunismo e plutonismo. Ele aprendeu botânica e ajudou nas coleções na University Museum, um dos maiores museus europeus da época. 

O negligenciamento de Darwin em terminar seus estudos em medicina irritou seu pai, que por sua vez o mandou para Christ’s Collage, Cambridge, para estudar em um bacharelado de artes, em um primeiro passo rumo à carreira clériga anglicana, pois era comum intelectuais da igreja seguirem o ramo das ciências naturais com o objetivo ‘de apreciar as belezas divinas’. Darwin acabou não indo bem nos testes, conquistando apenas um acesso inferior em 1828.

Ele preferia montar em cavalos e atirar. Pouco depois, Darwin adquiriu grande interesse por colecionar besouros graças ao seu primo William Darwin; o jovem naturalista aprendeu a ser zeloso com seus materiais durante este período e, desenhando gravuras cientificas, conseguiu publicar seus primeiros trabalhos com James William Stephens.

Darwin se tornou amigo próximo e seguidor do botânico John Stevens Henslow, um entre vários peritos naturalistas que defendiam a união entre religião e ciências naturais; a amizade entre ele e Henslow ficou tão caricata que Darwin seria chamado de “aquele que anda com Henslow”. Quando os seus exames estavam se aproximando, Darwin dedicou-se com esmero ao estudo da obra de William Paley, figura de grande inspiração com seu pioneirismo nas versões modernas no argumento teleológico e autor de Evidences of Christianity. Em seus exames finais em janeiro de 1931, foi relativamente bem sucedido, ficando em décimo lugar entre 178 candidatos nos exames. 

Darwin precisou ficar em Cambridge até junho de 1831. Ele estudou e ficou admirado com o livro de Paley Natural Theology or Evidences of the Existence and Attributes of the Deity (primeiramente publicado em 1802) que argumenta que, pelas evidências de um design divino presente na natureza, Deus agiria através de leis da naturais.

Ao ler o novo livro de John Harschel, Preliminary Discourse on the Study of Natural Philosophy, o qual argumentava que a maneira mais efetiva para entender as leis divinas era através do pensamento dedutivo baseado na observação, entre outros títulos como Personal Narrative of scientific travels de Alexander Von Humboldts, Darwin enraizou cada vez mais suas visões que o levariam a viajar pelo HMS Beagle.

Inspirado pela vontade de contribuir, Darwin planejou visitar Tenerife com alguns colegas após a graduação a fim de estudar história natural nos trópicos. Em sua preparação, ele se juntou ao curso de geologia de Adam Sedgwicks e, em 4 de agosto daquele ano, viaja com o professor e passa uma quinzena mapeando estratos em País de Gales. 

A viagem com o Beagle

Após deixar Sedgwick em Gales, Darwin passou uma semana com colegas em Barmouth, retornando para casa em 29 de agosto e achando uma carta de Henslow propondo uma viagem a bordo do HMS Beagle; o capitão seria Robert FitzRoy e Henslow deixou claro que apesar da oportunidade irrecusável para um jovem naturalista, Darwin estaria primeiramente na posição de cavalheiro e não apenas como “mero colecionador”.

O navio partiria em quatro semanas começando pela costa da América do Sul. A viagem sofreu objeção do pai, Robert Darwin, pois seria “uma perda de tempo”, mas o seu cunhado, Josiah Wedgwood II, persuadiu-o a financiar os custos. Darwin fez questão de deixar a expedição em segredo a fim de manter controle do material coletado, já que desta maneira este poderia ser melhor preservado e expandido para futuras investigações científicas. 

Após alguns atrasos, a viagem começou pouco depois do natal de 1831, durando quase cinco anos. Como o capitão FitzRoy planejou, Darwin conseguiu passar a maior parte do tempo em terra para investigar materiais geológicos e acumular coleções de artefatos naturais, enquanto o Beagle era reparado e abastecia. Nessa época ele começou a esboçar suas primeiras observações e quando podia mandava espécimes encontrados para Cambridge, anexando cópias do seu diário de viagem para sua família.

Tinha algum conhecimento em geologia, e experiência em colecionar besouros e dissecar invertebrados marinhos, mas em outras áreas era novato e recolhia espécimes habilmente para serem apreciados por especialistas. Até quando sofreu com doenças tropicais, ele não deixou de fazer anotações detalhadas em seus diários enquanto estava a bordo do navio. A maioria de suas anotações eram sobre invertebrados marinhos, como os plânctons. 

A primeira parada foi em Santiago, Cabo Verde, onde Darwin achou amontoado de rochas vulcânicas a grande altitude com várias conchas. O capitão FitzRoy deu-lhe o livro de Charles Lyell, Principles of Geology, o qual defenia os conceitos do uniformitarismo e a lenta formação e movimento das rochas por longos períodos, pensamento logo sendo adotado por Darwin e que começou em seguida a teorizar seus próprios conceitos. Na chegada ao Brasil, Darwin encantou-se com a floresta tropical mas desprezou a escravidão na região, debatendo sobre o assunto com Fitzroy. 

A expedição prosseguiu ao sul da Patagônia, com uma parada em Bahía Blanca e lugar onde Darwin fez a grande descoberta de fósseis de mamíferos extintos perto de conchas modernas, uma evidência de que extinções nem tão recentes ocorreram no sítio sem qualquer sinal de catástrofes ou outras alterações bruscas. Ele identificou o pouco conhecido Megatherium através de um dente e um osso do braço, um possível antigo parente gigante do tatu. Esses achados causaram grande interesse entre os cientistas quando Darwin voltou para a Inglaterra. 

Três fueguinos foram capturados durante a primeiro expedição do Beagle e posteriormente educados como missionários na Inglaterra. Darwin considerou eles amigáveis e civilizados, ainda que na Terra do Fogo ele acabou por encontrar “selvagens miseráveis e degradantes”, nem tão diferentes quanto os animais da natureza. Darwin sempre permaneceu com a ideia que, apesar da diversidade, todos os humanos tinham o potencial para serem civilizados. Ao contrário de outros colegas cientistas, ele nunca considerou uma barreira intransponível entre humanos e animais. Após um ano, o projeto com os fueguinos foi abandonado. Um deles, com o nome adotado de Jemmy Button, chegou a ter uma esposa, mas jamais desejou abandonar seus conterrâneos e ir para a Inglaterra. 

Nas Ilhas Galápagos, famosas por sua geológica vulcânica, Darwin buscou por evidências ligando a vida selvagem com elementos que indicassem um início de vida antiga na Terra, e encontrou tentilhões (família científica: Fringillidae) que variavam entre si de ilha em ilha, inclusive daqueles encontrados no Chile. Darwin soube de carapaças tartarugas correspondentes de cada uma das ilhas, mas acabou falhando em coletá-las pois foram servidas como comida no navio. Na Austrália, os marsupiais potoroidae e o ornitorrinco chamaram tanta a atenção de Darwin pelas suas peculiaridades que ele chegou a cogitar na obra de dois distintos Criadores. Ele achou os aborígenes “bem-humorados e receptivos”, e notou o quanto estavam ameaçados pela presença dos europeus. 

Fitzroy investigou como os atóis das Ilhas Cocos em Keeling foram criados, e suas pesquisas corroboraram na formação da teoria de Darwin. O capitão começou a anotar os diários oficiais da expedição Beagle, anexando-os com os de Darwin após uma proposta. O diário de Darwin foi posteriormente separado em um terceiro volume sobre história natural. 

Na Cidade do Cabo, Darwin e Fitzroy conheceram John Herschel, apoiador do uniformitarianismo de Lyell e de “mente aberta para o mistérios dos mistérios, o porquê da ‘substituição’ de espécies por outras”, em um processo “que contraria uma intervenção milagrosa”. Enquanto organizava seus diários na volta para casa, Darwin deixou anotado que, se suas suspeitas sobre os fringilídeos, tartarugas e raposas das Ilhas Falkland estavam corretas, ” tais fatos ‘estabelecem’ uma base comum entre as espécies”, e então cuidadosamente acrescentou um “poderia estabelecer” ao invés de apenas “estabelecer”. Mais tarde Darwin foi incisivo que os fatos “jogam uma luz para mim sobre a origem das espécies”.

Surgimento e conceito da teoria evolutiva

Quando o navio chegou na Cornualha, Inglaterra, em 2 de outubro de 1836, Darwin já tinha prestígio entre os círculos acadêmicos e científicos; em 1835 o mentor Henslow já tinha oferecido cartas de seu ex-pupilo para vários naturalistas renomados, melhorando ainda mais a sua reputação sobre conhecimento geológico. Assim que chegou na Inglaterra, Darwin visitou sua casa em Shrewbury e reencontrou parentes.

Dali partiu apressadamente para Cambridge para ver Henslow, que o aconselhou a encontrar naturalistas dispostos a catalogar as coleções e concordou em catalogar os espécimes botânicos ele mesmo. O pai de Darwin organizaou investimentos que permitiram que o seu filho fosse autossuficiente em sua pesquisa científica e Darwin não perdeu tempo para divulgar e estudar os materiais coletados através de especialistas de Londres. Os zoologistas tinham bastante trabalho em atraso, e havia o perigo de espécimes serem simplesmente deixados em armazém. 

Charles Lyell encontrou Darwin pela primeira vez em 29 de outubro daquele ano e o introduziu ao eminente anatomista Richard Owen, que tinha acesso a Royal Collage of Surgeons para estudar os fósseis coletados por Darwin. Ele encontrou vários achados surpreendentes, incluindo uma preguiça gigante e também o já reconhecido Megatherium, como também os desconhecidos Scelidotherium e um animal semelhante a um roedor do tamanho de um hipopótamo chamado Toxodon, bastante similar em certos aspectos com a moderna capivara. Os pedaços de armadura eram na verdade pertencentes a um Glyptodon, uma criatura que inicialmente Darwin pensou que parecia com um tatu gigante. Todas essas criaturas extintas eram relacionadas com espécies que vivem atualmente na América do Sul. 

Em meados de dezembro, Darwin tomou aposentos em Cambridge a fim de organizar seu trabalho e reescrever seus diários. Ele escreveu seu primeiro artigo em 1837, demonstrando que a massa de terra sul-americana estava lentamente elevando, sendo apoiado no processo por um entusiasmado Lyell que leu com ele os resultados para a Geological Society of London.

Na mesma época, Darwin apresentou seus espécimes de pássaros e mamíferos para a Sociedade Zoológica de Londres e o ornitologista John Gould não tardou em anunciar que os pássaros de Galápagos, os quais Darwin pensou se tratarem de “uma mistura de melro-pretos com fringilídeos”, eram, de fato, nada menos que doze espécies separadas de fringilídeos. Em 17 de fevereiro, Darwin foi eleito para o Conselho da Geological Society e a posição de Lyell como presidente permitiu uma maior divulgação dos estudos de Owen sobre os fósseis de Darwin, ao apontar como as delimitações geográficas de cada espécie provavam as ideias uniformitaristas dele próprio. 

No início de março, Darwin se mudou para Londres para ficar mais perto do seu trabalho, juntando-se ao grupo acadêmico de Lyell, que continha especialistas tais como Charles Bobbage que, por sua vez, descrevia Deus como o ‘programador das leis naturais’. Darwin se aproximou novamente do seu irmão e pensador livre Erasmus juntamente com uma de suas amigas próximas, a escritora Harriet Martineau, uma das promotoras do malthusianismo na controversa questão social sobre como melhorar o bem-estar ao reduzir a superpopulação e a pobreza.

Como uma unitarista, ela recebeu com agrado a ideia da transmutação de espécies, conceito promovido por Robert Edmond Grant e outros jovens cirurgiões influenciados por Étienne Geoffroy. A transmutação era anátema para os anglicanos defensores da ordem social, contudo chegou a ser bastante discutida entre cientistas de renome e despertou grande interesse nas cartas de John Herschel, que defendeu a metodologia de Lyell em desvendar os processos naturais na origem de novas espécies. 

Gould reencontrou Darwin e contou-lhe que os Mimus das Ilhas Galápagos eram de espécies diferentes, não apenas variações de uma mesma, ocorrendo também ramificações nos tentilhões, como o Troglodytidae que igualmente pertencia ao grupo dos fringilídeos. Darwin não tinha etiquetado os fringilídeos ilha por ilha, mas através das anotações dos outros tripulantes, incluindo o capitão Fitzroy, conseguiu identificar a que ilha pertencia cada espécie. As duas Rhea também eram de espécies distintas e, em 14 de março, Darwin anunciou como a distribuição das novas espécies se modificava mais ao sul. 

Em meados daquele março, Darwin especulou em um dos seus cadernos vermelhos a possibilidade de que “uma espécie se transforma em outra” para explicar a distribuição geográfica das espécies ainda vivas, como a rhea, e outras já extintas, como o estranho Macrauchenia, que tinha aspectos similares a um guanaco gigante.

Seus pensamentos sobre o tempo de vida, reprodução assexual e sexual foram desenvolvidas no caderno apelidado de “B” durante os meados de julho para falar de variação na descendência para “se adaptar e modificar a corrida para um mundo em mudança” ao explicar as tartarugas-das-galápagos, Mimus e também as rheas. Ele fez um rascunho de como seria descendência por ramificação, então uma ramificação genealógica de uma árvore evolutiva única, na qual “é um absurdo dizer que um animal é superior a outro”, descartando desta maneira as linhagens independentes de Lamarck progredindo para formas superiores. 

Excesso de trabalho, doença e casamento

Enquanto estava estudando de maneira intensiva sobre transmutação, Darwin começou a ficar imerso em trabalho. Ainda reescrevendo seus diários, ele editou e publicou os relatórios especializados sobre as suas colecções, e com a ajuda de Henslow obteve um fundo de 1 000 libras esterlinas para suportar a publicação de um multi-volume denominado Zoology of the Voyage of H.M.S Beagle, uma quantia equivalente a 89 000 libras em 2017. Ele esticou essa quantidade de dinheiro para incluir livros que tinha planeado sobre geologia, e concordou com datas de lançamento irreais com os editores. No início da Era Vitoriana, Darwin se apressou em terminar seus diários e, em agosto de 1837, já estava corrigindo preliminares da obra. 

O excesso de trabalho afetou a saúde de Darwin. Em 20 de setembro ele apresentou “uma palpitação inconfortável no coração” e seus médicos recomendaram de imediato a interrupção do trabalho e que fosse viver no campo por algumas semanas. Após visitar Shrewsbury ele encontrou parentes em Maer Hall, Staffordshire, mas o interesse em excesso deles por suas histórias das suas viagens o desgastou.

A sua encantadora, inteligente e culta prima Emma Wedgwood, nove meses mais velha que Darwin, estava trabalhando como enfermeira da tia inválida. O seu tio Josiah mostrou uma área do solo onde restos de cinzas tinham desaparecido e sugeriu ser a ação de minhocas, inspirando uma “nova e importante teoria” sobre o seu papel na formação dos solos, a qual Darwin apresentou na Geological Society em 1 de novembro de 1837. 

William Whewell encaminhou Darwin para tomar o papel de Secretário da Geological Society. Inicialmente ele recusou o trabalho, mas aceitou o emprego em 1838. Apesar da atenção necessária com seus relatórios do Beagle no processo de editá-los, Darwin conseguiu fazer grandes avanços na área de transmutação, usando cada oportunidade que tinha para interrogar naturalistas experientes e, de maneira não convencional, indivíduos com experiência prática em seleção artificial tais como fazendeiros e criadores de pombos.

Ao longo do tempo, ele obteve informação até mesmo dos seus filhos e família, parentes, vizinhos, colonialistas e ex-colegas do Beagle. Darwin então incluiu pesquisas de aspecto humano no escopo de suas especulações e, ao ver um orangotango no zoológico em 28 de março de 1838, fez comparações de seu comportamento similarmente infantil ao de crianças. 

Darwin teve problemas estomacais, dor de cabeça e sintomas no coração, precisando repousar em junho. No resto de sua vida, ele apresentou problemas incapacitantes no estômago, desencadeando vômitos, palpitações, furúnculos, tremedeiras e outros sintomas. Os episódios se intensificavam durante períodos de stress, como por exemplo encontros ou eventos sociais. A causa para a condição enferma de Darwin permanece desconhecida e os tratamentos médicos na época tiveram pouco sucesso. 

Em 23 de junho, Darwin deu uma pausa nos trabalhos e resolveu “praticar geologia” na Escócia. Ele visitou Glen Roy em um dia maravilhoso para ver as famosas “curvas” escocesas nos penhascos das Terras Altas. Ele posteriormente publicou sua visão de que essas formações foram planícies costeiras, contudo teve que aceitar que de fato são a formação de um lago pós-glacial. 

Plenamente recuperado, ele retornou para Shrewbury em julho. Durante o costume de escrever notas diárias sobre o sistema de respiração animal, faz um comentário em duas folhas sobre as perspectivas de sua carreira e o futuro de sua vida, em uma escreveu “casar” e na outra “não casar”. Ao acrescentar todas as vantagens, incluindo “uma companhia constante e amiga durante a idade avançada… melhor que um cachorro de qualquer maneira”.

Ele não deixou de também elencar as desvantagens, como ter “menos orçamento para os livros” e de ser “uma terrível perda de tempo”. No final, Darwin optou pelo sim. Pela decisão favorável ao casamento, ele discutiu a ideia com seu pai, e então visitou Emma em 29 de julho. Acabou não por não propô-la em casamento daquela vez e, contrariando os conselhos de seu pai, decidiu mencionar suas ideias sobre transmutação para os presentes. 

Malthus e a seleção artificial

Continuando com suas pesquisas em Londres, Darwin estava concentrado na leitura da sexta edição do livro de Thomas Malthus, An Essay on the Principle of Population e, em 28 de setembro de 1838, ele fez a afirmação de que a população humana “estava fora de controle e dobraria de quantidade em 25 anos, ou aumentaria de maneira proporcional” uma progressão geométrica que acarretaria no esgotamento das fontes alimentícias em um processo conhecido como catástrofe Malthusiana.

Darwin, tendo a bagagem intelectual e de amostras de sua viagem, chegou a comparar seus pensamentos com a “guerra de espécies” de Augustin Pyrame de Candolle, sobre a competição e sobrevivência das plantas em meio a vida selvagem e que explica como, no saldo geral, as espécies se mantêm estáveis e sempre procuram pelos recursos disponíveis. Variações vantajosas tornariam os organismos mais aptos pela sobrevivência, o que passaria tais variações aos seus descendentes, enquanto as variações desvantajosas seriam perdidas na linhagem.

Darwin escreveu que “a causa final para todos essas ‘engrenagens’ deve ser algum tipo de estrutura própria e a adaptação com suas mudanças”, logo “deve existir um força com cem mil arranjos que move todos os tipos de estruturas nos vãos disponíveis na economia da natureza, ou ao menos formando vãos quando elimina os mais fracos”.

Este processo resultaria na formação de novas espécies. Em meados de dezembro, Darwin viu a similaridade entre a seleção artificial utilizada pelo fazendeiros e o selecionismo natural Malthusiano, por conta de variações ao acaso que criam “cada parte de uma nova estrutura perfeitamente funcional”, definindo essa comparação como “a parte esplêndida de minha teoria”. Ele posteriormente chamou sua teoria de seleção natural, uma analogia com a própria seleção artificial. 

Em 11 de novembro, ele retornou para Maer e propôs novamente Emma ao casamento, sendo que, mais uma vez, apresentou suas ideias ao presentes. Ela aceitou o pedido e, numa troca de cartas de amor, provou como era mente aberta sobre suas diferenças, também reforçando sua crença unitarista e as preocupações de que o ceticismo de Darwin talvez os separariam no pós-vida. Enquanto Darwin estava em sua casa de caça em Londres, a doença dele progrediu e Emma clamou para que ele descansasse, em uma previsão quase profética de que “não fique mais adoentado, querido Charley, até que eu possa cuidar de você”.

Ele a encontrou e ambos se mudaram para o que eles chamaram de “Macaw Cottage” (“Casa Arara”, por causa de seu interior extravagante). Ele mudaram seu “museu” de coleções para a residência até o natal. Em 24 de janeiro de 1839, Darwin foi eleito membro da Royal Society (FRS). Em 29 de janeiro, Darwin e Emma Wedgwood se casaram em uma cerimônia anglicana feita para se adequar aos costumes unitaristas e logo depois pegaram o trem para sua nova casa. 

Desenvolvimento da teoria da evolução, cracas e geologia

Darwin agora tinha o material base para trabalhar sobre a teoria da seleção natural, o seu “hobby principal”. Suas pesquisas incluíram intensas investigações sobre a seleção artificial de plantas e animais e a busca por evidências de que os animais não são fixos, investigando ideias para dar sustância a sua teoria. Por quinze anos ele se ocupou principalmente nos seus escritos sobre geologia e publicou em periódicos especializados sobre suas coleções do Beagle. 

Quando a obra Narrative, de Fitzroy, foi publicada em maio de 1839, os diários de Darwin também fizeram tanto sucesso, quando um terceiro volume foi lançado. No início de 1842, Darwin escreveu sobre as ideias de Charles Lyell, anotando que um dos seus colegas “nega ver um começo para os vários grupos de espécies”.

O livro de Darwin The Structure and Distribution of Coral Reef, sobre sua teoria da formação dos atóis, foi publicado em 1842, após mais de três anos de pesquisas. Logo depois, ele começou a sintetizar seus primeiros “rascunhos” para uma obra sobre seleção natural.[94] Para fugir da pressão urbana de Londres, a família se mudou para a residência rural Down House em setembro.

Em 11 de janeiro de 1844, Darwin teorizou seu pensamento com o botânico Joseph Dalton Hooker, relatando de maneira humorística e melodramática que era “como confessar um assassinato”. Hooker respondeu que “em minha opinião ocorreu uma série de mudanças em diferentes focos e também uma mudança gradual nas espécies. Eu ficaria maravilhado em ler o que você pensa sobre o assunto, já que nenhuma outra opinião me satisfaz na área”.

Em julho, Darwin desenvolveu mais seus “rascunhos” em um “ensaio” de 230 páginas, obra para ser expandida com seus outros trabalhos caso morresse prematuramente. Em novembro, foi lançado o livro anônimo Vestiges of the Natural History of Creation, que ficou entre os mais vendidos e trazendo grande atenção pública na transmutação. Darwin desdenhou do amadorismo na geologia e da zoologia da publicação, mas revisou cuidosamente os argumentos apresentados. A controvérsia emergiu e o livro continuou vendendo bem, apesar das críticas dos círculos científicos. 

Darwin completou seu terceiro livro geológico em 1846. Ele renovou seu fascínio em animais marinhos invertebrados, entusiasmo que voltava para suas raízes de estudante com Grant, dissecando e classificando cracas que tinha coletado em sua viagem, observando suas interessantes estruturas e as comparando com formas parecidas. Em 1847, Hooker leu o “ensaio” e mandou as críticas necessárias que Darwin precisava, mas que não se comprometeria e nem o questionaria sobre sua oposição na criação divina. 

Em uma tentativa de melhorar sua condição de saúde crônica, Darwin consultou o médico James Manby Gully e se surpreendeu com alguns dos benefícios da hidroterapia. Então, em 1851, sua preciosa filha Annie ficou adoentada, renascendo seu medo que talvez a doença fosse hereditária. Depois de uma série de crises, ela acabou por falecer. 

Após oito anos trabalhando com cracas (Sessilia), Darwin conseguiu encontrar “homólogos” demonstrando que mudanças corporais servem para diferentes funções em novas condições e, em alguns gêneros, ele encontrou minúsculos parasitas hermafroditas,o que demonstrava estágios intermediários em sexos distintos. Em 1853, ele ganhou a medalha real da Royal Society, consolidando sua reputação como biólogo. Em 1854, torna-se membro da Linnean Society of London, ganhando acesso a sua biblioteca. Darwin começou a retrabalhar na teoria das espécies e, em novembro, percebia cada vez mais as divergências nas características dos descendentes e suas adaptações na “diversidade de lugares na economia da natureza”.

Publicação da teoria da seleção natural

No início de 1856, Darwin estava investigando se ovos e sementes poderiam sobreviver na água marinha para espalhar seus descendentes pelo oceano. Hooker aumentou seu ceticismo sobre a visão tradicional fixista das espécies, mas um jovem amigo deles, Thomas Henry Huxley, era firmemente contra a transmutação das espécies. Lyell estava intrigado pelas especulações de Darwin, sem realmente perceber o que de fato dizia em toda a sua dimensão.

Ao ler o livro de Alfred Russel Wallace, On the Law which has Regulated the Introduction of New Species, ele viu similaridades com o pensamento de Darwin e avisou que publicasse seu trabalho o quanto antes. Embora Darwin não tenha se intimidado, em 14 de maio de 1856 ele começou a escrever um manuscrito. Conseguir responder perguntas difíceis fez ele ganhar ritmo e aumentou seus planos para um “grande livro sobre as espécies” intitulado Natural Selection, o qual deveria também deveria conter no cabeçalho algo como “excluindo o homem”.

Ele continuou suas pesquisas, obtendo espécimes e informações de naturalistas pelo globo, incluindo de Wallace, que estava em Bornéu. Em meados de 1857, ele adicionou uma seção chamada “Teoria aplicada das Raças Humanas”, mas não avançou no tópico. Em setembro de 1857, Darwin mandou para o botânico estadunidense Asa Grey uma síntese de suas ideias, incluindo um abstrato de Natural Selection. Ele respondeu que evitaria comentar sobre um assunto “tão cercado de preconceitos”, encorajando as teorias de Wallace e comentando que “eu fui muito além do que você”.

O livro de Darwin estava apenas parcialmente completo quando, em 18 de junho de 1858, ele recebeu uma carta de Wallace descrevendo a seleção natural. Chocado que sua ideia tenha sido antecipada por outra pessoa, Darwin a enviou para Lyell no mesmo dia, como instruído por Wallace; embora este não tenha recomendado uma publicação, Darwin sugeriu para Wallace que ele poderia escolher qualquer jornal para publicar o material por meio de Darwin.

Ele estava passando por momentos difíceis com sua família em meio a uma crise fatal de escarlatina em sua cidade e ele passou a responsabilidade para seus amigos. Após alguma discussão, Lyell e Hooker decidiram uma apresentação conjunta na Linnean Society em 1 de julho, intitulada On the Tendency of Species to form Varieties; and on the Perpetuation of Varieties and Species by Natural Means of Selection. Na noite de 28 de junho, o filho bebê de Darwin morreu de escarlatina, depois de quase uma semana de crises fortes, o que deixou ele muito transtornado para participar ou ver a apresentação. 

A teoria não recebeu grande atenção de imediato; o presidente da Linnean Society observou, em maio de 1859, que aquele ano não teve grandes descobertas revolucionárias. Apenas um crítico mais notável se lembrou de Darwin; o professor Samuel Haughton declarou que “tudo que foi apresentado de novo é falso e o velho continua verdadeiro”. Darwin se exauriu por treze meses para produzir um abstract de seu “grande livro”, sofrendo de doenças, mas nunca deixando de continuar graças ao encorajamento de seus amigos cientistas. Lyell conseguiu uma publicação pela editora John Murray. 

A Origem das Espécies acabou se provando surpreendentemente popular, sendo que toda a remessa de 1250 cópias foi vendida quando publicada pelas editoras em 22 de novembro de 1859. No livro, Darwin desenvolveu “um extenso argumento” com observações detalhadas, além de se antecipar de futuras objeções. No caso do descendente comum, ele incluiu evidências homólogas entre humanos e outros mamíferos. Ao adentrar na seleção sexual, explicou como isso poderia fornecer dicas para explicar as diferenças raças humanas. Ele evitou uma discussão explícita sobre a origem humana, mas implicou sua significância na sentença: “Que a luz seja jogada na origem humana e sua história”. Sua teoria é exemplificada na introdução: 

Como muitos mais indivíduos de cada espécie nascem do que podem sobreviver; e como, consequentemente, há uma luta recorrente e frequente pela existência, segue-se que qualquer ser, se variar de alguma forma ligeiramente positiva para si mesmo, sob as condições complexas e às vezes variáveis da vida, terá uma melhor chance de sobreviver e assim ser naturalmente selecionado. Do forte princípio da hereditariedade, qualquer variedade selecionada tenderá a propagar sua forma nova e modificada.
— A Origem das Espécies

No final do livro ele concluiu:

Existe uma grandeza ao ver a vida dessa maneira, com suas várias forças, tendo sido originalmente inspirada em algumas formas ou em uma; e que, enquanto esse planeta orbita de acordo com a lei fixa da gravidade, de um começo tão simples, formas incontáveis, as mais lindas e maravilhosas, evoluíram e estão evoluindo.
— A Origem das Espécies

A última palavra é a única variante de “evolução” nas primeiras cinco edições do livro. Na época, o termo “evolucionismo” estava associado com o desenvolvimento embrionário. Darwin usou pela primeira o termo “evolução” em um conceito mais moderno em The Descent of Man em 1871, para posteriormente, em 1872, adicionar o termo na sexta edição de The Origin of Species. 

Respostas a publicação

O livro levantou interesse internacional, com menos polêmica que o popular Vestiges of the Natural History of Creation. Embora a condição de saúde de Darwin o tenha mantido longe dos debates públicos, ele submeteu ao escrutínio todas as respostas científicas, comentando as colunas de jornais, análises, artigos, sátiras e caricaturas, além de falar sobre com colegas ao redor do mundo. O livro não discutia explicitamente as origens humanas, mas incluiu várias sugestões sobre o ancestral humano e quais as melhores inferências.

Uma primeira crítica perguntou: “se um macaco se tornou homem – porque não o homem não poderia se tornar macaco?”, além de ter afirmado que a questão deveria ser deixada para os teólogos, pois era muito perigosa para o leitor comum. Entre as primeiras análises positivas, Huxley atacou Richard Owen, líder do establishment científico que ele estava tentando derrubar.

Em abril, a crítica de Owen atacou os próximos de Darwin e ridicularizou suas ideias, enfurecendo-o, mas Owen e outros começaram a promover a ideia de uma evolução guiada pelo sobrenatural. O naturalista Patrick Matthew chamou a atenção para o fato de que ele chegou a desenvolver o conceito da seleção natural na formação de novas espécies em um livro de 1831, mas não continuou mais a fundo. 

A resposta da Igreja Anglicana foi mista. Os antigos tutores de Darwin, Sedgwick e Henslow, rechaçaram suas ideias, mas os clérigos liberais interpretaram a seleção natural como um instrumento do design de Deus, sendo que o clérigo Charles Kingsley via “apenas como um conceito nobre da concepção da Deidade”. Em 1860, a publicação de Essays and Reviews por vários teólogos anglicanos liberais desviou as atenções clericais sobre Darwin, sendo que as ideias de alta crítica eram atacadas por autoridades da igreja e classificadas como heresia.

Nos ensaios, Baden Poweel argumenta que os milagres quebram as leis de Deus, então acreditar neles seria ateísmo. Ele também louvou “a publicação do Sr. Darwin defendendo o grande princípio dos poderes evolutivos da natureza”. Asa Gray discutiu teologia com Darwin, que captou e distribuiu os panfletos de Gray sobre a evolução teísta, que dizia que seleção natural não é inconsistente com a teologia natural.

A confrontação mais famosa sobre as ideias de Darwin foi o debate evolutivo em Oxford de 1860 durante um encontro da Associação Britânica para o Avanço da Ciência, onde o Bispo de Oxford, Samuel Wilberforce, embora não tenha feito oposição a transmutação das espécies, argumentou contra a evolução darwiniana e a teoria de que humanos descenderem de primatas. Joseph Hooker argumentou incisivamente a favor de Darwin, e a famosa resposta de Thomas Huxley, de que ele preferiria se um descendente de um primata que de um homem que usa eloquência para destruir a verdade, tornou-se símbolo do triunfo da ciência sobre a religião. 

Até os amigos mais próximos de Darwin, Gray, Hooker, Huxley e Lyell, não deixaram de expressar várias considerações sobre sua teoria mas deixaram de dar um forte apoio, assim como vários outros, particularmente jovens naturalistas. Grey e Lyell buscaram reconciliação com a fé, enquanto Huxley defendeu uma polarização entre religião e ciência.

Ele lançou campanhas agressivas contra a autoridade do clero na educação, mirando o objetivo de acabar com a dominância dos clérigos e aristocratas amadores sob a jurisdição de Owen, em favor de uma nova geração de cientistas profissionais. Owen declarava que a anatomia do cérebro provava que os humanos eram uma ordem biológica separada dos primatas, argumento mostrado como falso por Huxley em uma longa disputa parodiada por Kingsley como a “Grande Questão do Hipocampo”.

O darwinismo se tornou um movimento que cobria uma grande extensão de ideias revolucionárias. O livro de 1863 de Lyell, Geological Evidences of the Antiquity of Man, popularizou o conceito de pré-história, embora sua precaução sobre introduzir a evolução tenha desapontado Darwin. Semanas depois. Huxley lançou a obra Evidence as to Man’s Place in Nature, mostrando que, anatomicamente, seres humanos são primatas. Logo depois, veio Henry Walter Bates com seu livro The Naturalist on the River Amazons, que providenciou evidências empíricas para a seleção natural.

Graças ao lobby, Darwin foi agraciado com a maior honra científica britânica, a Medalha Copley da Royal Society, galardoada em 3 de novembro de 1864. Nesse dia, Huxley promoveu o primeiro encontro do que se tornaria o influente “Clube X”, dedicado a “ciência, pura e livre, não obstruída por dogmas religiosos”. Já no fim da década a maioria dos cientistas concordavam que a evolução ocorreu, mas apenas uma minoria dava suporte a visão de Darwin de que o mecanismo chefe era a seleção natural. 

A Origem das Espécies foi traduzida para várias línguas, tornando-se um importante texto científico e atraindo a atenção sobre todos aqueles que se interessavam pelos caminhos percorridos pela vida, incluindo os “trabalhadores” que se reuniam nas palestras de Huxley. A teoria de Darwin também influenciou vários movimentos do período e virou um ponto chave da cultura popular. Cartonistas parodiavam a ancestralidade animal humana em uma velha tradição de mostrar seres humanos com traços animalescos, enquanto na Grã-Bretanha essas imagens divertidas serviram para popularizar a teoria darwiniana. Em 1862, enquanto estava doente, Darwin deixou sua barba crescer e em 1866, quando reapareceu em público, caricaturas dele como um primata ajudaram a identificar todas as formas de evolucionismo com o darwinismo. 

Descendência do Homem, seleção sexual e a botânica

Apesar de lutar contra a doença durante os últimos 22 anos de sua vida, os trabalhos de Darwin continuaram. Ao publicar A Origem das Espécies como um abstract de sua teoria, ele prosseguiu com experimentos, pesquisas e escritos de seu “grande livro”. Ele cobriu desde a descendência do homem pelos primeiros animais até a evolução das sociedades e habilidades mentais, além de explicar a beleza e a diversidade da natureza selvagem em estudos pioneiros sobre plantas. 

Inquéritos sobre a polinização de insetos o levou a produzir ensaios em 1861 sobre o estudo de orquídeas selvagens, mostrando a adaptação de suas flores para atrair mariposas específicas para cada espécie e assegurar a fertilização cruzada. Em 1862, no livro Fertilisation of Orchids, deu sua primeira demonstração detalhada do poder da seleção natural para explicar as complexas relações ecológicas, demonstrando previsões testáveis.

Com sua saúde deteriorada, Darwin ficou confinado em sua cama em um quarto cheio de experimentos para prever o movimento do crescimento de videiras. Recebeu visitantes admirados por seu trabalho, incluindo Ernst Haeckel, um zeloso preponente do darwinismo incorporado ao lamarckismo com o idealismo de Goethe. Wallace continuou receptivo, apesar de se virar cada vez mais para o espiritualismo. 

O livro de Darwin The Variation of Animals and Plants under Domestication, publicado em 1868, foi a primeira parte do seu planejado “grande livro” e incluía sua hipótese falha da pangênese, ao tentar explicar a hereditariedade. Vendeu bem em um primeiro momento, apesar do tamanho, e foi traduzido para várias línguas. Ele escreveu a maioria da segunda parte, sobre a seleção natural, mas a obra não foi publicada durante sua vida. 

Lyell popularizou a pré-história humana, enquanto Huxley provou que seres humanos são, anatomicamente, primatas. Com A Descendência do Homem e Seleção em Relação ao Sexo, publicado em 1871, Darwin estabeleceu, a partir de numerosas fontes, que humanos são animais, mostrando a continuidade de seus atributos físicos e mentais, além de ter apresentado a seleção sexual como uma explicação de características “não práticas”, como a plumagem de pavões, igualmente com a evolução da cultura humana, diferenças entre os sexos e a classificação racial física e cultural, ao mesmo tempo que enfatizava que humanos são todos da mesma espécie.

Suas pesquisas usando imagens se aprofundaram no seu livro de 1872, A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, uma das suas primeiras obras a apresentar fotografias impressas, na qual discute a evolução da psicologia humana e sua continuidade com o comportamento animal. Ambos os livros se mostraram bastantes populares e Darwin ficou impressionado com a recpeção geral de suas obras, anotando que “todos estão falando sobre sem ao menos estarem chocados.”

Sua conclusão foi “que o homem, com todas as suas qualidades nobres, com a simpatia que sente por todos aqueles menos favorecidos, com a benevolência que se estende não somente aos outros homens, mas também com a criatura mais humilde, que com seu intelecto espelhado ao divino penetrou nos movimentos e constituições do sistema solar — com todos seus poderes o homem ainda traz em sua estrutura física a marca indelével de sua origem primitiva.” 

Seus experimentos relacionados a evolução e pesquisa o levou a publicar os livros sobre orquídeas, Insectivorous Plants, The Effects of Cross and Self Fertilisation in the Vegetable Kingdom, sobre as diferentes formas de flores e plantas da mesma espécie, e The Power of Movement in Plants. Seu trabalho botânico foi interpretado e popularizado por vários autores, como Grant Allen e H. G. Wells, e ajudou a transformar as ciências botânicas no final do século XIX e início do século XX. Seu último livro foi The Formation of Vegetable Mould through the Action of Worms, de 1881. 

Morte e funeral

Em 1882, Darwin foi diagnosticado com o que era chamado angina pectoris, o que significava trombose coronariana e doença do coração. No período de sua morte, médicos diagnosticaram “ataques de angina” e “falha do coração”. Atualmente, especula-se que Darwin sofria de uma doença de Chagas crônica. Essa especulação é baseada no trecho de um diário escrito por Darwin, que descreve que ele foi mordido por um barbeiro em Mendoza, Argentina, em 1835; e baseado nos vários sintomas que ele exibiu, como doenças cardíacas as quais são características da doença. A exumação do corpo de Darwin é necessária para determinar precisamente seu estado de infecção ao detectar DNA do parasita T. cruzi, que causa doença de Chagas. 

Darwim morreu em 19 de abril de 1882 em Down House. Suas últimas palavras foram dirigidas a sua família, falando a Emma: “Pelo menos não estou com medo de lembranças póstumas de como você foi uma ótima esposa. Conte para todos os meus filhos para lembrar o quão bons foram para mim” e então, enquanto ela descansava, ele repetidamente disse a Henrietta e Francis: “Quase vale a pena estar doente para ser cuidado por vocês”.

Ele esperava ser enterrado na Igreja de St Mary em Downe, mas por um pedido de seus colegas, após uma petição pública no parlamento, William Spottiswoode (presidente da Royal Society) conseguiu que Darwin fosse enterrado com honras na Abadia de Westminster, perto de John Herschel e Isaac Newton. O funeral aconteceu em 26 de abril, uma quarta-feira, e foi visitado por milhares de pessoas, incluindo a família, amigos, cientistas, filósofos e dignatários. 

Legado

No período de sua morte, Darwin já tinha convencido a maioria dos cientistas de que a evolução por origem comum estava correta e ele já era considerado um grande cientista que teve ideias revolucionárias. Em junho de 1909, embora poucos daquele tempo concordassem com sua visão de que a “seleção natural era a principal, mas não a forma exclusiva de modificação”, Darwin foi honrado por mais de 400 oficiais e cientistas do mundo todo que se encontraram em Cambridge para comemorar o centenário de seu nascimento e o quinquagésimo aniversário da publicação de A Origem das Espécies.

No início do século XX, em um período que tem sido denominado como “O eclipse do darwinismo”, cientistas propuseram várias alternativas de mecanismos evolutivos, que se provaram insustentáveis. Ronald Fisher, um estatístico inglês, finalmente uniu a genética mendeliana com a seleção natural, síntese realizada entre o período de 1918 até 1930, ano do lançamento de seu livro The Genetical Theory of Natural Selection.

Ele proveu à teoria uma base matemática e estabeleceu um largo consenso científico de que a seleção natural é o mecanismo básico da evolução, portanto a base da genética populacional e da síntese evolutiva moderna, juntamente com J. B. S. Haldane e Sewall Wright, os quais lançaram os pilares dos debates evolutivos modernos e o refinamento da teoria. 

Comemorações e homenagens

Durante a vida de Darwin, muitos locais foram homenageados com seu nome. Uma extensão de água adjacente ao Estreito de Beagle foi nomeado Canal de Darwin por Robert FitzRoy após uma reação heroica de Darwin, junto com dois ou três homens, que os salvou de naufragarem de seus barcos quando uma geleira colapsou e causou uma grande onda que teria virado suas embarcações; o Monte Darwin, nos Andes, também foi nomeado em celebração ao 25.º aniversário de Darwin.

Quando o Beagle estava navegando pela Austrália em 1839, o amigo de Darwin John Lort Stokes avistou um porto natural que o capitão do navio Wickham escolheu nomear Port Darwin: um assentamento próximo foi renomeado Darwin em 1911 e se tornou a capital da Território do Norte. 

Mais de 120 espécies e nove gêneros foram nomeados em homenagem a Darwin. Em um exemplo, um grupo de Thraupidae relacionados que Darwin achou nas Ilhas Galápagos ficaram conhecidos popularmente como “Tentilhões de Darwin”, promovendo informações imprecisas sobre a significância da importância deles no seu trabalho. 

Os trabalhos de Darwin continuaram a ser celebrados por várias publicações e eventos. A Linnean Society of London comemora as conquistas de Darwin premiando a Medalha Darwin-Wallace desde 1908. O Dia de Darwin se tornou uma celebração anual e, em 2009, eventos mundiais foram organizados para o bicentenário do nascimento de Darwin e o 150.º aniversário da publicação de A Origem das Espécies. Darwin foi celebrado no Reino Unido, com seu retrato impresso na nota reversa de 10 libras esterlinas emitida pelo Banco da Inglaterra, juntamente com um beija-flor e o Beagle. 

Uma estátua em tamanho real portando Darwin sentado por ser visto no salão do Museu de História Natural de Londres. Uma estátua de Darwin sentado, revelada em 1897, está posicionada em frente a Livraria Shrewsbury, o prédio usado pela Shrewsbury School, onde Darwin estudou quando criança. Outra estátua de Darwin quando jovem está situada nos estabelecimentos da Christ’s College, em Cambridge. A Darwin College, uma faculdade de pós-graduação da Universidade de Cambridge, também foi nomeada em homenagem a família de Darwin. 

Filhos

Erasmus 1839 – 1914 (75 anos) 
Annie 1841 – 1851 (10 anos) 
Eleanor 1842 – 1842 (24 dias) 
Emma 1843 – 1927 (84 anos) 
George 1845 – 1912 (67 anos) 
Elizabeth 1847 – 1926 (79 anos) 
Francis 1848 – 1925 (77 anos) 
Leonard 1850 – 1943 (93 anos) 
Horace 1851 – 1928 (77 anos) 
Charles 1856 – 1858 (1 ano) 

Os Darwins tiveram dez filhos: dois morreram na infância, sendo que a morte de Annie, aos dez anos, teve efeitos devastadores nos pais. Charles foi um pai devoto e especialmente atento aos seus filhos. Quando ficavam doentes, ele temia que tivessem herdado suas fraquezas por consanguinidade, por conta dos laços de parentesco próximos que ele compartilhava com sua esposa e prima, Emma Wedgwood. 

Darwin examinou a consanguinidade em seus escritos e percebia a desvantagem em relação a sexualidade cruzada em várias espécies. Apesar de seus medos, a maioria das crianças sobreviveram e muitos de seus descendentes tiveram carreiras consagradas. Das crianças sobreviventes, George, Francis e Horace se tornaram membros da Royal Society, sendo respectivamente um astrônomo, um botânico e um engenheiro civil. Todos se tornaram cavalheiros. Um outro filho, Leonard, chegou a ser um soldado, político, economista, eugenista e mentor de Ronald Fisher, estatístico e biólogo evolucionista. 

Visões religiosas

A tradição da família de Darwin era não-conformista unitarista, enquanto que seu pai e avô eram livre-pensadores, seu batismo e escola de infância eram anglicanos. Quando estava ingressando em Cambridge para se tornar um clérigo anglicano, Darwin não duvidava a interpretação literal da Bíblia. Ele aprendeu ciências com John Herschel que, igualmente com a teologia natural de William Paley, buscou explicações nas leis da natureza ao invés de respostas miraculosas e viu a adaptação das espécies como uma evidência do design divino.

A bordo do Beagle, Darwin era bem ortodoxo e podia citar a Bíblia como uma autoridade moral. Ele olhou para os “centros da criação” para explicar a distribuição das espécies, e sugeriu que a similaridade das formigas-leão achadas na Austrália e Inglaterra eram evidência da mão divina. 

Ao retornar, ele se tornou crítico da Bíblia como livro histórico e questionou se todas as religiões não poderiam ser igualmente válidas. Nos próximos anos, enquanto especulava intensamente sobre geologia e transmutação de espécies, ele pensou bastante sobre religião e discutiu abertamente o assunto com sua esposa Emma, cuja crença também vinha de estudos intensivos e questionadores.

A teodiceia de Paley e Thomas Malthus justificava o mal, tais como a fome e terremotos, como o resultado das leis benevolentes do Criador, o qual, no geral, tinha um resultado positivo. Para Darwin, a seleção natural produzia o lado bom da adaptação, mas removia a necessidade de um design inteligente, sendo que ele não conseguia ver o trabalho de uma deidade onipotente diante de toda a dor e sofrimento, como as vespas da família Ichneumonoidea, que paralisam lagartas para servi-las como comida viva para seus filhotes.

Embora ele pensasse que a religião fosse uma estratégia tribal de sobrevivência, Darwin estava relutante em desistir da ideia de Deus como o juiz supremo. Ele estava cada vez mais abalado pelo problema do mal. 

Darwin permaneceu amigo próximo dos clérigos de Downe e continuou a ter um papel de liderança no trabalho paroquial da igreja, mas por volta de 1849 começou a preferir caminhar aos domingos, enquanto sua família ia na igreja. Ele considerava um “absurdo duvidar que um homem poderia ser um ardente teísta e evolucionista” e, embora reticente sobre suas visões religiosas, em 1879 ele escreveu: “Eu nunca fui um ateísta no sentido de negar a existência de Deus.

– Eu penso que em geral… o agnosticismo poderia ser a forma mais correta de descrever meu estado mental”. Em 1915, Elizabeth Cotton publicou “Lady Hope Story”, que alegava que Darwin se converteu ao cristianismo durante sua morte. A alegação foi repudiada pelos filhos de Darwin e dada como falsa por historiadores.

Sociedade humana

As visões sociais e políticas de Darwin refletiam o seu período histórico e sua posição social. Ele cresceu em uma família de reformadores whigs que, como seu tio Josiah Wedgwood, apoiava reformas eleitorais e a emancipação de escravos. Darwin se opôs apaixonadamente a escravidão, enquanto que não via problema com as condições de trabalho dos trabalhadores industriais ingleses ou servos. Em 1826, as lições de taxidermia do escravo liberto John Edmonstone, que Darwin chamava de um “homem bastante inteligente e respeitoso”, reforçou sua crença que pessoas negras compartilhavam os mesmos sentimentos e poderiam ser tão inteligentes quanto as pessoas de outras raças.

Ele tomou a mesma atitude com os nativos que encontrou na viagem pelo Beagle. Essas atitudes não eram usuais na Grã-Bretanha da década de 1820, tanto que chocou visitantes norte-americanos. A sociedade britânica se tornou mais racista no meio do século, mas Darwin continuou se opondo fortemente contra a escravidão, contra a “hierarquia das então chamadas raças humanas como espécies distintas” e contra o tratamento doentio dos povos nativos. As interações de Darwin com os yaganes (fueguinos), como Jemmy Button, durante a segunda viagem do Beagle tiveram um profundo impacto em suas visões de povos primitivos.

Na sua chegada a Terra do Fogo ele fez uma descrição generosa dos “selvagens fueguinos”. Essa visão mudou quando conheceu o povo yagane em mais detalhes. Ao estudar os yeganes, Darwin concluiu que o conjunto básico de emoções dos diferentes grupos humanos eram o mesmo e que as capacidades mentais era basicamente as mesmas dos europeus. Enquanto estudava a cultura yagane, Darwin deixou escapar a profunda cultura ecológica e cosmológica deles até 1850, quando inspecionou um dicionário de yagane detalhando 32 mil palavras nativas. 

Ele louvava a civilização europeia e via a colonização como difusão de seus benefícios, com o triste, mas inevitável efeito de que povos selvagens que não se tornassem civilizados enfrentariam a extinção. As teorias de Darwin apresentavam isso com o caminho natural e eram citadas como o princípio básico dos princípios humanitários. 

Ele acreditava que a “superioridade” do homem sobre a mulher era o resultado da seleção sexual, uma visão disputada por Antoinette Brown Blackwell em seu livro The Sexes Throughout Nature. Darwin estava intrigado pelo argumento do seu meio-primo Francis Galton, introduzido em 1865, mostrando que a análise estatística da hereditariedade demonstrava que traços morais e mentais humanos poderiam ser herdados, enquanto o princípio da seleção artificial animal poderia ser aplicado em humanos.

Em A Descendência do Homem, Darwin notou que ajudar fracos a sobreviverem e viabilizarem famílias poderia desestabilizar os benefícios da seleção natural, mas tomou cuidado que reter tal ajuda colocaria em risco o instinto de solidariedade, “a parte mais nobre de nossa natureza”, e fatores como a educação poderiam ser mais importantes. Quando Galton sugeriu publicar investigações que poderiam encorajar casamentos limitados a uma “casta”, ou “dentre aqueles que eram naturalmente favorecidos”, Darwin previu dificuldades práticas e pensou que “embora viável, temia a utopia, o chamado plano em melhorar a raça humana”, preferindo simplesmente publicar a importância da hereditariedade e deixar as discussões para os indivíduos. Francis Galton nomeou o campo de estudos que lançara de “eugenia” em 1883. 

Movimentos Sociais

A fama e a popularidade de Darwin levou seu nome a ser associado com ideias e movimentos que, as vezes, apenas tinham relação indireta com seus trabalhos e, até mesmo, iam diretamente contra suas visões. Thomas Malthus argumentou que o aumento populacional por recursos foi ordenado por Deus para levar os humanos a trabalharem produtivamente e se restringirem em criarem famílias; isto foi usado na década de 1830 para justificar a existência de workhouses e da economia laissez-faire. Naquele tempo a evolução estava sendo vista como um implicante de relações sociais e o livro Social Statics, publicado em 1851 e de autoria de Herbert Spencer, baseava ideias de liberdade humana em relação a sua teoria lamarckiana de evolução. 

Logo após A Origem ser publicada em 1859, críticos ridicularizaram a descrição de Darwin da luta pela sobrevivência como uma justificativa malthusiana do capitalismo industrial inglês da época. O termo darwinismo foi usado por ideias evolucionárias de outros, incluindo a “sobrevivência do mais apto” de Spencer, como justificativa do progresso do livre-mercado e do poligenismo de Ernst Heackel. Escritores usaram a seleção natural para argumentar por várias ideologias constantemente contraditórias, como o colonialismo e o imperialismo.

Entretanto, a visão holística de Darwin da natureza incluía a “dependência do outro”; então pacifistas, socialistas, reformadores sociais liberais e anarquistas, como Piotr Kropotkin, salientaram o valor da cooperação entre as espécies, ao invés da competição. O próprio Darwin insistiu que políticas sociais não deveriam ser simplesmente guiadas por conceitos de luta e seleção da natureza. 

Depois da década de 1880, movimentos eugenistas se desenvolveram com ideias de hereditariedade biológica e com justificações pseudocientíficas que apelavam aos conceitos do darwinismo. Na Grã-Bretanha, a maioria compartilhou visões cuidadosas de Darwin de melhorias voluntárias e buscou encorajar aqueles com características boas na chamada “eugenia positiva”. Durante o Eclipse do Darwinismo, uma base científica da eugenia foi dada pela genética mendeliana. A eugenia negativa que mirava eliminar aqueles de “mente fraca” era popular nos Estados Unidos, Canadá e Austrália, sendo que nos Estados Unidos surgiram leis de esterilização compulsória, o que foi copiado por vários países. Posteriormente, a eugenia nazista trouxe o campo para um novo patamar, que culminou no genocídio de 6 milhões de pessoas (vide Holocausto). 

Veja mais:

O termo “darwinismo social” era frequentemente usado na década de 1890, mas se tornou popular como um termo depreciativo na década de 1940, quando Richard Hofstadter o usou para atacar o conservadorismo laissez-faire defendido, por exemplo, por William Graham Sumner, que era contra as reformas e o socialismo. Desde então, é usado como um termo para se opor ao que é visto como consequências morais da evo

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Charles Babbage https://canalfezhistoria.com/charles-babbage/ https://canalfezhistoria.com/charles-babbage/#respond Mon, 10 Mar 2025 17:33:27 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5775 Charles Babbage (Londres, 26 de dezembro de 1791 — Londres, 18 de outubro de 1871) foi um cientista, matemático, filósofo, engenheiro mecânico e inventor inglês nascido em Teignmouth, Devon, que originou o conceito de um computador programável junto à condessa de Lovelace, Augusta Ada King. Charles Babbage é mais conhecido e, de certa forma, referenciado como o inventor que projetou o primeiro computador de uso geral, utilizando apenas partes mecânicas, a máquina analítica.

Ele é considerado o pioneiro. Seu invento, porém, exigia técnicas bastante avançadas e caras na época, e nunca foi construído. Sua invenção também não era conhecida dos criadores do computador moderno. Mais recentemente, entre 1985 e 1991, o Museu de Ciência de Londres construiu outra de suas invenções inacabadas, a máquina diferencial 2, usando apenas técnicas disponíveis na época de Babbage. 

Nascimento

O local de nascimento de Babbage é controverso, mas ele provavelmente nasceu na Inglaterra, mais precisamente no endereço 44 Crosby Row, Walworth Road, em Londres, Inglaterra. 

Há uma pequena discrepância, provinda de três fontes, sobre a data de nascimento de Babbage. A primeira, publicada no obituário do The Times aponta 26 de Dezembro de 1792. Entretanto, dias mais tarde, um sobrinho de Babbage escreveu dizendo que seu tio havia nascido precisamente um ano antes, em 1791. O registro paroquial de ‘St. Mary’s Newington’, Londres, mostra Babbage sendo batizado em 06 de janeiro de 1792, apoiando um ano de nascimento de 1791. 

O pai de Babbage, Benjamin Babbage, foi um banqueiro, sócio do Praeds, de ‘Bitton Estate’, em Teignmouth. Sua mãe era Betsy Plumleigh Babbage. Em 1808, a família Babbage mudou-se para a antiga ‘Rowdens house’, a leste de Teignmouth, e Benjamin Babbage tornou-se administrador das proximidades da igreja de St. Michael. 

Educação

O dinheiro de seu pai permitiu que Babbage recebesse instrução de diversas escolas e tutores durante o curso de seu ensino fundamental. Com cerca de oito anos de idade foi enviado para uma escola de campo em Alphington, Devon perto de Exeter para se recuperar de uma febre com risco de vida. Seus pais ordenaram que a “não era para se exigir demais de seu cérebro” e Babbage sentiu que “esta grande ociosidade pode ter levado alguns dos meus raciocínios infantis”.

Por um tempo curto ele frequentou o King Edward VI Community College em Totnes, South Devon, mas sua saúde forçou ele de volta para professores particulares por um tempo. Ele então se juntou a 30 alunos da academia Holmwood, em Baker Street, Enfield, Middlesex sob o reverendo Stephen Freeman. A academia tinha uma biblioteca bem abastecida que levou Babbage ao amor pela matemática. Ele estudou com mais dois tutores privados depois de sair da academia. 

Charles Babbage estudou no Trinity College, em Cambridge, onde depois lecionou matemática. Ele tinha lido extensivamente Leibniz, Joseph Louis Lagrange, Thomas Simpson, e Lacroix e ficou seriamente decepcionado com o ensino da matemática disponível em Cambridge. Em resposta, ele, John Herschel, George Peacock, e vários outros amigos formaram a Analytical Society do Trinity College, em Cambridge em 1812.

Babbage, Herschel e Peacock também eram amigos íntimos do futuro juiz e patrono da ciência Sir Edward Ryan. Babbage e Ryan casaram com duas irmãs. Como estudante, Babbage foi também membro de outras sociedades, como o the Ghost Club, preocupado com a investigação de fenômenos sobrenaturais, e do the Extractors Club, dedicado a libertar seus membros do hospício, caso algum dos membros fosse parar lá. 

Em 1812 Babbage transferido para Peterhouse, Cambridge. Ele foi um dos melhores matemáticos em Peterhouse, mas não se formou com honras. Ao invés disso, recebeu um diploma honorário sem exame em 1814. 

Eleito membro da Royal Society of London (1816), recebeu uma bolsa do governo para projectar uma calculadora com capacidade para até a vigésima casa decimal (1823). Enquanto desenvolvia sua máquina era professor de matemática na University of Cambridge (1828-1839). Apresentou sua máquina analítica em 1833, tendo sido considerada o ponto de partida para os modernos computadores eletrônicos. 

Publicou diversos artigos sobre matemática, estatística, física e geologia. Também colaborou para a modernização do sistema de código postal inglês, além de ser o primeiro matemático que conseguiu colocar em desuso a cifra de Vigenère, utilizando métodos de cripto-análise (análise de frequência). 

Casamento, família, morte

Em 25 de Julho de 1814, Babbage se casou com Georgiana Whitmore, na Igreja de St. Michael em Teignmouth, Devon. O casal viveu em Dudmaston Hall, Shropshire (onde Babbage projetou o sistema de aquecimento central), antes de passar a morar no número 5 da rua Devonshire Street, em Portland Place, Londres. 

Veja mais:

Charles e Georgiana tiveram oito filhos, mas apenas quatro – Benjamin Babbage Herschel, Georgiana Whitmore, Dugald Bromhead Babbage e Henry Prevost – sobreviveram à infância. A esposa de Charles, Georgiana, morreu em Worcester em 1 de setembro de 1827, mesmo ano em que seu pai, seu segundo filho (também chamado Charles) e seu filho recém-nascido Alexander morreram. Sua decisão posterior para passar um ano viajando no continente registou uma atraso na construção de suas máquinas.

Charles Babbage morreu aos 79 anos em 18 de Outubro de 1871, e foi sepultado em Londres no Cemitério de Kensal Green. Segundo Horsley, Babbage morreu “de insuficiência renal, secundária à cistite”. Em 1983, o relatório da autópsia para Charles Babbage foi descoberto e publicado mais tarde por seu trineto. Uma cópia do original também está disponível.

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Carlos Magno https://canalfezhistoria.com/carlos-magno/ https://canalfezhistoria.com/carlos-magno/#respond Mon, 10 Mar 2025 17:30:09 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5771 Carlos Magno (em latim: Carolus Magnus, alemão: Karl der Große, francês: Charlemagne; 2 de abril de 742 — Aachen, 28 de janeiro de 814) foi o primeiro Imperador do Sacro Império Romano de 800 até sua morte, além de Rei dos Lombardos a partir de 774 e Rei dos Francos começando em 768. A denominação dinastia Carolíngia, que pelos sete séculos seguintes dominou a Europa, no que veio a ser posteriormente chamado Sacro Império Romano-Germânico deriva do seu nome em latim “Carolus”. 

Por meio das suas conquistas no estrangeiro e de suas reformas internas, Carlos Magno ajudou a definir a Europa Ocidental e a Idade Média na Europa. Ele é chamado de Carlos I nas listas reais da Alemanha (como Karl), na França (como Charles) e do Sacro Império Romano-Germânico. Ele era filho do rei Pepino, o Breve e de Berta de Laon, uma rainha franca. Carlos reinou primeiro em conjunto com seu irmão Carlomano, sendo a relação entre os dois o tema de um caloroso debate entre os cronistas contemporâneos e os historiadores. 

Monarca guerreiro, expandiu o Reino Franco através de uma série de campanhas militares, em particular contra os saxões pagãos cuja submissão foi bastante difícil e muito violenta (772-804), mas também contra os lombardos em Itália e os muçulmanos da Península Ibérica, até que este se tornou o Império Carolíngio, que incorporou a maior parte da Europa Ocidental e Central. Durante o seu reinado, ele conquistou o Reino Itálico. 

Posteriormente, o exército de Carlos, em retirada, sofreu a sua pior derrota nas mãos dos bascos na Batalha de Roncesvales (778) (eternizada A Canção de Rolando, de teor fortemente fictício). Ele também realizou campanhas contra os povos a leste, principalmente os saxões e, após uma longa guerra, subjugou-os ao seu comando. Ao cristianizar à força os saxões e banindo, sob pena de morte, o paganismo germânico, ele os integrou ao seu reino e pavimentou o caminho que levaria à futura dinastia Otoniana. 

Soberano reformador, preocupado com a ortodoxia religiosa e cultura, ele protegeu as artes e as letras. O seu reinado também está associado com a chamada Renascença carolíngia, um renascimento das artes, religião e cultura por meio da Igreja Católica. 

O seu trabalho político imediato, o império, não lhe sobrevive, no entanto, por muito tempo. Em conformidade com o costume sucessório germânico, Carlos Magno promove a partir de 806 a partilha do império entre os seus três filhos. Após numerosas peripécias, o império acabará finalmente partilhado em entre três dos seus netos (Tratado de Verdun). 

A fragmentação feudal dos séculos seguintes, mais a formação na Europa de Estado-nações rivais, condenaram à impotência aqueles que tentaram explicitamente restaurar o império universal de Carlos Magno, em particular os governantes do Sacro Império Romano-Germânico, como Otão I em 962 e Carlos V no século XVI, e até mesmo Napoleão Bonaparte, perseguido pelo exemplo dos mais eminentes dos Carolíngios. 

As monarquias francesa e alemã descendentes do império governado por Carlos Magno na forma do Sacro Império Romano-Germânico cobriam a maior parte da Europa. A figura de Carlos Magno foi objeto de discórdia na Europa, incluindo a questão política entre os séculos XII e XIX entre a nação germânica, que considera o Sacro Império Romano-Germânico como o sucessor legítimo do imperador carolíngio, e a nação francesa, que é de facto um elemento central da continuidade dinástica dos Capetianos. 

Os dois principais textos do século IX que retratam o Carlos Magno real, a Vida de Carlos Magno, de Eginhardo, e a “Gesta Karoli Magni”, atribuída a um monge da Abadia de São Galo chamado Notker, igualam as lendas e mitos enumerados nos séculos seguintes: “Há o Carlos Magno da sociedade vassálica e feudal, o Carlos Magno da Cruzada e da Reconquista, o Carlos Magno inventor da Coroa de França ou da Coroa Imperial, o Carlos Magno mal canonizado, mas tido como verdadeiro santo da igreja, o Carlos Magno da boa escola”. 

Em seu discurso de aceitação do Prêmio Carlos Magno, o papa João Paulo II se referiu a ele como Pater Europae (“Pai da Europa”)”[…] seu império uniu a maior parte da Europa Ocidental pela primeira vez desde os romanos e a Renascença carolíngia encorajou a formação de uma identidade europeia comum”. 

Vida e conquistas

Carlos Magno é o mais ilustre representante dos soberanos da dinastia carolíngia, à qual deu o seu nome. Neto de Carlos Martel, é filho de Pepino, o Breve e de Berta de Laon dita a “Grande Pia”. Problemas relativos ao seu nascimento A data e o local de nascimento são objeto de controvérsia, devido à ausência de registos concordantes nos documentos da época. 

Data de nascimento

A data mais provável para o nascimento de Carlos Magno pode ser inferida a partir de uma série de fontes. A data de 742 pode ser calculada a partir da informação de Eginhardo sobre a morte de Carlos em janeiro de 814 aos 72 anos, mas ela tem a deficiência de localizar o nascimento antes do casamento de seus pais, que teria sido em 744. O ano que aparece nos Annales Petaviani como sendo 747 seria mais provável se não contradissesse Eginhardo e outras fontes ao alegar que Carlos seria menos do que septuagenário. Um calendário da Abadia de Lorsch afirma que teria sido o dia 2 do mês de abril. Em 747, esta data caiu na Páscoa, uma coincidência que certamente seria lembrada, mas não foi. Se a Páscoa estivesse sendo usada como o início do ano-calendário, então 2 de abril de 747 pode ter sido, pelos padrões modernos, 2 de abril de 748 (que não caiu na Páscoa). A data que se suporta melhor pelas evidências é 2 de abril de 742, baseando-se principalmente pelo fato de Carlos ser um septuagenário quando morreu. A conclusão de que Carlos seria um filho ilegítimo (pela data do casamento de seus pais) não é, contudo, sustentada por Eginhardo. 

Local de nascimento

O lugar de nascimento de Carlos Magno não é mencionado em nenhuma fonte do seu tempo. A indicação mais antiga, relativa a Ingelheim am Rhein, vem de Godofredo de Viterbo (autor italiano do século XII) e é mantida por alguns autores.

Outro lugar de nascimento considerado é Quierzy-sur-Oise, que é uma antiga casa de campo real merovíngia em Aisne, entre Noyon e Chauny. Os seus pais casaram-se lá. Esta pequena cidade foi entre 600 e 900, a capital do Reino Franco. Muitos eventos ocorreram lá, incluindo três conselhos. De acordo com outros historiadores, Carlos Magno estabeleceu na Austrásia, particularmente na atual região de Liège, em Herstal ou Jupille, residência mais frequente de Pepino, o Breve e alguns ancestrais dos carolíngios, incluindo Pepino de Herstal, o pai de Carlos Martel. Aquisgrano também foi considerada como possível local de nascimento. 

Infância e juventude

Eginhardo, o seu biógrafo, nos conta sobre os primeiros anos da vida de Carlos Magno: 

“ Seria tolo, eu acho, escrever uma palavra sobre o nascimento e infância de Carlos, ou mesmo sobre a sua meninice, pois ainda jamais se escreveu sobre o assunto e não há ninguém vivo agora que possa dar alguma informação sobre o assunto. Assim, eu afirmo que este período é desconhecido e que passo logo a descrever seu caráter, seus atos e outros fatos de sua vida que merecem ser contados, sendo que primeiro farei um relato sobre seus atos em casa e no estrangeiro, depois sobre seu caráter e objetivos, terminando com sua administração e sua morte, sem omitir nada que mereça ser contado ou que seja necessário saber. ” 

Portanto, as informações sobre o seu nascimento são escassas. Carlos Magno é pela primeira vez mencionado num diploma de 760 sobre a abadia de Saint-Calais. Carlos Magno foi o filho mais velho de Pepino, o Breve,[17] que foi o primeiro rei carolíngio, e de Berta de Laon. Foi irmão de Lady Berta, mãe de Rolando, marquês da Bretanha. Sua ascendência paterna chega até Arnulfo de Metz, um bispo cuja filiação é incerta.Pepino, o Breve empossou o monopólio da cunhagem da moeda, decidindo sobre a atividade das casas de cunhagem, o peso das moedas, o seu valor e os caracteres representados. No que concerne ao período de reinado de seu pai, sabe-se que Carlos Magno integrou uma série de acontecimentos. Ele encabeçou a delegação que acolheu o papa Estevão III em Champanhe em 754, e foi consagrado pelo papa juntamente com seu irmão Carlomano. Ele participou numa operação na Aquitânia em 767-768 e estava com a sua mãe na procissão que trazia Pepino, o Breve para Saint Denis. No que concerne à sua educação, concorda-se que não aprendeu a escrever enquanto jovem. Mas talvez seja apenas a caligrafia, e não a escrita básica. Contudo, sabia ler e conhecia o latim. A sua língua materna é a da Francônia. 

Com a morte de Pepino, o reino foi dividido entre Carlos Magno e o seu irmão Carlomano (que governou a Austrásia). Carlomano morreu em 5 de dezembro de 771, deixando Carlos Magno como líder de um reino Franco reunificado. Carlos Magno esteve envolvido constantemente em batalhas durante o seu reinado. Conquistou a Saxónia no século VIII, um objetivo que foi o sonho inalcançável de Augusto. Foram necessários mais de dezoito batalhas para que Carlos Magno conseguisse esta vitória definitiva. 

Procedeu à conversão forçada ao cristianismo dos povos conquistados, massacrando os que se recusavam a converter-se. Um dos seus objetivos era, também conquistar a Península Ibérica, mas nunca o alcançou. Reinado precoce: com Carlomano (768-771) Carlos Magno fica ocupado pelos assuntos da Aquitânia (veja abaixo), os quais ele consegue resolver sem a ajuda de seu irmão. 

De seguida, vem a questão dos casamentos lombardos, que ocupam os anos de 769-771. Os mais poderosos cargos entre os francos, o mordomo do palácio (Maior Domus) e um ou mais reis (rex ou reges) eram apontados através de eleição popular, ou seja, sem uma regularidade, mas conforme a necessidade aparecia de eleger oficiais ad quos summa imperii pertinebat – “a quem os assuntos de estado eram pertinentes”. Evidentemente, decisões durante este ínterim poderiam ser tomadas pelo papa, e seriam depois ratificadas pela assembleia do povo, que se reunia uma vez por ano. 

Antes que Pepino, o Breve, inicialmente um prefeito, fosse eleito rei em 750, ele manteve o cargo “como se fosse hereditário” (velut hereditario fungebatur). Eginhardo explica que “a honra” era geralmente “dada pelo povo” aos mais distintos, mas Pepino e seu irmão, Carlomano, a receberam por hereditariedade, assim como pai deles, Carlos Martel. Havia, porém, uma certa ambiguidade sobre esta “quase-herança”. O cargo era tratado como uma propriedade conjunta: uma prefeitura mantida pelos dois irmãos em conjunto. Cada um, porém, tinha sua própria jurisdição geográfica. Quando Carlomano decidiu renunciar para se tornar um monge beneditino em Monte Cassino, a questão sobre o que fazer com a sua “quase herança” foi resolvida pelo papa. Ele converteu a prefeitura em um reinado e premiou Pepino com a posse conjunta das propriedades de Carlomano. Além disso, Pepino agora ganhara o direito de passar suas posses adiante por herança. 

Esta decisão não foi aceite por todos os membros da família real. Carlomano havia consentido na guarda temporária de sua parte, que ele pretendia passar para o seu próprio filho, Drogo. Pela decisão do papa, sobre a qual é possível enxergar a influência de Pepino, Drogo foi desqualificado como herdeiro em favor de seu primo Carlos. Ele foi às armas em oposição à decisão e foi acompanhado por Grifo, um meio-irmão de Pepino e Carlomano, a quem havia sido dada uma parte da herança de Carlos Martel (que lhe fora dele roubada) e era mantido quase aprisionado por seu meio-irmão após uma tentativa de tomar as suas heranças pela força. Por volta de 753, o assunto estava resolvido: Grifo perecera em combate na Batalha de Saint-Jean-de-Maurienne, enquanto que Drogo fora caçado e aprisionado. 

Com a morte de Pepino, em 24 de setembro de 768, o reinado passou conjuntamente para seus filhos, “com o apoio divino” (divino nutu). De acordo com sua a Vita, Pepino morreu em Paris. Os francos, “em assembleia geral” (generali conventu) deram a ambos o título de rei (reges), mas “dividiram o todo do reino igualmente” (totum regni corpus ex aequo partirentur). Os Annales contam uma versão diferente: o rei morreu em St. Denis que é, porém, parte da França. Os dois “lordes” (domni) foram “elevados ao estatuto de rei” (elevati sunt in regnum), Carlos no dia 9 de outubro, em Noyon, e Carlomano numa data desconhecida em Soissons. Se Carlos de fato nasceu em 742, ele tinha 26 anos de idade, já tendo participado de diversas campanhas ao lado do seu pai – o que ajuda a entender o seu gênio militar. Carlomano teria somente 17 anos. 

O linguajar utilizado em ambos os casos sugere que não houve “duas heranças”, o que teria criado dois reinos distintos governados por dois reis, mas uma única herança e um reinado conjunto mantido por dois reis iguais entre si, Carlos e seu irmão Carlomano. Como antes, jurisdições separadas foram conferidas a cada um deles. Carlos recebeu a parte original de Pepino como prefeito: as bordas do reino, margeando o mar, nominalmente a Nêustria, a Aquitânia ocidental e a parte norte da Austrásia, enquanto Carlomano recebeu a parte originalmente pertencente ao seu tio, mais as internas: a parte sul da Austrásia, a Septimânia, a Aquitânia oriental, a Borgonha, a Provença e a Suábia, além das terras na fronteira com a Itália. A questão sobre se estas jurisdições eram heranças conjuntas que reverteriam para o outro se um deles viesse a morrer ou se seriam herdadas pelos descendentes do morto jamais foi satisfatoriamente resolvida pelos francos. Em 771, depois de pouco mais de três anos de governo e relativa paz entre os dois irmãos, Carlomano morreu de repente no palácio carolíngio de Samoussy perto de Laon. Imediatamente após a sua morte, Carlos aproveita o seu reino, usurpando a herança de seus sobrinhos. A viúva de Carlomano, Gerberga, fugiu para a Itália com o rei dos lombardos, com seu filho e alguns apoiantes. 

As razões para o expansionismo territorial

Segundo alguns autores, a insegurança das fronteiras do território franco foi um dos fatores que desengataram sua política expansionista. A dinastia merovíngia assumiu um reino rodeado de povos hostis e ainda controlados por dinastias locais bastante independentes, como os Frisões e saxões, ou áreas ainda não completamente controladas, como a Alemannia, a Bavieria e a Aquitânia. Dessa forma, os carolíngios se encontravam cercados por povos que tanto poderiam organizar incursões dentro de seu território, como também se aliar aos inimigos da dinastia. Em outros momentos, a própria política de alianças dos Carolíngios os levou a intervenções como as lideradas por Carlos Martel contra os Sarracenos em 732, em favor da Aquitânia, ou as intervenções de Pepino o Breve, na Itália como retribuição aos favores do Papa Zacarias. Muito também pelo interesse por novas terras e riquezas para recompensar a confiança e o apoio dos grandes e poderosos que contribuíam para a manutenção do expansionismo carolíngio. 

O reino franco em 768 e o seu ambiente

O reino incluía os territórios solidamente mantidos pelos Francos: Austrásia, Nêustria, Borgonha, Provença, Alemânia, e os territórios semiautónomos: a Aquitânia (com a Gasconha e a Septimânia), a Baviera e a Frísia. 

Fora do reino, encontravam-se: 

• do outro lado do Canal da Mancha, os reinos anglo-saxões;
• na península bretã, as chefias bretãs;
• do outro lado do Pirenéus, na Peninsula Ibérica muçulmana, ocupada desde 756 pelo Califado Omíada de Córdoba, e nas Astúrias, o reino cristão de Oviedo;
• do lado de lá dos Alpes, o reino dos Lombardos, os Estados Pontifícios (criados por Pepino, o Breve), o ducado lombardo de Benevento, as possessões bizantinas (Nápoles, Apúlia e Calábria); mas o Império Bizantino teve de deixar o Exarcado de Ravena cair nas mãos dos Lombardos em 751;
• do lado de lá do Reno, entre o mar do Norte, o Elba, e o Fulda, encontra-se Saxe, país «bárbaro» sem estrutura política forte.

Os mais distantes: os Escandinavos da Dinamarca; os Eslavos (Veletos, Obotritas), do lado de lá do Elba; os Ávaros (seminómadas turcomanos) na Panónia. O Império Bizantino na Ásia perdeu muito território devido à expansão árabo-muçulmana; em geral, as relações dos Bizantinos com os Francos seriam bastante tensas. O império muçulmano, na Ásia e em África, era dirigido pelo Califado Abássida, com o qual, pelo contrário, as relações eram muito boas, na ausência de hostilidade religiosa, enquanto havia uma disputa religiosa com Bizâncio. O papado está sempre sob tutela do Império Bizantino. No entanto, encurralado pela sua luta contra o império muçulmano, o basileu não tem mais meios de proteger Roma ameaçada pelos Lombardos. O papado vira-se cada vez mais para os Francos, em particular para a família carolíngia que sustêm os papas desde a época de Carlos Martel. 

A organização política do reino franco

No reino franco, os poderosos (principalmente os duques, condes e marqueses) acolhiam homens livres que educavam, protegiam e alimentavam. A entrada nestes grupos fazia-se numa cerimónia de recomendação: estes homens tornavam-se guerreiros domésticos ligados à pessoa do senhor. O senhor devia entreter esta clientela através de doações para manter a sua fidelidade. 

A moeda de ouro tornou-se rara devido à distensão das ligações comerciais com o Império Bizantino (que perdeu o controlo do Mediterrâneo ocidental em favor dos muçulmanos). A riqueza dificilmente pode vir da guerra. O que leva a saque e permite eventualmente conquistar terras que podem ser redistribuídas. Na ausência de expansão territorial, os laços vassálicos distendem-se. Para se sustentar, o poder deve entender-se. Desde gerações, os Pipinidios estenderam assim os seus domínios, e os seus condes, enriqueceram-se, cederam terras aos seus próprios vassalos. Carlos Martel e Pepino, o Breve mostram à Igreja uma grande parte de sus bens para os atribuir aos vassalos. Isto permite-lhes aos mesmo tempo estabilizar as suas conquistas, e ter os meios para estar à cabeça de um exército sem igual no Ocidente medieval 

Carlos Magno tem o mesmo problema: deve estender-se em permanência para entreter os seus vassalos e evitar a dissolução das suas possessões. Durante todo o seu reinado, ele tenta fidelizá-los por todos os meios: fazendo-os jurar por demarcação de terras (única riqueza na época) que elas devem ser-lhe restituídas pela sua morte, enviando missi dominici para os controlar e para fiscalizar o que acontece no seu império. 

Concretamente, a cada ano uma assembleia de grandes do reino, deveria representar todos os povos livres, vulgarmente chamados senhores do campo de maio; esta assembleia tomava diversas decisões ( ou melhor: subscrevia as decisões do rei) e em particular a de lançar uma expedição contra um inimigo em particular. Esta decisão era difundida pelos interessados, fosse pelos vassalos diretos do rei com os seus dependentes, fosse pelos condes, bispos e abades com os moradores da sua jurisdição. Cada guerreiro mobilizado devia transportar o seu equipamento e os seus víveres para três meses e apresentar-se no ponto de reunião do exército (ou dos diferentes corpos previstos). 

A consolidação e o alargamento do território

Rebelião na Aquitânia

Uma herança nos países que estavam anteriormente sob o direito romano (ius) representava não apenas transmissão de propriedades e privilégios, mas também as obrigações e adversidades vinculadas a ela. Pepino, ao morrer, estava construindo um império, uma tarefa muito difícil “ Naquele tempo, construir um reino agregando pequenos territórios não era em si algo difícil… Mas mantê-lo intacto após ter se formado era uma tarefa colossal…. Cada um dos estados menores… tinha sua “pequena soberania”… que … se dedicava principalmente a…. conspirar, pilhar e lutar. ” 

Formação da Nova Aquitânia

A Aquitânia, sob o jugo romano, compreendia o sul da Gália, que era romanizada e falava a língua românica. De forma similar, a Hispânia havia sido povoada por povos que falavam diversas línguas, incluindo o celta, mas que era agora povoado inteiramente por falantes do românico. Entre a Aquitânia e a Hispânia estavam os Euskaldunak, romanizados como vascões ou bascos, vivendo no País Basco, a “Vascônia”, que se estendia por um território que estava em acordo com a distribuição dos topônimos atribuíveis aos bascos, principalmente na parte oriental dos Pirenéus, mas também mais ao sul, chegando ao rio Ebro, na Península Ibérica, e ao norte, até o Garone, na França. O nome francês, Gasconha, é derivado de “Vascônia”. 

Após a queda dos romanos, os visigodos os substituíram na Península Ibérica e pelos francos e visigodos ao norte. Embora eles tivessem a autoridade estatal, estas tribos germânicas se assentaram de forma tênue, para dizer o mínimo. Elas não mantiveram a sua linguagem por muito tempo e acabaram assimiladas pelas populações falantes do românico que ali existiam. O românico ainda era falado em Toulouse e nas redondezas para o oriente, até o rio Ebro. As autoridades da região mantinham relações com os bascos, que eram combativos como sempre, e mantinham a vantagem na região. Eles começaram a atacar e pilhar ao norte e leste de suas fronteiras num território que já era governado pelos merovíngios, tomando escravos ao norte para vender ao sul. Exército após exército foi enviado pelos francos e, quando os bascos não conseguiam derrotá-los, eles recuavam para as montanhas. Em 635 d.C., uma coluna franca sob Arneberto foi massacrada em Haute Sole, um vale alpino. 

Por volta de 660 d.C., o ducado da Vascônia, foi unido sob ordens do Duque de Aquitânia para formar um reino único sob Félix de Aquitânia a partir de Toulouse. Este seria um reinado conjunto com Lupus I, de apenas 28 anos, o rei basco. O reino era independente e soberano. Por outro lado, a Vascônia desistiu de suas atitudes predatórias para passar a atuar na política europeia. Contudo, arranjos que Félix havia feito com os agora fracos merovíngios se mostraram inúteis e inválidos. Ao morrer, em 770, a propriedade conjunta reverteu inteiramente para Lupus. Como os bascos não tinham nenhuma lei sobre a herança conjunta, apesar de praticarem a primogenitura, Lupus foi, de fato, o fundador da dinastia hereditária dos reis bascos e de uma Aquitânia expandida. 

Aquisição da Aquitânia pelos carolíngios

As crônicas latinas sobre o final do Reino Visigótico deixam muito a desejar: a identificação de personagens, várias lacunas e numerosas contradições. As fontes sarracenas, porém, apresentam uma visão mais coerente, como a Ta’rikh iftitah al-Andalus (“História da conquista de alandalus”) por Ibn al-Qūṭiyya, “o filho de uma mulher goda”, onde a citada Sarah seria a neta do último rei de toda a Hispânia visigoda, que se casou com um sarraceno. Ibn al-Qūṭiyya, que tinha outro nome muito muito mais longo, certamente confiava, em algum grau, na tradição oral desta família. Se todos os reinos foram destruídos pela invasão dos sarracenos, então Rodrigo parece ter reinado por uns poucos anos antes da maioridade de Áquila. O reinado deste último, por sua vez, pode ser localizado com alguma segurança no noroeste da Península, enquanto que Rodrigo parece ter reinado no resto, notadamente em Portugal. 

De acordo com ele, o último rei visigodo de uma Hispânia unida morreu antes que seus três filhos, Almundo, Rômulo e Arbasto, chegassem à maioridade. A mãe deles era regente em Toledo, mas Rodrigo, o “ministro” do exército, deu um golpe militar e capturou Córdova. De todos os possíveis desfechos, ele escolheu impor um governo conjunto dos três herdeiros verdadeiros sobre diferentes jurisdições. A evidência de uma divisão de alguma forma pode ser encontrada na distribuição das moedas cunhadas com o nome de cada rei e também nas listas reais. Vitiza foi sucedido por Rodrigo, reinando sete anos e meio, e um tal Áquila, que reinou por três anos e meio. 

Áquila é indubitavelmente Áquila II das moedas e das crônicas, que as crônicas afirmam ser filho de Vitiza. Como ele entra na árvore genealógica da família da mulher goda é um problema. Um erro de cópia na transmissão do manuscrito de seu filho já foi proposto: “w.q.l.h” (“Waqla”) se tornaria “r.m.l.h” (“Rumulu”) – o árabe, assim como o hebraico, escreve apenas as consoantes. Ardabasto é geralmente identificado como sendo Ardo, o rei da Septimânia (713-720). A localização da parte de Almundo (“Olemundo”?) não foi preservada, mas que ele certamente tinha uma é um fato que se infere pelos eventos seguintes. 

No relato, um mercador cristão, Juliano, deixou a sua filha sob a guarda de Rodrigo (a mãe havia morrido recentemente) enquanto ele viajava a negócios a pedido de Rodrigo no Norte da África. Quando ele retornou, ele descobriu que sua filha havia sido seduzida por Rodrigo. Fingindo não se importar e aceitar o evento, ele convenceu Rodrigo a enviá-lo em outra viagem. Chegando ao destino, porém, ele foi diretamente a Tárique e o convenceu a invadir Alandalus. No caminho, o profeta Maomé teria aparecido para Tárique num sonho e estimulado-o a continuar. Quando os sarracenos desembarcaram no sul da Península Ibérica, Rodrigo, que tinha se estabelecido em Córdova, procurou os três filhos de Vitiza pedindo por ajuda na defesa comum. Os três vieram, mas não chegaram sequer a entrar na cidade, enviando um emissário a Tárique em vez disso para afirmar que Rodrigo não era melhor do que um cão e oferecendo sua submissão e ajuda em troca de manterem suas terras ancestrais e seus privilégios. A oferta foi aceita e Rodrigo foi derrotado na Batalha de Guadalete. Não fica claro se os reis visigodos lutaram contra ele ou apenas evitaram ajudá-lo. “Pressionado pelas armas, ele se atirou na água e nunca mais foi encontrado”.

Os três reis viajaram então até Damasco para confirmar a sua submissão: “Áquila foi nomeado rei dos godos, mas em 714 ele viajou com os seus irmãos para Damasco e vendeu o reino para o califa Ualide I (r. 705–715) por terras e dinheiro”. Ardo continuou como um rei-cliente na Provença. Com a morte de Almundo, ele se apoderou da parte dele contra a vontade de seus herdeiros, que foram até a Síria para apelar ao califa. Os sarracenos rapidamente tomaram partido e atacaram Ardo, contudo os herdeiros também jamais recuperaram as suas terras. Um deles se tornou um bispo cristão e a menina, Sarah, aceitou se casar com um sarraceno, entrando para a história como “a mulher goda” da crônica de Ibn al-Qūṭiyya, com um papel importante na Península Ibérica moura. 

Os sarracenos atravessaram as montanhas dos Pirenéus para capturar a Septimânia de Ardo e lá encontraram a dinastia basca da Aquitânia, sempre aliada dos godos. Odo, o Grande da Aquitânia foi a princípio vitorioso na Batalha de Toulouse (ou de Bourdeaux) em 721. As tropas sarracenas gradualmente se acumulavam na região e, em 732, avançaram sobre a Vascônia, derrotando Odo na Batalha do Rio Garonne. Eles tomaram Bordeaux e estavam avançando em direção a Tours quando Odo, incapaz de pará-los, apelou ao seu arqui-inimigo, Carlos Martel, o prefeito dos francos. Em uma das marchas-relâmpago que fariam a fama dos reis carolíngios, Carlos e seu inimigo cruzaram o caminho do inimigo entre Tours e Poitiers, resolvendo definitivamente a questão na famosa Batalha de Tours, parando ali o avanço sarraceno na Europa. Os mouros foram derrotados de forma tão conclusiva que eles recuaram para além das montanhas, jamais retornando, deixando a Septimânia como parte da Frância. Odo pagou o preço e terminou com suas posses incorporadas ao reino de Carlos, uma decisão que era repugnante para ele e para os seus herdeiros. 

Perda e recuperação da Aquitânia

Após a morte de seu filho, Hunaldo se aliou com o Reino Lombardo, uma violação da soberania da Frância. Porém, Odo havia deixado o reino de forma ambígua para os seus dois filhos “conjuntamente”, Hunaldo e Hatoo. Este último, leal à Frância, entrou em guerra com o irmão para se apoderar do reino todo. Vitorioso, Hunaldo cegou e aprisionou o irmão, mas se sentiu tão mal com o ato que renunciou e entrou para uma igreja como monge para se penitenciar. Seu filho, Waifer recebeu a herança adiantada e se tornou duque da Aquitânia, herdando também a aliança com os lombardos. Waifer decidiu honrá-la, repetindo a traição do pai, o que ele justificou argumentando que quaisquer acordos com Carlos Martel teriam se invalidado com a sua morte. Como a Aquitânia agora era herança de Pepino, ele e seu filho, o jovem Carlos, caçaram Waifer, que só tinha condições de conduzir uma guerra de guerrilha, e o executaram. 

Entre os contingentes do exército franco estavam bávaros sob Tassilo III, duque da Bavária, um membro da família Agilofing, herdeiros da família real bávara. Grifo tinha se instalado como duque, mas Pepino o substituiu por um membro da família real, Tassilo, que ainda era um infante, e se tornou o protetor do garoto após a morte de seu pai. A lealdade dos Agilofings sempre foi uma dúvida, mas Pepino conseguiu extrair diversos juramentos de lealdade de Tassilo. Porém, ele se casou com Liutperga, uma filha de Desidério, rei dos lombardos. Num momento crítico da campanha, Tassilo, com todos os seus bávaros, abandonaram a batalha. Fora do alcance de Pepino, ele repudiou a lealdade à Frância.[48] Pepino não teve chance de responder, pois ficou doente e, depois de algumas semanas da execução de Waifer, morreu. 

O primeiro evento do reinado dos irmãos foi a rebelião da Aquitânia e da Gasconha, em 769, no território agora divido entre os dois reis. Anos antes, Pepino já havia suprimido a revolta de Waifer e agora um outro Hunaldo, diferente do anterior, liderou os exércitos da Aquitânia até chegar em Angoulême. Carlos se encontrou com Carlomano, mas ele se recusou a participar, retornando para a Borgonha. Carlos foi à guerra liderando um exército até Bordéus, onde ele montou uma fortaleza em Fronsac. Hunaldo foi forçado a fugir para a corte do duque Lop II da Gasconha (ou Lupus). Este, temendo Carlos, entregou Hunaldo em troca da paz. O rebelde foi colocado num mosteiro e a Aquitânia finalmente se submeteu completamente à Frância. 

Em 781, Luís é coroado em Roma rei da Aquitânia. Este reino da Aquitânia permanece na mesma até à chegada do império de Luís em 814, com duas dependências: o Ducado da Gasconha, no sul da Garona, onde Sancho Lopo sucedeu a Lupo II; o Condado da Septimânia (Narbona, Carcassona), dirigido pelo conde Milo, um visigodo e depois por Guilherme de Tolosa, conde de Toulouse e marquês da Septimânia a partir de 790 em diante. 

A Itália

De todas as guerras de Carlos Magno aquelas em que ele se envolveu contra os Lombardos são as mais importantes pelas consequências políticas e são também aquelas onde se demonstra mais claramente a ligação intimamente ligada à conduta de Carlos, ao seu pai. A aliança com a cúria romana exigida, não só no interesse do país, mas mesmo do rei dos Francos. Pepino, o Breve esperava, no fim do seu reinado, um acordo pacifico com os Lombardos. Em 770, Carlos assinou um tratado com o duque Tassilo III da Bavária e se casou com uma princesa lombarda (geralmente conhecida como Desiderata da Lombardia), filha do rei Desidério, para cercar Carlomano com seus aliados. Embora o papa Estêvão III a princípio tenha sido contrário ao casamento com a princesa lombarda, ele logo perceberia que nada tinha a temer de uma aliança franco-lombarda. Os Lombardos continuaram a atacar Roma e o seu rei conjecturou intrigas perigosas com o duque da Baviera e a propria irmã de Carlos. 

Em 773, Carlos Magno interveio na demanda do papa contra Desisério. O exército franco atravessou os Alpes durante o verão de 773, cercou Pavia (setembro) e ocupou assim facilmente o resto do Reino Lombardo. Pavia esfomeada e vítima de epidemias caiu em 774. Carlos Magno assumiu ele próprio o título de “rei dos Lombardos”: Gratia Dei Rex Francorum et Langobardorum («rei dos Francos e dos Lombardos pela graça de Deus») a 10 de julho de 774 enquanto que certos historiadores afirmam que ele foi proclamado rei pelo arcebispo de Milão que lhe colocou a Coroa de Ferro lombarda na cabeça. Desidério foi enviado como monge na abadia de Corbie e o resto da sua família também foi neutralizada, à excepção de Adalgis que se refugiou em Constantinopla. O ducado de Espoleto submeteu-se à dominação franca e aceitou como duque um protegido do papa, Hildebrando. O ducado de Benevento permaneceu nas mãos de Arigis, genro de Desidério, mas deve fornecer reféns, em particular o seu filho Grimoaldo que foi elevado na corte. Em 776, os Francos conquistam o ducado do Friul. 

Menos de um ano após seu casamento, Carlos Magno repudiou Desiderata e rapidamente se casou novamente com uma garota suábia de 13 anos chamada Hildegarda. A esposa repudiada voltou para a corte de seu pai em Pavia. Os lombardos, furiosos, teriam se aliado com Carlomano, agora rebaptizado Pepino, que foi coroado em Roma rei de Itália, título que não correspondia a um Estado formal. Por seguinte, Pepino assume sob o controlo de Carlos Magno a função de rei dos Lombardos. A principal personalidade do reino é Adalardo, primo de Carlos Magno. Os problemas são assim numerosos: as relações com Arigis e com os bizantinos. 

Assim, o Estado lombardo, desde o nascimento tinha posto um fim à unidade política de Itália, atraindo sobre ela, moribunda, a conquista estrangeira. Ela não era mais doravante que um apêndice da monarquia franca da qual não se devia separar, no fim do século IX, para cair rapidamente sob domínio germânico. Devido a um reverso completo do sentido da história, ela que tinha anexado o norte da Europa era agora mantida anexada por ele; e este destino não está num sentido que uma consequência das mudanças políticas que a tinham transportado do Mediterrâneo para o norte da Gália, o centro da gravidade do mundo ocidental. 

E portanto é Roma, mas a Roma dos papas, que decide a sua sorte. Não vemos o interesse que teria empurrada os carolíngios a atacar e conquistar o Reino Lombardo se a sua aliança com o papado não os obrigasse. A influência da Igreja, libertada da tutela bizantina, que desde então atuou sobre a política da Europa, apareceu aqui pela primeira vez às claras. O Estado não pode doravante separar-se da Igreja. Entre ela e ele forma-se uma associação de serviços mútuos que, misturando-os sem deixar um ou outro, misturando assim as questões espirituais com questões temporais e fazia da religião o factor essencial na ordem política. A reconstituição do Império Romano, em 800, é a manifestação definitiva de esta citação nova e a garantia da sua duração futura 

A Saxónia

Do lado de lá do rio Reno, um poderoso povo conservava ainda, com a sua independência, a fidelidade ao velho culto nacional: os Saxões, repartidos entre quatro grupos (Westphales, Ostphales, Agrivarii, Nordalbingiens) e estabelecidos entre o Ems e o Elba, desde as costas do mar do Norte até as montanhas do Harz. 

Ao contrário dos demais germânicos, é por mar que na época das grande invasões, eles procuram novas terras. Durante todo o século V, os seus barcos inquietaram as costas da Gália assim como as da Grã-Bretanha. Houve estabelecimentos saxões, ainda hoje reconhecíveis na forma de nomes de locais, na foz do rio Canche e do rio Loire. Mas é apenas na Grã-Bretanha que os Saxões e os Anglos, e povos do sul da Jutlândia estreitamente aparentados a eles, se estabelecem de forma duradoura. Eles revoltaram a população celta da ilha nos distritos montanhosos do oeste, Cornualha e país de Gales, onde esta se encontrava muito próxima, e ela emigrará no século VI na Armórica, que portanto adquiriu o nome de Bretanha como a parte conquistada da Grã-Bretanha recebeu o nome de Inglaterra. Estes saxões insulares não conservaram relações com os seus compatriotas do continente. Eles tinham-nos tão esquecidos que na época, tendo sido convertidos por Gregório, o Grande, comprometeram-se na conversão dos Germânicos, e foi para a Alta Alemanha que eles dirigiram os seus esforços. 

A meio do século VIII, os Saxões continentais estavam relativamente preservados da influência romana e cretiana. Durante a romanização dos seus vizinhos ou a sua conversão, as suas instituições e a sua cultura nacional próprias desenvolviam-se e afirmavam-se. O reino franco, do qual eles eram limítrofes, não era capaz de exercer sobre eles o prestigio e a atração cujo Império Romano tinha sido objeto por parte dos bárbaros. Ao lado deste, eles conservaram a sua independência na qual eles tinham tudo o que lhes permitiu pilhar as províncias limítrofes. Eles eram agarrados à sua religião como à marca e à garantia da sua independência. 

Desde 748, eles foram tributários do reino franco. O tributo de 300 cavalos por ano, estabelecido em 758, no entanto não é pago até ao fim do reinado de Pepino, o Breve e o reino é submetido regularmente a incursões saxónicas. 

Carlos Magno fez a sua primeira expedição na Saxónia em 772, destruindo em particular o principal santuário, o Irminsul, símbolo da resistência do paganismo saxónico e local de reunião dos pagãos que lhe faziam uma oferenda após cada vitória. Depois, a partir de 776, após intermédio italiano, iniciou-se uma guerra feroz contra os Saxões, que comandados por Viduquind, um chefe vestefálio, lhes opôs uma vigorosa resistência. Após várias campanhas marcadas pela devastação de diferentes partes da Saxónia e a submissão provisória dos chefes, mas também por um reverso grave dos Francos em 782 em Süntel, além do Weser. Esta derrota leva a uma operação de represálias que termina no massacre de 4500 Saxões em Verden. Widukind acabou por submeter-se em 785 e foi baptizado. 

Carlos Magno impôs então a Capitulaire De partibus Saxoniae (primeiro capítulo saxão), uma legislação de excepção que previa a pena de morte para as numerosas infracções, em particular para toda a manifestação de paganismo (cremação de defuntos, recusa do baptismo para os recém-nascidos). Uma política de deportação dos Saxões e de colonização pelos Francos ocorre ao mesmo tempo. A legislação de excepção chega ao fim em 797 (terceiro capítulo saxão), mas a submissão definitiva só é verdadeiramente atingida em 804. 

Até agora o cristianismo espalhara-se de forma relativamente pacifica entre os Germânicos. Na Saxónia contudo Carlos Magno foi obrigado a usar a força. Daí que as violências contra todos os que sacrificaram aos seus “ídolos” e a fúria que levou os Saxões a defender os seus deuses tornaram-se a proteção das suas liberdades. Para certos milhares de nacionalistas germânicos, a imagem de Carlos Magno é a do “Carrasco dos Saxões” em resultado do massacre de Verden. Assim em 1935, para comemorar o evento, o regime nazi construiu o monumento de Sachsenhain. 

A conquista dos Saxões permitiu igualmente colocar um fim uma vez por todas na ameaça permanente que os Saxões faziam pesar sobre a segurança do reino franco. Uma vez a anexação e a conversão da Saxónia, o último elemento da antiga Germânia, concluídas, a fronteira oriental do Império Carolíngio atinge o Elba e o Saale. Ele dirigia-se desde a cabeça do Adriático pelas montanhas da Boémia e do Danúbio, englobando o país dos bávaros. 

A Península Ibérica

Desde a sua derrota em Poitiers, os muçulmanos não tinham mais ameaçado a Gália. A retaguarda que eles tinham deixado no país de Narbona tinha sido reprimida por Pepino, o Breve. A Península Ibérica, onde haveria de se instalar o emirado de Córdova, já não olharia mais para o Norte e a civilização brilhante lá se espalhou sob os primeiros Omíadas, dirigindo a sua actividade para as instituições islâmicas próximas ao Mediterrâneo. Mas estes progressos tiveram naturalmente por consequência o desviar das suas energias das grandes empresas de proseletismo para as concentrarem sobre si mesmo. Ao mesmo tempo que as ciências se desenvolveram e que e a arte se expandiu, surgiram as querelas religiosas e políticas. A Península Ibérica não foi mais poupada que o resto do mundo muçulmano. 

Aliança com Suleyman Ibn al-Arabi (777)

Em 777, depois da assembleia de Paderborn, na Saxónia, Carlos Magno recebeu os emissários de vários governos muçulmanos de Península Ibérica, incluindo o de Barcelona, em rebelião contra o emirado de Córdoba. Sulayman concordou permitir aos Francos a apreensão de Saragoça. Carlos Magno decide acompanhar e intervir no norte de Península Ibérica, provavelmente não por motivos religiosos ( cartas do papa desta época mostram que este preferia um intervenção em Itália, contra os cretianos), mas sobretudo para segurança da fronteira sul da Aquitânia. 

A expedição de 778

Uma dupla expedição ocorreu na primavera de 778, e durante o verão os dois exércitos reuniram-se antes de Saragoça, mas neste momento, a cidade é mantida por legalistas, contrariamente ao que alegou Suleyman. Ameaçados de uma intervenção do Emir de Córdoba, os Francos levantam o cerco e deixam a Península Ibérica, após terem pilhado Pamplona. Esta falha é aumentada pelo revés muito grave sofrido pela retaguarda de Carlos Magno pelos Vascões, senhores da travessia dos Pirenéus. A emboscada, é principalmente conduzida pelos Bascos, mas é provável que tenham também participado os habitantes de Pamplona e os ex-aliados muçulmanos de Carlos Magno, insatisfeito com um recuo rápido (apresentados por Suleyman os reféns são libertados durante a operação). 

Para os contemporâneos, esta expedição passou um pouco despercebida. A lembrança do conde Rolando morto na emboscada não se perpetuou antes de tudo do que pelas pessoas da sua província, na terra de Coutances. Levou ao entusiasmo religioso e guerreiro que se apreendeu na Europa na época de Primeira Cruzada por fazer de Rolando o mais heróico dos valentes da epopeia francesa e cristã e transformar a campanha na qual ele entrorará a morte numa luta gigantesca contra o Islão por « Carles li reis nostre emperere magne». 

A constituição da Marca Espanhola (785-810)

Depois disso, Carlos Magno não interveio mais pessoalmente na Península Ibérica, deixando o cuidado das operações aos responsáveis militares da Aquitânia, os condes de Toulouse Chorson, depois Guilherme de Tolosa, depois o rei Luís. Apesar de uma derrota sofrida por Guilherme na Septimânia (793), os Aquitanos eram capazes de conquistar quaisquer territórios na Península Ibérica: incluindo Gerona, Barcelona (801), a Cerdanha e Urgel. No entanto, apesar de três tentativas por parte de Luís, eles não conseguem tomar Tortosa. Em 814, Saragoça e o vale do Ebro permanecem muçulmanos, assim por muito tempo. 
Os territórios reconquistados formam a Reconquista da Península Ibérica. 

A Baviera

Desde 748, ela é dirigida pelo duque Tassilo III, neto de Carlos Martel, empossado por Pepino, o Breve a quando da morte do duque Odilo. Contudo Tassilo procurou preservar a sua independência, casando em 763 com Liuteberga, filha de Desidério e futura cunhada de Carlos Magno. Embora Tassilo não tenha intervindo após a campanha contra os Lombardos em 773-774, Carlos Magno esforça-se para reforçar o seu controlo. Tassilo teve de prestar juramento de fidelidade em 781, depois novamente em 787. Em 788, é colocado em julgamento perante a assembleia, condenado à morte, depois perdoado e trancado num mosteiro com a sua esposa e seus dois filhos. Carlos Magno nomeou condes para a Baviera e coloca o seu cunhado Geraldo á frente do exército com o título de prefeito. Em 794, Tassilo comparece de novo perante uma assembleia e proclama a sua renúncia ao trono da Baviera, doravante totalmente integrado no reino franco. 

Os Ávaros

Este povo de cavaleiros, de origem turca, tinha no século VI anexado os Gépidas (com auxilio dos Lombardos) e desde então instalados no vale do Danúbio, de onde assediavam por vezes o Império Bizantino e a Baviera. Em 791, com ajuda do seu filho Pepino de Itália, Carlos Magno conduz contra os ávaros uma primeira campanha. Em 795, ele consegue tomar o seu campo entrincheirado, o “Anel Ávaro”, com um tesouro considerável, fruto de várias dezenas de anos de pilhagem. Em 805, os últimos Ávaros rebeldes são definitivamente submetidos. 

Estas foram as campanhas de extermínio. Os Ávaros foram massacrados ao ponto de desaparecerem muitos indivíduos. A operação terminou, Carlos, para combater as novas agressões, lança em todo o vale do Danúbio uma Marca, como quem diz um território de guarda submisso a uma administração militar. Esta foi a “marca” oriental (marca orientalis), ponto de partida da Austria moderna que ainda conserva o nome. 

Os Frísios

A anexação da Frísia Oriental (a região estende-se do golfo Zuiderzee até à foz do Weser) pelos Francos não ocorreu, aparentemente, antes de 782, ou 785. A situação permaneceu tensa durante vários anos para os Francos. 

Os Bretões

Na Península Armórica, a chegada dos Bretões ocasionada pelo assédio dos povos Anglos e Saxões, propicia a formação dos reinos da Cornualha, de Leon, de Bro Wéroc, além de Domnonée. São esses os reinos que os francos encontram em suas incursões para além de seus limites no Oeste, a Bretanha passa por um rápido período de dominação francesa durante o reinado dos filhos de Clóvis. No século VII apesar da submissão de Judicael, rei de Domnonée, a independência prevalece na região, no entanto os francos mantiveram presentes na Bretanha, pois ainda tinham o controle tributário dos reinos de Nantes e Rennes, e mais tarde conquistaram Vannes. Dessa forma, os francos, sob o comando de Carlos Magno, passaram a possuir uma zona de proteção contra os Bretões que ainda se mantinha independentes. Apesar da influência adquirida na Bretanha, Carlos Magno tinha pouco interesse pelo Ocidente, de modo que a independência da Bretanha é consequência tanto da resistência dos Bretões, quanto da falta de empenho do reino franco, tendo em vista que o rei que sempre tinha a preocupação em se mostrar presente nos fronts de batalha, não chegava a ser visto naquele front, pois a área de domínio Franco na Bretanha tinha mais uma função defensiva, do que papel em uma estratégia expansionista na região. 

Os Eslavos

Antes do final do século VII, os eslavos tinham avançado na Europa Central. Eles tinham tomado posse da terra abandonada pelos Germânicos entre o Vístula e o Elba, pelos Lombardos e os Gépidas na Boémia e Morávia. De lá, eles atravessaram o Danúbio e entraram na Trácia, de onde se espalharam para as costas do Adriático. 

Este lado mais uma vez, foi a segurança do império. Desde 807 outras “marcas” foram estabelecidos ao longo do Elba e do Saale, barrando o caminho às tribos eslavas dos Sorábios e Obotritas. Esta fronteira foi, ao mesmo tempo, como o Reno no quarto e quinto século,ou seja, a fronteira entre a Europa cristã e o paganismo. É interessante para avaliação das ideias religiosas da época, observar que não houve um renascimento momentâneo da escravidão. O paganismo dos eslavos colocava-os, na visão da religião dominante, além da humanidade: aqueles dentre eles que foram capturados eram vendidos como gado. Além disso, a palavra que na maioria das línguas ocidentais significa escravo (esclave, sklave, slaaf) nada mais é do que o mesmo nome do povo eslavo. 

A coroação imperial (25 de dezembro de 800)

A ampliação das fronteiras converteu o Reino dos Francos no mais extenso da Europa Ocidental, reconstituindo em parte, antigos limites do Império Romano do Ocidente, o que atendia as concepções ecumênicas do papado. Daí a coroação de Carlos Magno pelo Papa Leão III, como imperador do Novo Império Romano do Ocidente. 

” Uma nova promessa de eternidade se desenha: graças ao trono de Pedro, o prestígio de Roma não pára de crescer aos olhos dos bárbaros, e particularmente dos francos vitoriosos: quando o Rei quiser restaurar o Império, será em Roma que receberá a Coroa. O império cristão do Ocidente terá então caído nas mãos de um bárbaro; mas esse bárbaro será ele próprio um cristão que restaurará o Império e que todos, no Ocidente, o terão por herdeiro legítimo das tradições romanas.” (Trecho da Epístola ad Hilarium, de Leôncio de Arles. in: FREITAS, G. de op. cit. p 130) 

A situação na Europa Ocidental

Expandida através da conquista no leste do Elba e Danúbio, no sul de Benevento e do Ebro, a monarquia franca no final do século VIII, domina quase todo o Ocidente cristão. Os pequenos reinos anglo-saxões e ibéricos, que ela não absorveu, representam uma quantidade insignificante e lhe prestam provas de deferência o que praticamente equivale ao reconhecimento do seu protectorado. Na verdade, o poder de Carlos estende-se a todos os países e todas as pessoas que reconhecem o Papa de Roma, Vigário de Cristo e chefe da Igreja. Fora isso, ou é o mundo bárbaro do paganismo, ou o mundo inimigo do Islão, ou, finalmente, o velho Império Bizantino, cristão, talvez, mas uma ortodoxia muito caprichosa e de mais a mais agrupavam-se em torno do Patriarca de Constantinopla e deixavam o Papa de lado. A própria ideia de império, está presente nas mentes de muitas pessoas no final dos anos de 790, especialmente em Alcuíno. 

A situação no Império Bizantino

Desde 792, o império é realmente dirigido por Irene, mãe do imperador Constantino VI, mas em 797, ela assume oficialmente o título de basileu, que na sociedade da época é um pouco incongruente, especialmente porque o seu filho morreu pouco depois de ter sido cegado por ordem de Irene. Os círculos carolíngios acreditam que, sob estas condições, a título imperial bizantino já não é válido.

A situação do papado

Segundo Jean Favier, o papa Adriano I, no século VIII, redigiu uma carta para Carlos Magno ao pontuar a aprovação de Deus reinado desse rei. Ou seja, Cristo legitima o reinado de Carlos Magno. Além disso, o papa ainda relaciona o governo de Constantino com o de Carlos Magno ao homologar a cristandade do rei. Apesar das afirmações da Santidade, não foi, nessa circunstância, que haverá a validação do monarca como imperador do ocidente. É válido ressaltar que a ausência do título não influenciará nas políticas adotadas pelo soberano. As medidas adotadas foram influentes nas relações sociais. Posto que, Carlos Magno o encarregado de efetuar a vontade de Cristo. A principal característica do seu governo é ser expansionista, conquistando no século VIII os lombardos e os germanos. Porém, não há certeza sobre a relação dessa conquista com a iniciação do projeto da conquista da Península Ibérica. Conforme Jérôme Baschet, o governo de Carlos Magno será fundamental para restabelecer a maioria das fronteiras do Império do Ocidente. Pode-se relatar que principal motivo da aliança do Reino Franco com a Igreja seria em função de controlar o poder da instituição e sua área de abrangência. Carlos Magno derrota os lombardos. Segundo Favier, a permanência da Igreja Romana estava ameaçada. Por isso, existiu um plano traçado pelos líderes da igreja católica visando a união entre o reino franco e esta instituição.

Carlos Magno forma uma aliança com Papa Adriano I que se fortalecerá com o decorrer dos anos. Esse é um dos principais fatores que favorecem coroação desse rei. A coroação não só é vista como uma restauração do império, mas também como autonomia desse território. Já que, o império do Oriente era o detentor desses reinos. A concepção de restabelecer as antigas fronteiras está relacionada a uma ideia pontifical. A coroação de Carlos Magno beneficiou significativamente a Igreja, em dezembro de 800 dc, no patrimônio de São Pedro. Os principais objetivos do imperador era combater as heresias e consolidar a hegemonia papal. 

O atentado contra Leão III e consequências

Conforme Jean Favier, o papa Leão III não era carismático, porém assumiu o cargo devido à influência dentro do papado. Essa situação desarmoniosa encandeará em um confronto entre a população com os líderes da igreja católica. Contudo, Leão III incitará a repulsa de Pascal, o sobrinho de Adriano I. Visto que, perdeu a função dentro da congregação religiosa. O ofício realizado por Pascal era de mediar o contato com os Francos. Na gestão de Leão III, ele perdeu a ocupação. A consequência dessa ação foi os protestos contra seu regime. Carlos Magno encaminhará um espreitador para saber como estava o governo de Leão III. Quando enviou o Conde Germaire, o pontífice tinha sofrido um atentado. Rumores de que os seus agressores teriam lhe cortado a língua e o cegado, o que revelaria inexato, mas que permitem falar-se de um milagre. Poucos dias depois, ele foi libertado através da intervenção do duque franco Vinigis de Espoleto, que o leva a Espoleto, em seguida, com os missi de Carlos Magno, é organizada uma viagem papal a Paderborn. Os historiadores Jérôme Baschet e Jean Favier relatam a falta de vestígios sobre esse episódio. É evidente que o fato auxiliou a Carlos Magno conquistar a posição de imperador, devido a defesa do patrício na investigação do caso. Com isso, o rei franco era visto como verdadeiro sucessor de Constantino. 

De Paderborn a Roma

Leão III gasta cerca de um mês em Paderborn, encontrando várias vezes Carlos Magno. O conteúdo político das suas discussões é ignorado. Não sabemos, especialmente se a atribuição do título imperial foi discutido. Mas podemos notar que um poema escrito durante esta entrevista, fala sobre Carlos Magno como o Pai da Europa e Aquisgrano como a Terceira Roma. Em qualquer caso, Carlos Magno concorda em ir a Roma para lidar com a disputa entre Leão e os seus oponentes. 

Parece que Carlos Magno tinha planeado uma viagem a Roma no início de 799, antes da crise, já que numa carta Alcuíno pediu para ser dispensado por motivos de saúde. A viagem é confirmada em Paderborn, mas Carlos Magno não se precipita para Roma. Ele dá tempo para Leão restaurar a sua posição em Roma. Também é possível que lhe pareça aconselhável estar em Roma para o Natal do ano de 800. Leão está de volta a Roma, com um acompanhante e alguns dignitários francos no final de outubro de 799; os missi recebem uma reclamação formal contra ele. Uma comissão reúne-se em Latrão e uma investigação é conduzida. No geral, apesar de tudo, a situação de Leão é quase restaurada. 

Carlos Magno passa a primavera e o verão de 800 em viagem na Nêustria, prolonga-se particularmente em Bolonha, que é considerado o problema de defesa costeira, depois em Tours, onde reencontra Alcuíno, mas também Luís da Aquitânia. Depois, então, parte para Itália, uma expedição militar contra o Ducado de Benevento também está sendo considerada. O cortejo pára em Ravena: Pepino é enviado contra Benevento, enquanto Carlos Magno parte para Roma. 

Ele chega aos arredores de Roma, a 23 de novembro. De acordo com o protocolo bizantino, o basileu, se viesse a Roma, devia ser saudado pelo próprio papa, a seis mil quilómetros de Roma. Por isso, é significativo que Carlos Magno, único rei dos Francos e dos Lombardos, seja acolhido pelo papa a 12 milhas, em Mentana. 

Carlos Magno vence Roma, em 24 e estabelece-se no Vaticano, fora dos muros da cidade. 

Dezembro de 800

Após uma semana de cerimónias religiosas e Laudes, Carlos Magno decidiu fazer um julgamento de Leão III e, ao mesmo tempo, aos conspiradores de 799. Uma assembleia de prelados francos e romanos, presidida por Carlos Magno, foi realizada em Saint-Pierre: durou até 23 de dezembro. Os responsáveis pelo ataque, na presença de Carlos Magno, renunciaram a acusar o papa, e cada um tentou culpar os outros. Eles foram condenados à morte, a sentença foi de seguida convertida em banimento. Quanto a Leão III, na ausência de acusadores, Carlos Magno poderia parar por aí. Mas ele impôs-lhe um processo de julgamento por juramento purgatório, um processo germânico. 

O juramento a 23 de dezembro: Leão jura que não cometeu nenhum dos crimes de que é acusado. De seguida, a reunião levantou a questão da adesão de Carlos Magno ao título imperial. Os argumentos utilizados, provavelmente pelos prelados a seguir a Carlos Magno, preocupados com a vaga no trono de Constantinopla e o fato de que Carlos Magno tem sob seu controle as antigas residências imperiais do Ocidente, incluindo Roma, mas também Ravena, Milão, Tréveris. A assembleia saúda estes argumentos e Carlos Magno aceita a honra que lhe é oferecida. 

Estava previsto que uma cerimónia aconteceria a 25 de dezembro, por ocasião da missa de Natal, que normalmente ocorre em São João de Latrão, mas desta vez será realizada na Basílica de São Pedro. 

A Cerimônia de 25 de dezembro

A 25 de dezembro de 800, durante a missa de Natal em Roma, o papa Leão III coroou Carlos Magno como imperador do Ocidente, título em desuso no ocidente desde a abdicação de Rómulo Augusto em 476 (aproveitando o facto de então reinar no Oriente uma mulher, a imperatriz Irene de Atenas, o que era considerado um vazio de poder significativo). O evento realizado, que conta com a presença de líderes políticos e autoridades eclesiásticas se deu da seguinte maneira: Durante a missa o pontífice se aproximou de Carlos, trazendo nas mãos o diadema imperial, para em seguida o coroar como Imperador do Sacro Império Romano. No qual, segundo o autor Jean Favier, o papa se pronuncia e realiza a aclamação inspirada nas Laudes: ” A Carlos, Augusto, coroado por Deus poderoso e pacífico imperador, vida e vitória!” Depois da aclamação o que se tem são aplausos e ninguém se encontra surpreso.Logo, é notório que as aclamações que se seguem à coroação remetem a adesão do povo a uma escolha já firmada pelo diálogo entre o rei e o concílio e já expresso na simbologia do diadema. 

Ele mostra-se irritado dos seus ritos de coroação serem revertidos a favor do Papa. De fato, este último retira-lhe de repente a coroa sobre a cabeça enquanto ele reza, e só então o faz aclamar e se ajoelha diante dele. Uma maneira de dizer que é ele, o papa, que faz o imperador – o que antecipa as muitas querelas dos séculos seguintes entre a Igreja e o império. De acordo com Eginardo, biógrafo de Carlos Magno, o imperador ficou furioso fora da cerimônia: ele teria preferido que se seguisse o ritual bizantino, ou seja, aclamação, coroação e, finalmente, a adoração – ou seja, de acordo com os Anais Reais, o ritual de prosquínese (prostração), o papa ajoelha-se diante do Imperador. É de lembrar este episódio com que Napoleão se preocupa, mil anos mais tarde, na sua coroação na presença do Papa, em que coloca em si mesmo a coroa na cabeça. 

Em 813, Carlos Magno tinha mudado a favor de seu filho Luís, o Piedoso, a cerimónia que o tinha ferido: a coroa foi colocada sobre o altar e Luís colocou-a na sua cabeça, sem a intervenção do papa. Esta inovação, que mais tarde desapareceu, não alterou o caráter do império. Voluntária ou involuntariamente, ele permaneceu uma criação da Igreja, algo de fora e acima do monarca e da dinastia. Era em Roma que era a origem e era o papa o único disponível como sucessor e representante de São Pedro. Assim como ele detém a sua autoridade do apóstolo, é em nome do apóstolo que ele confere o poder imperial. 

Ainda que o título o ajudasse a afirmar a sua independência em relação a Constantinopla, Carlos Magno apenas o usou bastante mais tarde, já que receava ficar dependente, por outro lado, do poder papal.

A reação bizantina

Mas o Império Bizantino se recusa a reconhecer a coroação imperial de Carlos Magno, vêem-na como uma usurpação. Carlos e os seus conselheiros argumentam que o Império do Oriente depois de ter caído nas mãos de uma mulher, a Imperatriz Irene de Bizâncio, isso equivale a uma inativação pura e simples do título imperial, o que não pode ser assumida por um homem. Irene procura a paz com os francos, mas a coroação de Carlos Magno como imperador romano é vista em Constantinopla como um acto de rebeldia. No outono de 801, ela propõe a Carlos Magno um projecto de união conjugal para reunificar o Império Romano mas a aristocracia bizantina, hostil a Irene, vê neste projecto um ato de sacrilégio, e organiza um golpe de Estado, em outubro de 802 contra a imperatriz. 

Com o tratado de paz de Aquisgrano, em 812, o imperador do Oriente Miguel I Rangabe dignou adornar Carlos Magno com o título de Imperador , mas usando fórmulas desviadas evitando pronunciar-se sobre a legitimidade do título, tal como “Carlos, Rei dos Francos (…), chamado a si imperador.” É o imperador bizantino Leão V, o Arménio que realmente aceita reconhecer-lhe o título de Imperador do Ocidente em 813. 

A teoria carolíngia do império

Carlos Magno considera que a dignidade imperial não lhe é conferida como título pessoal, por seus feitos, e não se espera que seu título que lhe sobreviva. Nos seus actos, o título soberano de “imperador governante do Império Romano, rei dos Francos e Lombardos” (Karolus serenissimus augustus, a Deo coronatus, magnus et pacificus imperator Romanum gubernans Imperium, qui et per misericordiam Dei rex Francorum e Langobardorum). No seu testamento, no ano de 806], ele dividiu o império entre seus filhos, de acordo com o costume franco, e não faz nenhuma menção à dignidade de imperador. Só em 813, quando tem apenas um filho sobrevivente, o futuro Luís, o Piedoso, é que Carlos Magno decide no seu testamento a manutenção de todo o império e o título imperial. 

De acordo com os estudiosos da época, como Alcuíno, o príncipe ideal deve ter um propósito religioso, e lutar contra os hereges e pagãos, inclusive através das fronteiras. Mas também deve ter um propósito político: não só contentar-se com a dignidade real, tornar-se imperador do Ocidente. Leão III vai nessa direcção, mas para ele prevalece o poder espiritual sobre o poder temporal, o que explica a organização na coroação de Carlos Magno. 

Com esta coroação, Carlos Magno é agora apresentado como um “novo David”, um Christus Domini (um “rei-sacerdote”). 

Fim do reinado

O seu filho Pepino da Itália morreu em 810 e o mais jovem Carlos em 811. Em 813, ele foi apanhado, por cinco concílios provinciais, uma série de disposições relativas à organização do Império. Eles foram ratificados no mesmo ano por uma assembleia geral convocada em Aquisgrano, na qual ele teve a precaução de colocar ele mesmo a coroa imperial na cabeça de Luís, o único sobrevivente dos seus filhos. 

Carlos Magno morreu a 28 de janeiro de 814 em Aquisgrano, de uma doença aguda que parece ter sido uma pneumonia. 

Segundo Éginhardo, Carlos Magno não teria deixado nenhuma indicação relativa ao seu funeral, após as cerimónias fúnebres simples na Catedral de Aquisgrano (embalsamamento e sepultamento antes da cerimónia durante a qual uma “efígie viva” provavelmente colocada em seu caixão para o representar), ele foi enterrado numa cova no mesmo dia sob o pavimento da Capela Palatina. O monge Adémar de Chabannes, na sua Chronicon, crónica escrita entre 1024 e 1029, torna este funeral mais faustoso, criando o mito de um Otão III, que encontrou uma adega abobadada na qual o Imperador “com a barba que flui” está sentado num banco de ouro, revestido com as suas insígnias imperiais, cingindo a sua espada de ouro, com as mãos um Evangelho de ouro, e sobre a sua cabeça uma coroa com um pedaço da Cruz Verdadeira. Em 1166, Frederico Barba Ruiva, depois de obter a canonização de Carlos Magno, faz abrir o túmulo para depositar os seus restos mortais num sarcófago de mármore onde diz “sarcófago de Proserpina”, a 27 de julho de 1215 Frederico II começa um segundo translatio num sarcófago de ouro e em prata. Segundo a lenda, durante a exumação, foi encontrado pendurado no pescoço de Carlos Magno o talismã, que ele sempre usava. 

Após a sua morte em 814, o seu vasto império é delimitado a oeste pelo oceano Atlântico (excepto a Bretanha), a sul pelo rio Ebro, na Península Ibérica, pelo Volturno, em Itália; a leste pela Saxónia, o Rio Tisza, no sopé dos Cárpatos e o Oder; a norte com o mar Báltico, o rio Eider, mar do Norte e o canal da Mancha. 

Aspectos gerais do reinado

Numa observação mais de perto, vê-se que o reinado de Carlos Magno não é apenas a continuação e como um prolongamento do reino de seu pai Pepino, o Breve. Sem originalidade lá aparece: aliança com a Igreja, luta contra os pagãos, lombardos e os muçulmanos, transformações governamentais, preocupação em despertar de seus estudos de descanso, tudo isso já germina em Pepino. Como todos os grandes agitadores da história, Carlos não fez mais do que activar a evolução das necessidades sociais e políticas impostas no seu tempo. O seu papel encaixa-se tão completamente com as novas tendências de seu tempo, que ele parece ser o instrumento e é muito difícil distinguir no seu trabalho o que é pessoal do que é o jogo de circunstâncias. 

As relações diplomáticas

Califado Abássida de Bagdá

Estas relações levantam a questão de “Relações com o Islão”; parece que, de fato, os francos, mesmo clérigos, não percebiam neste época os muçulmanos do ponto de vista religioso. O Islão é muito conhecido e mais ou menos equiparado ao paganismo. 

Enquanto existe uma tensão entre os francos e do Emirado de Córdoba, que controla a Península Ibérica e realiza os ataques a contra Aquitânia, Carlos Magno tem boas relações com o califa abássida de Bagdá, Harune Arraxide, seu aliado de fato contra o emirado, mas também contra o Império Bizantino. Note-se que os Anais chamam [Harune Arraxide, e às vezes o apresentam como “rei dos persas.” Uma primeira embaixada é enviada por Carlos Magno em 797, a propósito do acesso aos lugares santos de Jerusalém. 

Harune responde com uma embaixada que chegou a Itália em 801, portanto, por uma feliz coincidência, logo após a coroação imperial, com notáveis presentes: entre outros, um elefante branco chamado Abul-Abbas, que acompanhou Carlos Magno até à sua morte em 810. O califa também garante a plena liberdade aos peregrinos cristãos. Outra embaixada de Harune ocorre em 806, desta vez com um relógio hidráulico. 

A administração do império

Reduzindo os recursos das áreas privadas, o Imperador não poderia atender às necessidades de uma administração digna desse nome. Na falta de dinheiro, o Estado é obrigado a usar os serviços gratuitos da aristocracia, cujo poder não pode crescer se o Estado estiver enfraquecido. Para evitar este perigo, no final do século VIII, um juramento especial de fidelidade, semelhante à dos vassalos, é exigido aos condes no momento da sua entrada no suporte. Mas a cura é pior do que a doença. De fato, o vínculo de vassalagem, que liga o empregado à pessoa do soberano, enfraquece ou até mesmo cancela a natureza pública do oficial. Faz com que ele, além disso, considere a sua função como um feudo, ou seja, como um bem em que ele tem prazer e não como um poder delegado pela Coroa e exercido em seu nome. O Império passou a ser administrado pelos Condes, Duques e Marqueses. O Conde era responsável pela cobrança de impostos e multas e também de cumprir as leis. Para os Duques foi designada a tarefa da formação militar. Os Marqueses cuidavam das fronteiras das regiões. Em cada um desses distritos, dois enviados imperiais, emissários, seculares e eclesiásticos, ficavam responsáveis por monitorar os funcionários, observando os abusos, entrevistar as pessoas e realizar um relatório anual sobre a sua missão; eram os Missi Dominici. Nada mais benéfico que uma instituição deste tipo, no entanto, desde que esta tenha o poder de sancionar. Agora, ela não tem nenhum porque os funcionários são praticamente inamovíveis. É descoberto este vazio pelos Missi Dominici que conseguiram endireitar as falhas que eles tinham por toda a parte; a realidade era mais forte do que a boa vontade do imperador. 

Espelhando-se em Constantino, Carlos Magno cria uma série de medidas (Capitular geral). Faz a revisão sistemática das leis (Capitulares) nacionais, uma vez que lhes garante gozar plenamente de seus direitos como Imperador e não mais como um rei. Faz também reformas de cunho moral tanto para a Igreja quanto para os homens, na qual, essas reformas eram acompanhadas de uma enorme repressão e severidade para aqueles que não seguirem. Para Carlos Magno, Constantino continua sendo o modelo de imperador ideal. Observa-se também um grande comércio dos povos vizinhos ao Império (muçulmanos, escandinavos) o que deu início a uma reorganização monetária, deixando de lado o ouro e passando a cunhar moedas de prata. 

Em 802, numa assembleia em Aix, depois de uma longa conversa com seus conselheiros, ele criou um programa de governo que incluía a reforma da Igreja e também do Estado. Quatro anos depois, em 806, temendo haver guerra entre seus filhos depois que ele morresse, Carlos Magno faz a partilha dos territórios do império (Divisio regnorum) entre seus herdeiros. Essa Ordinatio regni (As indicações do reino) deveria evitar o esfacelamento da unidade imperial, uma vez que não iria dividir em reinos independentes, mas sim, criar governos locais regidos por seus filhos; parecido com a reforma empreendida pelo Diocleciano no século IV. “É-nos um pouco difícil compreender essa construção política (…) trata-se agora de um reino em três reinos” [pg 500/501]

Outra grande reforma administrativa feita por Carlos Magno, desrespeita a criação de uma sede fixa que viria a substituir os palácios de Pepino em Attigny e Paderborn. O Imperador fez de Aix a capital do império e, mais que uma transferência de sede, ele criou uma conjuntura política favorável parar reger o império. A aristocracia local estabeleceu-se em volta. Ou seja, ele não precisaria mais fazer longas e cansativas viagens quando fosse necessário. Outro feito importante desse imperador foi a criação de um espaço destinado a um centro de estudo. De início, esses centros eram reservados em catedrais e monastérios e com um objetivo bem explícito: difundir a literatura cristã. 

Os capítulos, que constituem a maior parte do trabalho legislativo de Carlos Magno que chegaram até nós, são as diretrizes desenvolvidas na corte durante os grandes encontros chamados de plaid. Tomando como modelo as decisões proferidas pelos conselhos, eles formulam ensaios de reformas, tentativas de melhoraria, ou inclinações para inovar em todas as áreas da vida civil ou administração. Assim, Carlos Magno introduziu na corte do palácio, em vez do procedimento formal do direito germânico, o procedimento para a investigação que ele emprestou aos tribunais eclesiásticos. 

Para a maioria, no entanto, os conteúdos dos capítulos indicam sobretudo um programa de reformas eficazes e inúmeras decisões que estão longe de estarem todas feitas. Aqueles que estavam, por exemplo, a imposição de cortes vereadoras estavam longe de ter penetrado em todas as partes do Império. As forças da monarquia não foram à altura das suas intenções. O pessoal de que se dispunha era insuficiente e, mais importante, estava em poder aristocracia um limite que não se poderia atravessar ou suprimir. 

A política religiosa

Carlos Magno assume o poder dos Francos. O seu governo será fundamental em relação à união da Igreja e a monarquia Franca. A principal característica do seu governo é ser expansionista, conquistando no século VIII os lombardos e os germanos. É válido ressaltar que não há certeza sobre a relação dessa conquista com a iniciação do projeto da conquista da Península Ibérica. Apesar dessa situação duvidosa, Jérôme Baschet afirma que o governo de Carlos Magno será fundamental para restabelecer a maioria das fronteiras do Império do Ocidente. Pode-se relatar que principal motivo da aliança do Reino Franco com a Igreja seria em função de controlar o poder da instituição e sua área de abrangência. 

O ano 800 dc será o ápice dessa aliança. Já que, vai legitimar Carlos Magno como imperador do Ocidente. Pode-se relatar que principal motivo da aliança do Reino Franco com a Igreja seria em função de controlar o poder da instituição e sua área de abrangência. Além de ser uma das razões do rompimento com o bispo de Constantinopla. O historiador argumenta que a ruptura só foi possível pelo o enfraquecimento de Constantinopla devido a coação muçulmana e ao conflito das questões iconoclastas. Os motivos do enfraquecimento do império do Oriente estão relacionados nas questões religiosas e nas questões políticas. O historiador Paul Lemerle expõe que as causas religiosas estão associadas a necessidade da religião de se purificar. Posto que, o paganismo estava vinculado ao culto das imagens. Em relação, aos fatores políticos, se relacionam com o modo de evitar que o Islamismo fascinasse o império. Com a ocupação de Irene a posição de imperatriz regente, o caos piorou. Uma vez que, a imperatriz incluía nas suas normas o restabelecimento do culto as imagens. 

Em paralelo a essa situação, o império bizantino não reconhecia Carlos Magno como imperador e, por outro lado, o mesmo não reconhecia o governo ocupado por uma mulher. Como forma de resolver esse caso, a volta da união dos impérios era uma proposta citada. Isso se daria por meio de um matrimônio. Contudo, esse acordo não pode ser firmado, devido a conspiração que destronou a imperatriz Irene e colocou Nicéforo na posição. É válido ressaltar que Carlos Magno tem desempenhado um papel importante no funcionamento da Igreja Católica. As suas principais ações foi o atendimento das necessidades papal, como a difusão dos mosteiros, o dízimo obrigatório. 

A política econômica

Com a unidade imperial estabelecida, acontece uma elevação dos níveis de desenvolvimento e um grande salto demográfico. Em detrimento desse salto, observa-se a volta de um grande comércio dentro e fora do império. Grandes mercadores voltam a adentrar no território para abasteceras cortes imperiais com produtos provenientes do Oriente. Por conta desse fluxo comercial, o imperador é obrigado a fazer uma reorganização na moeda. Carlos Magno renuncia à cunhagem de moedas de Ouro e passa para um sistema de cunhagem de moedas de Prata; uma vez que, era um metal em maior número e maior adaptado as trocas. “A libra de prata é, então, fixada em 491 gramas (50% a mais que na Antiguidade), com sua divisão em vinte soldos de doze denários cada um, que serão a base da organização monetária durante toda a Idade Média.” [pp 73–74] O relatório que fixa as moedas permaneceu em uso em toda a Europa continental até à adopção do sistema métrico e na Grã-Bretanha até 1971, a unidade é a libra (até 1971 dividida em vinte shillings, cada um com doze pênis). Só o dinheiro é moeda real: a moeda e a libra são utilizados apenas como moeda de conta, e seria assim até às reformas monetárias do século XII.[76] O dinheiro de prata, a moeda única do Império Carolíngio, é o modelo direto ou indireto de cunhagem ocidental produzido a partir do nono para o décimo terceiro século.

Continuando as reformas iniciadas pelo seu pai, Carlos Magno avançou com um sistema monetário baseado no soldo de ouro – procedimento seguido também pelo rei Offa de Mércia. Instituiu um novo padrão monetário a partir de unidades de medida como a libra e o próprio soldo que eram, até à data, apenas unidades de medida (apenas o dinheiro se manteve como uma das moedas do seu domínio). Note-se que o sistema monetário inglês antes da decimalização tem semelhanças com este: efetivamente, a libra inglesa (pound) valia 20 xelins (analogamente aos sólidos de Carlos Magno) ou 240 pênis (de forma semelhante aos dinheiros instituídos por este imperador). 

Carlos Magno aplicou este sistema a uma grande parte do continente europeu, enquanto que o padrão de Offa foi voluntariamente adaptado pela maior parte do território inglês. O que restou do imposto romano desapareceu no final da época merovíngia ou transformou-se em direitos usurpados pelos grandes. Duas fontes ainda alimentam o tesouro imperial: uma intermitente e imprevisível: os despojos de guerra; outra permanente e regular: as áreas de renda pertencentes à dinastia. Esta última apenas é susceptível de proporcionar as necessidades atuais. Carlos ocupou-se cuidadosamente e o Capitulaire De Villis prova pela minúcias de detalhes, a importância que dava à boa administração da sua propriedade. Mas o que lhe trouxeram, eram prestações em espécie, apenas o suficiente para abastecer o Tribunal. Na verdade, o Império Carolíngio não tem as finanças públicas e basta observar este fato para apreciar como a sua organização é rudimentar quando comparada com a do Império Bizantino e do Califado Abássida com os seus impostos levantados em dinheiro, o seu controle financeiro e a sua centralização fiscal que prevê os salários dos funcionários, obras públicas, a manutenção do exército e da marinha. 

As transformações na sociedade rural e o feudalismo

A partir de 800, as campanhas militares tornam-se mais raras e o modelo económico franco baseado na guerra deixa de ser viável. É baseado em mão-de-obra alternativamente combatente ou servil onde a agricultura ainda é largamente inspirado no modelo do antigo escravo. Mas estes escravos têm baixa produtividade, não só porque eles não estão interessados nos resultados do seu trabalho, mas porque são caros na época. Em tempos de paz, muitos homens livres que optam por depor as armas para trabalhar a terra, tornam-na mais rentável. Eles confiam a sua segurança a um protector contra as tropas de reabastecimento ou de sua casa. Alguns conseguem manter a sua independência, mas a maioria cede as suas terras ao protector, e tornam-se exploradores de manso, por conta deste último. 

Por outro lado, os escravos são emancipados a servos, dependentes de um senhor a quem pagam uma taxa e se tornam mais rentáveis. Este evolução é ainda melhor porque a Igreja condena a escravidão entre os cristãos. A diferença entre camponeses livres e aqueles que não o são atenua-se. 

A renascença carolíngia

Segundo o historiador Jérôme Baschet, o renascimento carolíngio não é igual ao renascimento do século XV e XVI. Visto que, a renascença carolíngia está relacionada ao cristianismo. Carlos Magno assume o poder dos Francos. O seu governo será fundamental em relação à união da Igreja e a monarquia Franca. A principal característica do seu governo é ser expansionista, conquistando no século VIII os lombardos e os germanos. É válido ressaltar que não há certeza sobre a relação dessa conquista com a iniciação do projeto da conquista da Península Ibérica. Apesar dessa situação duvidosa, Baschet afirma que o governo de Carlos Magno será fundamental para restabelecer a maioria das fronteiras do Império do Ocidente. Pode-se relatar que principal motivo da aliança do Reino Franco com a Igreja seria em função de controlar o poder da instituição e sua área de abrangência. Carlos Magno derrota os lombardos. Esse é um dos principais fatores que favorecem a sua coroação. A coroação não só é vista como uma restauração do império, mas também como autonomia desse território. Já que, o império do Oriente era o detentor desses reinos. A concepção de restabelecer as antigas fronteiras está relacionada a uma ideia pontifical. A coroação de Carlos Magno beneficiou significativamente a Igreja, em dezembro de 800 dc, no patrimônio de São Pedro. 

Os principais objetivos do imperador era combater as heresias e consolidar a hegemonia papal. Além de fazer Carlos Magno o imperador dos territórios cristãos, englobando bizâncio. O império Bizantino não reconheceu a coroação de Carlos Magno, causando conflitos entre esses dois territórios. Durante no início do IX, a proposta de paz foi por meio de um casamento político. Porém, a imperatriz Irene foi deposta, assumindo, assim, Nicéforo. A situação só será pacificada no governo de Miguel I. O novo imperador do Oriente reconhecerá a restauração do ocidente devido a posse do território da Dalmácia e de Veneza. É importante salientar que, apesar de ter reconhecido o império do ocidente, não acontecerá sua transferência. Recapitulando o contexto da coroação de Carlos Magno, esse chefe foi o grande transmissor da cristandade, ao englobar a função de tutor da religião cristã. O governo franco é teocrático. Posto que, existia a vinculação entre os princípios seculares e os fundamentos sagrados. Um dos grandes apoiador do império do ocidente será Alucuíno, a admitir que esse território é um império cristão. Visto que, possuía a concepção que Carlos Magno seria o responsável de orientar a sociedade cristã. Além de compreender que a proteção de Carlos Magno estava vinculada a um poder superior. Uma vez que, foi Deus proverá o poder supremo sobre as outras sociedades. 

É válido ressaltar que Carlos Magno transfigura-se no notável governante franco. Além de delinear a renascença carolíngia. Essa reforma foi motivada pela restauração do império. Visto que, a restituição do território manifestava-se pela reforma cultural. As características da renascença abrangiam uma transformação dos hábitos e um maior grau da composição acadêmica. Além de homologar os assuntos abordados nos colégios e de aplicar os livros corrigidos como base, para ver suas edições alteradas. O imperador ocidental criará inúmeras escolas eclesiásticas, como forma de elaborar uma política de proteção a Igreja e de propagação dos seus ideais. Como o clero não realizava suas atividades de forma efetiva, as escolas foram criadas com o objetivo prosperar a “qualidade” cultural a fim de alcançar contribuintes preparados para administrar o território. Essa reforma educacional não surgiu do nada. Mas, se originou por meio de atividades de alguns eclesiásticos em diversos reinos ocidentais. A prática pode ser vista no território Britânico. Os clérigos se fixavam no território irlandês e no anglo-saxão visando transmitir os aspectos letrados a fim de implantar meios para a existência de características da transformação. 

objetivos dessa deslocação estava relacionadas a missão evangelizadora. Um dos seus princípios era propagar o latim, conservando sua autenticidade e seu rigor. Além de ter como proposta fazer os povos entender as Sagradas Escrituras. Essa análise era fundamental para esclarecer a explicação exposta na bíblia. A maior parte das escolas está associada aos mosteiros beneditinos. A regra da beneditina é um pré-requisito para as escolas funcionarem. Por meio dessa instituição, as universidades são formadas. Os principais intelectuais da época eram Alcuíno e Aquiléia. O primeiro religioso citado foi um dos principais contribuintes para a existência da renascença carolíngia, participando da restauração e da correção dos manuscritos, da propagação cultural e do remodelamento clerical. O monge Alcuíno será fundamental na reforma da educação. Além de uma das suas produções ser a remodelagem da bíblia. Estabeleceu em Aquisgrano uma escola palatina para formar a futura elite secular e religiosa. Ela colocou em prática um programa de educação abrangente sobre a estrutura das sete artes liberais e promoveu a poesia na sua academia palatina. Em suma, o renascimento carolíngio é a antítese da própria Renascença, visto que O renascimento carolíngio exclusivamente eclesiástico e cristão, voltou-se especialmente aos modelos mais antigos do estilo. O estudo é justificado apenas para fins religiosos e os clérigos carolíngia não escrevem mais do que a glória de Deus. Os Scriptorium prosperaram em mosteiros carolíngios. O sucesso destas oficinas de cópia foi possível graças à invenção de uma nova escrita, a minúscula carolíngia, que ganhava visibilidade porque as palavras são separadas umas das outras, e as letras melhor desenhadas. 

Reforma na educação

Para unificar e fortalecer o seu império, Carlos Magno decidiu executar uma reforma na educação. O monge inglês Alcuíno elaborou um projeto de desenvolvimento escolar que buscou reviver o saber clássico estabelecendo os programas de estudo a partir das sete artes liberais: o trivium, ou ensino literário (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium, ou ensino científico (aritmética, geometria, astronomia e música). A partir do ano 787, foram emanados decretos que recomendavam, em todo o império, a restauração de antigas escolas e a fundação de novas. Institucionalmente, essas novas escolas podiam ser monacais, sob a responsabilidade dos mosteiros; catedrais, junto à sede dos bispados; e palatinas, junto às cortes. 

Essa reforma ajudou a preparar o caminho para o Renascimento do século XII. O ensino da dialética (ou lógica) foi fazendo renascer o interesse pela indagação especulativa, dessa semente surgiria mais tarde a filosofia cristã da escolástica; e nos séculos XII e XIII, muitas das escolas que haviam sido fundadas nesse período, especialmente as escolas catedrais, ganharam a forma de universidades medievais. 

Geneologia de Carlos Magno

Descendência

Esposas

• De sua primeira esposa, Himiltrude, com quem casou em 766 e cujo casamento nunca foi oficialmente anulado, teve:

1. Amaudru, uma menina 
2. Pepino, o Corcunda (767-813)

• Do seu segundo matrimónio, com a filha de Desidério, rei dos Lombardos, referida como Desiderata ou Desidéria (o nome “Ermengarda” seria uma criação de Alessandro Manzoni), cujo casamento se deu a 768 e foi anulado a 771, não houve descendência.
• De sua terceira esposa,Hildegarda de Vintzgau(757 ou 758-783 784), com quem casou em 771 e que morreu a 784, e foi filha de Geroldo I de Vintzgau e de Ema da Alemanha, teve:

1. Carlos, o Jovem (c. 772 – Baviera, 4 de dezembro de 811), que foi designado rei dos Francos, casou com Juliana;
2. Adelaide (?-774)
3. Rotruda (ou Hruodrud) (775- 6 de junho de 810), manteve relações com Rorgo I do Maine e dele teve dois filhos e uma filha. Rotrude terá sido monja no fim da sua vida. Noiva desde durante 6 anos de Constantino VI, filho da imperatriz Irene.
4. Pepino de Itália (777-810), rei de Itália desde 781, teve várias amantes, cujos nomes não são totalmente conhecidos, e cuja ascendência não é igualmente totalmente conhecida. Entre as suas relações é tido como tendo casado com Berta de Toulouse, filha de Guilherme I de Toulouse, conde de Toulouse e de uma das suas esposas, possivelmente de Guiburga de Hornbach.
5. Luís I o Piedoso (778-840), gémeo de Lotário, rei da Aquitânia desde 781 e imperador e rei dos Francos desde 814]],
6. Lotário (778-779 ou 780), morreu jovem, foi irmão gémeo de Luís I o Piedoso,
7. Berta de França (779-823), foi casada com Angilberto de Ponthieu.
8. Gisela (781-808)
9. Hildegarda (782-783)

• De sua quarta esposa, Fastrada da Francónia, com quem casou em 784, e que viria a morrer em 794, teve:

1. Teodrada (n.784), abadessa de Argenteuil;
2. Hiltruda (n.787), abadessa em Faremoutiers.
• Da sua última esposa, Lutgarda, com que casou em 794, e que viria a morrer em 800, não houve descendência.

Concubinas e filhos varões

• A sua primeira concubina conhecida foi Gersuinda. Dela, teve uma filha:

1. Adaltruda (n.774)
• Da sua segunda conhecida concubina, Madelgarda:
1. Rodaida (775-810), abadessa de Faremoutiers
• Da sua terceira concubina, de nome desconhecido:
1. Rotaida (784-814)
• Da sua quarta concubina, Amaltrud de Viena:
1. Alpaida (n.794)
• Da sua quinta conhecida concubina, Regina:
1. Drogo (801-855), bispo de Metz desde 823
2. Hugo (802-844), grão-chanceler do império
• Da sua quinta conhecida concubina, Adelinda:
1. Teodorico (n.807)

A distinção entre esposas e concubinas legítimas e oficiais é às vezes difícil de se estabelecer. Os historiadores identificam cinco ou seis esposas, ou “nove esposas ou concubinas, outros amores menos relevantes e menos duráveis, uma multidão de bastardos, a licenciosidade das suas filhas, que ele parece ter amado também.” Não se pode dizer que ele praticava a poligamia, proibida pelos Francos, mas sobretudo uma monogamia serial e casamento para forjar alianças, especialmente com a aristocracia Franca do Oriente, ou melhor, para manter alguns aristocráticos da Francónia que se ressentiam da usurpação de Pepino, o Breve olhos – nos – olhos de Quilderico III.[83] Eginardo menciona rumores de incesto de Carlos Magno com as suas filhas, ao dizer que ele “não queria dar a ninguém em casamento, nem a um homem da sua casa, nem a um estrangeiro, mas ele as manteve todas em casa, com ele, até que ‘na sua morte, dizia que não poderia viver sem a sua companhia. Mas porque, aquele que estava preenchido também teve de suportar a malícia de um destino contrário: no entanto, não o demonstra e fez como se sobre eles, nenhuma suspeita de incesto nunca tinha visto o dia, como se nenhum rumor se tenha espalhado”. Este rumor de incesto é um mito nascido do fato de Carlos Magno não querer casar oficialmente as suas filhas com aristocratas ou seus vassalos que poderiam diluir o seu legado ou adquirir também poder. Pelo contrário, ele permitiu que várias delas forjarem uniões ilegítimas mas quase oficiais e os amantes delas podiam até ser funcionários da Corte, como Angilberto que viveu dois anos com Berta e com quem teve dois filhos. Carlos Magno também o fez casar-se secretamente com a sua filha. 

Os nomes de Carlos Magno

O verdadeiro nome de Carlos Magno é Karl, transcrito em latim Carolus (latim clássico) ou Karolus (uso de chancelaria franca , moeda, etc.). Este nome de Karl vem da palavra, em alto alemão antigo, Karal, que significa “homem” (do sexo masculino). 

Carlos Magno é a transcrição francesa de Carolus Magnus (“Carlos, o Grande”). Desde a época de Carlos Magno, encontra-se em alguns textos Karolus seguido de magnus, mas este último em posição de adjetivo em relação a um outro nome: Karolus magnus rex Francorum (“Carlos, o grande rei dos francos”), Karolus Magnus imperator (“Carlos, o grande imperador”). O uso de Carolus Magnus mais curto é uma denominação literária, cujo primeiro exemplo é em um texto Nithard (cerca de 840), várias décadas depois da morte do requerente. Esse epíteto está gradualmente generalizado nos documentos da Chancelaria dos Breves Apostólicos. 

Na Canção de Rolando, em francês antigo, o imperador é nomeado de diferentes formas: Carles (verso 1) ou Charles (28, verso 370), Carles li magnes (68, verso 841) ou Charles li Magnes (93, verso 1195), tradução de Carolus Magnus, mas também Carlemagnes (33, verso 430) ou Charlemaignes (138 verso 1842). O adjetivo grant é comum na Canção de Rolando, mas não é usado para nomear o imperador. Depois disso, é a forma contraída que surgiu: a fórmula “Charles, o Grande” é rara em uso corrente, ao contrário da alemã (Karl der Große). Quanto ao nome de seu irmão Carlomano, é uma transcrição Francesa de Karlmann em que Mann também significa “homem”; o “-mano” de Carlomano, portanto, não tem nenhuma ligação com o “-magne” de Carlos Magno. 

Além disso, assim como em alemão e nas outras línguas, “César” (Kaiser) tornou-se sinónimo de imperador, o nome de Carlos Magno, sob a forma de Karl ou Karolus, levou em Húngaro (király) e nas línguas eslavas ao significado do rei: король (“korol”) em russo, král em checo, Król em poloco, kralj em croata, etc. 

Veja mais:

O monograma de Carlos Magno

Os historiadores Bruno Dumézil e Martin Gravel consideram-no como iletrado mas não analfabeto: os diplomas reais emitidos pelo imperador não contêm qualquer assinatura manuscrita Eginardo também sugere que ele nunca soube escrever (apresentando a vida do Imperador desde dia em que parece mais lisonjeiro, o autor da primeira biografia de Carlos Magno certamente não hesitaria em mencioná-lo), apenas dizendo que ele estava tentando ler. Para permitir assinar algo mais do que sinal que não seja uma simples cruz, Eginardo ensina-lhe a desenhar este sinal simples, um monograma, que contém todas as letras do seu nome em latim Karolus. Consoantes são sobre os braços da cruz, as vogais contidas no losango central (A em cima,O é o losango, U é a metade inferior). No entanto, ainda se debate sobre se Carlos Magno é realmente o autor de seu monograma, apenas a parte central seria escrito por ele mesmo, as outras letras são obra de um secretário.

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Augusto https://canalfezhistoria.com/augusto/ https://canalfezhistoria.com/augusto/#respond Sun, 09 Mar 2025 12:56:00 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5742 Augusto (em latim: Gaius Iulius Caesar Octavianus Augustus; Roma, 23 de setembro de 63 a.C. – Nuvlana, 19 de agosto de 14) foi o fundador do Império Romano e seu primeiro imperador, governando de 27 a.C. até sua morte em 14 d.C.. Nascido Caio Otávio, pertenceu a um rico e antigo ramo equestre da família plebeia dos Otávios. Depois do assassinato de seu tio-avô Júlio César em 44 a.C., o testamento de César nomeou Otávio como seu filho adotivo e herdeiro.

Junto com Marco Antônio e Lépido, formou o Segundo Triunvirato e derrotou os assassinos de César. Após a vitória na Batalha de Filipos, os três dividiram a República Romana entre si, passando a governar como ditadores militares. O triunvirato foi posteriormente posto de lado sob as ambições conflitantes de seus membros: Lépido foi exilado e despojado de sua posição e Marco Antônio cometeu suicídio após sua derrota na Batalha de Áccio em 31 a.C.. 

Após o fim do Segundo Triunvirato, Augusto restaurou a fachada externa de república livre, com o poder governamental investido no senado romano, os magistrados executivos e as assembleias legislativas. Porém, na realidade, manteve seu poder autocrático sobre a República como um ditador militar. Por lei, reteve um conjunto de poderes atribuídos vitaliciamente pelo senado, incluindo o comando militar supremo e aqueles de tribuno e censor.

Criou o primeiro programa de previdência pública do mundo, assegurando a lealdade do exército, tornando-se algo que nenhum romano havia sido antes: o comandante em chefe de todas as Forças Armadas. Rejeitou os títulos monárquicos e em vez disso denominou-se “Primeiro Cidadão do Estado” (Princeps Civitatis). O quadro constitucional resultante tornou-se conhecido como o Principado, a primeira fase do Império Romano. 

O reinado de Augusto iniciou uma era de relativa paz conhecida como Pax Romana (“Paz Romana”). Apesar de contínuas guerras de expansão nas fronteiras imperiais e uma guerra civil de um ano devido à sucessão imperial, o mundo romano esteve praticamente livre de conflitos em larga escala por mais de dois séculos. Ele dramaticamente aumentou o império, anexando Egito, Dalmácia, Panônia, Nórica e Récia, expandindo as possessões da África e Germânia e completando a conquista da Hispânia.

Além das fronteiras, protegeu o Império com uma região tampão composta por Estados clientes e fez paz com o Império Parta por vias diplomáticas. Reformou o sistema romano de tributação, desenvolveu redes de estradas com um sistema de correio oficial, estabeleceu um exército permanente e a guarda pretoriana, criou serviços oficiais de policiais e bombeiros para Roma e reconstruiu grande parte da cidade durante seu reinado. 

Augusto morreu em 14 d.C., com 75 anos. Pode ter morrido de causas naturais, embora tenha havido rumores não confirmados de que sua esposa Lívia Drusa o teria envenenado. Foi sucedido como imperador por seu filho adotivo Tibério (também enteado e, anteriormente, cunhado). Com 41 anos, foi o soberano com maior tempo de mandato em Roma. 

Nomes

Ao longo de sua vida, Augusto foi conhecido ( /ɔːˈɡʌstəs/) por muitos nomes: 

  • Ao nascer, foi chamado Caio Otávio (Gaius Octavius) em homenagem a seu pai biológico. Os historiadores tipicamente referem-se a ele simplesmente como Otávio (ou Otaviano) entre seu nascimento em 63 a.C. e sua adoção por Júlio César em 44 a.C. (depois da morte de Júlio César); 
  • Com sua adoção por César, tomou o nome de seu pai adotivo e tornou-se Caio Júlio César Otaviano (Caius Julius Caesar Octavianus), de acordo com o padrão romano de nomenclatura por adoção. Ele abandonou o “Otaviano” rapidamente e seus contemporâneos se referiam a ele como “César” durante o período, porém os historiadores chamam-no Otaviano entre 44 a.C. e 27 a.C.; 
  • Em 42 a.C., Otaviano iniciou o Templo do Divino Júlio, ou Templo do Cometa Estelar, e adicionou “Filho do Divino” (Divi Filius) em seu nome, visando fortalecer seus laços políticos com os antigos soldados de César, após a deificação deste, tornando-se Caio Júlio César, Filho do Divino (Gaius Julius Caesar Divi Filius); 
  • Em 38 a.C., Otaviano substituiu seu prenome “Caio” e seu nome “Júlio” por “Imperador” (Imperator), o título com o qual as tropas saudavam o seu líder após um sucesso militar, tornando-se oficialmente “Imperador César, Filho do Divino” (Imperator Caesar Divi Filius). 
  • Em 27 a.C., após a derrota de Marco Antônio e Cleópatra, o senado romano votou novos títulos para ele, que se tornou oficialmente “Imperador César, Filho do Divino, Augusto” (Imperator Caesar Divi Filius Augustus). Foi nos eventos de 27 a.C. que obteve seu tradicional nome de Augusto, que os historiadores usam para se referir a ele desde esta época até sua morte em 14 d.C..

Primeiros anos

Enquanto sua família paterna provinha da cidade de Velitras, a aproximadamente 40 km de Roma, Otávio nasceu na capital em 23 de setembro de 63 a.C., na Cabeça do Touro, uma pequena propriedade no Palatino, muito próxima ao Fórum Romano. A ele foi dado o nome “Caio Otávio Turino”, sendo seu cognome uma possível alusão à vitória de seu pai em Túrio contra um bando de escravos rebeldes.

Devido à lotação de Roma à época, Otávio foi levado por seu pai para ser criado em Velitras. Ele menciona somente brevemente a família equestre de seu pai em suas memórias. Seu tataravô foi um equestre, seu bisavô paterno foi um tribuno militar da província romana da Sicília durante a Segunda Guerra Púnica, seu avô serviu em várias funções políticas locais e seu pai foi governador da Macedônia. Sua mãe, Ácia, era sobrinha de Júlio César. 

Seu pai morreu em 59 a.C., quando ele tinha quatro anos. Sua mãe casou-se em 56 a.C. com Lúcio Márcio Filipo, que havia sido propretor da Síria. Filipo alegou descender de Alexandre, o Grande e foi eleito cônsul em 56 a.C.. Filipo nunca teve muito interesse pelo jovem Otávio e, por isso, ele foi criado por sua avó, Júlia César, a Jovem, irmã de Júlio César. Ela morreu em 52 ou 51 a.C. e Otávio realizou a oração fúnebre. 

A partir deste momento, sua mãe e seu padrasto desempenharam um papel mais ativo em sua criação. Ele vestiu a toga viril quatro anos depois e foi eleito para o Colégio dos Pontífices em 47 a.C.. No ano seguinte, foi responsável pelos jogos gregos, que foram realizados em honra ao Templo de Vénus Genetrix, construído por Júlio César. De acordo com Nicolau de Damasco, Otávio desejava juntar-se à equipe de César em sua campanha na África, mas desistiu quando sua mãe protestou. 

Em 46 a.C., Ácia consentiu que se juntasse a Júlio César na Hispânia, onde planejava lutar contra as forças de Pompeu, o último inimigo de César, mas Otávio adoeceu e ficou impossibilitado de viajar. Quando se recuperou, velejou para a fronte, mas naufragou. Após alcançar a costa com alguns companheiros, cruzou território hostil ao campo de César, impressionando consideravelmente seu tio-avô. Veleio Patérculo registra que, depois desse momento, César permitiu que o jovem compartilhasse sua carruagem. Ao voltar a Roma, César depositou novo testamento com as virgens vestais, nomeando Otaviano como seu primeiro beneficiário. 

Herdeiro de César

Otaviano estava estudando e passando por treinamento militar em Apolônia, na província romana da Ilíria, quando César foi morto nos Idos de Março, em 15 de março de 44 a.C.. Rejeitando o conselho de alguns oficiais do exército para refugiar-se com as tropas na Macedônia, navegou para a Itália para verificar se tinha potenciais fortunas política ou financeira. César não tinha filhos vivos legítimos sob as leis de Roma, e por isso havia adotado Otávio como seu herdeiro.

Marco Antônio, mais tarde, acusou Otaviano de ter obtido sua adoção por César por meio de favores sexuais, embora Suetônio, em sua obra Vida dos Doze Césares, descreva a acusação como calúnia política. Após desembarcar em Lúpias, próximo de Brundísio (atual Brindisi), Otávio soube do conteúdo do testamento de César e só então decidiu tornar-se seu herdeiro político, bem como de dois terços de seu patrimônio. 

Após a sua adoção, Otávio assumiu o nome de seu tio-avô, Caio Júlio César. Os romanos que eram adotados por uma nova família geralmente mantinham seus nomes antigos na forma de cognome (por exemplo, Otaviano por alguém que tivesse sido Otávio). Porém, não há evidência de que tenha portado oficialmente o nome Otaviano, pois isto teria tornado suas origens modestas muito óbvias. Os historiadores costumam se referir ao novo César como Otaviano no período entre sua adoção e a assunção do nome Augusto, em 27 a.C., para evitar a confusão do ditador morto com seu herdeiro. 

Para fazer uma entrada bem-sucedida nos altos escalões da hierarquia política romana, Otaviano não podia se basear em seus fundos limitados. Após uma calorosa recepção pelos soldados de César em Brundísio, exigiu uma parte dos recursos que haviam sido alocados para a pretendida guerra contra o Império Parta no Oriente Médio. Isso equivalia a 700 milhões de sestércios armazenados em Brundísio, o campo de preparação na Itália para as operações militares no Oriente. 

Uma investigação senatorial posterior a respeito do desaparecimento dos recursos públicos não levou a ação alguma contra Otaviano, uma vez que ele subsequentemente usou o dinheiro para recrutar tropas contra o inimigo do senado, Marco Antônio. Otaviano fez outro movimento ousado em 44 a.C., quando, sem permissão oficial, apropriou-se do tributo anual que havia sido enviado pela província romana do Oriente Próximo para a Itália. 

Otaviano começou a reforçar suas forças pessoais com legionários veteranos de César e com tropas designadas para a guerra na Pártia, coletando apoio ao enfatizar sua condição de herdeiro de César. Em sua marcha para Roma através da Itália, a presença de Otaviano com fundos recém-adquiridos atraiu muitos e conquistou vários ex-veteranos de Júlio César estacionados em Campânia. Até o mês de junho, havia formado um exército de 3 000 veteranos leais, pagando para cada um o salário de 500 denários. 

Tensões crescentes

Ao chegar a Roma em 6 de maio de 44 a.C., Otaviano encontrou o cônsul Marco Antônio, antigo colega de Júlio César, em uma incômoda trégua com os assassinos do ditador; a eles havia sido garantida uma anistia geral em 17 de março, porém Antônio conseguiu conduzir a maioria deles para fora de Roma. Isto se deveu ao discurso “inflamado” feito por ele no funeral de César, que criou uma opinião pública contrária aos assassinos. 

Marco Antônio estava acumulando apoio político, mas Otaviano ainda tinha a oportunidade de rivalizar com ele como principal membro da facção dos apoiadores de César. Marco Antônio tinha perdido o apoio de muitos romanos e apoiadores de Júlio César quando, inicialmente, opôs-se à moção para elevá-lo ao estatuto de divino. Otaviano não conseguiu persuadir Marco Antônio a renunciar ao dinheiro do ditador para si. Contudo, durante o verão, conseguiu ganhar apoio dos cesarianos simpatizantes, que viram o jovem herdeiro como o mal menor e esperavam manipulá-lo ou ser pacientes com ele durante seus esforços para livrarem-se de Marco Antônio. 

Otaviano começou a fazer causa comum com os Optimates, os antigos inimigos de Júlio César. Em setembro, o principal orador optimate, Marco Túlio Cícero, começou a atacar Marco Antônio numa série de discursos retratando-o como uma ameaça para a ordem republicana. Com a opinião em Roma virando-se contra ele e seu ano de poder consular próximo do fim, Antônio tentou aprovar leis que lhe dariam controle sobre a Gália Cisalpina, que tinha sido atribuída como parte de sua província por Décimo Júnio Bruto Albino, um dos assassinos de César. 

Enquanto isso, Otaviano criou um exército privado na Itália mediante o recrutamento de veteranos cesarianos e, em 28 de novembro, adquiriu duas legiões de Antônio com a oferta tentadora de ganho monetário. Em face da grande e capaz força de Otaviano, Antônio notou o perigo de permanecer em Roma e, para o alívio do senado, fugiu para a Gália Cisalpina, que devia ser-lhe entregue em 1 de janeiro. 

Primeiro conflito com Antônio

Depois de Décimo Bruto recusar-se a entregar a Gália Cisalpina, Marco Antônio sitiou-o em Mutina. As resoluções aprovadas pelo senado para parar a violência foram rejeitadas por Antônio, uma vez que o senado não tinha um exército próprio para enfrentá-lo; isto forneceu uma oportunidade para Otaviano, que já era conhecido por ter forças armadas. Cícero também defendeu Otaviano contra as provocações de Antônio sobre a falta de linhagem nobre de Otaviano e a imitação do nome de Júlio César, afirmando que “não temos exemplo mais brilhante de piedade tradicional entre nossa juventude.” 

Por insistência de Cícero, o senado nomeou Otaviano como senador em 1 de janeiro de 43 a.C. e ainda lhe conferiu poder de voto ao lado dos ex-cônsules. Além disso, foi-lhe garantido imperium (poder de comando), o que tornou legal seu comando de tropas, sendo enviado então para aliviar o cerco junto com Hírcio e Pansa (os cônsules de 43 a.C.). Em abril de 43 a.C., as forças de Antônio foram derrotadas nas batalhas de Fórum dos Galos e Mutina e ele foi forçado a se retirar para a Gália Transalpina. Entretanto, ambos os cônsules foram mortos, o que deixou Otaviano como comandante único de seus exércitos. 

O senado atribuiu a Décimo Bruto muito mais recompensas que a Otaviano por derrotar Antônio, e ainda tentou dar-lhe o comando das legiões consulares, o que fez Otaviano decidir não cooperar. Ele se instalou na planície Padana e se recusou a ajudar em qualquer outra ofensiva contra Antônio. Em julho, uma embaixada de centuriões enviada por Otaviano entrou em Roma e exigiu que recebesse o consulado deixado vago por Hírcio e Pansa.

Otaviano também exigiu que o decreto que declarava Antônio um inimigo público fosse revogado. Quando isto foi recusado, marchou sobre a cidade com oito legiões. Não encontrou oposição militar em Roma, e em 19 de agosto de 43 a.C. foi eleito cônsul, com seu parente Quinto Pédio como co-cônsul. Nesse meio-tempo, Antônio formou uma aliança com Marco Emílio Lépido, outro proeminente cesariano. 

Proscrições

Em uma reunião próximo a Bonônia (atual Bolonha) em outubro de 43 a.C., Otaviano, Marco Antônio e Lépido formaram uma junta chamada Segundo Triunvirato. Esta atribuição explícita de poderes especiais por cinco anos foi suportada por lei aprovada pelas plebes, diferentemente do não oficial Primeiro Triunvirato de Pompeu, Júlio César e Marco Licínio Crasso.

Os triúnviros então colocaram em prática proscrições, nas quais 300 (segundo Apiano) ou 130 (segundo Tito Lívio) senadores e 2 000 equestres foram estigmatizados como criminosos e privados de suas propriedades, bem como, para os que não conseguiram escapar, de suas vidas. Este decreto emitido pelo triunvirato foi motivado em parte pela necessidade de levantar fundos para pagar os salários das tropas para o conflito próximo com os assassinos de César, Marco Júnio Bruto e Caio Cássio Longino. Recompensas pela prisão deles deu incentivo aos romanos para capturar os proscritos, enquanto seus bens móveis e imóveis foram apreendidos pelos triúnviros. 

Os historiadores romanos contemporâneos fornecem registros conflitantes sobre qual triúnviro foi mais responsável pelas proscrições e assassinatos, embora todas as fontes concordem que promulgar as proscrições foi um meio para as três facções eliminarem inimigos políticos. Marco Veleio Patérculo afirmou que Otaviano tentou evitar proscrever oficiais, enquanto Lépido e Antônio foram responsáveis por iniciá-los. Dião Cássio defendeu Otaviano por tentar poupar o maior número possível, enquanto Antônio e Lépido, que eram mais velhos e estavam há mais tempo na política, tinham muito mais inimigos para lidar. 

Esta alegação foi rejeitada por Apiano, que sustentou que Otaviano compartilhava um interesse comum com os demais triúnviros na erradicação de seus inimigos. Suetônio apresentou o caso de que Otaviano, embora relutante de início em proscrever oficiais, na verdade perseguiu seus inimigos com mais rigor que os outros triúnviros. Plutarco descreveu as proscrições como uma troca cruel e impiedosa de amigos e familiares entre Antônio, Lépido e Otaviano. Por exemplo, Otaviano permitiu a proscrição de seu aliado Cícero, Antônio a de seu tio materno Lúcio Júlio César (o cônsul de 64 a.C.) e Lépido, de seu irmão Paulo. 

Batalha de Filipos e divisão do território

Em 1 de janeiro de 42 a.C., o senado postumamente reconheceu Júlio César como uma divindade do Estado romano, Júlio Divino (Divus Iulius). Otaviano foi capaz de promover sua causa ao reforçar o fato de que era o “Filho do Divino” (Divi Filius). Antônio e Otaviano então enviaram 28 legiões por mar para enfrentar os exércitos de Bruto e Cássio, que tinham construído sua base de poder na Grécia.

Após duas batalhas em Filipos, na Macedônia, em outubro de 42 a.C. o exército dos triúnviros foi vitorioso e Bruto e Cássio cometeram suicídio. Marco Antônio usaria mais tarde os exemplos destas batalhas como um meio para menosprezar Otaviano, pois ambas foram decisivamente vencidas com o uso das forças de Antônio. Além de reivindicar a responsabilidade pelas vitórias, Antônio também estigmatizou Otaviano como um covarde por entregar seu controle militar direto para Marco Vipsânio Agripa. 

Depois de Filipos, um novo arranjo territorial foi feito entre os membros do Segundo Triunvirato. A Gália, as províncias da Hispânia e Itália foram colocadas nas mãos de Otaviano. Antônio viajou para o Egito, onde aliou-se com Cleópatra (r. 51–30 a.C.), a antiga amante de Júlio César e mãe de seu infante, Cesarião. Para Lépido restou a província da África, bloqueado por Antônio, que concedeu a Hispânia a Otaviano. Otaviano ficou com a missão de decidir onde, na Itália, seriam assentadas as dezenas de milhares de veteranos da campanha macedônia, que os triúnviros tinham prometido dispensar.

Os soldados, que tinham lutado ao lado de Bruto e Cássio e poderiam facilmente aliar-se com um oponente político de Otaviano se não apaziguados, também exigiam terras. Não havia mais terras controladas pelo governo para lotear como assentamentos para seus soldados, então Otaviano tinha que escolher entre duas opções: alienar muitos cidadãos romanos por meio de confiscos, ou alienar muitos soldados que poderiam criar uma considerável oposição contra ele. Otaviano escolheu a primeira. Dezoito cidades romanas foram afetadas pelos novos assentamentos, com populações inteiras sendo expulsas ou pelo menos parcialmente expropriadas. 

Rebelião e alianças matrimoniais

Houve insatisfação generalizada com Otaviano em função dos assentamentos dos seus soldados, e isto encorajou muitos a unirem-se a Lúcio Antônio, irmão de Marco Antônio e apoiado pela maioria do senado. Enquanto isso, Otaviano pediu o divórcio de Clódia Pulcra, filha de Fúlvia e seu primeiro marido, Públio Clódio Pulcro.

Alegando que seu casamento nunca tinha sido consumado, retornou-a para sua mãe, que agora era esposa de Marco Antônio. Decidida a agir, Fúlvia, junto com Lúcio Antônio, levantou um exército na Itália para lutar pelos direitos de Antônio contra Otaviano. Lúcio e Fúlvia fizeram uma aposta política e marcial ao se oporem a Otaviano, uma vez que o exército romano ainda dependia dos triúnviros para seus salários. Lúcio e seus aliados terminaram sitiados na Perúsia, onde Otaviano forçou-os a se render no começo de 40 a.C.. 

Lúcio e seu exército foram poupados, devido a seu parentesco com Antônio, o homem forte do Oriente, enquanto Fúlvia foi exilada em Sicião. Otaviano, contudo, não mostrou misericórdia com os aliados de Lúcio. Em 15 de março, aniversário do assassinato de Júlio César, executou 300 senadores e equestres por se aliarem a Lúcio. Perúsia também foi pilhada e incendiada como um aviso para outros. Este evento sangrento maculou a reputação de Otaviano e foi criticado por muitos, como o poeta augustano Sexto Propércio. 

Sexto Pompeu, filho do triúnviro Pompeu e ainda um general renegado após a vitória de Júlio César sobre seu pai, foi estabelecido na Sicília e Sardenha como parte de um acordo firmado com o Segundo Triunvirato em 39 a.C.. Antônio e Otaviano estavam competindo por uma aliança com Pompeu, que era um membro do partido republicano, ironicamente não da facção cesariana.

Otaviano conseguiu uma aliança temporária em 40 a.C. ao casar-se com Escribônia, irmã de Lúcio Escribônio Libão, um apoiador e sogro de Pompeu. Escribônia deu à luz a única filha natural de Otaviano, Júlia, que nasceu no mesmo dia em que ele se divorciou de Escribônia para se casar com Lívia Drusa, pouco mais de um ano depois do casamento deles. 

Enquanto estava no Egito, Antônio envolveu-se em um caso amoroso com Cleópatra e teve três filhos com ela. Ciente da deterioração de sua relação com Otaviano, Antônio deixou Cleópatra e navegou para a Itália com uma grande força para se opor a ele, impondo cerco a Brundísio (atual Brindisi). Este novo conflito, porém, provou-se insustentável para ambos.

Seus centuriões, que haviam se tornado importantes figuras políticas, recusaram-se a lutar devido a sua causa cesariana, e as legiões sob o seu comando seguiram o exemplo. Entrementes, em Sicião, a mulher de Antônio, Fúlvia, morreu de uma doença súbita, enquanto Antônio estava a caminho para se encontrar com ela. Esta morte e o motim dos centuriões levaram os dois triúnviros a buscar uma reconciliação. 

No outono de 40 a.C., Otaviano e Antônio aprovaram o Tratado de Brundísio, pelo qual Lépido permaneceu na África, Antônio no Oriente e Otaviano no Ocidente. A península Itálica foi deixada aberta para recrutamento de soldados por todos, mas, na realidade, esta cláusula era inútil a Antônio no Oriente. Para cimentar ainda mais as relações de aliança com Marco Antônio, Otaviano ofereceu sua irmã, Otávia, a Jovem, em casamento ao colega triúnviro no final de 40 a.C.. Ao longo do casamento deles, Otávia deu-lhe duas filhas, conhecidas como Antônia, a Velha e Antônia, a Jovem. 

Guerra com Sexto Pompeu

Sexto Pompeu ameaçou Otaviano na Itália negando os carregamentos de cereais para a península através do Mediterrâneo; seu próprio filho foi nomeado comandante naval, em esforço para provocar a fome geral na Itália. O controle de Pompeu sobre o mar levou-o a adotar o nome de “Filho de Netuno” (Neptuni Filius). Um acordo de paz temporário foi alcançado em 39 a.C. com o Tratado de Miseno, e o bloqueio da Itália foi encerrado quando Otaviano garantiu a Pompeu as províncias da Córsega e Sardenha, Sicília e o Peloponeso, assegurando-lhe também a futura posição de cônsul de 35 a.C.. 

O acordo territorial entre o triunvirato e Sexto Pompeu começou a desmoronar quando Otaviano divorciou-se de Escribônia e casou-se com Lívia Drusa em 17 de janeiro de 38 a.C.. Um dos comandantes navais de Pompeu o traiu e entregou a Córsega e Sardenha para Otaviano. Entretanto, Otaviano ainda carecia dos recursos necessários para confrontá-lo sozinho, portanto um acordo foi alcançado para a extensão do Segundo Triunvirato por outro período de cinco anos, começando em 37 a.C.. 

Por apoiar Otaviano, Antônio esperava ganhar apoio em sua própria campanha contra o Império Parta, desejando vingar Roma de sua derrota em Carras em 53 a.C.. Em um acordo alcançado em Tarento, Antônio forneceu 120 navios para serem usados contra Pompeu, enquanto Otaviano ficou de enviar 20 000 legionários para Antônio usar contra a Pártia. Otaviano enviou apenas um décimo da quantidade prometida, o que Antônio viu como uma provocação intencional. 

Otaviano e Lépido lançaram uma operação conjunta contra Sexto na Sicília em 36 a.C.. Apesar dos contratempos de Otaviano, a força naval de Sexto Pompeu foi quase inteiramente destruída em 3 de setembro pelo general Agripa na Batalha de Nauloco. Sexto fugiu com suas forças remanescentes para o leste, onde foi capturado e executado em Mileto no ano seguinte por um dos generais de Antônio. Como Lépido e Otaviano aceitaram a rendição das tropas de Pompeu, Lépido tentou reivindicar a Sicília para si, ordenando que Otaviano partisse. Porém, suas tropas desertaram para Otaviano, pois estavam cansadas de lutar e receberam uma sedutora promessa de dinheiro. 

Lépido rendeu-se a Otaviano e foi autorizado a manter o título de pontífice máximo (chefe do colégio dos sacerdotes), porém foi removido do triunvirato, encerrando assim sua carreira pública, e efetivamente foi exilado na vila do Cabo Circei, na Itália. Os domínios romanos estavam agora divididos entre Otaviano no Ocidente e Antônio no Oriente. Para manter a paz e estabilidade em sua porção do Império, Otaviano assegurou aos cidadãos de Roma seus direitos de propriedade.

Desta vez, assentou seus soldados dispensados fora da Itália, bem como retornou a seus antigos proprietários romanos 30 000 escravos que tinham fugido para juntar-se ao exército e marinha de Pompeu. Otaviano fez com que o senado garantisse imunidade tribunícia, ou sacrossantidade (sacrosanctitas) a ele, sua mulher e sua irmã, para assegurar sua própria segurança e a de Lívia e Otávia quando retornou para Roma. 

Guerra com Antônio

Nesse meio tempo, a campanha de Antônio contra a Pártia foi desastrosa, manchando sua imagem como um líder, e os meros 2 000 legionários enviados por Otaviano foram insuficientes para repor suas forças. Por outro lado, Cleópatra poderia restaurar as forças do exército de Antônio, e como ele já estava envolvido em um caso romântico com ela, decidiu enviar Otávia de volta para Roma.

Otaviano usou isto para espalhar propaganda desfavorável a ele, alegando que estava se tornando menos que romano, pois havia rejeitado uma esposa romana legítima por uma “amante oriental”. Em 36 a.C., Otaviano usou um estratagema político para parecer menos autocrático e Antônio mais vilão, ao proclamar que as guerras civis estavam chegando ao fim e que deixaria o cargo de triúnviro se Antônio fizesse o mesmo; Antônio recusou. 

Após as tropas romanas capturarem o Reino da Armênia em 34 a.C., Antônio fez seu filho Alexandre Hélio o governante da Armênia. Ele também atribuiu a Cleópatra o título de “Rainha dos Reis”, atos que Otaviano usou para convencer o senado de que Antônio tinha ambições de diminuir a preeminência de Roma. Quando Otaviano tornou-se cônsul mais uma vez em 1° de janeiro de 33 a.C., abriu a sessão seguinte no senado com um ataque veemente aos títulos e territórios concedidos por Antônio a seus parentes e a sua rainha.

A rixa entre Antônio e Otaviano levou uma grande parcela dos senadores, bem como os cônsules daquele ano, a deixar Roma e desertarem para Antônio. Otaviano, porém, recebeu dois desertores-chave de Antônio no outono de 32 a.C., Munácio Planco e Marco Tício. Eles lhe deram a informação de que precisava para confirmar com o senado todas as acusações feitas contra Antônio. Otaviano entrou à força no Templo de Vesta e confiscou o testamento secreto de Antônio, que prontamente divulgou.

O testamento doava os territórios conquistados pelos romanos como reinos que seus filhos governariam, e designava Alexandria como o sítio para a sua tumba e de sua rainha. No final de 32 a.C., o senado oficialmente revogou os poderes de Antônio como cônsul e declarou guerra ao regime de Cleópatra no Egito. 

No começo de 31 a.C., enquanto Antônio e Cleópatra estavam temporariamente estacionados na Grécia, Otaviano ganhou uma vitória preliminar quando a marinha sob o comando de Agripa transportou com sucesso tropas através do Mar Adriático. Enquanto Agripa cortou as rotas marítimas de suprimento para as forças de Antônio e Cleópatra, Otaviano desembarcou no continente, do lado oposto à ilha de Córcira, e marchou para sul.

Presos por terra e mar, desertores do exército de Antônio fugiram para o lado de Otaviano, enquanto as forças de Otaviano estavam suficientemente confortáveis para se prepararem. Numa tentativa desesperada de se libertar do bloqueio naval, a frota de Antônio navegou através da baía de Áccio, na costa ocidental da Grécia. Foi lá que, em 2 de setembro de 31 a.C., a frota enfrentou uma armada muito maior, com navios mais manobráveis, sob o comando de Agripa e Caio Sósio na Batalha de Áccio. Antônio e suas forças remanescentes somente foram poupados devido ao último esforço da frota de Cleópatra, que estava esperando nas proximidades. 

Otaviano os perseguiu e derrotou na Batalha de Alexandria em 1 de agosto de 30 a.C., após a qual Antônio e Cleópatra cometeram suicídio. Antônio caiu sobre sua própria espada e foi levado por seus soldados para Alexandria, onde morreu nos braços de Cleópatra. A rainha egípcia morreu logo depois, supostamente pela mordida venenosa de uma víbora ou por veneno. Otaviano tinha aproveitado sua posição como herdeiro de César para promover sua própria carreira política, e estava bem ciente dos perigos em permitir que outro fizesse o mesmo.

Assim, seguindo o conselho de Ário Dídimo de que “dois Césares são um em demasia”, ordenou que Cesarião – filho de Júlio César com Cleópatra – fosse morto, mas poupou os filhos de Cleópatra com Antônio, com a exceção do filho mais velho de Antônio com Fúlvia. Otaviano tinha anteriormente mostrado pouca clemência com inimigos derrotados, e agiu de maneira que se mostrou impopular junto ao povo romano, entretanto foi elogiado por perdoar muitos de seus oponentes após a Batalha de Áccio. 

Otaviano torna-se Augusto

Após Áccio e a derrota de Antônio e Cleópatra, Otaviano estava em posição de governar a República inteira sob um Principado não oficial, porém teria que chegar a isto através de aumentos gradativos de poder. Ele fez isso cortejando o senado e o povo e confirmando as tradições republicanas de Roma, para parecer que não estava aspirando a ditadura ou a monarquia. 

Anos de guerra civil tinham deixado Roma em um estado próximo ao da ilegalidade, mas a República não estava preparada para aceitar o controle de Otaviano como um déspota. Ao mesmo tempo, Otaviano não poderia simplesmente desistir de sua autoridade sem arriscar mais guerras civis entre os generais romanos, e mesmo que não desejasse qualquer posição de autoridade, sua posição exigia que olhasse para o bem-estar da cidade de Roma e das províncias. Os objetivos de Otaviano deste ponto em diante foram retornar Roma ao estado de estabilidade, legalidade tradicional e civilidade, levantando a pressão política ostensiva imposta sobre os tribunais e assegurando eleições livres – ao menos nominalmente. 

Primeiro Pacto

Marchando sobre Roma, Otaviano e Marco Agripa foram eleitos como cônsules. Em 29 a.C., Otaviano fez uma exibição ao retornar com plenos poderes para o senado e abrir mão de seu controle sobre as províncias romanas e seus exércitos. Sob seu consulado, contudo, o senado tinha pouco poder na iniciativa legislativa através da introdução de projetos de lei para debate senatorial. Embora Otaviano não mais estivesse no controle direto das províncias e dos exércitos, mantinha a lealdade de soldados ativos e veteranos. As carreiras de muitos clientes e adeptos dependiam de seu patrocínio, uma vez que seu poder financeiro era incomparável na República. 

De acordo com o historiador Werner Eck, “a soma de seu poder deriva, primeiro, de todos os vários poderes de cargos delegados a ele pelo senado e pelo povo, segundo, de sua imensa fortuna particular e, terceiro, de numerosas relações de clientela estabelecidas com indivíduos e grupos por todo o império. Todos juntos formaram a base de sua auctoritas [autoridade], que ele enfatizou como a base de suas ações políticas.”

Em grande medida, o público estava ciente dos vastos recursos financeiros que Augusto comandava. Ele não conseguiu encorajar suficientemente os senadores para financiar a construção e manutenção das estradas na Itália em 20 a.C., mas assumiu a responsabilidade direta por elas. Isto foi divulgado na moeda romana emitida em 16 a.C., após ele doar vastas somas em dinheiro para o erário de Saturno, o erário público. 

Para H. H. Scullard, entretanto, o poder de Augusto estava baseado no exercício de “um predominante poder militar e […] a sanção final de sua autoridade era a força, apesar de este fato estar disfarçado.” O senado propôs a Otaviano, o vitorioso das guerras civis, que mais uma vez assumisse o comando das províncias. A proposta do senado foi a ratificação dos poderes extra-constitucionais de Otaviano.

Através do senado, foi capaz de manter a aparência de uma constituição ainda funcional. Fingindo relutância, aceitou a responsabilidade de supervisionar por dez anos as províncias que foram consideradas caóticas. As províncias cedidas a ele compunham muito do mundo conquistado e incluíam todas da Hispânia e Gália, Síria, Cilícia, Chipre e Egito. Além disso, o comando destas províncias lhe permitiu exercer controle sobre a maioria das legiões romanas. 

Enquanto atuou como cônsul em Roma, Otaviano enviou senadores para as províncias, sob seu comando, como representantes para gerir assuntos provinciais e garantir que suas ordens fossem executadas. As províncias que não estavam sob seu controle eram supervisionadas por governadores escolhidos pelo senado romano. Otaviano tornou-se a figura política mais poderosa na capital e na maioria das províncias, mas não tinha o monopólio do poder político e marcial.

O senado ainda controlava o Norte da África, um importante produtor regional de grãos, bem como a Ilíria e Macedônia, duas regiões estratégicas com várias legiões. Contudo, o senado tinha controle de apenas cinco ou seis legiões distribuídas entre os procônsules senatoriais, comparadas às vinte legiões sob controle de Augusto, e o controle do senado sobre estas regiões não representava nenhum desafio político ou militar a Otaviano.

O controle do senado sobre algumas das províncias ajudava a manter uma fachada republicana para o Principado autocrático. Além disso, o controle de Otaviano sobre províncias inteiras com o objetivo de assegurar a paz e criar estabilidade seguia precedentes republicanos, nos quais delegaram-se para proeminentes romanos como Pompeu poderes militares similares em momentos de crise e instabilidade. 

Em 16 de janeiro de 27 a.C., o senado concedeu-lhe os novos títulos de augusto e príncipe. Augusto, da palavra latina augure (“aumentar”), pode ser traduzido como “o mais ilustre”, e era mais um título de autoridade religiosa que política. De acordo com as crenças religiosas romanas, o título simbolizava uma marca de autoridade sobre a humanidade – e na verdade a natureza – que ia além de qualquer definição constitucional de seu estatuto. Após os métodos rigorosos empregados para consolidar seu controle, a mudança de nome também serviria para demarcar seu reinado benigno como Augusto de seu reinado de terror como Otaviano. 

Seu novo título era também mais favorável que Rômulo, que anteriormente havia designado para si em referência à história de Rômulo e Remo, e simbolizava uma segunda fundação de Roma. O título de Rômulo estava fortemente associado com noções de monarquia e realeza, uma imagem que Otaviano tentava evitar. Príncipe vem da frase latina primum caput, “a primeira cabeça”, originalmente significando o mais antigo ou mais eminente senador, cujo nome aparecia primeiro na lista senatorial; no caso de Augusto tornou-se um título quase real para um líder que era o primeiro no poder. Princeps também tinha sido um título sob a República para aqueles que haviam servido bem ao Estado; Pompeu, por exemplo, tinha tido este título. 

Augusto também se designava como “Imperador César, filho do Divino” (Imperator Caesar divi filius). Com este título, vangloriava-se de sua ligação familiar com o deificado Júlio César, e o uso de “imperador” significava uma ligação permanente com a tradição romana de vitória. A palavra “César” foi meramente um cognome para um ramo da família juliana, embora Augusto tenha transformado “César” em uma nova linha familiar iniciada com ele. 

A Augusto foi garantido o direito de pendurar a coroa cívica (corona civica), feita de carvalho, acima da porta de sua residência e a de louros nos umbrais. Esta coroa era geralmente mantida acima da cabeça do general romano durante um triunfo, ficando o indivíduo que segurava a coroa encarregado de repetir para o general “memento mori”, ou “Lembre-se de que é mortal”. Além disso, coroas eram importantes em várias cerimônias de Estado, e foram dadas a campeões de atletismo, corrida e concursos dramáticos.

Logo, tanto o louro quanto o carvalho eram símbolos integrais da religião e Estado de Roma; colocá-los nos umbrais de Augusto era equivalente a declarar sua casa como a capital. Porém, Augusto renunciou a exibir insígnias de poder como o cetro, a diadema, a coroa dourada ou a toga púrpura de seu predecessor Júlio César. Embora tenha se recusado a simbolizar seu poder com tais itens, o senado recompensou-o com um escudo dourado disposto no salão de reuniões da Cúria, no qual havia a inscrição “valor, piedade, clemência e justiça” (virtus, pietas, clementia, iustitia). 

Segundo pacto

Até 23 a.C., algumas das implicações não republicanas do pacto de 27 a.C. foram se tornando evidentes. A manutenção do consulado anual por Augusto desde 31 a.C. tornava muito óbvia sua dominância sobre o sistema político romano, e ao mesmo tempo reduzia pela metade as oportunidades para alcançar o que aparentava ser o chefe do Estado romano. Além disso, ele estava causando problemas políticos com o desejo de que seu sobrinho Marco Cláudio Marcelo seguisse seus passos e posteriormente assumisse o Principado, alienando seus três maiores apoiadores – Agripa, Mecenas e Lívia.

Sentindo a pressão de seu grupo central de apoiadores, Augusto voltou-se para o Senado em busca de ajuda. Numa tentativa de reforçar seu apoio lá, especialmente com os republicanos, ele indicou o eminente republicano Cneu Calpúrnio Pisão para co-cônsul em 23 a.C., após seu escolhido Aulo Terêncio Varrão Murena ter sido executado como parte do caso Marco Primo. Murena havia lutado contra Júlio César e apoiado Cássio e Bruto. 

No final da primavera, Augusto sofreu uma severa doença, e em seu suposto leito de morte fez disposições que assegurariam a continuidade do Principado de alguma forma, e ao mesmo tempo colocou em dúvida as suspeitas dos senadores sobre seu anti-republicanismo. Ele se preparou para legar seu anel de sinete para Agripa, seu general favorito. Contudo, entregou a seu co-cônsul Pisão todos os seus documentos oficiais, um registro das finanças públicas e autoridade sobre tropas alistadas nas províncias, enquanto seu sobrinho supostamente favorito, Marcelo, permaneceu de mãos vazias. Isto foi uma surpresa para muitos que acreditavam que ele nomearia um herdeiro para sua posição, como um imperador não oficial. 

Augusto outorgou apenas propriedades e posses para seus herdeiros designados, pois um sistema óbvio de herança imperial institucionalizado teria provocado resistência e hostilidade entre os romanos de espírito republicano, que temiam a monarquia. Com relação ao Principado, era óbvio para Augusto que Marcelo não estava pronto para tomar sua posição. Outrossim, ao dar seu anel de sinete a Agripa, intencionava sinalizar para as legiões que ele seria seu sucessor, e que independentemente das leis constitucionais, eles continuariam a obedecer a Agripa. 

Logo após sua luta com a doença diminuir, Augusto desistiu de seu consulado anual. As únicas ocasiões em que serviria novamente como cônsul seriam nos anos 5 e 2 a.C., ambas para introduzir seus netos na vida pública. Esta foi uma manobra inteligente: ao deixar o cargo de cônsul, permitiu a senadores aspirantes uma chance melhor de preencher a posição, e ao mesmo tempo poderia exercer patrocínio mais amplo dentro da classe senatorial. Embora tenha abdicado como cônsul, desejava manter seu poder consular não apenas sobre suas províncias, mas sobre todo o Império. Este desejo, juntamente com o Caso Marco Primo, levou-o a um segundo compromisso entre ele e o Senado, conhecido como “Segundo Pacto”. 

Principais razões para o Segundo Pacto

Após renunciar ao consulado anual, Augusto não estava mais em uma posição oficial para governar o Estado, ainda que sua posição dominante sobre as suas províncias romanas permanecesse inalterada, uma vez que havia se tornado-se um procônsul. Quando anualmente assumia o cargo de cônsul, tinha o poder para intervir, quando considerava necessário, nos assuntos dos outros procônsules provinciais nomeados pelo senado por todo o império. Como um procônsul, legalmente perdeu seu poder, porque seus poderes proconsulares aplicavam-se somente às suas províncias imperiais. Augusto queria manter este poder. 

Um segundo problema surgiu mais tarde para mostrar a necessidade de um Segundo Pacto, no que ficou conhecido como o “Caso Marco Primo”. No final de 24 a.C. ou começo de 23 a.C., foram levantadas acusações contra Marco Primo, o antigo procônsul da Macedônia, de travar, sem aprovação prévia do Senado, uma guerra contra o Reino Odrísio da Trácia, cujo rei era um aliado romano. Ele foi defendido por Murena, que disse no julgamento que seu cliente havia recebido instruções específicas do príncipe, ordenando-o a atacar o Estado cliente.

Mais tarde, Primo testemunhou que as ordens tinham vindo do recentemente falecido Marcelo. Sob o pacto constitucional de 27 a.C., tais ordens teriam sido consideradas uma violação da prerrogativa do Senado, pois a Macedônia estava sob a jurisdição do Senado, e não do príncipe. Tal ação teria arrancado o verniz da restauração republicana promovida por Augusto, e exposto sua fraude de ser meramente o primeiro cidadão. Ainda pior, o envolvimento de Marcelo fornecia de alguma forma a prova de que sua política era para que o jovem tomasse seu lugar como príncipe, instituindo uma forma de monarquia – acusações que já tinham sido abandonadas. 

A situação era tão séria que Augusto apareceu em pessoa no julgamento, mesmo não tendo sido chamado como testemunha. Sob juramento, declarou que não tinha dado tal ordem. Murena recusou-se a acreditar no testemunho e criticou a tentativa de subverter o julgamento ao usar sua auctoritas (autoridade). Rudemente, exigiu saber por que havia comparecido a um julgamento a que não havia sido chamado. Augusto respondeu que tinha vindo no interesse público. Embora Primo tenha sido considerado culpado, alguns jurados votaram por sua absolvição, significando que nem todos acreditaram no testemunho de Augusto, um insulto para ele. 

O Segundo Pacto Constitucional foi definido em parte para mitigar a confusão e formalizar a autoridade legal de Augusto para intervir em províncias senatoriais. O senado atribuiu a Augusto uma forma de imperium proconsulare (poder) que se aplicava por todo o Império, não somente às suas províncias.

Mais que isso, o senado aumentou o poder proconsular de Augusto para “poder sobre todos os procônsules” (imperium proconsulare maius), ou poder proconsular aplicável por todo o Império que era mais (maius) ou maior do que o de todos os outros procônsules no Império. Augusto permaneceu em Roma durante o processo de renovação e forneceu aos veteranos generosas doações para ganhar o seu apoio, assegurando assim que seu estatuto de imperium proconsulare maius fosse renovado em 13 a.C.. 

Poderes adicionais

A Augusto também foi garantido o poder vitalício de um tribuno (tribunicia potestas), embora não o título oficial de tribuno. Por alguns anos, a Augusto tinha sido atribuída tribunicia sacrosanctitas, ou a imunidade a ataques físicos dada a um Tribuno da plebe. Agora ele decidia assumir os poderes totais da magistratura para a perpetuidade. Legalmente tal poder era fechado para patrícios, um estatuto que ele adquiriu anos antes, quando adotado por Júlio César.

Isto lhe permitia convocar o senado e o povo à vontade e estabelecer negócios diante deles, vetar ações da assembleia e do senado, presidir eleições e falar primeiro em qualquer reunião. Também inclusos em sua autoridade tribunícia estavam os poderes geralmente reservados aos censores. Eles incluíam o direito de supervisionar a moral pública e avaliar leis minuciosamente para assegurar que fossem de interesse público, bem como o poder de criar um censo e determinar os membros do senado. 

Com os poderes de um censor, Augusto apelou às virtudes do patriotismo romano eliminando todas as vestimentas, exceto a clássica toga ao entrar no Fórum. Não havia precedente no sistema romano para combinar os poderes tribunícios e censoriais em uma pessoa, e nem Augusto havia sido eleito para o cargo de censor.

A Júlio César haviam sido concedidos poderes similares, entre os quais havia a supervisão da moral do Estado, contudo esta posição não se estendeu para a atribuição do censor de realizar um censo e determinar a lista senatorial. O cargo de tribuno da plebe começou a perder prestígio devido ao acúmulo de poderes tribunais do príncipe, então ele reviveu sua importância ao torná-lo uma nomeação mandatória para qualquer plebeu desejando o pretorado. 

Augusto recebeu o poder dentro da cidade de Roma, além do poder proconsular maior e a autoridade tribunícia vitalícia. Tradicionalmente, os procônsules (governadores das províncias romanas) perdiam seu poder proconsular quando cruzavam o Pomerium – o limite sagrado de Roma – e entravam na cidade. Nessas situações, ele teria poder como parte de sua autoridade tribunícia, mas seu poder constitucional dentro do Pomerium seria menor do que o de um cônsul em serviço.

Isto significaria que, quando estivesse na cidade, ele poderia não ser o magistrado constitucional com a maior autoridade. Graças ao seu prestígio ou “auctoritas”, seus desejos seriam normalmente obedecidos, mas poderia haver alguma dificuldade. Para preencher este vácuo de poder, o senado votou que o império proconsular maior de Augusto não se interromperia quando ele estivesse dentro dos muros da cidade. Todas as forças armadas da cidade tinham anteriormente estado sob o controle dos prefeitos e cônsules, mas esta situação agora os colocava sob a única autoridade de Augusto.

Além disso, cada vitória seguinte dos romanos passou a ser creditada a Augusto, uma vez que a maioria dos exércitos romanos estava baseada em províncias imperiais comandadas por ele através de legados, que eram delegados do príncipe nas províncias. Adicionalmente, se uma batalha fosse travada em uma província senatorial, o poder proconsular maior de Augusto lhe permitia assumir o comando (e os créditos) de qualquer vitória militar importante.

Isto significava que era o único indivíduo capaz de receber um triunfo, uma tradição que se iniciou com Rômulo, o primeiro rei de Roma e o primeiro general triunfante. Em 19 a.C., Lúcio Cornélio Balbo, sobrinho do governador da África e conquistador dos Garamantes, foi o último homem fora da família de Augusto a receber esta recompensa. Tibério, o filho mais velho de Augusto por seu casamento com Lívia, foi a única exceção a esta regra, quando recebeu um triunfo por vitórias na Germânia em 7 a.C.. 

Conspiração

Muitas das sutilezas políticas do Segundo Pacto parecem ter escapado à compreensão da classe plebeia, que era o maior suporte e clientela de Augusto. Isto a levava a insistir na participação de Augusto nos assuntos imperiais de vez em quando. Quando Augusto não concorreu às eleições para cônsul em 22 a.C., surgiram temores de que estava sendo arrancado do poder pelo senado aristocrático. Em 22, 21 e 19 a.C., as pessoas se revoltaram e apenas permitiram que um único cônsul fosse eleito para cada um destes anos, ostensivamente para deixar a outra posição aberta para ele.

Em 22 a.C., uma escassez de alimentos em Roma desencadeou pânico, e muitos plebeus urbanos chamaram-no para assumir poderes ditatoriais para pessoalmente supervisionar a crise. Após uma exibição teatral de recusa perante o senado, ele finalmente aceitou a autoridade sobre o suprimento de cereais de Roma “pela virtude de seu imperium proconsular”, e terminou a crise quase imediatamente. Somente em 8 d.C. uma crise alimentar deste nível levou-o a estabelecer o prefeito das provisões (praefectus annonae), um prefeito permanente que ficava encarregado da aquisição de alimentos para Roma. 

Entretanto, havia alguns que estavam preocupados com a expansão dos poderes concedidos a Augusto pelo Segundo Pacto, e isto veio à tona com a aparente conspiração de Fânio Cépio e Lúcio Licínio Varrão Murena. Em algum momento antes de 1 de setembro de 22 a.C., um certo Castrício forneceu a Augusto informações sobre uma conspiração liderada por Fânio Cépio.

Murena foi citado entre os conspiradores. Julgados à revelia, com Tibério atuando como promotor, o júri considerou os conspiradores culpados, mas este não foi um veredicto unânime. Sentenciados à morte por traição, todos os acusados foram executados logo após serem capturados, sem mesmo darem testemunho em sua defesa. Augusto garantiu que a fachada de governo republicano continuasse, com um efetivo encobrimento dos eventos. 

Em 19 a.C., o senado atribuiu a Augusto uma forma de “poder imperial geral”, que era provavelmente o poder consular maior, como os poderes proconsulares que ele recebera em 23 a.C.. Como sua autoridade tribunícia, a atribuição de poderes consulares foi outro exemplo de ganho de poder de um cargo que não exercia. Além disso, Augusto foi autorizado a vestir as insígnias consulares em público e diante do senado, bem como a sentar-se na cadeira simbólica entre os dois cônsules e segurar o fasces, um emblema da autoridade consular.

Isso parece ter aliviado a população. Independente do fato de Augusto ser ou não um cônsul, o importante era que aparecia como se o fosse diante do povo e poderia exercer o poder consular se necessário. Em 6 de março de 12 a.C., após a morte de Lépido, adicionalmente assumiu a posição de pontífice máximo, o alto sacerdote do Colégio dos Pontífices, a mais importante posição da religião romana. Em 5 de fevereiro de 2 a.C., também recebeu o título de pai da pátria (pater patriae). 

Estabilidade e permanência no poder

Uma razão definitiva para o Segundo Pacto era dar ao Principado estabilidade constitucional e resiliência para o caso de alguma coisa acontecer ao príncipe Augusto. A sua doença no início de 23 a.C. e a conspiração de Cépio mostraram que a existência do regime se sustentava por uma linha fina na vida de um homem, o próprio Augusto, que sofrera de diversas doenças graves e perigosas ao longo da vida. Se ele morresse de causas naturais ou vítima de assassinato, Roma poderia ficar sujeita a uma nova onda de guerras civis.

A memória dos Idos de Março, as proscrições, Filipos e Áccio, meros vinte e cinco anos antes, ainda estava fresca nas mentes de muitos cidadãos. O poder proconsular foi conferido a Agripa por cinco anos, a fim de conferir a estabilidade constitucional. A natureza exata desta atribuição é incerta, mas ela provavelmente cobria as províncias imperiais de Augusto, a leste e a oeste, e talvez carecesse da autoridade sobre as províncias do Senado. Esta veio depois, assim como o judiciosamente guardado poder tribunício. 

Guerra e expansão

Imperador César, Filho do Divino, Augusto escolheu Imperador (“comandante vitorioso”) para ser seu primeiro nome, uma vez que queria tornar enfaticamente clara a noção de vitória associada a ele. Até o ano 13, ostentou 21 ocasiões em que suas tropas proclamaram “imperador” como seu título após uma batalha bem-sucedida. Quase todo o quarto capítulo de suas memórias de realizações lançadas publicamente, conhecidas como o Os Feitos do Divino Augusto (Res Gestae Divi Augusti), foi devotado às suas vitórias e honras militares. 

Augusto também promoveu a ideia de uma civilização romana superior com um objetivo de governar o mundo, um sentimento embebido em palavras que o poeta contemporâneo Virgílio atribuiu a um lendário ancestral de Augusto: “Romano, lembre, por sua força, de governar os povos da Terra!” O impulso para o expansionismo, aparentemente proeminente entre todas as classes de Roma, é concedido por sanção divina pelo Júpiter de Virgílio, que no Livro I da Eneida promete “soberania sem fim”. 

Até o final de seu reinado, os exércitos de Augusto conquistaram o norte da Hispânia (atuais Espanha e Portugal), as regiões alpinas da Récia e Nórica (atuais Suíça, Baviera, Áustria, Eslovênia), Ilíria e Panônia (atuais Albânia, Croácia, Hungria, Sérvia, Montenegro e Bósnia e Herzegovina) e estendeu as fronteiras da província da África para leste e sul. 

A Judeia foi adicionada à província da Síria quando Augusto depôs Herodes Arquelau, sucessor do rei cliente Herodes (r. 73–4 a.C.). A Síria (como o Egito depois de Antônio) era governada por um prefeito da classe equestre, em vez de um procônsul ou legado de Augusto. Nenhum esforço militar foi necessário em 25 a.C., quando a Galácia (na atual Turquia) foi convertida em província romana, logo após o rei Amintas ser morto por vingança pela viúva de um príncipe de Homonada que havia sido assassinado.

As tribos rebeldes de Astúrias e Cantábria (na atual Espanha) foram dominadas em 19 a.C., e o território caiu sob as províncias da Hispânia e Lusitânia. Esta região provou ser um grande ativo em recursos para futuras campanhas militares, dado que era rica em depósitos minerais que poderiam ser explorados em projetos de mineração romana, especialmente os muito ricos depósitos auríferos em Las Médulas. Conquistar os povos dos Alpes em 16 a.C. foi outra vitória importante para Roma, uma vez que forneceu um grande território tampão entre as cidades romanas da Itália e os inimigos da Germânia ao norte.

O poeta Horácio dedicou uma ode à vitória, enquanto o monumento Troféu de Augusto, próximo a Mônaco, foi construído em honra à ocasião. A captura da região alpina também serviu para a ofensiva seguinte, em 12 a.C., quando Tibério começou uma investida contra as tribos panônias e ilírias e seu irmão Nero Cláudio Druso contra as tribos germânicas na Renânia ocidental. Ambas as campanhas foram bem-sucedidas, com as forças de Druso alcançando o rio Elba pelo ano 9 a.C., ainda que ele tenha morrido pouco depois, ao cair de seu cavalo. Foi registrado que o pio Tibério caminhou à frente do corpo de seu irmão por todo o caminho de volta a Roma. 

Para proteger os territórios romanos orientais do Império Parta, Augusto convocou os Estados clientes do Oriente para agirem como territórios tampão e áreas que poderiam recrutar suas próprias tropas para defesa. Para aumentar a segurança do flanco oriental do Império, estacionou um exército na Síria, enquanto seu habilidoso enteado Tibério negociava como diplomata com os partas. Tibério foi responsável pela restauração de Tigranes V (r. 6–12) no trono do Reino da Armênia. 

Embora questionável, sua maior conquista diplomática foi a negociação com Fraates IV da Pártia (r. 37–2 a.C.) em 20 a.C. para o retorno dos estandartes de guerra perdidos por Crasso na batalha de Carras, uma vitória simbólica e um grande impulso à moral romana. Werner Eck afirma que isso foi uma grande decepção para os romanos, que esperavam vingar a derrota de Crasso por meios militares. Contudo, Maria Brosius explica que ele usou o retorno dos estandartes como propaganda para simbolizar a submissão da Pártia a Roma. O evento foi celebrado em obras de arte como no peitoral da estátua Augusto de Prima Porta e em monumentos como o Templo de Marte Ultor, construído para abrigar os estandartes. 

A Pártia sempre representou uma ameaça aos romanos no Oriente, porém a verdadeira fronte de batalha foi ao longo dos rios Reno e Danúbio. Antes da batalha final com Antônio, as campanhas de Otaviano contra as tribos na Dalmácia foram o primeiro passo para a expansão dos domínios romanos em direção ao Danúbio. A vitória em batalha não foi sempre um sucesso permanente, com os territórios recém-conquistados sendo constantemente retomados pelos inimigos romanos da Germânia. 

Um exemplo relevante das perdas romanas em batalha foi a Batalha da Floresta de Teutoburgo em 9 d.C., quando três legiões inteiras lideradas por Públio Quintílio Varo foram destruídas por Armínio, líder dos queruscos, um aparente aliado romano. Augusto, em retaliação, enviou Tibério para a Renânia para pacificá-la, o que gerou alguns sucessos, embora a batalha de 9 d.C. tenha representado o fim da expansão romana na Germânia. O general romano Germânico se aproveitou de uma guerra civil querusca entre Armínio e Segestes; eles derrotaram Armínio, que fugiu, mas foi morto depois, em 21, devido a uma traição. 

Morte e sucessão

A doença de Augusto em 23 a.C. trouxe o problema de sucessão para o primeiro plano dos assuntos políticos e o público. Para assegurar estabilidade, ele precisava designar um herdeiro para sua posição única na sociedade e governo romanos. Isto deveria ser alcançado em passos pequenos, não dramáticos e incrementais, que não provocassem os temores senatoriais de monarquia. Se alguém fosse sucedê-lo em sua posição não oficial de poder, teria que fazê-lo pelos seus próprios méritos, comprovados publicamente.

Alguns historiadores augustanos argumentam que as indicações apontavam para Marcelo, filho de sua irmã, que rapidamente se casou com a filha de Augusto, Júlia, a Velha. Outros historiadores contestam isso porque o testamento de Augusto lido em voz alta para o senado, enquanto estava seriamente doente em 23 a.C., indicava uma preferência por Marco Agripa, que era o segundo em comando e indiscutivelmente o único de seus associados que poderia ter controle das legiões e manter o Império unido. 

Após a morte de Marcelo em 23 a.C., Augusto casou sua filha com Agripa. Esta união produziu cinco crianças, três filhos e duas filhas: Caio César, Lúcio César, Júlia, a Jovem, Agripina e Agripa Póstumo, assim nomeado por ter nascido após a morte de Marco Agripa. Logo após o Segundo Pacto, foi atribuído a Agripa um mandato de cinco anos na administração da porção oriental do Império, com o imperium de um procônsul e o mesmo poder de tribuno de Augusto (embora isso não tenha colocado em xeque a autoridade de Augusto), com uma sede de governo estabelecida em Samos, no mar Egeu oriental.

Embora esta garantia de poder tenha mostrado o favor do príncipe a Agripa, foi também uma medida para agradar aos membros do partido cesariano, ao permitir que um de seus membros compartilhasse um quantidade considerável de poder com ele. 

A intenção de Augusto de fazer de Caio e Lúcio César seus herdeiros ficou evidente quando ele os adotou como seus próprios filhos. Ele assumiu o consulado em 5 e 2 a.C., de modo a poder pessoalmente inaugurar as carreiras políticas deles, e eles foram nomeados como os cônsules de 1 e 4 d.C.. Augusto também mostrou favor a seus enteados, os filhos do primeiro casamento de Lívia, Nero Cláudio Druso Germânico (doravante referido como Druso) e Tibério Cláudio, garantindo-lhes comandos militares e cargo público, embora pareça ter preferido Druso.

Após a morte de Agripa em 12 a.C., Tibério foi ordenado a divorciar-se de sua esposa Vipsânia Agripina e casar-se com a viúva de Agripa – assim que terminou o período de luto por ele. Enquanto o casamento de Druso com Antônia (filha de Marco Antônio e Otávia) era considerado indissolúvel, Vipsânia era “apenas” a filha do primeiro casamento de Agripa.

Tibério partilhou dos poderes tribunícios de Augusto a partir de 6 a.C., mas logo depois partiu em aposentadoria, declaradamente não querendo mais papel na política e exilando-se em Rodes. Embora nenhuma razão específica seja conhecida para sua partida, pode ter sido uma combinação de razões, incluindo um casamento infeliz com Júlia, bem como um sentimento de inveja e exclusão devido ao aparente favorecimento de Caio e Lúcio, que se juntaram ao colégio dos pontífices em tenra idade, foram apresentados para os espectadores de uma forma mais favorável e introduzidos no exército na Gália.

Após as mortes precoces de Lúcio e Caio em 2 e 4 d.C., respectivamente, e a morte anterior de seu irmão Druso em 9 a.C., Tibério foi convocado a Roma em junho de 4, onde foi adotado por Augusto sob a condição de que, em troca, adotaria seu sobrinho Germânico. Isto preservava a tradição de apresentar ao menos duas gerações de herdeiros. Naquele ano, a Tibério foram atribuídos os poderes de tribuno e procônsul, emissários de reis estrangeiros tinham que apresentar seus respeitos a ele, e até 13 foi recompensado com seu segundo triunfo e um nível de imperium igual ao de Augusto. 

O único reclamante possível como herdeiro era Agripa Póstumo, que tinha sido exilado por Augusto no ano 7, banimento que se tornou permanente após decreto senatorial, e Augusto oficialmente o repudiou. Ele certamente perdeu os favores de Augusto como herdeiro, e o historiador Erich S. Gruen nota que várias fontes contemporâneas afirmam que Agripa Póstumo era um “jovem vulgar, brutal e estúpido e de caráter depravado.” Agripa Póstumo foi assassinado no seu local de exílio um pouco antes ou depois da morte de Augusto. 

Em 19 de agosto de 14, Augusto morreu enquanto visitava Nuvlana (atual Nola), na Campânia, onde seu pai biológico tinha morrido. Tanto Tácito como Dião Cássio escreveram que rumores indicavam que Lívia o havia levado à morte pelo envenenamento de figos frescos. Esta versão aparece em muitos trabalhos modernos de ficção histórica que tratam da vida de Augusto, mas alguns historiadores a veem como uma provável fabricação obscena por aqueles que tinham favorecido Póstumo como herdeiro, ou outro dos inimigos políticos de Tibério. Lívia já tinha sido alvo de rumores similares de envenenamento em favor do seu filho, a maioria ou a totalidade dos quais provavelmente não era verdadeira. 

Alternativamente, é possível que Lívia tenha efetivamente entregue um figo envenenado (ela cultivava uma variedade de figos que levava seu nome e que, segundo se diz, era apreciada por Augusto), mas o fez como uma forma de suicídio assistido e não assassinato. A saúde de Augusto tinha declinado nos meses imediatamente anteriores a sua morte, e ele fez significativos esforços para uma transição suave no poder, tendo finalmente se fixado, relutantemente, em Tibério como sua escolha de herdeiro.

É provável que não se esperasse que Augusto retornasse vivo de Nuvlana, mas parece que sua saúde melhorou ao chegar lá. Especulou-se, portanto, que Augusto e Lívia conspiraram para encerrar a vida dele antecipadamente, tendo providenciado todo o processo político para a aceitação de Tibério, de modo a não colocar em risco a transição. 

As famosas últimas palavras de Augusto foram: “Eu desempenhei bem meu papel? Então aplaudam quando eu morrer” – referência à autoridade dramática e régia que desempenhou como imperador. Publicamente, contudo, suas últimas palavras foram, “Vejam que encontrei Roma de barro, e a deixo de mármore para vocês”. Uma enorme procissão funeral de pranteadores viajou com o corpo de Augusto de Nuvlana a Roma, e no dia de seu enterro todos os negócios públicos e privados fecharam.

Tibério e seu filho Druso prestaram o elogio de pé no topo de duas rostras. O corpo de Augusto foi cremado em uma pira próximo a seu mausoléu e foi proclamado que ele se havia juntado à companhia dos deuses como um membro do panteão romano. Em 410, durante o Saque de Roma, o mausoléu foi saqueado pelos visigodos de Alarico (r. 395–410) e suas cinzas dispersas. 

O historiador D. C. A. Shotter afirma que sua política em favor da família juliana sobre a claudiana poderia ter proporcionado a Tibério causa suficiente para mostrar aberto desdém a ele após sua morte; em vez disso, Tibério sempre repreendeu rapidamente aqueles que criticavam Augusto. Shotter sugere que a deificação de Augusto, unida à atitude “extremamente conservadora” de Tibério a respeito de religião, obrigou-o a suprimir qualquer ressentimento aberto que pudesse ter nutrido.

Além disso, o historiador R. Shaw-Smith cita cartas de Augusto para Tibério que exibem afeição a Tibério e alta consideração por seus méritos militares. Shotter alega que Tibério focou sua raiva e crítica em Caio Asínio Galo (por casar-se com Vipsânia após Augusto forçá-lo a divorciar-se), bem como nos dois jovens césares Caio e Lúcio, em lugar de Augusto,que foi o real arquiteto de seu divórcio e rebaixamento imperial. 

Legado

O reinado de Augusto lançou as fundações de um regime que durou, no Ocidente, até o declínio final do Império Romano do Ocidente em 476, e no Oriente, até a Queda de Constantinopla em 1453. Tanto seu sobrenome César como seu título Augusto tornaram-se títulos permanentes dos governantes do Império Romano pelos 14 séculos seguintes à sua morte.

Em muitas línguas, César tornou-se a palavra para imperador, como no alemão cáiser e no búlgaro e subsequentemente no russo czar. O culto do “Divino Augusto” (Divus Augustus) continuou até a religião do Estado ser mudada para o cristianismo em 391 por Teodósio I (r. 378–395). Consequentemente, há muitas estátuas e bustos excelentes do primeiro imperador. Muitos o consideram como o maior imperador romano. 

Suas políticas certamente estenderam o tempo de duração do império e iniciaram a Pax Romana (“Paz Romana”) ou Pax Augusta (“Paz de Augusto”). O senado romano desejou que os imperadores subsequentes fossem “mais afortunados que Augusto e melhores que Trajano”. Ele foi inteligente, decidido e um político astuto, mas talvez não foi tão carismático quanto Júlio César, e foi influenciado por sua terceira esposa Lívia (às vezes para o pior). No entanto, seu legado foi mais duradouro. 

Ele compôs um registro de suas realizações, o Os Feitos do Divino Augusto, para ser inscrito em bronze na frente de seu mausoléu. Cópias do texto foram inscritas através do império após sua morte. As inscrições em latim exibiram traduções em grego, e foram inscritas em muitos edifícios públicos, tais como o Monumento de Ancira, em Ancara, chamada a “rainha das inscrições” pelo historiador Theodor Mommsen.

Algumas das obras escritas por Augusto sobreviveram. Elas incluem seus poemas Sicília, Epífano e Ájax, uma auto-biografia em 13 livros, uma tratado filosófico, e sua contestação por escrito do Elogio de Catão de Bruto. Além destes, os historiadores, através de suas cartas sobreviventes, buscam fatos ou pistas adicionais a respeito de sua vida pessoal. 

Embora o mais poderoso indivíduo do Império Romano, Augusto desejava incorporar o espírito da virtude e normas republicanas. Para tal, com seus poderes censoriais, apelou para as virtudes de patriotismo romano proibindo todos os outros trajes além da toga clássica ao entrar no Fórum. Além disso, outorgou leis acerca do casamento, uma vez que a aristocracia estava desenvolvendo uma desinclinação pelo matrimônio, contra o celibato e contra a ausência de prole, todos eles com punições pecuniárias, especialmente a respeito das qualificações para ser mencionado em um testamento. 

Ele também queria se conectar com os assuntos dos plebeus e pessoas desfavorecidas, algo que alcançou através de várias ações de generosidade e uma redução de excessos. No ano 29 a.C., Augusto pagou 400 sestércios para cada um de 250 000 cidadãos, 1 000 sestércios para cada um de 120 000 veteranos nas colônias e gastou 700 milhões de sestércios na aquisição de terras para que seus soldados se assentassem. Ele também restaurou 82 templos diferentes para demonstrar seu cuidado com o panteão de deidades romanas. Em 28 a.C., derreteu 80 estátuas de prata erigidas em sua honra, na tentativa de parecer frugal e modesto. 

A longevidade do reinado de Augusto e seu legado para o mundo romano não devem ser negligenciados como um fator chave em seu sucesso. Como Tácito escreveu, as gerações jovens vivas em 14 d.C. nunca conheceram outra forma de governo além do principado. O atrito das guerras civis sobre a velha oligarquia republicana e a longevidade de Augusto, portanto, podem ser vistos como grandes fatores contribuintes para a transformação do Estado romano numa monarquia de facto nestes anos, embora sua experiência, paciência, tato e perspicácia política também tenham desempenhado sua parte.

Seu legado final foi a paz e prosperidade do império desfrutada pelos dois séculos seguintes sob o sistema que iniciou. Sua memória foi consagrada no ethos político da época imperial como um paradigma do bom imperador. Cada imperador de Roma adotou seu nome, César Augusto, que gradualmente perdeu seu caráter como um nome e posteriormente tornou-se um título. Os poetas augustanos Virgílio e Horácio louvaram-no como um defensor de Roma, um sustentáculo da justiça moral e um indivíduo que suportou o peso da responsabilidade de manter o império. 

Contudo, para seu governo de Roma e o estabelecimento do principado, também esteve sujeito a críticas através das eras. O jurista contemporâneo Marco Antíscio Labeão, apaixonado pelos dias da liberdade republicana pré-augustana nos quais nasceu, abertamente criticou seu regime. No começo de seus anais, o historiador Tácito escreveu que o príncipe tinha astuciosamente subvertido a Roma republicana em uma posição de escravidão. Ele continuou dizendo que, com a morte de Augusto e o juramente de lealdade a Tibério, as pessoas de Roma simplesmente trocaram um proprietário de escravos por outro. Tácito, contudo, registra duas visões, contraditórias, de Augusto: 

“Pessoas inteligentes louvam-no e criticam-no de maneiras variadas. Uma das opiniões foi como se segue. Dever filial e uma emergência nacional, na qual não há lugar para conduta cumpridora da lei, o tinham levado a uma guerra civil – e isso não pode ser iniciado nem mantido por métodos decentes. Ele tinha feito muitas concessões a Antônio e Lépido por causa de vingança contra os assassinos de seu pai.

Quando Lépido ficou velho e preguiçoso, e a autoindulgência de Antônio levou a melhor sobre ele, a única cura possível para o país distraído seria o governo por um homem. Contudo, Augusto colocou o Estado em ordem não se fazendo rei ou ditador, mas criando o principado. As fronteiras do império estavam no oceano ou em rios distantes. Exércitos, províncias, frotas e o sistema inteiro estavam interrelacionados. Os cidadãos de Roma estavam protegidos pela lei. As províncias eram decentemente tratadas. Roma em si tinha sido ricamente embelezada. A força tinha sido usada com moderação meramente para preservar a paz para a maioria.” 

De acordo com uma segunda opinião oposta: 

“dever filial e crise nacional foram meramente pretextos. Na realidade, o motivo de Otaviano, o futuro Augusto, foi luxúria pelo poder […] Houve certamente paz, mas foi uma paz manchada de sangue de desastres e assassinatos.” 

Numa recente biografia sobre o imperador, Anthony Everitt afirma que, através dos séculos, julgamentos sobre o reinado de Augusto oscilaram entre estes dois extremos, mas salienta que: 

“Opostos não têm que ser mutuamente exclusivos, e não somos obrigados a escolher um ou outro. A história de sua carreira mostra que Augusto foi de fato implacável, cruel e ambicioso. Isso somente em parte era um traço pessoal, pois romanos da classe alta eram educados para competir uns com os outros e para se destacar. Contudo, ele combinou uma preocupação primordial de seus interesses pessoais com um profundo patriotismo, baseado na nostalgia das antigas virtudes de Roma.

Em sua capacidade como príncipe, egoísmo e altruísmo coexistiram em sua cabeça. Enquanto lutava pelo domínio, deu pouca atenção para a legalidade ou para as civilidades normais da vida política. Foi insincero, indigno de confiança e sedento de sangue. Mas, uma vez estabelecida sua autoridade, governou eficiente e justamente, geralmente permitindo liberdade de discurso, e promoveu o governo da lei. Foi imensamente trabalhador e esforçou-se tão duro como qualquer parlamentar democrático para tratar seus colegas senadores com respeito e sensibilidade. Ele não sofreu de ilusões da grandeza.” 

Tácito era da crença de que Nerva (r. 96–98) com sucesso “misturou duas ideias anteriormente opostas, principado e liberdade”. O historiador do século III Dião Cássio reconheceu Augusto como um governante moderado e benigno, embora, como muitos outros historiadores após sua morte, o tenha visto como um autocrata. O poeta Lucano era da opinião de que a vitória de Júlio César sobre Pompeu e a queda de Catão, o Jovem marcou o fim da liberdade tradicional em Roma. O historiador Chester G. Starr escreve de sua evitação de criticá-lo: “talvez Augusto fosse uma figura demasiado sagrada para se acusar diretamente”.

O escritor anglo-irlandês Jonathan Swift em seu Discurso sobre competições e dissensões em Atenas e Roma criticou-o abertamente por instalar tirania sobre Roma e comparou a que acreditava virtuosa monarquia constitucional da Grã-Bretanha com a república moral de Roma do século II a.C.. Em sua crítica a ele, o almirante e historiador Thomas Gordon comparou-o com o tirano puritano Oliver Cromwell. Thomas Gordon e Montesquieu ressaltaram que era covarde em batalha. Em suas Memórias da Corte de Augusto, o escocês Thomas Blackwell considerou-o governante maquiavélico, “usurpador vingativo e sedento de sangue”, “perverso e sem valor”, “um espírito mau” e um “tirano”.

Reformas na receita

As reformas de Augusto na receita pública tiveram um grande impacto sobre o sucesso subsequente do Império. Ele levou para uma parcela muito maior da base territorial expandida do Império uma taxação direta e consistente de Roma, em vez dos tributos variáveis, intermitentes e de certa forma arbitrários para cada província, como seus antecessores tinham feito. Esta reforma aumentou grandemente a receita líquida romana por suas aquisições territoriais, estabilizou seu fluxo e regularizou a relação financeira entre Roma e as províncias, em vez de provocar novos ressentimentos com cada nova cobrança arbitrária de tributo. 

As medidas de taxação de seu reinado foram determinadas por censos populacionais, com cotas fixas para cada província. Os cidadãos de Roma e da Itália pagavam tributos indiretos, enquanto das províncias eram cobrados tributos diretos. Dentre os tributos indiretos havia uma taxa de 4% sobre o preço de escravos, uma de 1% sobre bens vendidos em leilão e uma de 5% sobre a herança de propriedades avaliadas acima de 100 000 sestércios por pessoas que não os parentes mais próximos. 

Outra importante reforma foi a abolição da coleta privada de impostos, que foi substituída pelo serviço civil assalariado de coletor de impostos. Contratados privados que levantavam os impostos foram a norma durante a República, e alguns se tornaram suficientemente poderosos para influenciar a quantidade de votos para os políticos em Roma. Os coletores fiscais (publicanos) tinham péssima reputação por suas depredações, bem como grandes fortunas privadas, por adquirirem o direito de taxarem áreas locais. 

A receita de Roma era a soma das propostas vencedoras, e os lucros dos coletores fiscais consistia das quantias adicionais que eles conseguiam espremer à força da população, com a bênção de Roma. A falta de supervisão efetiva, combinada com o desejo dos coletores fiscais de maximizar seus lucros, produziu um sistema de cobranças arbitrárias que foi, com frequência, barbaramente cruel para os contribuintes, amplamente (e com precisão) percebida como injusta e muito prejudicial para os investimentos e a economia. 

O uso dos imensos alugueis de terra do Egito para financiar as operações do Império resultaram da conquista do Egito por Augusto e da mudança para a forma romana de governo. Como era na prática considerado uma propriedade privada do imperador e não uma província imperial, tornou-se parte do patrimônio de cada um dos imperadores subsequentes.

Em vez de um legado ou procônsul, Augusto instalou um prefeito da classe equestre para administrar o Egito e manter seus lucrativos portos marítimos; esta posição tornou-se a mais alta conquista política para qualquer equestre, além da de prefeito da guarda pretoriana. O território agrícola altamente produtivo do Egito rendeu enormes receitas, que estavam disponíveis para ele e seus sucessores pagarem por obras públicas e expedições militares, além de pão e circo para a população de Roma. 

Mês de agosto

O mês de agosto (em latim: Augustus) foi nomeado em honra a Augusto. Até seu tempo era chamado sextil (sextilis em latim) devido ao fato de ter sido o sexto mês do calendário romano original. Uma história comumente repetida diz que agosto tinha 31 dias porque Augusto quis que seu mês coincidisse em tamanho com o julho de Júlio César, mas isso foi uma invenção do estudioso do século XIII João de Sacrobosco.

Sextil tinha 31 dias antes de ser renomeado, e não foi escolhido por seu comprimento (ver calendário juliano). De acordo com o senatus consultum citado por Macróbio, sextil foi renomeado em honra a Augusto porque vários dos eventos significativos de sua ascensão ao poder, culminando com a queda de Alexandria, ocorreram naquele mês. 

Forças armadas

Com o fim das guerras civis, Augusto também foi capaz de criar um exército permanente para o Império Romano, fixado em 28 legiões com cerca de 170 000 soldados, que eram apoiados por numerosas unidades auxiliares de 500 soldados cada, frequentemente recrutadas nos territórios recém-conquistados.

Além disso, com suas finanças assegurando a manutenção das estradas através da Itália, ele também implantou um sistema oficial de mensageiros com estações de conexão supervisionadas por um oficial militar conhecido como prefeito dos veículos (praefectus vehiculorum). Ademais do advento de uma comunicação mais rápida entre os políticos italianos, a extensiva construção de estradas também permitiu que os exércitos romanos marchassem rapidamente e num ritmo sem precedentes através do país. No ano 6, Augusto estabeleceu o erário militar, doando 170 milhões de sestércios para o novo tesouro militar que suportava soldados ativos e aposentados. 

Sob Augusto, Roma foi totalmente transformada, com a institucionalização da primeira força policial e de bombeiros da cidade, respectivamente as coortes urbanos (cohortes urbanae) e os vigiles urbanos (vigiles urbani), e com o estabelecimento do prefeito municipal (praefectus municipii) como um cargo permanente. A força policial foi dividida em coortes de 500 homens cada, enquanto as unidades de bombeiros variavam de 500 a 1 000 homens cada, com sete unidades atribuídas para os 14 setores da cidade.

Um prefeito dos vigias (praefectus vigilum) foi designado como encarregado dos vigiles. Uma das instituições mais duradouras de Augusto foi a guarda pretoriana, estabelecida em 27 a.C., originalmente como uma unidade de guarda pessoal no campo de batalha e que evoluiu para uma guarda imperial, bem como uma importante força política em Roma. Ela tinha o poder de intimidar o senado, instalar novos imperadores e depor aqueles de que desgostava. O último imperador a quem serviu foi Maxêncio (r. 306–312) e foi Constantino (r. 306–337) quem desmontou esta unidade e destruiu seu quartel, o acampamento pretoriano. 

Projetos de construção

Na esfera da arquitetura, Augusto promoveu um extenso programa de construção que incluiu construções, restaurações e decorações, financiadas com seus recursos privados. Tal programa torna-se expresso na célebre frase proferida em seu leito de morte: “Encontrei uma Roma de tijolos; dei uma de mármore para vocês”. Embora haja alguma verdade no significado literal disso, Dião Cássio afirma que foi uma metáfora para a força do império.

Mármore pode ser encontrado em edifícios de Roma anteriores a Augusto, mas não era extensivamente usado como um material de construção até seu reinado. Embora isso não se aplique às favelas de Subura, que ainda eram tão frágeis e propensas a incêndios como sempre, ele deixou uma marca sobre a topografia monumental do centro e do Campo de Marte. 

O estilo augustano pode ser entendido como uma mistura de conservadorismo e inovação, frequentemente associado a um olhar grego por meio do emprego da ordem coríntia, que tornou-se o estilo arquitetônico dominante a partir de Augusto. Suetônio certa vez comentou que Roma era indigna de seu estatuto como uma capital imperial, uma vez que o príncipe e Agripa haviam desmantelado este sentimento ao transformar a aparência de Roma num modelo grego clássico.

Para celebrar sua vitória na Batalha de Áccio, um Arco de Augusto foi erguido em 29 a.C., sendo erguido outro, em 19 a.C., no Vico Vestal entre o Templo de César e o Templo de Castor e Pólux, para celebrar sua reconquista dos estandartes de guerra perdidos por Crasso em 53 a.C. para o Império Parta. Era no segundo que originalmente encontravam-se os Fastos Capitolinos.

Augusto também construiu o Altar da Paz (Ara Pacis), com inúmeros relevos que representam os cortejos imperiais dos pretorianos, as vestais e os cidadãos de Roma, um relógio monumental, cujo gnômon central era um obelisco tomado do Egito, o Diribitório, o Templo de César, a Biblioteca e o Templo de Apolo Palatino e o Fórum de Augusto com seu Templo de Marte Ultor. 

Outros projetos também foram encorajados, tais como a reforma do Septa Júlia de Júlio César, que tornou-se palco de lutas de gladiadores, e a construção do Teatro de Balbo, o Panteão, as Termas, o Estagno e o Euripo de Agripa, ou custeados em nome de outros, frequentemente parentes, como por exemplo o Pórtico de Otávia, o Macelo de Lívia e o Teatro de Marcelo.

Mesmo seu mausoléu foi construído antes de sua morte para abrigar os membros de sua família. Há também muitos edifícios construídos fora da cidade de Roma que portam seu nome e legado, tais como o Teatro de Mérida, na atual Espanha, o Maison Carrée de Nîmes e o Templo de Augusto e Lívia de Vienne, ambos na França, e o Troféu de Augusto em La Turbie, próximo de Mônaco. 

Após a morte de Agripa em 12 a.C., uma solução tinha que ser encontrada para a manutenção do suprimento de água de Roma. Tal discussão se deveu ao fato de Agripa supervisionar a questão quando serviu como edil e de, como cidadão privado, financiá-lo. Naquele ano, o imperador organizou um sistema onde o senado designou três de seus membros como os principais comissários encarregados do suprimento de água e de assegurar que os aquedutos da cidade não ficassem sem manutenção.

No final da era augustana, a comissão de cinco senadores chamada curatores locorum publicorum iudicandorum (“supervisores da propriedade pública”) foi encarregada da manutenção dos edifícios públicos e templos do culto estatal. Augusto também criou o grupo senatorial dos curadores viários (curatores viarum) para manutenção das estradas. Esta comissão senatorial trabalhou com oficiais locais e contratantes para organizar reparos regulares. 

Previdência

Augusto assegurou sua posição cortando os vínculos de dependência e lealdade pessoal entre os exércitos e seus comandantes individuais, em grande parte graças a criação do primeiro programa de previdência pública do mundo. Augusto estabeleceu termos e condições uniformes para o serviço no Exército, fixando para os legionários um prazo-padrão de dezesseis anos (logo aumentado para vinte) e garantindo-lhes na aposentadoria um pagamento, com dinheiro público, no valor de cerca de vinte vezes o pagamento anual, ou o equivalente disso em terras.

Essas medidas acabaram de vez com a dependência que os soldados tinham de seus generais, que eram os provedores de suas aposentadorias — o que, no último século da República, havia feito com que a lealdade particular dos soldados aos seus comandante superasse muitas vezes sua lealdade a Roma. Em outras palavras, após centenas de anos de uma milícia entre o público e o privado, Augusto nacionalizou totalmente as legiões romanas e excluiu-as da política. 

Essa reforma foi uma das medidas mais caras que Augusto tomou, e era quase insustentável. A não ser que ele tenha cometido um erro grosseiro de aritmética, o custo é uma indicação da alta prioridade que dava a esse aspecto. Num cálculo grosseiro, usando os valores conhecidos dos salários dos militares, a conta anual para um pagamento normal e mais os pacotes de aposentadoria para o Exército todo daria algo em torno de 450 milhões de sestércios. Isso era equivalente, em um cálculo ainda mais grosseiro, a mais da metade da receita anual de impostos do Império. Há claros indícios de que, mesmo com as imensas reservas do Estado e do imperador juntas, seria difícil conseguir esse dinheiro. 

Literatura

No período augustano, a literatura prosperou enormemente no mundo romano. Muito da literatura produzida nesta época provém de homens que construíram suas carreiras durante os anos do Segundo Triunvirato, por meio do patrocínio de particulares, alguns deles associados com Augusto. O patrocínio de círculos literários era comum, mas desde o século II a.C. foi praticamente abandonado. Em torno de Caio Cílnio Mecenas, um dos mais próximos associados do príncipe, formou-se um círculo que promoveu Virgílio e Horácio, enquanto outro formou-se em torno de Marco Valério Messala Corvino e promoveu Ovídio e Tibulo. Além deles, autores como Marco Vérrio Flaco, Propércio, Tito Lívio e Higino também estiveram ativos. 

A literatura augustana produziu os mais amplamente lidos, influentes e duradouros poetas romanos. Os poetas republicanos Catulo e Lucrécio foram reconhecidos como seus predecessores, ao passo que Lucano, Marcial, Juvenal e Estácio figuram como seus herdeiros da chamada “Idade de Prata” da literatura latina.

Embora Virgílio por vezes seja considerado um “poeta cortesão”, sua Eneida, a mais importante das épicas latinas, permite leituras complexas sobre a fonte e significado do poder de Roma e as responsabilidades de um bom líder. Os trabalhos de Ovídio foram amplamente populares, mas o poeta foi exilado por Augusto em um dos grandes mistérios da história da literatura. Entre os trabalhos em prosa, a história monumental de Tito Lívio é preeminente por seu escopo e realização estilística. A obra em vários volumes Sobre Arquitetura de Vitrúvio, um arquiteto patrocinado pelo próprio imperador, permanece de grande interesse informacional. 

Questões pertinentes ao tom, ou à atitude dos escritores em relação a seu assunto, são ponto de grande interesse entre os estudiosos que estudam o período. Em particular, o esforço de entender a extensão do avançar, apoiar, criticar ou minar as atitudes políticas e sociais promulgadas pelo regime, formas oficiais que foram frequentemente expressas em media estética. Para os historiadores, a literatura augustana enveredou para uma propaganda ao regime, não por algum tipo de controle estatal, mas por um sentimento de gratidão e alívio da parte dos patronos e escritores ao fato de Augusto ter trazido estabilidade e paz para os assuntos públicos. 

Aparência física e imagens oficiais

Seu biógrafo Suetônio, escrevendo cerca de um século após sua morte, descreve sua aparência como: “ […]Ele era incomumente bonito e extremamente gracioso em todos os períodos de sua vida, embora não se importasse com nenhum adorno pessoal. Estava tão longe de ser cuidadoso sobre o tratamento de seu cabelo, que tinha vários barbeiros trabalhando às pressas ao mesmo tempo, e quanto a sua barba, às vezes a tinha aparada e às vezes raspada, enquanto ao mesmo tempo estava lendo ou escrevendo alguma coisa […] Ele tinha olhos claros e brilhantes […] Seus dentes eram afastados, pequenos e mal conservados; seu cabelo era ligeiramente cacheado e inclinando para dourado; suas sobrancelhas se juntavam.

Suas orelhas eram de tamanho moderado, e seu nariz se projetava um pouco no topo e então inclinava-se ligeiramente para dentro. Sua pele era entre escura e clara. Ele foi pequeno de estatura (embora Júlio Marato diga que possuía 1,75 m de altura), mas isso era ocultado pela excelente proporção e simetria de sua figura, e era perceptível apenas por comparação com alguma pessoa mais alta de pé ao lado dele. […] ” 

Veja mais:

Suas imagens oficiais eram muito firmemente controladas e idealizadas, extraídas de uma tradição do retrato real helenístico em vez do tradicional realismo do retrato romano. Ele aparece pela primeira vez em moedas aos 19 anos, e de ca. 29 a.C., “a explosão em número de retratos augustanos atestam uma combinada campanha de propaganda destinada a dominar todos os aspectos da vida civil, religiosa, econômica e militar com a pessoa de Augusto”.

As primeiras imagens de fato descreveram um homem jovem, mas embora tenha havido mudanças graduais, suas imagens mantiveram-no juvenil até sua morte aos 70, altura em que tinha “um distanciado ar de majestade sempre jovem”. Dentre os melhores dos muitos retratos conhecidos estão o Augusto da Prima Porta, a imagem sobre o Altar da Paz e o Augusto da Via Labicana, que o mostra como um sacerdote. Vários camafeus retratísticos incluem o Camafeu Blacas e a Gema Augusta.

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Asoka https://canalfezhistoria.com/asoka/ https://canalfezhistoria.com/asoka/#respond Sat, 08 Mar 2025 12:52:00 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5739 Asoka, também grafado Asoca, Açoca, Açoka, Axoca ou Ashoka, também conhecido como Açocavardana (em devanágari, अशोक Aśokaḥ) (304 a.C. – 232 a.C.) foi um imperador indiano da dinastia máuria que reinou entre 273 e 232 a.C. Frequentemente citado como um dos maiores imperadores da Índia, Açoca reinou sobre a maior parte do território correspondente à Índia moderna depois de várias conquistas militares. Seu império estendia-se do atual Paquistão, Afeganistão e partes do Irã, a oeste, até Bengala e os atuais estados indianos de Assã, a leste, e de Maiçor, ao sul. Sua capital era em Mágada (atualmente no estado indiano de Biar).

Ele converteu-se ao budismo, abandonando a tradição védica predominante, depois de testemunhar os massacres da guerra de Calinga, que ele mesmo havia iniciado devido a seu desejo de conquista. Dedicou-se posteriormente à propagação do budismo na Ásia e estabeleceu monumentos marcando diversos lugares significativos na vida de Gautama Buda. Seu título imperial em prácrito advém do devanágari Devanampriya Priyadarsi (देवानांप्रिय प्रियदर्शी “Aquele que é amado pelos deuses e que é amável para com todos”) e Dhamma (धम्म “Que segue a lei, religioso, justo”). 

Primeiros anos

Asoka era filho do imperador máuria Bindusara e de sua rainha Dharma (embora ela fosse uma brâmane ou shubhadrangi, era subestimada porque não tinha sangue real). Asoka teve vários irmãos mais velhos (todos meio-irmãos, filhos de outras esposas de Bindusara). Ele tinha apenas um irmão mais novo, Vitthashoka (um irmão muito amado da mesma mãe). Devido à sua grande inteligência e habilidades de guerreiro, dizia-se ter sido o favorito de seu avô Chandragupta Máuria. Como diz a lenda, quando Chandragupta Máuria deixou seu império por uma vida jainista, ele jogou fora sua espada. Asoka encontrou a espada e a guardou, apesar da advertência de seu avô. 

Asoka, em sua adolescência, era rude e impertinente. Era um caçador temível. Foi um xátria e recebeu todos os treinamentos militares reais e outros conhecimentos védicos. De acordo com uma lenda, ele matou um leão com apenas uma haste de madeira. Era muito conhecido por sua luta de espadas. Ele era muito aventureiro e isso fez, dele, um lutador espetacular. Era um guerreiro assustador e uma general sem coração. Devido a esta qualidade, ele foi enviado para destruir o motim de Avanti. 

Ascensão ao poder

Revelando-se um general guerreiro impecável e um político astuto, Asoka passou a comandar vários regimentos do exército máuria. Sua crescente popularidade em todo o império fez seus irmãos mais velhos desconfiarem de suas chances de serem preferidos por Bindusara para se tornarem o próximo imperador. O mais velho deles, Susima, o tradicional herdeiro ao trono, convenceu Bindusara a enviar Asoka para reprimir uma revolta em Taxila, uma cidade no distrito noroeste da região paquistanesa de Punjab, onde o príncipe Susima era o governador.

Taxila era um lugar muito inconstante por causa do estado de guerra entre a população indo-grega e da má gestão do próprio Susima. Isto levou à formação de diferentes milícias, causando tumultos. Asoka consentiu e partiu para a área problemática. Quando as notícias da visita de Asoka com seu exército começaram a aparecer, ele foi saudado pelas milícias revoltantes e a rebelião terminou sem um conflito (a província revoltou-se mais uma vez durante o reinado de Asoka, mas desta vez a revolta foi esmagada com punho de ferro). 

O sucesso de Asoka deixou seus meio-irmãos mais desconfiados de suas intenções de se tornar o imperador e mais incitamentos de Susima levaram Bindusara a enviar Asoka para o exílio. Ele foi para Calinga e lá permaneceu incógnito. Lá ele conheceu uma mulher pescadora chamada Kaurwaki, por quem ele se apaixonou. Recentemente, foram encontradas inscrições indicando que ela viria a se tornar sua segunda ou terceira rainha. 

Entretanto, houve novamente uma revolta violenta em Ujjain. O imperador Bindusara convocou Asoka a retornar do exílio depois de dois anos. Asoka foi para Ujjain e na batalha que se seguiu foi ferido, mas seus generais reprimiram a revolta. Asoka foi tratado de forma oculta para que os partidários do grupo de Susima não pudessem prejudicá-lo. Ele foi tratado por monges e monjas budistas.

Nesta ocasião, ele aprendeu pela primeira vez sobre os ensinamentos de Buda, e foi também quando se encontrou com Devi, que foi sua enfermeira pessoal e filha de um comerciante da adjacente Vidisha. Após a recuperação, ele se casou com ela. Era completamente inaceitável para Bindusara que um de seus filhos se casasse com uma budista, por isso ele não permitiu a Asoka ficar em Pataliputra, mas em vez disso mandou-o de volta para Ujjain e o fez governador de Ujjain. 

O ano seguinte foi de completa paz para ele e Devi estava prestes a ter seu primeiro filho. Entretanto, o Imperador Bindusara morreu. Quando a notícia do herdeiro ao trono prestes a nascer espalhou-se, o príncipe Susima planejou a execução do nascituro. No entanto, o assassino que veio para matar Devi e seu filho matou sua mãe em seu lugar. Nesta fase da sua vida, Asoka era conhecido por sua sede insaciável por guerras e campanhas lançadas para conquistar as terras de outros governantes e tornou-se conhecido como Chandashok (terrível Asoka; a palavra em sânscrito chanda significa cruel, feroz ou rude). 

Tendo subido ao trono, Asoka expandiu o seu império ao longo dos oito anos seguintes, desde os limites atuais e regiões da Birmânia- Bangladesh e do estado de Assam na Índia no leste da território do atual Irã/Pérsia e Afeganistão, a oeste; desde a cordilheira Pamir no norte até quase à porção peninsular ao sul da Índia (ou seja, Tamil Nadu/Andhra Pradesh). 

Conquista de Calinga

Enquanto a primeira parte do reinado de Asoka foi aparentemente bastante sanguinária, ele se tornou um seguidor dos ensinamentos de Buda após a conquista de Calinga, na costa leste da Índia, no estado atual de Orissa. Calinga era um estado que se orgulhava de sua soberania e democracia. Com a sua democracia parlamentar monárquica, o estado era uma completa exceção na Índia Antiga, onde existia o conceito de Rajdharma (Rajdharma significa “o dever dos governantes”, que era intrinsecamente entrelaçado com o conceito de bravura e darma xátria). 

O pretexto para o início da Guerra de Calinga (265 ou 263 a.C.) é incerto. Um dos irmãos de Susima poderia ter fugido para Calinga e encontrado refúgio oficial lá. Isto teria enfurecido Asoka imensamente. Ele foi aconselhado por seus ministros para atacar Calinga devido a este ato de traição. Asoka então pediu que Calinga lhe pagasse para manter sua supremacia. Quando eles se recusaram a qualquer pagamento, Asoka enviou um de seus generais para Calinga para fazê-los ceder. 

Veja mais:

O general e suas forças ficaram, no entanto, completamente desnorteados através do tato hábil do comandante-em-chefe de Calinga. Asoka, perplexo com esta derrota, atacou com a maior invasão já registrada na história da Índia até então. Calinga colocou uma forte resistência, mas eles não foram páreo para a força brutal da Asoka. Calinga inteira foi saqueada e destruída. Éditos posteriores de Asoka afirmaram que cerca de 100 000 pessoas foram mortas pelo lado de Calinga e 10 000 no exército da Asoka. Milhares de homens e mulheres foram deportados.

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Benjamin Franklin https://canalfezhistoria.com/benjamin-franklin/ https://canalfezhistoria.com/benjamin-franklin/#respond Sat, 08 Mar 2025 10:29:33 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5754 Benjamin Franklin (Boston, 17 de janeiro de 1706 — Filadélfia, 17 de abril de 1790) foi um jornalista, editor, autor, filantropo, político, abolicionista, funcionário público, cientista, diplomata, inventor e enxadrista estadunidense. 

Foi um dos líderes da Revolução Americana, conhecido por suas citações e experiências com a eletricidade. Foi ainda o primeiro embaixador dos Estados Unidos em França. Religioso, calvinista, e uma figura representativa do iluminismo. Correspondeu-se com membros da sociedade lunar e foi eleito membro da Royal Society. Em 1771, Franklin tornou-se o primeiro Postmaster General (ministro dos correios) dos Estados Unidos. 

Juventude

Benjamin Franklin nasceu em Milk Street, Boston. O seu pai, Josiah Franklin, era comerciante de velas de cera, e casou duas vezes. Benjamin foi o 17º filho de 20 crianças nascidas dos dois casamentos. Deixou os estudos aos dez anos de idade e aos doze começou a trabalhar como aprendiz do seu irmão, James, um impressor que publicava um jornal chamado “The New-England Courant”.

Tornou-se colaborador da publicação e foi seu editor nominal, escrevendo as cartas, sob o pseudônimo de Mrs. Silence Dogood, uma viúva de meia idade. Depois de uma discussão com o irmão, Benjamin fugiu, causa que o transformou em um fugitivo da lei, indo primeiro a Nova Iorque e depois a Filadélfia, onde chegou em outubro de 1723. 

Em breve encontrou trabalho como impressor, mas após alguns meses, foi convencido pelo governador Keith a ir para Londres, onde, desiludido das promessas de Keith, voltou a trabalhar como compositor tipográfico, até que um mercador chamado Thomas Denham o fizesse regressar a Filadélfia, dando-lhe uma posição na sua empresa. 

Em 1732 começou a publicar o famoso Almanaque do Pobre Ricardo (Poor Richard’s Almanac), no qual se baseia boa parte da sua popularidade nos EUA. Provérbios deste almanaque, tais como “um tostão poupado é um tostão ganhado”, tornaram-se conhecidos em todo o mundo. 

Franklin e outros maçons juntaram os seus recursos em 1731 e iniciaram a primeira biblioteca pública de Filadélfia. Fundaram para esse fim uma empresa, que encomendou os seus primeiros livros em 1732, na sua maioria livros de teologia e educacionais, mas em 1741 a biblioteca também incluía obras de história, de geografia, de poesia e de ciência. Os sucessos dessa empreitada encorajaram a abertura de bibliotecas em outras cidades americanas e Franklin percebeu que tal iniciativa fazia parte da luta das colônias na defesa dos seus interesses. 

Assuntos públicos e estudos científicos

Em 1758, o ano em que Franklin deixou de escrever para o almanaque, imprimiu O sermão do pai Abraão, hoje considerado o texto mais famoso da literatura produzida na América nos tempos coloniais. Entretanto, Franklin estava preocupado cada vez mais com os assuntos públicos; fundou a Universidade da Pensilvânia e a sociedade filosófica americana, com o fim de fomentar a comunicação das descobertas entre os homens da ciência.

Ele já tinha começado a pesquisa da estática, que o iria ocupar, juntamente com outros temas científicos, com a política e com os negócios, até ao fim da sua vida. Em 1748 Franklin vendeu o seu negócio e, tendo adquirido uma riqueza notável, pôde dispor de mais tempo livre para os estudos. Num espaço de poucos anos fez descobertas sobre a eletricidade que lhe deram reputação internacional. Identificou as cargas positiva e negativa, e demonstrou que os raios são um fenómeno de natureza elétrica. 

Franklin tornou esta teoria inesquecível através da experiência extremamente perigosa de fazer voar uma pipa durante uma tempestade, em 1 de outubro de 1752. Nos seus escritos, ele demonstra que estava consciente dos perigos e dos modos alternativos de demonstrar que o trovão era elétrico. Se Franklin fez a experiência, ele não a fez da forma descrita – ela teria sido fatal. 

As invenções de Franklin incluíram o pára-raios, o aquecedor de Franklin – franklin stove (um aquecedor a lenha que se tornou muito popular, debitando uma corrente de ar diretamente na área a aquecer), as lentes bifocais e o corpo de bombeiros norte-americano. 

Franklin estabeleceu duas áreas de estudo importantes das ciências naturais: eletricidade e meteorologia. Na sua obra clássica A história das teorias da eletricidade e do Éter, Sir Edmund Whittaker refere-se à inferência de Franklin de que quando se esfrega uma substância não se cria nenhuma carga elétrica, mas esta é apenas transferida, de modo que “a quantidade total em qualquer sistema isolado é invariável”.

Esta asserção é conhecida como o “princípio da conservação da carga”. Como tipógrafo e editor de jornais, Franklin frequentava os mercados dos agricultores para angariar notícias. Um dia notou que a notícia que dava conta de uma tormenta num lugar distante da Pensilvânia deveria se referir à mesma tormenta que visitara Filadélfia em dias recentes. Concluiu que algumas tormentas se deslocam, o que levou aos mapas sinópticos da meteorologia dinâmica, substituindo a dependência única pelos gráficos da climatologia. 

Em 1751, Franklin e o Dr. Thomas Bond obtiveram o alvará da legislatura da Pensilvânia para estabelecer um hospital. O hospital da Pensilvânia seria o primeiro hospital a ser criado naquela nação nascente que viria a se chamar Estados Unidos da América. Em 1754, Franklin liderou a delegação da Pensilvânia ao congresso de Albany.

Este encontro de várias colônias tinha sido requerido pela associação comercial (Board of Trade) inglesa para melhorar as relações com os índios na defesa perante os franceses. Franklin propôs um amplo plano de união para as colônias. Apesar de o plano não ter sido adotado, elementos dele encontraram posteriormente lugar nos artigos da confederação e da Constituição Americana. Ele também foi contra a emissão de papel-moeda para satisfazer as dívidas dos bancos. 

Na política, Franklin foi um hábil administrador, mas também uma figura controversa: usou sua influência para favorecer familiares. O seu mais notável serviço ao público consistiu na reforma do sistema postal. Ganhou fama de estadista por seus serviços diplomáticos, atuando na ligação das colônias com a Grã-Bretanha e mais tarde com a Rússia. 

Últimos anos

Após o retorno à América, Benjamin Franklin tomou parte no caso Paxton, que levou à perda do seu assento na assembleia. Em 1764 foi novamente enviado para Inglaterra como agente das colônias, desta vez a pedido do Rei, para retirar o governo das mãos dos proprietários. Em Londres, opôs-se ativamente à proposta da Lei do Selo (Stamp Act), mas perdeu popularidade por ter assegurado a um amigo o cargo de agente fiscal nos EUA. Nem seu trabalho eficaz no apoio à revogação da lei recuperou sua popularidade. 

Continuou, porém, seus esforços na defesa das colônias mesmo quando as disputas avançavam para a crise da revolução, o que lhe causou conflito irreconciliável com o seu filho, que permaneceu ardentemente leal ao governo britânico. 

Em 1767, Franklin atravessou o canal até a França, onde foi recebido com honra; mas antes do seu regresso para casa, em 1775, perdeu sua posição como ministro dos correios (postmaster), devido ao papel que teve na divulgação em Filadélfia da famosa carta de Hutchinson e Oliver. Na sua chegada a Filadélfia, foi eleito membro do congresso continental e assistiu a redação da Declaração da Independência Americana. 

Em dezembro de 1776 voltou à França como emissário dos Estados Unidos. Residiu numa casa no subúrbio parisiense de Passy, doada por Jacques-Donatien Le Ray de Chaumont, que se tornaria seu amigo e o estrangeiro mais importante na ajuda obtida pelos Estados Unidos na Guerra da Independência Americana.

Franklin foi um dos principais dignitários da maçonaria americana. Ao chegar à França, tomou parte ativa no trabalho de depuração e de unificação da maçonaria, iniciado em 1773 com a criação do Grande Oriente, e que culminou em 1780. Dirigiu, da sua casa em Passy, “as Musas” (Loge des Neufs Soeurs), em que se reuniram artistas e literatos como Helvétius, Condorcet, Chamfort, Mercier, Houdon, Vernet. Permaneceu na França até 1785, tendo sido muito apreciado na sociedade parisiense.

O cardeal Rohan, do célebre Caso do colar de diamantes, organizou festas em sua honra. Um médico – Marat – submeteu-lhe experiências de física. Um advogado – Brissot – interrogou-o sobre o Novo Mundo e a experiência revolucionária. Outro, dedicou-lhe a sua primeira peça – Robespierre. Foi tão popular que se tornou chique para famílias ricas francesas decorar os seus salões com um quadro dele. 

Franklin conduziu os assuntos de Estado do seu país com tal sucesso, incluindo a importante aliança militar e a negociação do tratado de Paris em 1783, que, quando regressou definitivamente aos EUA, recebeu um lugar meritório na independência americana, apenas superado pelo próprio George Washington. Quando foi chamado a regressar aos Estados Unidos em 1785, o rei honrou-o com a encomenda de um retrato pintado por Joseph Siffred Duplessis, que hoje está exposto na Galeria do Retrato Nacional do Instituto Smithsonian em Washington Após seu retorno da França em 1785, Franklin dedicou-se à abolição da escravatura, tendo-se tornado presidente da sociedade que visava a esse fim e à libertação dos negros ilegalmente retidos em cativeiro. 

Veja mais:

Benjamin Franklin morreu em 17 de abril de 1790, em Filadélfia. Encontra-se sepultado no Christ Church Burial Ground, Filadélfia, Pensilvânia nos Estados Unidos.

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Arquimedes https://canalfezhistoria.com/arquimedes/ https://canalfezhistoria.com/arquimedes/#respond Fri, 07 Mar 2025 12:39:00 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5735 Arquimedes de Siracusa (em grego: Ἀρχιμήδης; Siracusa, 287 a.C. – 212 a.C.) foi um matemático, físico, engenheiro, inventor, e astrônomo grego. Embora poucos detalhes de sua vida sejam conhecidos, são suficientes para que seja considerado um dos principais cientistas da Antiguidade Clássica. 

Entre suas contribuições à Física, estão as fundações da hidrostática e da estática, tendo descoberto a lei do empuxo e a lei da alavanca, além de muitas outras. Ele inventou ainda vários tipos de máquinas para usos militar e civil, incluindo armas de cerco, e a bomba de parafuso que leva seu nome. Experimentos modernos testaram alegações de que, para defender sua cidade, Arquimedes projetou máquinas capazes de levantar navios inimigos para fora da água e colocar navios em chamas usando um conjunto de espelhos. 

Arquimedes é frequentemente considerado o maior matemático da antiguidade, e um dos maiores de todos os tempos (ao lado de Newton, Euler e Gauss). Ele usou o método da exaustão para calcular a área sob o arco de uma parábola utilizando a soma de uma série infinita, e também encontrou uma aproximação bastante acurada do número π. Também descobriu a espiral que leva seu nome, fórmulas para os volumes de sólidos de revolução e um engenhoso sistema para expressar números muito grandes. 

Durante o Cerco a Siracusa, Arquimedes foi morto por um soldado romano, mesmo após os soldados terem recebido ordens para que não o ferissem, devido à admiração que os líderes romanos tinham por ele. Anos depois, Cícero descreveu sua visita ao túmulo de Arquimedes, que era encimado por uma esfera inscrita em um cilindro. Arquimedes tinha descoberto e provado que a esfera tem exatamente dois terços do volume e da área da superfície do cilindro a ela circunscrito (incluindo as bases do último), e considerou essa como a maior de suas realizações matemáticas. 

Arquimedes teve uma importância decisiva no surgimento da ciência moderna, tendo influenciado, entre outros, Galileu Galilei, Christiaan Huygens e Isaac Newton. 

Biografia

Arquimedes nasceu por volta de 287 a.C. na cidade portuária de Siracusa, na Sicília, naquele tempo uma colônia autogovernante na Magna Grécia. A data de nascimento é baseada numa afirmação do historiador grego bizantino João Tzetzes, de que Arquimedes viveu 75 anos. Em sua obra O Contador de Areia, Arquimedes conta que seu pai se chamava Fídias, um astrônomo sobre quem nada se sabe atualmente. Plutarco escreveu em Vidas Paralelas que Arquimedes era parente do Rei Hierão II, o governante de Siracusa.

Uma biografia de Arquimedes foi escrita por seu amigo Heráclides, mas esse trabalho foi perdido, deixando os detalhes de sua vida obscuros. É desconhecido, por exemplo, se ele se casou ou teve filhos. Durante sua juventude, Arquimedes talvez tenha estudado em Alexandria, Egito, onde Conon de Samos e Eratóstenes de Cirene foram contemporâneos. Ele se referiu a Conon de Samos como seu amigo, enquanto dois de seus trabalhos (O Método dos Teoremas Mecânicos e o O Problema Bovino) têm introduções destinadas a Eratóstenes. 

Arquimedes morreu em circa. 212 a.C. durante a Segunda Guerra Púnica, quando forças romanas sob o comando do general Marco Cláudio Marcelo capturaram a cidade de Siracusa após um cerco de dois anos. Existem diversas versões sobre sua morte. De acordo com o relato dado por Plutarco, Arquimedes estava contemplando um diagrama matemático quando a cidade foi capturada. Um soldado romano ordenou que ele fosse conhecer Marcelo, mas ele se recusou, dizendo que ele tinha que terminar de trabalhar no problema.

O soldado ficou furioso com isso, e matou Arquimedes com sua espada. Plutarco também oferece um relato menos conhecido da morte de Arquimedes, que sugere que ele pode ter sido morto enquanto tentava se render a um soldado romano. De acordo com essa história, Arquimedes estava carregando instrumentos matemáticos, e foi morto porque o soldado pensou que fossem itens valiosos. Marcelo teria ficado irritado com a morte de Arquimedes, visto que o considerava uma posse científica valiosa, e tinha ordenado que ele não fosse ferido. 

As últimas palavras atribuídas a Arquimedes são “Não perturbe meus círculos” (em grego: μή μου τούς κύκλους τάραττε), uma referência aos círculos no desenho matemático que ele estaria estudando quando perturbado pelo soldado romano. Esta citação é muitas vezes dada em Latim como “Noli turbare circulos meos,” mas não há nenhuma evidência confiável de que Arquimedes pronunciou estas palavras e elas não aparecem no relato dado por Plutarco. 

O túmulo de Arquimedes continha uma escultura ilustrando sua demonstração matemática favorita, consistindo de uma esfera e um cilindro de mesma altura e diâmetro. Arquimedes tinha provado que o volume e a área da superfície da esfera são dois terços da do cilindro incluindo suas bases. Em 75 a.C, 137 anos após sua morte, o orador romano Cícero estava trabalhando como questor na Sicília.

Ele tinha ouvido histórias sobre o túmulo de Arquimedes, mas nenhum dos moradores foi capaz de lhe dar a localização. Após algum tempo, ele encontrou o túmulo próximo ao Portão de Agrigentino em Siracusa, em condição negligenciada e coberto de arbustos. Cícero limpou o túmulo, e foi capaz de ver a escultura e ler alguns dos versos que haviam sido adicionados como inscrição. 

As versões conhecidas a respeito da vida de Arquimedes foram escritas muito tempo depois de sua morte pelos historiadores da Roma Antiga. O relato do cerco a Siracusa dado por Políbio em seu História Universal foi escrito por volta de setenta anos depois da morte de Arquimedes, e foi utilizado posteriormente como fonte por Plutarco e Lívio. Ele esclarece pouco sobre Arquimedes como uma pessoa, e centra-se nas máquinas de guerra que ele supostamente construiu a fim de defender a cidade. 

Descobertas e invenções

A coroa de ouro

A curiosidade mais conhecida sobre Arquimedes conta sobre como ele inventou um método para determinar o volume de um objeto de forma irregular. De acordo com Vitrúvio, uma coroa votiva para um templo tinha sido feita para o Rei Hierão II, que tinha fornecido ouro puro para ser usado, e Arquimedes foi solicitado a determinar se alguma prata tinha sido usada na confecção da coroa pelo possivelmente desonesto ferreiro.

Arquimedes tinha que resolver o problema sem danificar a coroa, de forma que ele não poderia derretê-la em um corpo de formato regular, a fim de encontrar seu volume para calcular a sua densidade. Enquanto tomava um banho, ele percebeu que o nível da água na banheira subia enquanto ele entrava, e percebeu que esse efeito poderia ser usado para determinar o volume da coroa. Para efeitos práticos, a água é incompressível, assim a coroa submersa deslocaria uma quantidade de água igual ao seu próprio volume.

Dividindo a massa da coroa pelo volume de água deslocada, a densidade da coroa podia ser obtida. Essa densidade seria menor do que a do ouro se metais mais baratos e menos densos tivessem sido adicionados. Arquimedes teria ficado tão animado com sua descoberta que teria esquecido de se vestir e saído gritando pelas ruas “Eureka!” (em grego: “εὕρηκα!,” significando “Encontrei!”). O teste foi realizado com sucesso, provando que prata realmente tinha sido misturada. 

A história da coroa de ouro não aparece nas obras conhecidas de Arquimedes, sendo possível que a historia tenha sido embelezada e confundida com a história verdadeira da construção do navio Syracusia desenhado por Arquimedes e construído em torno de 240 A.C. por Archias de Corinto nas ordens de Hierão II de Siracusa. A palavra grega para coroa (em grego: στέμμα), especificamente a coroa do navio, teria sido, então, confundida com a palavra latina para coroa (em latim: coronam), a de usar na cabeça.

Além disso, a praticabilidade do método descrito tem sido posta em dúvida, devido à extrema precisão com que se teria que medir o deslocamento de água. Arquimedes pode ter buscado uma solução que aplicasse o princípio conhecido em hidrostática como princípio de Arquimedes, que ele descreveu em seu tratado Sobre os Corpos Flutuantes. Esse princípio afirma que um corpo imerso em um fluido sofre uma força de empuxo igual ao peso do fluido que ele desloca.

Usando esse princípio, teria sido possível comparar a densidade da coroa de ouro à de ouro maciço equilibrando-se a coroa em uma balança de braços iguais com uma amostra de ouro, e então imergindo-se o aparato na água. Se a coroa fosse menos densa que ouro, ela deslocaria mais água, devido ao seu maior volume, e assim experimentaria uma força de empuxo maior do que a amostra de ouro. Essa diferença de empuxo causaria a balança a inclinar-se de acordo.

Galileu considerou “provável que esse método é o mesmo que Arquimedes seguiu, uma vez que, além de ser bastante acurado, é baseado em demonstrações encontradas pelo próprio Arquimedes.” Num texto do século XII intitulado Mappae clavicula, há instruções detalhadas sobre como realizar as pesagens dentro da água com o fim de calcular a porcentagem de prata utilizada, e assim resolver o problema. Além disso, o poema latino Carmen de ponderibus et mensuris do século IV ou V d.C. descreve a utilização de uma balança hidrostática para solucionar o problema da coroa, e atribui esse método a Arquimedes. 

O Siracusia e o parafuso de Arquimedes

Grande parte do trabalho de Arquimedes em engenharia surgiu para satisfazer as necessidades de sua cidade natal, Siracusa. O escritor grego Ateneu de Náucratis descreveu como o Rei Hierão II encarregou Arquimedes de projetar um grande barco, o Siracusia, que poderia ser utilizado para viagens de luxo, transporte de suprimentos, e como um navio de guerra. É dito que o Siracusia foi o maior barco construído na Antiguidade Clássica. De acordo com Ateneu, ele era capaz de carregar 600 pessoas e nele havia jardins decorativos, um gymnasion e um templo dedicado à deusa Afrodite, dentre outras instalações.

Uma vez que um navio desse tamanho deixaria passar uma quantidade considerável de água através do casco, o parafuso de Arquimedes foi supostamente inventado para remover água da sentina. A máquina de Arquimedes consistia em um parafuso giratório dentro de um cilindro. Era girada a mão, e também podia ser usada para transportar água de um corpo de água baixo até canais de irrigação. O parafuso de Arquimedes é ainda usado hoje para bombear líquidos e sólidos granulados como carvão e cereais. O parafuso de Arquimedes tal como descrito por Vitrúvio nos tempos romanos pode ter sido uma melhoria em uma bomba de parafuso que foi usada para irrigar os Jardins Suspensos da Babilônia. 

A garra de Arquimedes

A garra de Arquimedes é uma arma supostamente projetada por Arquimedes a fim de defender a cidade de Siracusa. Também conhecida como “sacudidora de navios”, a garra consistia em um braço de guindaste a partir do qual pendia um grande gancho de metal. Quando a garra caia sobre um navio inimigo, o braço era usado para balançar e levantar o navio para fora da água. Experimentos modernos foram realizados para testar a viabilidade da garra, e em 2005 um documentário de televisão intitulado Super-armas do Mundo Antigo (Superweapons of the Ancient World) construiu uma versão da garra e concluiu que era um dispositivo viável. 

O raio de calor de Arquimedes

Luciano de Samósata, escritor do século II, escreveu que durante o Cerco a Siracusa (c. 214–212 a.C.), Arquimedes destruiu navios inimigos com fogo. Séculos depois, Antêmio de Trales menciona espelhos ustórios como a arma utilizada por Arquimedes. O dispositivo, algumas vezes chamado de “raio de calor de Arquimedes” ou “raio solar de Arquimedes”, teria sido usado para concentrar a luz solar em navios que se aproximavam, levando-os a pegar fogo. 

A credibilidade desta história tem sido objeto de debate desde o Renascimento. René Descartes a considerou falsa, enquanto pesquisadores modernos tentaram recriar o efeito usando apenas os meios que estavam disponíveis a Arquimedes. Foi sugerido que uma grande quantidade de escudos bem polidos de bronze ou cobre atuando como espelhos poderiam ter sido utilizados para concentrar a luz solar em um navio. Poderia ter-se usado o princípio do refletor parabólico de maneira similar a um forno solar de alta temperatura. 

Um teste do raio de calor de Arquimedes foi realizado em 1973 pelo cientista grego Ioannis Sakkas. O experimento foi realizado na base naval de Skaramangas nos arredores de Atenas. Nesta ocasião 70 espelhos foram usados, cada um com um revestimento de cobre e com um tamanho de aproximadamente 5 por 3 pés (1,5 por 1 m). Os espelhos foram apontados a uma réplica de um navio romano, feita de madeira compensada, a uma distância de aproximadamente 160 pés (50 metros). Quando os espelhos foram enfocados com precisão, o navio irrompeu em chamas em questão de poucos segundos. O navio de madeira compensada era revestido por tinta de betume, o que pode ter facilitado a combustão. 

Em outubro de 2005, um grupo de estudantes do MIT conduziu um experimento com 127 espelhos quadrados com lado de 1 pé (30 cm), focados em uma maquete de navio de madeira a uma distância de cerca de 100 pés (30 m). Chamas surgiram em uma parte do navio, mas só depois de o céu estar sem nuvens e o navio ter permanecido estacionário por cerca de dez minutos. Concluiu-se que o dispositivo era uma arma viável nessas condições.

O grupo do MIT repetiu a experiência para o programa de televisão MythBusters, utilizando um barco pesqueiro de madeira em São Francisco como o alvo. Novamente alguma carbonização ocorreu, juntamente com uma pequena quantidade de chamas. Para pegar fogo, a madeira precisa atingir a sua temperatura de autoignição, que é de cerca de 300 °C (570 °F). 

Quando o MythBusters transmitiu o resultado do experimento de São Francisco, em janeiro de 2006, a afirmação foi categorizada como mentira (“mito detonado”) devido à duração de tempo e as condições climáticas ideais necessárias para a combustão ocorrer. Também foi salientado que como Siracusa vê o mar a leste, a frota romana teria de ter atacado durante a manhã para um ótimo acúmulo de luz usando-se os espelhos. O MythBusters também salientou que armamento convencional, como flechas em chamas ou ainda catapultas, seria uma maneira muito mais fácil de incendiar um navio a curta distância. 

Em dezembro de 2010, o MythBusters olhou novamente para a história do raio de calor em uma edição especial com Barack Obama em destaque, intitulada President’s Challenge (O Desafio do Presidente). Vários experimentos foram realizados, incluindo um teste em larga escala com 500 crianças de escola mirando espelhos em uma maquete de um barco romano a 400 pés (120 m) de distância. Em todos os experimentos, a vela não alcançou os 210 °C (410 °F) necessários para que pegasse fogo, e o veredito foi novamente o de “detonado”. O programa concluiu que um efeito mais provável dos espelhos teria sido cegar, ofuscar, ou distrair a tripulação do navio. 

Outras descobertas e invenções

Apesar de Arquimedes não ter inventado a alavanca, ele deu uma explicação do princípio envolvido em sua obra Sobre o Equilíbrio dos Planos. São conhecidas descrições anteriores da alavanca pela Escola Peripatética dos seguidores de Aristóteles, e às vezes são atribuídas a Arquitas de Tarento. De acordo com Papo de Alexandria, o trabalho de Arquimedes sobre as alavancas fez com que ele exclamasse: “Deem-me um ponto de apoio e moverei a Terra.” (em grego: δῶς μοι πᾶ στῶ καὶ τὰν γᾶν κινάσω) Plutarco descreveu como Arquimedes projetou sistemas de roldanas, permitindo a marinheiros a utilização do princípio da alavanca para levantar objetos que teriam sido demasiado pesados para serem movidos de outra maneira.

Arquimedes também foi creditado pelo aumento do poder e precisão da catapulta, e por inventar o hodômetro durante a Primeira Guerra Púnica. O hodômetro foi descrito como um carrinho com um mecanismo de engrenagens que a cada milha percorrida derrubava uma bola em um recipiente. 

Cícero (106–43 a.C) menciona Arquimedes brevemente em seu diálogo De re publica, que retrata uma conversa fictícia ocorrendo em 129 a.C. Foi dito que após a captura de Siracusa em circa 212 a.C, general Marco Cláudio Marcelo levou a Roma dois mecanismos usados como ferramentas para estudos astronômicos, que mostravam os movimentos do Sol, da Lua e de cinco planetas. Cícero menciona mecanismos similares projetados por Tales de Mileto e Eudoxo de Cnido.

O diálogo conta que Marcelo manteve um dos dispositivos como sua única pilhagem pessoal de Siracusa, e doou o outro para o Templo da Virtude em Roma. De acordo com Cícero, Caio Sulpício Galo fez uma demonstração do mecanismo de Marcelo para Lúcio Fúrio Filo, que o descreveu assim: 

Esta é uma descrição de um planetário ou aparelho de Orrery. Papo de Alexandria disse que Arquimedes escreveu um manuscrito (agora perdido) sobre a construção destes mecanismos intitulado Sobre a Construção de Esferas. Investigação moderna nesta área tem sido focada no mecanismo de Anticítera, outro dispositivo da antiguidade clássica, que provavelmente foi usado para a mesma finalidade. A construção de mecanismos deste tipo teria exigido um conhecimento sofisticado de engrenagens diferenciais. Pensava-se que isto estivesse fora do alcance da tecnologia disponível nos tempos antigos, mas a descoberta do mecanismo de Anticítera, em 1902, confirmou que dispositivos desse tipo eram conhecidos dos gregos antigos. 

Trabalhos matemáticos

Embora seja popularmente mais conhecido como um inventor de dispositivos mecânicos, Arquimedes também fez importantes contribuições para o campo da matemática. Plutarco escreveu: “Ele colocou todo o seu afeto e ambição nessas especulações puras onde não há referência às necessidades vulgares da vida.” Arquimedes foi capaz de usar infinitesimais de uma maneira que é semelhante ao moderno cálculo integral, e frequentemente diz-se que é muito provável que se os gregos antigos possuíssem uma notação matemática mais apropriada (tais como um sistema numérico posicional e notação algébrica), ele teria inventado o cálculo.

Através de provas por contradição (reductio ad absurdum), ele encontrou respostas aproximadas para problemas diversos, especificando os limites entre os quais se encontrava a resposta correta. Esta técnica é conhecida como o método da exaustão, e ele empregou-o para aproximar o valor de π (pi). Ele conseguiu isso desenhando um polígono regular inscrito e outro circunscrito a um mesmo círculo. Aumentando-se o número de lados do polígono regular, ele se torna uma aproximação mais precisa de um círculo.

Quando os polígonos tinham 96 lados cada um, ele calculou os comprimentos de seus lados (sabendo o comprimento dos lados de um polígono regular de n lados, Arquimedes sabia como calcular o comprimento dos lados de um polígono regular de 2n lados e mesmo raio) e mostrou que o valor de π está entre 31⁄7 (aproximadamente 3,1429) e 310⁄71 (aproximadamente 3,1408), consistente com o seu valor real de cerca de 3,1416.

Ele também mostrou que a área de um círculo é igual a π multiplicado pelo quadrado do raio do círculo. Em Sobre a Esfera e o Cilindro, além dos resultados principais, Arquimedes postulou que qualquer grandeza quando adicionada a ela mesma suficientes vezes excederá qualquer grandeza dada. Este é o axioma de Arquimedes dos números reais. Um dos lemas utilizados por Arquimedes em seu resultado sobre a área da superfície esférica é agora visto como um caso especial do teorema de Duistermaat-Heckman em geometria simplética (descoberto dois milênios após Arquimedes). 

Em Sobre as Medidas do Círculo, Arquimedes informa o valor da raiz quadrada de 3 como estando entre 265⁄153 (aproximadamente 1,7320261) e 1351⁄780 (aproximadamente 1,7320512). O valor real é de aproximadamente 1,7320508, portanto foi uma estimativa muito precisa. Historiadores fizeram muitas hipóteses sobre qual método ele poderia ter usado para chegar neste resultado, dentre elas: um possível conhecimento de frações continuadas, uma variante do método de Diofanto, e até mesmo tentativa e erro, no entanto o tema permanece controverso.

Ele apresentou o resultado sem dar qualquer explicação sobre o método utilizado para obtê-lo. Este aspecto da obra de Arquimedes fez John Wallis comentar que ele estava: “…como se houvesse um firme propósito de encobrir os passos de sua investigação, como se ele negasse à posteridade o segredo de seu método de investigação ao mesmo tempo que desejava extrair dela o consentimento com os seus resultados.” 

Em A Quadratura da Parábola, Arquimedes provou que a área delimitada por uma parábola e uma linha reta é 4⁄3 vezes a área do triângulo inscrito correspondente, como mostrado na figura à direita. Ele expressou a solução do problema como uma série geométrica infinita com a razão comum de 1⁄4: Se o primeiro termo desta série é a área do triângulo, então o segundo é a soma das áreas de dois triângulos cujas bases são as duas linhas secantes menores, e assim por diante. Esta prova utiliza uma variação da série 1/4 + 1/16 + 1/64 + 1/256 + · · · cujo resultado é 1⁄3. 

Em O Contador de Areia, Arquimedes se dispôs a calcular o número de grãos de areia que o universo poderia conter. Ao fazê-lo, desafiou a ideia de que o número de grãos de areia era grande demais para ser contado. Ele escreveu: “Existem alguns, Rei Gelão (Gelão II, filho de Hierão II), que pensam que o número de grãos de areia é infinito em multitude; e eu me refiro a areia não só a que existe em Siracusa e no resto da Sicília, mas também a que é encontrada em qualquer região, seja habitada ou inabitada.”

Para resolver o problema, Arquimedes teve que estimar o tamanho do universo de acordo com o modelo então vigente, e inventar uma maneira de falar a respeito de números extremamente grandes. Ele inventou uma forma de escrever números baseada na miríade. A palavra corresponde a palavra grega μυριάς myriás, para o número 10 000. Propôs um sistema em que se utilizava uma potência de uma miríada elevada a um miríada (100 milhões) e concluiu que o número de grãos de areia necessários para preencher o universo seria 8 vigintilhões, isto é, 8×1063. 

Escritos

As obras de Arquimedes foram escritas em grego dórico, o dialeto falado na antiga Siracusa. As obras escritas de Arquimedes não foram conservadas tão bem quanto as de Euclides, e sabe-se da existência de sete de seus tratados apenas através de referências feitas a eles por outros autores. Papo de Alexandria menciona Sobre a Construção de Esferas e outro trabalho sobre poliedros (ver poliedros de Arquimedes), ao passo que Téon de Alexandria cita uma observação sobre a refração proveniente do agora perdido Catoptrica.

Durante sua vida, Arquimedes tornou seu trabalho conhecido através de correspondências mantidas com matemáticos de Alexandria. Os escritos de Arquimedes foram coletados pelo arquiteto bizantino Isidoro de Mileto (c. 530 d.C.), ao passo que comentários escritos no século VI d.C. por Eutócio a respeito dos trabalhos de Arquimedes ajudaram a difundir seu trabalho a um público mais amplo.

O trabalho de Arquimedes foi traduzido para o árabe por Thābit ibn Qurra (836–901 d.C.), e para o latim por Gerardo de Cremona (c. 1114–1187 d.C.). Durante o Renascimento, em 1544, o Editio Princeps (Primeira Edição) foi publicado em Basileia por Johann Herwagen, com as obras de Arquimedes em grego e latim. Por volta do ano 1586 Galileu Galilei inventou uma balança hidrostática para a pesagem de metais no ar e na água, aparentemente inspirado no trabalho de Arquimedes. 

Obras sobreviventes

• Sobre o Equilíbrio dos Planos (dois volumes)

No primeiro livro constam sete postulados e quinze proposições, já no segundo livro constam dez proposições. Neste trabalho Arquimedes explica a lei da alavanca, afirmando, “As magnitudes estão em equilíbrio a distâncias inversamente proporcionais a seus pesos.”
Arquimedes usa os princípios derivados para calcular as áreas e os centros de gravidade de várias figuras geométricas, incluindo triângulos, paralelogramos e parábolas. 

• Sobre as Medidas do Círculo

Trata-se de uma obra curta que consiste de apenas três proposições. Está escrita na forma de uma correspondência com Dositeu de Pelúsio, um aluno de Conon de Samos. Na Proposição II, Arquimedes mostra que o valor de π (pi) é maior que 223⁄71 e menor que 22⁄7. Este último valor foi usado como uma aproximação de π ao longo da Idade Média e ainda é usado quando um valor aproximado de π é suficiente. O método de retificação da circunferência é uma aplicação direta da segunda proposição, na qual o diâmetro é dividido em sete partes iguais e o comprimento da circunferência é aproximadamente igual a vinte e duas dessas partes. 

• Sobre as Espirais

Neste trabalho constam 28 proposições. Também é destinado a Dositeu. O tratado define o que atualmente chama-se de espiral de Arquimedes. É o conjunto dos pontos correspondentes às posições de um ponto que se move a velocidade constante sobre uma reta que gira a velocidade angular constante sobre um ponto de origem fixo. Equivalentemente, em coordenadas polares (r, θ) pode ser descrita pela equação com a e b números reais. Este é um dos primeiros exemplos de uma curva mecânica (uma curva traçada por um ponto em movimento). 

• Sobre a Esfera e o Cilindro (dois volumes)

Neste tratado endereçado a Dositeu, Arquimedes obtém o resultado pelo qual ele mais se orgulhava, nomeadamente a relação entre uma esfera e um cilindro circunscrito de mesma altura e diâmetro. O volume é 4⁄3πr3 para a esfera, e 2πr3 para o cilindro. A área superficial é 4πr2 para a esfera, e 6πr2 para o cilindro (incluindo suas duas bases), onde r é o raio da esfera e do cilindro. A esfera tem um volume que é dois terços do volume do cilindro circunscrito. De forma similar, a esfera tem uma área que é dois terços da área do cilindro circunscrito (incluindo as bases). A pedido do próprio Arquimedes, foram colocadas sobre sua tumba esculturas destas duas figuras geométricas.

• Sobre Conoides e Esferoides

Neste trabalho destinado a Dositeu constam 32 proposições. Nesse tratado Arquimedes calcula as áreas e volumes das seções de cones, esferas, e paraboloides. 

• Sobre os Corpos Flutuantes (dois volumes)

Na primeira parte deste tratado, Arquimedes enuncia a lei dos fluidos em equilíbrio, e prova que a água adota uma forma esférica ao redor de um centro de gravidade. Isto pode ter sido uma tentativa de explicar a teoria de astrônomos gregos contemporâneos, como Erastótenes de que a Terra é redonda. Os fluidos descritos por Arquimedes não são auto-gravitacionais, uma vez que ele assume a existência de um ponto para o qual todas as coisas caem, a fim de obter a forma esférica. Na segunda parte, ele calcula as posições de equilíbrio de seções de paraboloides. Isto foi provavelmente uma idealização das formas dos cascos dos navios.

O princípio de Arquimedes da flutuabilidade aparece nesta obra, enunciado da seguinte forma: Qualquer corpo total ou parcialmente imerso em um fluido experimenta uma força para cima igual, mas em sentido oposto, ao peso do fluido deslocado. Este princípio explica porque os barcos flutuam e também permite determinar a porcentagem que fica acima da água quando um objeto flutua em um líquido, como, por exemplo, gelo flutuando em água líquida. 

• A Quadratura da Parábola

Neste trabalho destinado a Dositeu constam 24 proposições, Arquimedes prova através de dois métodos que a área delimitada por uma parábola e uma linha reta é 4/3 multiplicado pela área de um triângulo com a mesma base e a mesma altura. Ele alcança este resultado calculando o valor de uma série geométrica de infinitos termos com a razão 1⁄4.

• Stomachion

Este é um quebra-cabeças de corte e montagem similar a um tangram, e o tratado descrevendo-o foi encontrado em forma mais completa no Palimpsesto de Arquimedes. Arquimedes calculou as áreas de 14 peças que podiam ser reunidas para formar um quadrado. Uma pesquisa publicada em 2003 por Reviel Netz da Universidade de Stanford, argumentou que Arquimedes estava tentando determinar de quantas maneiras as peças podiam ser reunidas na forma de um quadrado. Netz calculou que as peças podiam formar uma quadrado de 17.152 maneiras. O número de disposições é reduzido a 536 quando se exclui as soluções que são equivalentes por rotação e reflexão. O quebra-cabeças representa um exemplo de problema de combinatória antigo.

A origem do nome do puzzle não é clara, e foi sugerido que provém da palavra da língua grega antiga para a garganta ou esôfago, stómakhos (στόμαχος). Ausônio refere-se ao puzzle como Ostomachion, uma palavra grega composta formada pelas raízes de ὀστέον (osteon, osso) e μάχη (machē – luta). O puzzle também é conhecido como Loculus de Arquimedes ou como Caixa de Arquimedes. 

• O Problema Bovino

Esta obra foi descoberta em 1773 por Gotthold Ephraim Lessing em um manuscrito grego consistido de um poema de 44 linhas, na Biblioteca Herzog August, na Alemanha. É destinado a Erastótenes e aos matemáticos de Alexandria. Arquimedes desafia-os a contar o número de bovinos no rebanho do Sol resolvendo uma quantidade de equações diofantinas simultâneas. Há uma versão mais difícil do problema em que algumas das respostas têm que ser números quadrados. Esta versão do problema foi resolvida pela primeira vez por A. Amthor em 1880, e a resposta é um número bastante grande, aproximadamente 7,760271×10206544. 

• O Contador de Areia

Neste tratado, Arquimedes calcula o número de grãos de areia que caberiam no universo. Este livro menciona a teoria heliocêntrica do Sistema Solar proposta por Aristarco de Samos, como também ideias contemporâneas sobre o tamanho da Terra e a distância entre vários corpos celestes. Usando um sistema de números baseado em potências de miríade, Arquimedes conclui que o número de grãos de areia necessários para preencher o universo é 8×1063 (em notação moderna). A introdução afirma que o pai de Arquimedes foi um astrônomo chamado Fídias. O Contador de Areia ou Psammites é a única obra sobrevivente de Arquimedes em que ele discute suas ideias sobre astronomia. 

• O Método dos Teoremas Mecânicos

Este tratado, que se considerava perdido, foi reencontrado graças à descoberta do Palimpsesto de Arquimedes em 1906. Nesta obra, Arquimedes emprega o cálculo infinitesimal, e mostra como o método de fracionar uma figura em um número infinito de partes infinitamente pequenas pode ser usado para calcular sua área e volume. Arquimedes talvez tenha considerado que este método carecia de suficiente rigor formal, pelo que utilizou também o método da exaustão para chegar aos mesmos resultados. Da mesma forma que O Problema Bovino, O Método dos Teoremas Mecânicos foi escrito em forma de carta dirigida a Eratóstenes de Alexandria.

Conforme Carl Boyer: “Para achar áreas e volumes, o versátil Arquimedes usou sua própria versão primitiva do cálculo integral, que, de alguma maneira, é muito semelhante, quanto ao espírito, ao cálculo atual. Numa carta a Eratóstenes, Arquimedes expôs seu ”método da alavanca” para descobrir fórmulas de áreas e volumes. Mas, quando publicava provas para essas fórmulas, ele utilizava o método de exaustão para se ajustar aos padrões de rigor da época.” 

Obras apócrifas

O Livro de Lemas ou Liber Assumptorum é um tratado com quinze proposições sobre a natureza dos círculos. A cópia mais antiga conhecida do texto está escrita em árabe. Os estudiosos Thomas Little Heath e Marshall Clagett argumentaram que ele não pode ter sido escrito por Arquimedes na sua forma atual, uma vez que ele cita Arquimedes, o que sugere que foi modificado por outro autor.

Talvez o Lemas seja baseado em um uma obra mais antiga, agora perdida, escrita por Arquimedes. Também já foi afirmado que Arquimedes conhecia a fórmula de Heron usada para calcular a área de um triângulo sabendo-se as medidas de seus lados. No entanto, a primeira referência confiável para a fórmula é dada por Heron de Alexandria no século I d.C. 

O Palimpsesto de Arquimedes

O Palimpsesto de Arquimedes é uma das principais fontes a partir das quais se conhece a obra de Arquimedes. Em 1906, o professor dinamarquês Johan Ludvig Heiberg visitou Constantinopla e examinou um pergaminho de pele de cabra de 174 páginas com orações escritas no século XIII d.C. Ele descobriu que se tratava de um palimpsesto, um documento com texto que tinha sido escrito sobre um trabalho anterior apagado.

Os palimpsestos eram criados pela raspagem da tinta de trabalhos existentes para reutilizar o material no qual ela estava impressa, o que era uma prática comum na Idade Média pois o papel velino era caro. As obras anteriores do palimpsesto foram identificadas por estudiosos como cópias do século X d.C. de tratados de Arquimedes previamente desconhecidos.

O pergaminho passou centenas de anos na biblioteca de um monastério em Constantinopla antes de ser vendido a um colecionador na década de 1920. Em 29 de outubro de 1998 ele foi vendido em um leilão para um comprador anônimo por dois milhões de dólares na casa de leilões Christie’s, em Nova Iorque. O palimpsesto contém sete tratados, incluindo a única cópia sobrevivente de Sobre os Corpos Flutuantes no original grego. É também a única fonte de O Método dos Teoremas Mecânicos, a que se referiu Téon Suidas e que pensava-se que tinha sido perdido para sempre.

Stomachion também foi descoberto no palimpsesto, com uma análise mais completa do quebra-cabeças do que a que encontrava-se em textos anteriores. O palimpsesto está agora guardado no Museu de Arte Walters em Baltimore, Estados Unidos, onde foi submetido a uma série de testes modernos incluindo o uso de luz ultravioleta e raios X para ler o texto sobrescrito. 

Veja mais:

Os tratados contidos no Palimpsesto de Arquimedes são: Sobre o Equilíbrio dos Planos, Sobre as Espirais, Sobre as Medidas do Círculo, Sobre a Esfera e o Cilindro, Sobre os Corpos Flutuantes, O Método dos Teoremas Mecânicos e Stomachion.

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Todos os aspectos da filosofia de Aristóteles continuam sendo objeto de estudos acadêmicos. Embora Aristóteles tenha escrito muitos tratados e diálogos formatados para publicação, apenas cerca de um terço de sua produção original sobreviveu, nenhuma delas destinada à publicação. Aristóteles foi retratado por grandes artistas, como Rafael Sanzio e Rembrandt. As primeiras teorias científicas modernas, incluindo a circulação do sangue de William Harvey e a cinemática de Galileu Galilei, foram desenvolvidas em reação às de Aristóteles. No século XIX, George Boole deu à lógica de Aristóteles uma base matemática com um sistema de lógica algébrica. No século XX, Martin Heidegger criou uma nova interpretação da filosofia política de Aristóteles, entratando em outros lugares Aristóteles foi amplamente criticado, até mesmo ridicularizado por pensadores como o filósofo Bertrand Russell e o biólogo Peter Medawar. Mais recentemente, Aristóteles foi novamente levado a sério, como no pensamento ético de autores como Ayn Rand, Alasdair MacIntyre, John McDowell e Philippa Foot, enquanto Armand Marie Leroi reconstruiu a biologia aristotélica. A imagem de Aristóteles orientando o jovem Alexandre permanece atual, como foi retratada no filme de 2004, Alexandre. Sua obra Poética continua a exercer influência no cinema norte-americano. 

Vida

Aristóteles era natural de Estagira, na Trácia, sendo filho de Nicômaco, amigo e médico pessoal do rei macedônio Amintas III, pai de Filipe II. É provável que o interesse de Aristóteles por biologia e fisiologia decorra da atividade médica exercida pelo pai e pelo tio, e que remontava há dez gerações. Segundo a compilação bizantina Suda, Aristóteles era descendente de Nicômaco, filho de Macaão, filho de Esculápio. 

Com cerca de 16 ou 17 anos partiu para a cidade de Atenas, maior centro intelectual e artístico da Grécia Antiga. Como muitos outros jovens da época, foi para lá prosseguir os estudos. Duas grandes instituições disputavam a preferência dos jovens: a escola de Isócrates, que visava preparar o aluno para a vida política, e Platão e sua Academia, com preferência à ciência (episteme) como fundamento da realidade. Apesar do aviso de que, quem não conhecesse geometria ali não deveria entrar, Aristóteles decidiu-se pela academia platônica e nela permaneceu vinte anos, até a morte de Platão, no primeiro ano da 108a olimpíada (348 a.C.). Aristóteles provavelmente participou dos Mistérios de Eleusis. Em 347 com a morte de Platão, a direção da Academia passa a Espeusipo que começou a dar ao estudo acadêmico da filosofia um viés matemático que Aristóteles (segundo opinião geral, um não-matemático) considerou inadequado, assim Aristóteles deixa Atenas e se dirige, provavelmente, primeiro a Atarneu convidado pelo tirano Hérmias e em seguida a Assos, cidade que fora doada pelo tirano aos platônicos Erasto e Corisco, pelas boas leis que lhe haviam preparado e que obtiveram grande sucesso. 

Durante 347 a.C e 345 a.C, dirige uma escola em Assos, junto com Xenócrates, Erasto e Corisco e depois em 345/344 a.C. conhece Teofrasto e com sua colaboração dirige uma escola em Mitilene, na ilha de Lesbos e lá se casa com Pítias, neta de Hérmias , com quem teve uma filha, também chamada Pítias e Nicômaco. Em 343/342 a.C. Filipe II da Macedônia escolhe Aristóteles como educador de seu filho Alexandre, então com treze anos, por intercessão de Hérmias Pouco se sabe sobre o período da vida de Aristóteles entre 341 a.C. e 335 a.C., ainda que se questiona o período de tempo da tutela de Alexandre, alguns estimam em apenas dois ou três anos e outros em sete ou oito anos. 

Em 335 a.C. Aristóteles funda sua própria escola em Atenas, em uma área de exercício público dedicado ao deus Apolo Lykeios, daí o nome Liceu. Os filiados da escola de Aristóteles mais tarde foram chamados de peripatéticos. Os membros do Liceu realizavam pesquisas em uma ampla gama de assuntos, os quais eram de interesse do próprio Aristóteles: botânica, biologia, lógica, música, matemática, astronomia, medicina, cosmologia, física, história da filosofia, metafísica, psicologia, ética, teologia, retórica, história política, do governo e da teoria política, retórica e as artes. Em todas essas áreas, o Liceu coletou manuscritos e assim, de acordo com alguns relatos antigos, se criou a primeira grande biblioteca da antiguidade. 

Em 323 a.C, morre Alexandre e em Atenas começa uma forte reação antimacedônica, em 322 a.C. por causa de sua ligação com Alexandre, Aristóteles foge de Atenas e se dirige a Cálcides, onde sua mãe tinha uma casa, explicando, “Eu não vou permitir que os atenienses pequem duas vezes contra a filosofia”> uma referência ao julgamento de Sócrates em Atenas. Ele morreu em Cálcis, na ilha Eubeia de causas naturais naquele ano. Aristóteles nomeou como chefe executivo seu aluno Antípatro e deixou um testamento em que pediu para ser enterrado ao lado de sua esposa. 

Campos de estudo

A filosofia de Aristóteles dominou verdadeiramente o pensamento europeu a partir do século XII. A revolução científica iniciou-se no século XVI e somente onde a filosofia aristotélica foi dominante é que sobreveio uma revolução científica. 

Parte das afirmações a respeito da Física e da Química de Aristóteles são desmentidas nos dias de hoje e a principal razão disso é que nos séculos XVI e XVII os cientistas aplicaram métodos quantitativos ao estudo da natureza inanimada, assim algumas observações de de Aristóteles são irremediavelmente inadequadas em comparação com os trabalhos dos novos cientistas. Apesar do alcance abrangente que as obras de Aristóteles gozaram tradicionalmente, os acadêmicos modernos questionam a autenticidade de uma parte considerável do Corpus aristotelicum. 

Lógica

A lógica aristotélica, que ocupa seis de suas primeiras obras, constitui o exemplo mais sistemático de filosofia em dois mil anos de história. Sua premissa principal envolve uma teoria de caráter semântico desenvolvida por ele para servir de estrutura para a compreensão da veracidade de proposições. Foi por meio de sua lógica que se estabeleceu a primazia da lógica dedutiva. 

Aristóteles sistematizou a lógica, definindo as formas de interferência que eram válidas e as que não eram – em outras palavras, aquilo que realmente decorre de algo e aquilo que só aparentemente decorre; e deu nomes a todas essas diferentes formas de interferências. Por dois mil anos, estudar lógica, significou estudar a lógica de Aristóteles. 

A lógica, como disciplina intelectual, foi criada no século IV a.C. por Aristóteles. Sua teoria do silogismo constitui o cerne de sua lógica e através dela tenta caracterizar as formas de silogismo e determinar quais deles são válidas e quais não, o que conseguiu com bastante sucesso. Como primeiro passo no desenvolvimento da lógica, a teoria do silogismo foi extremamente importante. 

Física

Aristóteles não reconhecia a ideia de inércia, ele imaginou que as leis que regiam os movimentos celestes eram muito diferentes daquelas que regiam os movimentos na superfície da Terra, além de ver o movimento vertical como natural, enquanto o movimento horizontal requereria uma força de sustentação. Ainda sobre movimento e inércia, Aristóteles afirmou que o movimento é uma mudança de lugar e exige sempre uma causa, o repouso e o movimento são dois fenômenos físicos totalmente distintos, o primeiro sendo irredutível a um caso particular do segundo. No livro II, Do Céu, ele afirma explicitamente que quando um objeto se desloca para seu estado natural o movimento não é causado por uma força, assim ele afirma que o movimento daquilo que está no processo de locomoção é circular, retilíneo ou uma combinação dos dois tipos. 

Óptica

Na época de Aristóteles, a óptica matemática era ainda uma disciplina nova, contrariamente às outras matemáticas e especialmente à geometria, ele faz recorrentes referências à cor, à sua “unidade” e à sua constituição, nos mesmos contextos em que se fala de outros setores do real que pertencem a outras ciências matemáticas, e do que neles é unidade. 

Aristóteles fez objeções à teoria de Empédocles e ao modelo de Platão que considerava que a visão era produzida por raios que se originavam no olho e que colidiam com os objetos então sendo visualizados. Ao refutar as teorias então conhecidas, ele formulou e fundamentou uma nova teoria, a teoria da transparência: a luz era essencialmente a qualidade acidental dos corpos transparentes, revelada pelo fogo. 

Aristóteles sugeria que a óptica contempla uma teoria matemático-quantitativa da cor, que corresponde a uma teoria da medição da luz, assim ele afirma que a luz não era uma coisa material mas a qualidade que caracterizava a condição ou o estado de transparência: “Uma coisa se diz invisível porque não tem cor alguma, ou a tem somente em grau fraco”

Química

Enquanto Platão, seu mestre, acreditava na existência de átomos dotados de formas geométricas diversas, Aristóteles negava a existência das partículas e considerava que o espaço estava cheio de continuum, um material divisível ao infinito. 

Sua obra Meteorologia, sintetiza suas ideias sobre matéria e química, usando as quatro qualidades da matéria e os quatro elementos, ele desenvolveu explicações lógicas para explicar várias de suas observações da natureza. Para Aristóteles a matéria seria formada, não a partir de um único, mas por quatro elementos: terra, água, ar e fogo, mas existiria sim um substrato único para toda a matéria, mas que seria impossível de isolar – serviria apenas como um suporte que transmite quatro qualidades primárias: quente, frio, seco e úmido. A fundação da Alquimia se baseou nos ensinamentos de Aristóteles, curiosamente ele afirmou que as rochas e minerais cresciam no interior da Terra e, assim com os humanos, os minerais tentavam alcançar um estado de perfeição através do processo de crescimento, a perfeição do mineral seria quando ele se tornasse ouro. 

Astronomia

Aristóteles concorda com seu mestre (Platão) em considerar a astronomia uma ciência matemática em sentido pleno, não menos do que a geometria, ele também concordava que os movimentos estudados pela astronomia, como diz a A República, não se percebem “com a vista”. 

O cosmos aristotélico é apresentado como uma esfera gigantesca, porém finita, à qual se prendiam as estrelas, e dentro da qual se verificava uma rigorosa subordinação de outras esferas, que pertenciam aos planetas então conhecidos e que giravam em torno da Terra, que se manteria imóvel no centro do sistema (sistema geocêntrico). 

Biologia

Considerado o fundador das ciências como uma disciplina, Aristóteles deixou obras naturalistas como História dos Animais, As partes dos animais e A geração dos animais, opúsculos como Marcha dos animais, Movimentos dos animais e Pequeno tratado de história natural e muitas outras obras sobre anatomia e botânica que se perderam e tratavam sobre o estudo de cerca de 400 animais que buscou classificar, tendo dissecado cerca de 50 deles. Também realizou observações anatômicas, embriológicas e etológicas detalhadas de animais terrestres e aquáticos (moluscos e peixes), fez observações sobre cetáceos e morcegos. Embora suas conclusões sejam, muitas vezes, equivocadas, sua obra não deixa de ser notável. Seus escritos de biologia e zoologia correspondem a mais de uma quinta parte de sua obra. Neles, trabalha sobre a noção de animal, a reprodução, a fisiologia e a classificação científica. Segundo alguns cientistas da atualidade, Aristóteles teria “descoberto” o DNA, por ele identificar a forma, isto é, o eidos preexistente no pai, que é reproduzido na prole. 

Aristóteles foi quem iniciou os estudos científicos documentados sobre peixes, sendo o precursor da ictiologia (a ciência que estuda os peixes). Catalogou mais de cem espécies de peixes marinhos e descreveu seu comportamento. É considerado como elemento histórico da evolução da piscicultura e da aquariofilia, separou mamíferos aquáticos de peixes e sabia que tubarões e raias faziam parte de grupo que chamou de Selachē (Chondrichthyes). 

Em sua obra De Moto Animalium (traduzido do latim, Do Movimento dos Animais), Aristóteles discorre especificamente sobre os princípios físicos que regem o movimento dos animais em geral, assim como as suas causas. No livro, Aristóteles postula que, para que houvesse o movimento de algum membro do animal, era necessária a existência de uma parte imóvel, a qual Aristóteles atribuía ser a origem do movimento. Para que o animal inteiro se desloque, no entanto, Aristóteles acreditava que era necessário algo em repouso absoluto em relação ao animal, e, apoiando-se neste ente imóvel, o animal desencadearia o deslocamento. Sobre a origem primordial do movimento em seres vivos, Aristóteles atribuía a mente e o desejo como causas primárias do movimento nos animais.

O papel da mulher

A análise sobre a procriação de Aristóteles descreve um elemento masculino ativo, animante trazendo vida a um elemento do sexo feminino inerte e passivo. Por este motivo, as feministas acusam Aristóteles de misoginia e sexismo. No entanto, Aristóteles deu igual peso à felicidade das mulheres e à felicidade dos homens e comentou, em sua obra A Retórica, que uma sociedade não pode ser feliz a menos que as mulheres também estejam felizes. Sobre as mulheres, ainda disse que eram totalmente incapazes de serem amigas, e ele com certeza não esperava que a esposa se relacionasse com o marido em nível de igualdade. 

A homossexualidade

Visto não contribuir para a fundação de famílias, Aristóteles tinha a homossexualidade em conta de desperdício, não apenas inútil, mas até perigoso. Porém, isso não significa que a condenasse sempre. Ele tomava, em consideração, as circunstâncias em que era praticada. Assim, em Creta, onde havia um problema de superpopulação e a relação entre o mesmo sexo era difundida, ele propôs que esse tipo de relação fosse regulamentado e tolerado pelo Estado, a fim de contornar a superpopulação, pois a ilha dispunha de poucos recursos naturais. Em um fragmento sobre amor físico, embora referindo-se ao tema com indulgência, parece ter feito distinção entre a homossexualidade congênita anormal e o vício homossexual adquirido. 

Metafísica

O termo Metafísica não é aristotélico; o que hoje chamamos de metafísica era chamado por Aristóteles de “filosofia primeira”, sendo por isso identificada com a teologia. Não é fácil discutir a metafísica de Aristóteles, em parte porque está profusamente espalhada por toda a obra, e em parte por certa ausência de uma exposição bem detalhada. 

A Metafísica de Aristóteles é, em essência, uma modificação da Teoria das ideias de Platão. Grande parte dessa obra parece uma tentativa de moderar as muitas extravagâncias de Platão. Seus dois principais aspectos são a distinção entre o “universal” e a mera “substância” ou “forma particular” e a distinção entre as três substâncias diferentes que formar a realidade cada uma com sua essência fundamental. 

Psicologia

Na medida em que se ocupa das mais elaboradas entidades naturais, a psicologia foi considerada também o ápice da filosofia natural de Aristóteles. A palavra psychê (de que deriva nosso termo psicologia) costumar ser traduzida como “alma”, e sob a rubrica psyche Aristóteles de fato inclui as características dos animais superiores que pensadores posteriores tendem a associar com a alma. Objeto geral da psicologia aristotélica é o mundo animado, isto é, vivente, que tem por princípio a alma e se distingue essencialmente do mundo inorgânico, pois, o ser vivo diversamente do ser inorgânico possui internamente o princípio da sua atividade, que é precisamente a alma, forma do corpo. 

Muitas das hipóteses de Aristóteles sobre a natureza da lembrança e dos esquecimentos deram origem a grande número de experimentos na área da aprendizagem. Sua doutrina da associação afirmava que a memória é facilitada quer pela semelhança e dessemelhança de um fato atual e um passado, quer por sua estreita relação no tempo e espaço. 

Sua obra De Anima (Sobre a Alma) trata-se do primeiro objetivo em larga escala para estudar a psicologia. Muitas das questões que levanta continuam por responder até hoje, e ainda são objeto de exame. Aristóteles formulou teorias sobre desejos, apetites, dor e prazer, reações e sentimentos. Sua doutrina da catarse ensinava, por exemplo que os temores podem ser transferidos ao herói da tragédia – ideia que muito mais tarde veio formar uma das teses da psicanálise e da terapia do jogo. 

Ética

Alguns veem Aristóteles como o fundador da Ética, o que se justifica desde que consideremos a Ética como uma disciplina específica e distinta no corpo das ciências. Em suas aulas, Aristóteles fez uma análise do agir humano que marcou decisivamente o modo de pensar ocidental. O filósofo ensinava que todo o conhecimento e todo o trabalho visam a algum bem. O bem é a finalidade de toda a ação. A busca do bem é o que difere a ação humana da de todos os outros animais. 

Para Aristóteles, estudamos a ética, a fim de melhorar nossas vidas e, portanto, sua preocupação principal é a natureza do bem-estar humano. Aristóteles segue Sócrates e Platão ao dispor as virtudes no centro de uma vida bem vivida. Como Platão, ele considera as virtudes éticas (justiça, coragem, temperança etc.), como habilidades complexas racionais, emocionais e sociais, mas rejeita a ideia de Platão de que a formação em ciências e metafísica é um pré-requisito necessário para um entendimento completo de bem. Segundo ele, o que precisamos, a fim de viver bem, é uma apreciação adequada da maneira em que os bens tais como a [[amizade, o prazer, a virtude, a honra e a riqueza se encaixam como um todo. Para aplicar esse entendimento geral para casos particulares, devemos adquirir, através de educação adequada e hábitos, a capacidade de ver, em cada ocasião, qual curso de ação é mais bem fundamentada. Portanto, a sabedoria prática, como ele a concebe, não pode ser adquirida apenas ao aprender regras gerais, também deve ser adquirida através da prática. E essas habilidades deliberativas, emocionais e sociais é que nos permitem colocar nossa compreensão geral de bem-estar em prática em formas que são adequados para cada ocasião. Aristóteles propõe que a vida contemplativa (intelectual) traria uma felicidade maior e mais constante ao ser humano, quando comparada à vida política (procura da honra) e da vida baseada em prazeres sensoriais. 

Retórica

A retórica de Aristóteles teve uma enorme influência sobre o desenvolvimento da arte da retórica. Não apenas sobre os autores que escrevem na tradição peripatética, mas também os famosos professores romanas de retórica, como Cícero e Quintiliano, frequentemente usaram elementos decorrentes aristotélica. 

É na obra Retórica de Aristóteles que se assentam os primeiros dados cuja articulação passa a definir a Retórica como a “faculdade de descobrir especulativamente sobre todo dado o persuasivo”. No proêmio do Livro I de sua Arte Retórica, ele se refere à possibilidade se ter uma técnica da retórica, de um método rigoroso não diferente do que seguem as ciências lógicas, políticas e naturais. É evidente a diferença entre as concepções de Aristóteles sobre a arte da oratória entre o Livro I e o Livro II, enquanto neste último destaca o estudo das paixões, desfazendo a caracterização da retórica como puramente dialética, no Livro I Aristóteles valoriza a função da sedução da alma. A retórica deve ser, portanto, demonstrativa e emocional. 

Artes

Aristóteles concedia às artes uma importância valiosa, na medida em que poderiam reparar as deficiências da natureza humana, contribuindo na formação moral dos indivíduos. 

Música

Em Política, Aristóteles questiona a participação da música na educação, pois sua associação imediata com o prazer faz com que o autor oponha a música a qualquer atividade, pois esta parece se adequar melhor ao desfrute no tempo livre. No decorrer do texto, ele enfatiza que o ensino da música deve ter ênfase na escuta e não à prática instrumental, já que a execução de instrumentos se relaciona aos trabalhos manuais, atividade imprópria para a educação de um homem livre. A obra Problemas constitui uma das mais antigas discussões sobre música, se no livro VII da Política Aristóteles procurou mostrar a importância da música na educação, no livro XIX de Problemas ele levanta questões de várias ordens: referentes à acústica, às escalas, aos intervalos, à voz, aos encordoamentos, aos harmônicos, aos tipos de composição etc., o autor levanta cinquenta problemas e a esses ele mesmo procura responder. 

Poética

Aristóteles foi o primeiro filósofo a consagrar todo um tratado, ainda que incompleto, ao exame do fenômeno poético, a Arte Poética. Ele propunha-se a refletir acerca do objeto estético, ou antes, acerca da criação do objeto estético. 

Em Arte Poética, o filósofo trata da arte poética a partir de duas perspectivas, a definição da poética como imitação e a apresentação da estrutura da poesia de acordo com suas diferentes espécies. No primeiro caso, reduz a essência da poética à imitação – que crê ser congênita no homem. A sua importância, contudo, deriva do fato de que a mimese é capaz de fornecer, ao ser humano, dois elementos essenciais: prazer e conhecimento. 

Aristóteles era um apurado colecionador sistemático de enigmas, folclores e provérbios, ele e sua escola tinham um interesse especial nos enigmas da Pítia e estudaram também as fábulas de Esopo.

Política

A política aristotélica é essencialmente unida à moral, porque o fim último do estado é a virtude, isto é, a formação moral dos cidadãos e o conjunto dos meios necessários para isso. O estado é um organismo moral, condição e complemento da atividade moral individual, e fundamento primeiro da suprema atividade contemplativa. A política, contudo, é distinta da moral, porquanto esta tem como objetivo o indivíduo, aquela a coletividade. A ética é a doutrina moral individual, a política é a doutrina moral social. Desta ciência trata Aristóteles precisamente na Política, de que acima se falou. 

Em Ética a Nicômaco Aristóteles descreve o assunto como ciência política, que ele caracteriza como a ciência mais confiável. Ela prescreve quais as ciências são estudadas na cidade-estado, e os outros – como a ciência militar, gestão doméstica e retórica – caem sob a sua autoridade. Desde que rege as outras ciências práticas, suas extremidades servem como meios para o seu fim, que é nada mais nada menos do que o bem humano. 

Aristóteles não nega a natureza humana ao escravo, para ele a escravidão faz parte da própria natureza, de modo que o escravo nascido para ser escravo tem uma função útil de escravo, é esta a função corporativa para a qual existe. Ele não sacrifica nada, pois sua natureza não exige mais do que compete na sociedade. Ele discorda da opinião daqueles que pretendem que o poder do patrão é contra a natureza, para ele, a natureza em vista da conservação, criou alguns seres para mandar e outros para obedecer, é ela que dispõe que o ser dotado de previdência mande como patrão, e que o ser, capaz por faculdades corporais execute ordens. 

Obra

De acordo com a distinção que se origina com o próprio Aristóteles, seus escritos são divididos em dois grupos: os “exotéricos” e os “esotéricos”. É difícil para muitos leitores modernos aceitar que alguém pudesse tão seriamente admirar o estilo daquelas obras atualmente disponíveis para nós. No entanto, alguns estudiosos modernos têm advertido que não podemos saber ao certo se o elogio de Cícero foi dirigido especificamente para as obras exotéricas. Alguns estudiosos modernos têm realmente admirado o estilo de escrita concisa encontrado nas obras existentes de Aristóteles. 

As obras de Aristóteles que sobreviveram desde a antiguidade através da transmissão de manuscrito medieval são coletados no Corpus Aristotelicum. Esses textos, ao contrário de obras perdidas de Aristóteles, são tratados filosóficos técnicos de dentro da escola de Aristóteles. A referência a eles é feita de acordo com a organização da edição da obra de August Immanuel Bekker (Aristotelis Opera edidit Academia Regia Borussica, Berlin, 1831–1870) pela Academia Real da Prússia, que por sua vez é baseado em classificações antigas dessas obras. Acredita-se que a maior parte de sua obra tenha sido perdida, e apenas um terço de seus trabalhos tenham sobrevivido. 

Legado

Mais de 2 300 anos depois de sua morte, Aristóteles continua sendo uma das pessoas mais influentes que já viveram. Ele contribuiu para quase todos os campos do conhecimento humano e foi o fundador de muitas áreas novas. De acordo com o filósofo Bryan Magee, “é duvidoso que qualquer ser humano saiba o tanto quanto ele sabia”. Entre inúmeras outras realizações, Aristóteles foi o fundador da lógica formal e pioneiro no estudo da zoologia, deixando cada futuro cientista e filósofo em débito para com ele por suas contribuições para o método científico. Apesar dessas realizações, a influência dos erros de Aristóteles é considerada por alguns como tendo sido de grande empecilho para o desenvolvimento da ciência. Bertrand Russell observa que “quase todo o avanço intelectual sério teve de começar com um ataque a alguma doutrina aristotélica”. Russell também se refere à ética de Aristóteles anacronicamente como “repulsiva”, e sobre sua lógica disse ser “definitivamente antiquada como a astronomia ptolomaica”. Russelll observa que esses erros tornam difícil fazer uma justiça histórica a Aristoteles, até o momento em que lembramo-nos de quão grande foi o avanço que ele fez em cima de todos os seus predecessores. 

Filósofos gregos posteriores

A influência obra de Aristóteles foi sentida quando o Liceu se transformou na Escola peripatética. Entre os estudantes notáveis de Aristóteles estão Aristóxenes, Dicearco, Eudemo de Rodes, Demétrio de Faleros, Hárpalo, Heféstion, Mênon, Mnason de Fócis, Nicômaco e Teofrasto.

Veja mais:

Influência sobre os eruditos bizantinos

Os escribas cristãos gregos desempenharam um papel crucial na preservação das obras de Aristóteles, copiando todos os manuscritos gregos existentes do “corpus”. Os primeiros cristãos gregos que muito comentaram Aristóteles foram João Filopono, Elias e David, no século VI, e Estéfano de Alexandria no início do século VII.

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Anton Van Leeuwenhoek https://canalfezhistoria.com/anton-van-leeuwenhoek/ https://canalfezhistoria.com/anton-van-leeuwenhoek/#respond Thu, 06 Mar 2025 16:34:12 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5729 Antony van Leeuwenhoek (Delft, 24 de outubro de 1632 — Delft, 26 de agosto de 1723) foi um comerciante de tecidos, cientista e construtor de microscópios holandês. 

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Anton Van Leeuwenhoek

Anton van Leeuwenhoek é conhecido pelas suas contribuições para o melhoramento do microscópio, além de ter contribuído com as suas observações para a biologia celular (descreveu a estrutura celular dos vegetais, chamando as células de “glóbulos”). Utilizando um microscópio feito por si mesmo (possuía a maior colecção de lentes do mundo, cerca de 250 microscópios), foi o primeiro a observar e descrever fibras musculares, bactérias, protozoários e o fluxo de sangue nos capilares sanguíneos de peixes. O microscópio utilizado por Leeuwenhoek para as suas descobertas era constituído por uma lente biconvexa que tinha a capacidade de aumentar a imagem cerca de 1000 vezes. 

Desenhou e reconstruiu o deslocamento dos procariontes que viviam nas suas próprias lentes. Observou e descreveu os microorganismos. 

A ele é atribuída a descoberta dos microorganismos.

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Antoine Lavoisier https://canalfezhistoria.com/antoine-lavoisier/ https://canalfezhistoria.com/antoine-lavoisier/#respond Thu, 06 Mar 2025 16:30:31 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5726 Antoine Laurent de Lavoisier (Paris, 26 de agosto de 1743 — Paris, 8 de maio de 1794) foi um químico francês, considerado o pai da química moderna. Foi eleito membro da Royal Society em 1788. 

É reconhecido por ter enunciado o princípio da conservação da matéria, apesar de o russo Mikhail Lomonossov tê-lo feito 14 anos antes. Além disso identificou e batizou o oxigênio, refutou a teoria flogística e participou na reforma da nomenclatura química. Célebre por seus estudos sobre a conservação da matéria, foi mais tarde imortalizado pela frase popular: 

“Em uma reação química feita em recipiente fechado, a soma das massas dos reagentes é igual à soma das massas dos produtos.”

Biografia

Nascido em uma família rica em Paris, Antoine Laurent Lavoisier herdou uma grande fortuna com a idade de cinco anos pelo falecimento de sua mãe. Ele foi educado no Collège des Quatre-Nations (também conhecido como Collège Mazarin), de 1754 a 1761, estudando química, botânica, astronomia e matemática. Ele tinha em mente seguir os passos de seu pai e ainda obteve sua licença para praticar a lei em 1764 antes de voltar a uma vida de ciência. 

Lavoisier é considerado o pai da química moderna porque foi ele quem descobriu que a água é uma substância composta, formada por dois átomos de hidrogénio e um de oxigénio: H2O. Essa descoberta foi muito importante para a época, pois, segundo a teoria de Tales de Mileto, que ainda era aceita, a água era um dos quatro elementos terrestres primordiais, a partir da qual outros materiais eram formados. Em 16 de dezembro de 1771 Lavoisier casou-se com uma jovem aristocrata, de nome Marie-Anne Pierrette Paulze.

A sua mulher tornou-se num dos seus mais importantes colaboradores, não só devido ao seu conhecimento de línguas (em particular o inglês e o latim), mas também pela sua capacidade de ilustradora. Marie-Anne foi responsável pela tradução, para francês, de obras científicas escritas em inglês e em latim, fazendo ilustrações de algumas das experiências mais significativas feitas por Lavoisier. Ele viveu na época em que começava a Revolução Francesa, quando o terceiro estado (camponeses, burgueses e comerciantes) disputavam o poder na França. 

Lavoisier foi guilhotinado em 8 de maio de 1794 por ter sido um rendeiro geral. Os rendeiros gerais eram muito impopulares por causa das exações que muitos praticavam, sendo todos condenados à guilhotina. Lavoisier foi executado em quarto lugar, num total de vinte e oito. No dia posterior desse julgamento, Joseph-Louis de Lagrange, um importante matemático, contemporâneo de Lavoisier disse: 

“ Não bastará um século para produzir uma cabeça igual à que se fez cair num segundo. ”

Participação na Academia de Ciências

Lavoisier foi pela primeira vez proposto como membro da Académie des Sciences em 1766, mas só foi eleito em 1768. Como membro de pleno direito, Lavoisier participou em comissões de investigação de novas teorias e/ou fenômenos, de forma a avaliar a sua legitimidade científica. 

Contexto histórico

No século XVIII, a química encontrava-se em plena transição para o quantitativo. Ao mesmo tempo, o grande número de novas descobertas exigia uma nomenclatura funcional e generalizada. Um sistema prático de notação tornou-se, portanto, fator essencial para seu progresso. Era comum, na época, o emprego de nomes estranhos e complicados, como “algarote”, “manteiga de arsênico”, “água fagedênica”, “óleo de tártaro por desfalecimento”, “flores de zinco”, cuja única função parecia ser confundir os químicos. 

Lavoisier foi um dos primeiros a chamar a atenção para o problema. “É necessário grande hábito e muita memória para nos lembrarmos das substâncias que os nomes exprimem e sobretudo para reconhecer a que gênero de combinações pertencem”, escreveu no Tratado Elementar de Química. Em 1787, Lavoisier, juntamente com outros químicos como Berthollet, Fourcroy e Guyton de Morveau, iniciou o trabalho de elaboração de uma nomenclatura mais racional. 

No começo do século XVlll, Lavoisier demonstrara a importância de leis químicas quantitativas, enunciando seu princípio da conservação de massa. Foi nessa ocasião que os físicos começaram a se interessar pelo estudo do calor e a tratá-lo como uma forma de energia. 

Estudo do oxigênio

Lavoisier não descobriu exatamente o oxigênio. Este gás foi descoberto independentemente por dois químicos: Carl Wilhelm Scheele em 1772 e Joseph Priestley em 1774. Em outubro de 1779, Priestley visitou Paris e conversou com Lavoisier sobre as suas experiências. Este fato permitiu a Lavoisier refazer as experiências de Priestley e reformulá-las. Dessa forma, Lavoisier compreendeu melhor as características do novo gás e ainda confirmou que a combustão e a oxidação correspondem à combinação do oxigênio com outros materiais (materiais orgânicos na combustão e metais na oxidação). 

Lavoisier deu ao novo gás o nome de oxigênio (“produtor de ácidos” em grego), porque considerava (erroneamente) que todas as substâncias originadas de uma calcinação originavam ácidos, em que o oxigênio se encontrava obrigatoriamente presente. Em 1789, ele formulou o princípio da conservação da matéria (Lei de Lavoisier). 

Lavoisier também participou efetivamente de trabalhos que viriam a compreender melhor outros elementos químicos, como o nitrogênio. O nome nitrogênio significa azoto, e quer dizer “sem vida”. Este nome, sugerido por Lavoisier, designava um novo elemento, até então conhecido como “ar mefítico”. O ar mefítico havia sido descoberto em 1722, quando Joseph Priestley, queimando corpos em vasos fechados, verificou que, exaurido o oxigênio do ar, restava ainda um gás inerte junto ao gás carbônico. O gás recém descoberto não ativava a combustão e não podia ser respirado; era, portanto, alheio à vida. 

Participação na Ferme Général e Morte

Em 1769 Lavoisier adquiriu uma participação na Ferme Général, o sistema utilizado naquele tempo na França para a taxação de impostos (em que, essencialmente, a Coroa concessionava essa tarefa a privados). A Ferme Général era um sistema muito impopular na época, principalmente entre os que pagavam impostos. Embora Lavoisier tivesse se retirado desse sistema, a sua ligação à Ferme Général foi causa da sua condenação à morte. 

Veja mais:

Em 17 de setembro de 1793 foi instituída a Lei dos Suspeitos, que permitiu a criação de tribunais revolucionários para julgar possíveis traidores e punir os culpados com a pena de morte. Três dias depois, Lavoisier recebeu um mandado que permitiu o confisco e a selagem dos seus documentos. Mais tarde, os documentos foram devolvidos a Lavoisier, dando-lhe um falso sentimento de segurança. Na Inglaterra, Edmund Burke escreveu sobre o fato e lamentou a morte de um inocente, declarando o lado cego da Revolução Francesa.

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Alexander Graham Bell https://canalfezhistoria.com/alexander-graham-bell/ https://canalfezhistoria.com/alexander-graham-bell/#respond Thu, 06 Mar 2025 16:08:28 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5720 Alexander Graham Bell (Edimburgo, 3 de março de 1847 — Beinn Bhreagh, 2 de agosto de 1922) foi um cientista, inventor e fundador da companhia telefónica Bell.

Embora historicamente Bell tenha sido considerado como o inventor do telefone, o italiano Antonio Meucci foi reconhecido como o seu verdadeiro inventor, em 11 de junho de 2002, pelo Congresso dos Estados Unidos, através da resolução N°. 269. Meucci vendeu o protótipo do aparelho a Bell nos anos 1870. 

Biografia

Alexander Graham Bell nasceu em Edimburgo numa família ligada ao ensino de elocução: o seu avô em Londres, seu tio em Dublin, e seu pai, Sr. Alexander Melville Bell, em Edimburgo, eram todos elocucionalistas professados. Este último publicou uma variedade de trabalhos sobre o assunto, dos quais vários são bem conhecidos, em especial o seu tratado na linguagem gestual, que apareceu em Edimburgo em 1868.

Neste explica o seu método engenhoso de instruir surdos, por meio visual, como articular palavras e como ler o que as outras pessoas dizem pelo movimento dos lábios. Graham Bell, seu filho distinto, foi educado na escola real de Edimburgo, onde se graduou aos 13 anos. Aos dezesseis fixou uma posição como professor de elocução e de música na academia de Weston house, em Elgin, Escócia. O ano seguinte foi passado na Universidade de Edimburgo. De 1866 a 1867 foi instrutor na universidade de Somersetshire em Bath, Inglaterra. Enquanto esteve na Escócia virou a sua atenção para a ciência da acústica, com o objectivo de melhorar a surdez de sua mãe. 

Em 1870, aos 23 anos, mudou-se com a família para o Canadá, onde se estabeleceram em Brantford, Ontário. Antes de sair da Escócia, Alexander Graham Bell virou a sua atenção para o telefone, e no Canadá continuou o seu interesse por máquinas de comunicação. 

Projectou um piano que podia transmitir música a uma certa distância por meio de electricidade. Em 1873 acompanhou seu pai a Montreal, Quebeque, onde foi empregado a ensinar o seu sistema de linguagem gestual. O Bell mais velho foi convidado a introduzir o sistema numa grande escola para mudos em Boston, mas declinou o posto em favor do seu filho, que se tornou logo famoso nos Estados Unidos pelo seu sucesso neste importante trabalho.

Alexander Graham Bell publicou mais de um tratado sobre o assunto em Washington, e é principalmente com os seus esforços que os milhares de surdos mudos na América podem agora falar quase, se não completamente, tão bem quanto as pessoas que conseguem ouvir. Em Boston continuou a sua pesquisa no mesmo campo, e esforçou-se para produzir um telefone que emitisse não somente notas musicais, mas articulasse a fala. 

Com financiamento do seu sogro americano, em 7 de Março de 1876, o Escritório de Patentes dos Estados Unidos concedeu-lhe a patente número 174.465 que cobre “o método de, e o instrumento para, transmitir sons vocais ou outros telegraficamente, causando ondulações eléctricas, similares às vibrações do ar que acompanham o som vocal.”, ou seja o telefone. Após ter obtido a patente para o telefone, Bell continuou suas experiências em comunicação, que culminaram na invenção da photophone – transmissão do som num feixe de luz – um precursor dos sistemas de fibra óptica actuais. Também trabalhou na pesquisa médica e inventou técnicas para ensinar o discurso aos surdos. 

Bell teve 18 patentes concedidas em seu nome e outras doze que compartilhou com seus colaboradores. Estas incluem 14 para o telefone e o telégrafo, quatro para o photophone, uma para o fonógrafo, cinco para veículos aéreos, quatro para hidroaviões, e duas para uma pilha de selénio. Em 1888 era um dos membros fundadores da National Geographic Society e transformou-se no seu segundo presidente. Recebeu muitas honrarias. O governo francês conferiu-lhe a decoração da Légion d’honneur (legião de honra), a Académie française atribuiu-lhe o prémio Volta, de 50 mil francos, a sociedade real das artes em Londres concedeu-lhe a medalha Albert, em 1902, e a universidade de Würzburg, Baviera, concedeu-lhe o grau de doutoramento honoris causa. 

Bell casou-se com Mabel Hubbard em 11 Julho de 1877, tornou-se cidadão naturalizado dos Estados Unidos em 1882 e morreu em Baddeck, Nova Escócia, em 1922. Encontra-se sepultado em Beinn Bhreagh Estate, Baddeck, Nova Escócia no Canadá. 

Guerra de patentes

Bell patenteou o seu telefone nos Estados Unidos no início de 1876, e por estranha coincidência, Elisha Gray submeteu no mesmo dia uma outra patente do mesmo género. O transmissor de Gray é suposto ter sido inspirado num dispositivo muito antigo conhecido como ‘telefone dos amantes’, no qual dois diafragmas são unidos por um fio esticado, e a voz é transmitida unicamente pela vibração mecânica do fio. 

A patente de Bell foi contestada repetidamente e apareceu mais de um reivindicador para a honra e recompensa de ser o inventor original do telefone. O caso mais importante foi o de Antonio Meucci, um emigrante italiano, que demonstrou com forte evidência que em 1849, em Havana, Cuba, tinha experimentado a transmissão de voz pela corrente elétrica. Continuou a sua pesquisa em 1852 e 1853, e subsequentemente nos Estados Unidos, e em 1860 pediu a um amigo que visitava a Europa que procurasse pessoas interessadas na sua invenção. Em 1871, Meucci arquivou um requerimento no Gabinete de Patentes dos Estados Unidos, e tentou convencer o Sr. Grant, presidente da Companhia Telegráfica de Nova Iorque, a experimentar o instrumento. 

A doença e a pobreza, consequência de um ferimento devido a uma explosão a bordo de um barco, retardaram as suas experiências, e impediram que terminasse a sua patente. O instrumento experimental de Meucci foi exibido no exposição de Filadélfia de 1884, e atraiu muita atenção mas o modelo demonstrado não estava completo.

No pedido de patente de 1872 diz que “eu emprego o bem conhecido efeito condutor dos condutores metálicos contínuos como meio para o som, e aumento o efeito eletricamente isolando o condutor e as partes que estão em comunicação. Isto dá forma a um telégrafo falador sem a necessidade de qualquer tubo oco.” Na conexão com o telefone usou um alarme elétrico. O reconhecimento oficial de Antonio Meucci como inventor do telefone só veio em 2002, com a resolução n°. 269 do Congresso dos Estados Unidos. 

Companhia telefônica Bell

A Bell Telephone Company foi fundada em 1877, pelo sogro de Alexander Graham Bell, Gardiner Greene Hubbard, que também ajudou a organizar a New England Telephone and Telegraph Company. Em 1879, a Bell Company comprou da Western Union as patentes do microfone de carbono (grafite ou antracite), criado por Thomas Edison. Isto tornou o telefone mais eficiente para chamadas de longa distância – não era mais necessário gritar para ser ouvido. 

Dom Pedro II, imperador do Brasil, foi a primeira pessoa a comprar ações da Bell Telephone Company. Um dos primeiros telefones em residência privada foi instalado no palácio imperial de Petrópolis, sua residência de verão, a quarenta milhas do Rio de Janeiro. 

Veja mais:

A Bell e a New England fundiram-se em 1879 para formar a National Bell Telephone Company, que, em 1880 fundiu-se com outras para formar a American Bell Telephone Company. 

Em 1899, a American Telephone & Telegraph Company (AT&T) adquiriu os ativos da American Bell Telephone Company. 

Posteriormente, a AT&T sofreria fusões com a SBC Communications e a BellSouth, tornando-se em 2005 a Nova AT&T.

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Alexandre, o Grande https://canalfezhistoria.com/alexandre-o-grande/ https://canalfezhistoria.com/alexandre-o-grande/#respond Mon, 03 Mar 2025 09:41:00 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5516 Alexandre III da Macedônia ou Macedónia (20/21 de julho de 356 a.C. — 10 de junho de 323 a.C.), comumente conhecido como Alexandre, o Grande ou Alexandre Magno (em grego clássico: Ἀλέξανδρος ὁ Μέγας; transl.: Aléxandros ho Mégas), foi rei (basileu) do reino grego antigo da Macedônia e um membro da dinastia argéada. Nascido em Pela em 356 a.C., o jovem príncipe sucedeu a seu pai, o rei Filipe II, no trono com vinte anos de idade.

Ele passou a maior parte de seus anos no poder em uma série de campanhas militares sem precedentes através da Ásia e nordeste da África. Até os trinta anos havia criado um dos maiores impérios do mundo antigo, que se estendia da Grécia para o Egito e ao noroeste da Índia. Morreu invicto em batalhas e é considerado um dos comandantes militares mais bem sucedidos da história. 

Durante sua juventude, Alexandre foi orientado pelo filósofo Aristóteles até aos 16 anos. Depois que Filipe foi assassinado em 336 a.C., Alexandre sucedeu a seu pai no trono e herdou um reino forte e um exército experiente. Havia sido premiado com o generalato da Grécia e usou essa autoridade para lançar o projeto pan-helênico de seu pai liderando os gregos na conquista da Pérsia.

Em 334 a.C., invadiu o Império Aquemênida, governando a Ásia Menor, e começou uma série de campanhas que durou dez anos. Quebrou o poder da Pérsia em uma série de batalhas decisivas, mais notavelmente as batalhas de Isso e Gaugamela. Em seguida, derrubou o rei persa Dario III e conquistou a Pérsia em sua totalidade. Nesse ponto, seu império se estendia do mar Adriático ao rio Indo. 

Buscando alcançar os “confins do mundo e do Grande Mar Exterior”, invadiu a Índia em 326 a.C., mas foi forçado a voltar pela demanda de suas tropas. Alexandre morreu na Babilônia em 323 a.C., a cidade que planejava estabelecer como sua capital, sem executar uma série de campanhas planejadas que teria começado com uma invasão da Arábia. Nos anos seguintes à sua morte, uma série de guerras civis rasgou seu império em pedaços, resultando em vários estados governados pelos diádocos, sobreviventes e herdeiros generais de Alexandre. 

Seu legado inclui a difusão cultural que suas conquistas geraram, como o greco-budismo. Fundou cerca de vinte cidades que levavam o seu nome, principalmente Alexandria, no Egito. Seus assentamentos de colonos gregos e a propagação resultante da cultura grega no leste resultou em uma nova civilização helenística, aspectos que ainda eram evidentes nas tradições do Império Bizantino em meados do século XV e a presença de oradores gregos na região central e noroeste da Anatólia até a década de 1920.

Alexandre se tornou lendário como um herói clássico no molde de Aquiles, e aparecendo com destaque na história e mito grego e culturas não gregas. Tornou-se a medida contra a qual os líderes militares se compararam, e academias militares em todo o mundo ainda ensinam suas táticas. É muitas vezes classificado entre as pessoas mais influentes do mundo em todos os tempos, junto com seu professor Aristóteles. 

Linhagem e infância

Alexandre nasceu na cidade de Pela, capital do Reino da Macedônia, no sexto dia do mês hecatombeu do antigo calendário grego, o que provavelmente corresponde a 20 de julho de 356 a.C., apesar da data exata ainda não ser sabida com certeza. Era filho do rei Filipe II e de sua quarta esposa, Olímpia, filha do rei Neoptólemo I do Epiro. Apesar de Filipe ter sete ou oito esposas, Olímpia foi sua esposa principal por muito tempo, provavelmente devido ao fato dela ter sido aquela que lhe deu um filho homem. 

Muitas lendas envolvem o nascimento e infância de Alexandre. De acordo com o biógrafo grego Plutarco, Olímpia, na noite da consumação do seu casamento com Filipe, sonhou que seu útero fora atingido por um raio. É dito que Filipe, em um sonho um tempo após o casamento, viu-se segurando o útero de sua esposa marcando-o com um selo gravado com uma imagem de leão. Plutarco deu várias interpretações a este sonho: talvez que Olímpia estivesse grávida antes do casamento, indicado pelo selo gravado em seu útero; ou que Alexandre fosse filho do deus Zeus. Analistas antigos dizem que uma ambiciosa Olímpia pode ter propagado a história da origem divina de Alexandre ou talvez ela dispensasse essa sugestão como ímpia. 

No dia que Alexandre nasceu, Filipe estava preparando um cerco à cidade de Potideia, na península de Calcídica. No mesmo dia, Filipe recebeu notícias que o seu general Parménio tinha derrotado os exércitos combinados da Ilíria e da Peônia, e também que seu cavalo havia vencido uma competição nos Jogos Olímpicos.

Também é dito que, neste dia, o Templo de Ártemis, em Éfeso, uma das sete maravilhas do mundo antigo, havia sido queimado. Isso levou Hegésias de Magnésia a dizer que o incêndio tinha ocorrido porque Ártemis estava longe, testemunhando o nascimento de Alexandre. Tais lendas podem ter surgido após Alexandre ter se tornado rei e possivelmente foram instigadas pelo próprio para mostrar que era um super-humano e destinado à grandeza desde sua concepção. 

Nos seus primeiros anos de vida Alexandre foi criado por uma enfermeira, Lanice, irmã do futuro general Clito. Mais adiante na sua infância, Alexandre foi tutorado pelo rígido Leônidas de Epiro, um parente de sua mãe, e por Lisímaco, um general de Filipe. Alexandre foi criado como todos os jovens nobres macedônios, aprendendo a lutar, a ler, a tocar lira, a cavalgar e a caçar. 

Quando Alexandre tinha dez anos de idade um comerciante da Tessália trouxe um cavalo a Filipe, que procurou vender por treze talentos. O cavalo se recusava a ser montado e Filipe o dispensou. Alexandre, contudo, percebendo que o cavalo parecia ter medo da própria sombra, afirmou que poderia domar o animal, o que posteriormente conseguiu. Plutarco afirmou que Filipe ficou exacerbado pela coragem e ambição do filho, o beijou firmemente e declarou: “Meu filho, você deve encontrar um reino grande o suficiente para a sua ambição.

A Macedônia é pequena demais para você”. Ele acabou comprando o cavalo para o garoto. Alexandre deu ao animal o nome Bucéfalo, que significa “cabeça de boi”. Bucéfalo tornou-se o cavalo principal de Alexandre, acompanhando-o até suas campanhas na Índia. Quando o animal morreu (devido à idade avançada, de acordo com Plutarco, aos 30 anos), nomeou uma cidade com seu nome, Bucéfala. 

Adolescência e educação

Quando Alexandre tinha treze anos, Filipe começou a buscar um tutor para seu filho e considerou acadêmicos como Isócrates e Espeusipo, sendo que este último queria o cargo. No final, Filipe escolheu Aristóteles e lhe ofereceu o Templo das Ninfas em Mieza para ser usado como sala de aula. Em retorno por educar seu filho, Filipe concordou em reconstruir a cidade natal de Aristóteles, Estagira, que o próprio Filipe havia destruído. Ele a repovoaria, libertaria seus cidadãos que haviam sido escravizados e perdoaria os que estavam no exílio. 

Mieza era como um colégio interno para Alexandre e os filhos de outros nobres macedônios que o acompanharam, como Ptolemeu, Heféstio e Cassandro. Muitos destes outros estudantes acabaram se tornando amigos de Alexandre e mais tarde se tornariam generais em seu exército. Aristóteles ensinou a Alexandre e seus companheiros sobre medicina, filosofia, moral, religião, lógica e arte. Sob sua tutela, Alexandre desenvolveu muito interesse pelo autor Homero, em particular com a obra Ilíada; Aristóteles lhe deu uma cópia deste livro, que Alexandre levava em suas campanhas. 

Regência e ascensão da Macedônia

Aos 16 anos de idade a educação de Alexandre sob Aristóteles acabou. Filipe então foi para a guerra contra Bizâncio, deixando Alexandre como regente do seu reino e herdeiro aparente. Na ausência de Filipe, os medos trácios se revoltaram contra a Macedônia. Alexandre respondeu rápido, expulsando-os dos seus territórios. Ele recolonizou a região com gregos e fundou uma cidade chamada Alexandrópolis. 

Quando Filipe retornou, enviou Alexandre e uma pequena força de combate para subjugar uma revolta no sul da Trácia. Logo depois, durante uma campanha contra outros gregos na cidade de Perinto (atual Marmara Ereğlisi), Alexandre teria salvado a vida do seu pai. Enquanto isso, a cidade de Anfissa começou a trabalhar em terras que eram consagradas a Apolo, próximo de Delfos, um sacrilégio que deu a Filipe a oportunidade de mais uma vez interferir em assuntos gregos. Ainda ocupado na Trácia, ordenou a Alexandre que reunisse um exército para uma campanha no sul da Grécia.

Preocupado que os estados gregos percebessem e interviessem, Alexandre fez parecer que se estava preparando para atacar a Ilíria. Nesse meio tempo, de fato, os ilírios invadiram a Macedônia, mas foram facilmente repelidos por Alexandre. Filipe e seu exército se reuniram com Alexandre em 338 a.C., e juntos marcharam para Termópilas, onde derrotaram uma pequena mas obstinada resistência de homens de Tebas. Eles depois avançaram e ocuparam Elateia. Alguns dias depois marcharam sobre Atenas e Tebas.

Os atenienses, liderados por Demóstenes, decidiram se aliar aos tebanos contra a Macedônia. Embaixadores atenienses e de Filipe tentaram ganhar o favor de Tebas, mas preferiram ficar do lado de Atenas. Filipe marchou então até Anfissa (ostensivamente agindo sobre o pedido do Anfictionia), capturando mercenários enviados por Demóstenes e aceitando a rendição desta cidade. Retornou então para Elateia, enviando uma oferta final de paz para Atenas e Tebas, mas foi rejeitado. 

Enquanto Filipe marchava rumo a sul, seus oponentes o bloquearam próximo a Queroneia, na Beócia. Na subsequente batalha de Queroneia, Filipe comandou a ala direita dos exércitos macedônios e Alexandre ficou no flanco esquerdo, acompanhado de alguns dos melhores generais do reino. De acordo com fontes antigas, a luta foi intensa. Filipe recuou propositadamente, forçando os hoplitas atenienses a segui-lo, abrindo assim uma brecha em suas linhas. Alexandre então quebrou a formação do exército de Tebas, seguido pelos generais de Filipe. Com a coesão do inimigo quebrada, Filipe ordenou que suas tropas avançassem. Com os atenienses perdidos, os tebanos foram cercados e derrotados. 

Depois da vitória em Queroneia, Filipe e Alexandre marcharam sem oposição pelo Peloponeso, sendo bem recebidos pelas cidades; contudo, quando se aproximaram de Esparta, foram recusados, mas decidiram não partir para a guerra. Em Corinto, Filipe estabeleceu a “Aliança Helênica” (moldada igualmente como a aliança anti-Pérsia durante as Guerras Greco-Persas), que incluía quase todas as cidades-estado gregas, excluindo Esparta. Filipe foi então proclamado hegemon (que pode ser traduzido como “Comandante Supremo”) da Liga (conhecida pelos historiadores modernos como a Liga de Corinto), e anunciou seus planos de invadir o Império Persa. 

Exílio e retorno

Filipe se casou novamente quando retornou para Pela, desta vez com uma mulher chamada Cleópatra Eurídice, sobrinha do general Átalo. O casamento fez da posição de Alexandre como herdeiro menos segura já que qualquer filho homem que Eurídice e Filipe tivessem seria um macedônio puro, enquanto Alexandre era apenas meio macedônio (sua mãe, Olímpia, era de Epiro). Durante o banquete de casamento, Átalo ficou bêbado e começou a gritar pedindo aos deuses que aquela união produzisse um herdeiro legítimo. 

No casamento de Cleópatra, com quem Filipe havia se apaixonado e casado, ela sendo jovem demais para ele, seu tio Átalo, bêbado, desejou que os macedônios rezassem aos deuses para lhes dar um sucessor legítimo para o seu reino através de Eurídice. Isso irritou muito Alexandre, que jogou sua caneca na cabeça de Átalo e berrou: “Seu vilão, o que eu sou então? Um bastardo?” Então Filipe, tomando partido de Átalo, se ergueu e correu na direção do filho, mas cheio demais de ira ou muito bêbado, acabou tropeçando, e caiu no chão.

Alexandre então o insultou: “Vejam! Este é o homem que faz as preparações de passar da Europa para a Ásia, não passa de um assento para o outro.”
— Plutarco descrevendo o que aconteceu no casamento. 

Alexandre fugiu da Macedônia junto com a mãe, deixando-a com seu irmão, o rei Alexandre I de Epiro, em Dodona, capital dos molossos. Ele continuou fugindo até a Ilíria, onde foi aceito como convidado pelo rei local, apesar de tê-lo derrotado em batalha anos antes. Contudo, Filipe nunca teve a intenção de deserdar o seu político e militarmente treinado filho. Seis meses depois, com a mediação de Demarato, os dois fizeram as pazes e Alexandre retornou para casa. 

No ano seguinte, o sátrapa (governador) de Cária, em Pixodaro, ofereceu a mão de sua filha ao meio-irmão de Alexandre, Filipe Arrideu. Olímpia e vários amigos de Alexandre sugeriram então que isso mostrava que Filipe II iria fazer de Arrideu seu herdeiro. Alexandre reagiu enviando um ator, Téssalo, até Corinto, para dizer a Pixodaro que ele não deveria oferecer sua filha a um ilegítimo, mas deveria o fazer a Alexandre. Quando Filipe ouviu isso, parou as negociações e repreendeu Alexandre por querer se casar com a filha de Cária, afirmando que ele queria uma noiva melhor para ele. Filipe exilou quatro amigos de Alexandre, Hárpalo, Nearco, Ptolemeu e Erígio. 

Rei da Macedônia

No verão de 336 a.C., enquanto estava em Egas num casamento da sua filha Cleópatra com o irmão de Olímpia, Alexandre I de Epiro, Filipe foi morto por Pausânias, o próprio capitão de sua guarda. Enquanto Pausânias tentava fugir, ele tropeçou e foi morto por seus perseguidores, incluindo dois companheiros de Alexandre, Pérdicas e Leonato. Alexandre foi então proclamado rei pelos nobres macedônios e pelo exército. Tinha ele apenas vinte anos de idade. 

Consolidação do poder

Agora Alexandre III, o novo rei começou seu governo eliminando potenciais rivais ao trono. Ele mandou executar seu primo, Amintas IV. Também ordenou a morte de dois príncipes macedônios de Lincéstida, mas poupou um terceiro, Alexandre de Lincéstida. Olímpia mandou queimar vivas Cleópatra Eurídice e sua filha com Filipe, a criança Europa. Quando Alexandre descobriu o que sua mãe fez, ficou furioso. Contudo, ele teve que mandar executar Átalo, tio de Eurídice, que comandava a vanguarda do exército na Ásia Menor.

Átalo, naquela altura, estava negociando com Demóstenes sobre a possibilidade de desertar para Atenas. Ele constantemente insultava Alexandre e depois da morte de Cleópatra, Alexandre deve ter considerado-o perigoso demais para viver. O rei poupou Arrideu, que afirmavam ser mentalmente incapaz na época, possivelmente como resultado do envenenamento feito por Olímpia. 

A notícia da morte de Filipe fez com que várias cidades gregas se revoltassem contra a Macedônia, incluindo Tebas, Atenas, Tessália e diversas tribos trácias ao norte da fronteira macedônia. Quando notícias das revoltas chegaram a Alexandre, ele respondeu rapidamente. Apesar de ser aconselhado a usar diplomacia, Alexandre reuniu 3 000 cavaleiros e marchou rumo a Tessália. Ele encontrou o exército tessálio em uma passagem entre o monte Olimpo e o monte Ossa, e ordenou que seus homens marchassem para o monte Ossa. Quando os tessalianos acordaram, encontraram Alexandre na sua retaguarda e decidiram se render, comprometendo suas forças ao rei. Ele continuou rumo ao sul, seguindo até o Peloponeso. 

Alexandre parou nas Termópilas, onde foi reconhecido como líder da Liga Anfictionia antes de seguir até Corinto. Atenas decidiu pedir a paz e Alexandre os perdoou. O famoso encontro entre Alexandre e Diógenes de Sinope ocorreu enquanto esses estavam em Corinto. Quando Alexandre perguntou a Diógenes o que ele poderia fazer por si, o filósofo pediu desdenhosamente a Alexandre que se afastasse um pouco, já que estava bloqueando a luz do sol.

Alexandre gostou da resposta, e teria dito “mas, na verdade, se eu não fosse Alexandre, eu seria Diógenes.” Em Corinto, assim como seu pai, foi nomeado hegemon (“Líder Supremo”) da Grécia para a luta contra a Pérsia. Enquanto estava lá recebeu notícias de uma nova rebelião na Trácia. 

Campanha na península Balcânica

Antes de partir para a Ásia para enfrentar os persas, Alexandre queria garantir a segurança de suas fronteiras no norte. Na primavera de 335 a.C., foi reprimir várias revoltas. Começando em Anfípolis, viajou para o leste para enfrentar os trácios e, no monte Hemo, o exército macedônio atacou e derrotou as forças trácias na região. As tropas de Alexandre então se lançaram sobre Tribálios, derrotando os exércitos locais as margens do rio Ligino. Alexandre então marchou por três dias sobre o Danúbio, encontrando tribos trácias de Getas. Ele não teve muita dificuldade em sobrepujá-las. 

Notícias então chegaram a Alexandre que Clito, então rei da Ilíria, e Gláucias, líder da Confederação dos Taulâncios, também estavam em revolta. Marchou então até a Ilíria, derrotando todas as forças inimigas no caminho e botando os rebeldes em retirada. Assim a fronteira norte estava segura. Enquanto Alexandre lutava no norte, os tebanos e atenienses mais uma vez se revoltaram. Alexandre marchou para o sul novamente. Outras cidades gregas decidiram hesitar, mas Tebas se precipitou em batalha.

Sua resistência foi, contudo, ineficaz, e Alexandre destruiu a cidade e queimou todas as regiões vizinhas. Muitas pessoas morreram e outras milhares foram escravizadas. Atenas e outras cidades gregas, impressionadas e assustadas, buscaram a paz com a Macedônia. Com a Grécia novamente firme sob seu controle, Alexandre voltou sua atenção para a Ásia. Ele deixou seu general Antípatro como regente. 

Conquista do Império Persa

“A juventude de Pela, da Macedônia e os povos da Grécia […] juntem-se aos seus soldados e confiai-vos a mim, para que nos movamos contra os bárbaros e nos libertemos da submissão persa, já que como gregos nós não devemos ser escravos de bárbaros.”
— Alexandre o Grande (em português)

Ásia Menor

A 334 a.C., o exército de Alexandre cruzou o Helesponto com aproximadamente 48 100 soldados de infantaria, 6 100 na cavalaria e uma frota de 120 navios com tripulação de 38 000 homens. Estes combatentes eram, em sua maioria, macedônios, mas também tinham milhares de gregos de diversas cidades-estado, mercenários e tropas conseguidas da Trácia, Peônia e Ilíria. Ele mostrou aos seus homens sua determinação de conquistar a Pérsia ao fincar sua lança em solo asiático e afirmar que aceitaria a Ásia como um presente dos deuses. Isso também mostrava sua vontade de lutar, ao contraste da preferência por diplomacia de seu pai. 

O primeiro grande confronto com os persas aconteceu na batalha do Grânico, a 24 de Daisios (8 de abril de 334 a.C.). Alexandre derrotou seus adversários e aceitou a rendição de Sárdis, a capital da província local. Ele então prosseguiu pela costa de Jônia, garantindo a autonomia das cidades da região. A cidade de Mileto, principal foco de resistência persa, foi cercada e conquistada. Indo mais a sul, estava Halicarnasso, em Cária, onde um prolongado cerco foi feito. Alexandre forçou a rendição das tropas persas, capturando o líder mercenário local, forçando assim a fuga do sátrapa de Cária, Orontobates. Alexandre deixou no poder na região uma membra da dinastia hecatômnia, Ada, que o adotou. 

De Halicarnasso, Alexandre foi até as montanhas da Lícia e as planícies de Panfília, assumindo o controle das cidades costeiras da Ásia Menor, negando aos persas o uso destas como base para sua marinha. De Panfília e da costa, Alexandre moveu-se terra adentro. Em Termesso, avançou sobre a cidade de Pisídia. Na antiga cidade de Górdio, Alexandre “desfez” o até então insolúvel nó górdio, uma façanha que dizem esperar o futuro “rei da Ásia”. De acordo com a história, Alexandre disse que não importava como o nó era desfeito e apenas o destruiu com sua espada. 

A região do Levante e a Síria

Na primavera de 333 a.C., Alexandre cruzou de Tauro até à Cilícia. Após uma pausa devido a uma doença, marchou até a Síria. Dario III trouxe um novo exército, bem maior, e flanqueou os macedônios, forçando Alexandre a recuar de volta a Cilícia. Os dois se enfrentaram em batalha em Isso, que resultou em uma importante vitória para Alexandre. Dario fugiu as pressas, levando ao colapso de suas forças, deixando para atrás uma enorme quantidade de tesouros, sua esposa, suas duas filhas e sua mãe Sisigambis.

O rei persa então propôs um tratado de paz que incluía a entrega aos macedônios de todos os territórios que eles já haviam conquistado e um resgate de 10 000 talentos por sua família. Alexandre respondeu que agora era o rei da Ásia e que apenas ele decidiria as divisões territoriais. 

Alexandre prosseguiu para conquistar a Síria e a costa da região do Levante. No ano seguinte, precisamente a 332 a.C., cercou a cidade de Tiro (atualmente no Líbano), e após um prolongado e difícil sítio forçou a submissão da região. Alexandre não mostrou piedade com a cidade, matando todos os homens em idade militar e vendendo as mulheres e crianças como escravos. 

Egito

Após esmagar a resistência persa em Tiro, a maioria das cidades na linha costeira até o Egito rendeu-se rapidamente. Uma história notória foi reportada quando os macedônios entraram em Jerusalém: de acordo com Josefo, foi mostrado a Alexandre uma profecia do Livro de Daniel, presumidamente no capítulo 8, que descrevia um poderoso rei grego que conquistaria o Império Persa. Ele poupou Jerusalém da destruição e avançou rumo ao Egito.

O avanço na região não foi calmo, com Alexandre enfrentando resistência por parte da cidade de Gaza. O local era fortificado e construído perto de montanhas. Os macedônios cercaram a cidade. Os defensores resistiram mas tiveram de ceder após sofrerem pesadas baixas. Durante a batalha, Alexandre foi ferido. Assim como em Tiro, as forças de Alexandre massacraram incontáveis civis e venderam milhares de outros como escravos. 

Alexandre entrou no Egito ao fim de 332 a.C., onde foi saudado como libertador pela população local. Ele foi proclamado como filho da divindade Amom pelo Oráculo de Siuá, em território que ficava no antigo deserto da Líbia.[79] Mais adiante, Alexandre passou a ser chamado de filho de Zeus-Amom e após sua morte continuou a ser tratado como uma divindade. Durante sua estadia no Egito, fundou a cidade de Alexandria, que viria a ser um dos centros urbanos mais prósperos da antiguidade e capital do Egito Ptolemaico. 

Assíria e a Babilônia

Com o Egito sob seu controle, Alexandre partiu, em 331 a.C., em direção à Mesopotâmia (atual Iraque), o coração do Império Persa. Lá uma vez mais confrontou Dario na crucial batalha de Gaugamela. Novamente, mesmo em menor número, se saiu vitorioso e destruiu o exército inimigo. Dario, assim como fez após outras derrotas sofridas diante de Alexandre, fugiu em desespero. A cidade da Babilônia, capital do império, abriu seus portões para os macedônios (para evitar ser destruída). Alexandre e seus homens adentraram nos seus muros e ocuparam os palácios de Dario. 

O rei persa havia fugido e Alexandre o perseguiu, indo até Arbela. Gaugamela acabou se tornando a batalha decisiva da campanha na Pérsia. O governo de Dario entrou em colapso e ele não conseguiu levantar um exército novamente. O antigo rei persa fugiu para Ecbátana (atual Hamadã). 

A Pérsia

Após conquistar a Babilônia, Alexandre foi para a cidade de Susa, uma das capitais do Império Aquemênida (Pérsia), e capturou seus lendários tesouros. Ele então enviou o grosso do seu exército até Persépolis, usando a estrada real persa. O próprio Alexandre ficou na vanguarda, levando um grupo de soldados e atravessou os Portões Persas (nas cordilheira de Zagros), que eram defendidos por uma tropa comandada pelo sátrapa Ariobarzanes. Alexandre rapidamente superou estas defesas e avançou cidade a dentro em Persépolis, saqueando os seus tesouros. 

Em Persépolis, Alexandre deu permissão para que seus soldados saqueassem a cidade e tomassem espólios pessoais. Alexandre ficou na cidade por cinco meses. Durante sua estadia, um incêndio começou no palácio leste de Xerxes I que se espalhou pela cidade. Não se sabe se foi deliberado ou um acidente de um bêbado. Para alguns foi um ato de vingança pela queima da Acrópole de Atenas durante a Segunda Guerra Greco-Persa. 

Queda do Império Persa e o leste

Alexandre continuou sua perseguição implacável a Dario, indo até Medo e a Pártia. Contudo, o rei persa já não controlava mais o seu destino, sendo feito prisioneiro pelo general Bessos, que era o sátrapa de Báctria e um dos seus comandantes mais confiáveis. Quando Alexandre se aproximou, Bessos matou Dario e se proclamou seu sucessor, com o nome de Artaxerxes V, antes de recuar até a Ásia Central com o intuito de começar uma campanha de guerrilha contra Alexandre. 

Alexandre enterrou o corpo de Dario e lhe deu um funeral digno. Ele afirmou que Dario, no seu leito de morte, o nomeou seu sucessor para o trono persa. A morte de Dario é considerado o evento final do Império Aquemênida. 

Alexandre viu Bessos como um usurpador e partiu em sua perseguição. Sua campanha, inicialmente apenas contra Bessos, se tornou uma grande aventura pela Ásia Central. Alexandre sufocou qualquer resistência que via pela frente. No caminho, fundou cidades, chamando-as de Alexandria também, incluindo a moderna Candaar no Afeganistão e Alexandria Eschate no Tajiquistão. A campanha levou Alexandre e seu exército até o extremo da região de Medo, Pártia, Ária (oeste do Afeganistão), Drangiana, Aracósia (sul afegão), Báctria e Cítia. 

Espitamenes, um senhor que governava uma região da Sogdiana, traiu Bessos em 329 a.C. e o entregou a Ptolemeu, um dos generais e amigos mais confiáveis de Alexandre. Bessos foi então executado. Contudo, enquanto Alexandre estava em Jaxartes repelindo uma invasão de um exército nômade, Espitamenes levantou Sogdiana em revolta. Alexandre pessoalmente comandou uma tropa e derrotou os citas na Batalha de Jaxartes e depois se moveu contra Espitamenes, derrotando-o na batalha de Gabai. Então, os próprios comandados de Espitamenes o assassinaram e buscaram a paz com os macedônios logo em seguida. 

Problemas e complôs

Durante a conquista final do Império Persa, Alexandre acabou adotando alguns elementos da cultura persa, como vestimentas e costumes na corte, mais notavelmente o prosquínese, que incluía o beijar de mãos ou a reverência, prostrando-se diante de alguém que é socialmente superior hierarquicamente. Os gregos aceitavam tais bajulações apenas a deidades e acreditavam que Alexandre queria se declarar ele mesmo um deus. Muitos dos seus compatriotas acabaram por criticá-lo, então ele acabou abandonando estas práticas. Por volta de 330 a.C., foi descoberto um complô contra Alexandre.

Um dos seus oficiais, Filotas, foi executado por não avisar Alexandre de uma possível tentativa de assassinato. Filotas era filho do general Parménio, que estava em Ecbátana. Alexandre acabou por ordenar sua morte também. Em seguida ele ordenou a execução de Clito, um outro general, que era seu amigo e que havia salvado sua vida em Grânico. Os dois teriam brigado bêbados durante uma recepção em Maracanda (atual Samarcanda, no Uzbequistão). Clito teria acusado Alexandre de cometer diversos erros de julgamento e, especialmente, de ter esquecido o jeito macedônio em favor de um estilo de vida oriental corrupto. 

Mais tarde, durante uma campanha na Ásia central, um segundo complô contra Alexandre foi revelado, instigado por seus próprios pajens. Seu historiador oficial, Calístenes de Olinto, foi implicado no complô. Ele foi morto logo em seguida vítima de tortura sistemática ou doença. 

A Macedônia na ausência de Alexandre

Quando Alexandre partiu para conquistar a Ásia deixou o general Antípatro, um militar e político experiente e parte da “Velha Guarda” de Filipe II, no comando da Macedônia. A brutal destruição de Tebas garantiu que os gregos não se rebelariam em sua ausência. Não houve incidentes com a exceção de uma pequena revolta feita pelo rei espartano Ágis III em 331 a.C.. Antípatro o derrotou em batalha e o matou em Megalópolis. Os espartanos foram posteriormente perdoados por sua traição. Havia também muita tensão entre Antípatro e a mãe de Alexandre, Olímpia, com um reclamando ao rei a respeito do outro. 

Em geral, a Grécia ficou em paz durante boa parte do reinado de Alexandre e prosperou com os espólios da campanha na Ásia. Alexandre enviava tesouros de volta para casa, estimulando a economia e o comércio pelo seu novo império, que agora ia desde as ilhas gregas até a região do Afeganistão na Ásia central. Contudo, os constantes pedidos por tropas de Alexandre e a migração de macedônios para outras regiões conquistadas para o império acabou por enfraquecer a própria Macedônia, que, décadas após a morte de Alexandre, não teve como resistir à invasão romana. 

Incursões no subcontinente indiano

Após a morte de Espitamenes e o seu casamento com Roxana, que teve o objetivo de sedimentar sua relação com as novas satrapias, Alexandre focou seu olhar no subcontinente indiano. Ele convidou vários chefes tribais da antiga satrapia de Gandara, no agora norte do Paquistão, para vir até ele e se submeter a sua autoridade. Onfis, o governador de Taxila, cujo reino ia do rio Indo até ao rio Jelum, concordou, mas alguns chefes das tribos das montanhas, incluindo os de Aspásios e Assacenos, na região norte da Índia, se recusaram.

Onfis colocou o seu reino e suas tropas a disposição de Alexandre e também entregou vários presentes. Alexandre devolveu o título de rei a Onfis e lhe presenteou com roupas da Pérsia, ouro, ornamentos de prata, 30 cavalos e 1 000 talentos de ouro. Alexandre dividiu suas forças, enviando Onfis para ajudar Heféstio e Pérdicas para reconstruir as pontes sobre o rio Indo, a fim de manter suas tropas na vanguarda supridas. Onfis então recebeu o rei macedônio em sua casa em Taxila. 

Nas campanhas seguintes dos macedônios, Taxiles enviou pelo menos 5 000 homens para apoiá-los. Esse apoio foi importante na sangrenta batalha do rio Hidaspes. A incursão contra o rei indiano Poro tinha como objetivo submeter parte da região de Utar Pradexe. Após a vitória em Hidaspes, Alexandre ordenou então que Onfis perseguisse Poro e quando este foi pego o rei macedônio lhe ofereceu termos favoráveis.

Os dois líderes indianos permaneceram rivais e Alexandre teve que mediar as disputas entre eles. Taxiles continuou a ajudar os macedônios, dando-lhes suprimentos e equipamentos para a frota no rio Hidaspes, que em troca recebeu o governo de toda a região até o rio Indo. Quando Alexandre morreu (323 a.C.), Onfis reteve o seu poder e autoridade. 

No inverno de 327/326 a.C., Alexandre liderou várias campanhas contra diferentes tribos e clãs indianos; como os aspásios no vale de Cunar, os gureanos nas marges do rio Panjcora e os assacenos no vales de Swat e Buner. Sangrentos confrontos foram travados com os aspásios. Mesmo com o próprio Alexandre sendo ferido em batalha, os aspásios foram derrotados. Alexandre partiu para enfrentar os assacenos, que lutaram para manter as cidades de Mássaga, Ora e Aornos.

O forte em Mássaga foi tomado após um curto mas violento combate, onde Alexandre foi novamente ferido (no joelho). De acordo com o historiador Cúrcio, “não só Alexandre massacrou toda a população de Mássaga, mas ele também destruiu todos os prédios”. Outro massacre aconteceu em Ora. Aornos (que havia recebido milhares de refugiados) foi o último foco de resistência na região. Alexandre sobrepujou os inimigos por lá também. 

Foi logo após conquistar Aornos, que Alexandre cruzou o rio Indo e lutou a dramática batalha de Hidaspes, em 326 a.C., contra o rei Poro (que governava a região de Panjabe). Alexandre havia ficado impressionado com a coragem de Poro e o tornou um aliado. Ele o apontou como um sátrapa e até lhe deu mais território que ele outrora governava. Ter Poro, o rei mais importante da região, era crucial para ajudá-lo a controlar um lugar tão longe da sua base de poder na Macedônia.

Alexandre ainda teve tempo de fundar duas cidades de lados opostos do rio Jelum, nomeando uma delas de Bucéfala, em honra ao seu cavalo que morrera naquele período (de velhice). A outra ficava em Niceia (Vitória), atualmente localizada perto da cidade de Mongue, no Panjabe. 

Revolta no exército

Ao leste do reino do rei Poro, próximo ao rio Ganges, estavam o Império Nanda de Mágada e mais a leste ainda estava os gangáridas (onde fica atualmente Bangladeche). Com medo do prospecto de invasões de exércitos do leste e exaustivas campanhas, várias unidades do exército de Alexandre se amotinaram nas proximidades do rio Beás, recusando-se a marchar mais para o leste. De fato este rio marcou a extensão máxima do Império de Alexandre Magno. 

Para os macedônios, contudo, a sua luta contra Poro atenuou sua coragem e deteve seus avanços na Índia. Para ter dado tudo que tinham para dar para repelir o inimigo que tinham reunido apenas 20 000 soldados e 2 000 cavalos, eles violentamente se opuseram a Alexandre quando ele propôs continuar avançando para além do rio Ganges, a largura dos quais, como eles aprenderam, tinha 32 furlongs, suas profundidades eram de cem braças, enquanto suas margens eram defendidas por centenas de milhares de soldados e vários elefantes de guerra.

Foi contado aos soldados macedônios que os reis dos ganderitas e présios estavam esperando com 8 000 de cavalaria, 200 000 combatentes de infantaria, 8 000 charretes e 6 000 elefantes. Alexandre tentou persuadir os seus soldados a marchar com ele para o leste, mas seu general Ceno lhe implorou para que ele reconsiderasse e retornasse. Os homens, segundo ele, estavam querendo voltar para suas casas, ver seus pais, suas esposas, seus filhos e sua terra natal. Alexandre posteriormente concordou e marchou em direção ao sul, seguindo a margem do rio Indo. Ao longo do caminho ele enfrentou e derrotou uma força inimiga em Máli (atualmente chamada de Multan, no Paquistão) e ainda enfrentou algumas outras tribos indianas. 

Alexandre enviou então boa parte do seu exército a Carmânia (atualmente sul do Irã) com o general Crátero e enviou uma frota para explorar a região do Golfo Pérsico, enquanto o próprio Alexandre levou o que sobrou das tropas sob seu comando de volta a Pérsia tomando a difícil rota ao sul através do deserto de Gedrósia e Macrão. Alexandre chegou em Susa em 324 a.C., mas havia perdido muitos soldados na travessia pelo deserto. 

Anos posteriores na Pérsia

Ao retornar do extremo oriente para a Pérsia, Alexandre ficou irritado ao saber que seus sátrapas e governadores militares haviam se comportado mal durante sua ausência. Ele então ordenou a execução de vários deles, para servirem de exemplo, enquanto ia até a cidade de Susa. Como um gesto de gratidão, o rei pagou as dívidas dos seus soldados e anunciou que ele mandaria de volta à Macedônia os veteranos mais velhos ou deficientes, liderados por Crátero. Suas tropas duvidaram de suas intenções e se amotinaram na cidade de Ópis. Eles se recusaram a partir e criticaram sua adoção de costumes e vestimentas persas, e ainda a adição de soldados e oficiais persas no seu exército e em unidades macedônias. 

Após três dias, não capaz de persuadir seus homens a desistirem, Alexandre deu aos persas postos de comando no exército e conferiu a macedônios títulos militares nas unidades persas. Os soldados macedônios então pediram por perdão, que Alexandre aceitou, e então fez um grande banquete para milhares de seus homens, onde comeu junto com eles. Em uma tentativa de criar mais harmonia entre seus súditos persas e macedônios, Alexandre fez casamentos em massa dos seus oficiais graduados e outros nobres em Susa, mas muitos destes casamentos não duraram muito. Nesse meio tempo, Alexandre também descobriu que os guardas da tumba de Ciro II a haviam profanado e ordenou a execução deles. 

Depois que Alexandre viajou para Ecbátana para recuperar boa parte do grande tesouro persa, seu grande companheiro, Heféstio, morreu (de doença ou envenenamento). Sua morte foi devastadora para Alexandre e ele ordenou uma cara e grandiosa pira funerária no meio da Babilônia para o amigo, além de ter decretado luto oficial. 

Uma vez na Babilônia, Alexandre começou a planejar uma série de novas campanhas militares. Ele pretendia invadir a Arábia e talvez lançar uma incursão na Europa ocidental, mas sua morte prematura impediu que todos os planejamentos fossem adiante. 

Morte e sucessão

A 10 ou 11 de junho de 323 a.C., Alexandre morreu no antigo palácio do rei Nabucodonosor II, na Babilônia, aos 32 anos. Existem duas versões a respeito de sua morte. De acordo com Plutarco, cerca de quatorze dias antes de falecer, Alexandre deu uma festa ao almirante Nearco e passou aquela noite e a próxima bebendo. Ele teve então uma febre, que foi piorando até o ponto de não poder falar. Aos soldados comuns, ansiosos por causa da saúde do seu rei, foi permitido passar por ele silenciosamente e acenar.

A segunda versão, de Diodoro, afirma que Alexandre passou a sofrer de fortes dores após tomar uma enorme porção de vinho, em uma festa a Héracles. Permaneceu fraco por onze dias; não teve febre e morreu depois de dias de agonia. Plutarco afirmou que esta última versão não seria verdade. 

Dada a propensão da aristocracia macedônia ao assassinato, conspirações circulam sobre as histórias de sua morte. Diodoro, Plutarco, Arriano e Justino, todos mencionam a possibilidade de Alexandre ter sido envenenado. Justino afirma que houve uma grande conspiração para envenená-lo, mas Plutarco nega isso, enquanto Diodoro e Arriano apenas mencionam essa possibilidade. Relatos afirmam que Antípatro poderia ser o líder do complô, pois havia sido dispensado da posição de vice-rei da Macedônia e estava de briga com Olímpia, mãe de Alexandre.

Talvez tenha assumido que o fato dele ter sido convocado para a Babilônia poderia ser uma sentença de morte e resolveu agir. Antípatro teria então arquitetado o envenenamento com seu filho Iolas, que era o homem que servia os vinhos para Alexandre. Há quem sugira que até Aristóteles tenha participado. 

Um argumento contra a teoria do envenenamento é que houve um espaço de doze dias entre o começo da doença e a morte; venenos que demorassem tanto para matar não estavam disponíveis na época. Contudo, em 2003, o Dr. Leo Schep da The New Zealand National Poisons Centre propôs em um documentário da BBC que sua morte pode ter sido causada por flores brancas de heléboro (Veratrum album), que são usadas como veneno.

Em 2014, o Dr. Leo Schep publicou sua teoria no jornal médico Clinical Toxicology; em cujo artigo sugere que o vinho de Alexandre continha heléboro, uma planta conhecida pelos antigos gregos, que produzia sintomas similares aos que foram descritos no Romance de Alexandre. Envenenamento por heléboro demora e sugere-se que, se Alexandre realmente tenha sido envenenado, heléboro é a causa mais provável. Outra explicação para o envenenamento foi divulgada em 2010, quando foi proposto que as circunstâncias da sua morte eram compatíveis com envenenamento pela água do rio Estige (Mavroneri) que contém caliqueamicina, um composto perigoso produzido por uma bactéria. 

Muitas causas naturais (doenças) foram sugeridas para a morte de Alexandre, incluindo malária e febre tifoide. Um artigo de 1998 da New England Journal of Medicine atribuiu sua morte a febre tifoide complicada por uma perfuração gastrointestinal e ascendente paralisia. Outra análise recente indica espondilite piogênica ou meningite. Os sintomas também são similares a outras doenças, incluindo pancreatite aguda e febre do Nilo Ocidental. Muitos dizem que a saúde geral de Alexandre havia declinado devido a anos de bebedeiras e feridas pelo corpo devido às batalhas. A agonia que Alexandre sentiu após perder seu grande amigo Heféstio, também lhe pode ter feito mal, segundo alguns. 

Após seu falecimento

O corpo de Alexandre foi posto em um sarcófago antropoide de ouro que foi enchido com mel, o qual foi colocado em um caixão de ouro. De acordo com Eliano, um vidente chamado Aristandro teve uma visão da terra onde os restos de Alexandre deveriam descansar onde seria “feliz e invencível para sempre”.Talvez, mais provavelmente, os sucessores podem ter visto que o local de enterro de Alexandre serviria como um símbolo de legitimidade, já que enterrar o rei que o antecedeu era uma prerrogativa real. 

Enquanto o cortejo fúnebre de Alexandre ia até a Macedônia, Ptolomeu o pegou e levou o corpo temporariamente até Mênfis. Seu sucessor, Ptolemeu II, transferiu o sarcófago para Alexandria, onde permaneceu até o fim do período conhecido como Antiguidade Tardia. Ptolemeu IX, um dos últimos sucessores de Ptolomeu Sóter, substituiu o sarcófago de Alexandre com um de vidro para que ele pudesse converter o antigo em dinheiro. A recente descoberta de uma grande tumba no norte da Grécia, em Anfípolis, que data do tempo de Alexandre, pode significar que os macedônios tinham intenções de enterrá-lo mesmo em solo grego. Isso é plausível devido ao eventual destino da caravana do cortejo fúnebre de Alexandre. 

Pompeu, Júlio César e Augusto visitaram a tumba de Alexandre Magno na cidade de Alexandria. Foi dito que Calígula teria tirado a armadura peitoral usada por Alexandre para seu próprio uso. O também imperador romano Septímio Severo fechou a tumba de Alexandre para visitação pública. Seu filho e sucessor, Caracala, um grande admirador, também visitou sua tumba durante o seu reinado. Após isso, a história do sarcófago de Alexandre ficou nebulosa. 

O chamado “Sarcófago de Alexandre”, descoberto próximo de Sidom (no Líbano) e agora em amostra no Museus Arqueológicos de Istambul, é chamado assim não necessariamente por suspeitas de ter os restos mortais de Alexandre, mas por causa dos baixos-relevos que mostram Alexandre e seus companheiros lutando contra Persas e caçando. Inicialmente acreditava-se que o sarcófago era na verdade de Abdalônimo (morto em 311 a.C.), o rei de Sidom nomeado por Alexandre imediatamente após a Batalha de Isso, em 331 a.C.. Contudo, mais recentemente, esta informação foi desacreditada. 

Divisão do Império

A morte de Alexandre foi tão repentina que quando a notícia chegou na Grécia, muitos não acreditaram. Alexandre não tinha um herdeiro legítimo imediato, já que sua esposa, Roxana, estava apenas grávida no período da sua morte. A criança, Alexandre IV, nasceu após o seu falecimento e veio também a falecer oito anos depois. De acordo com Diodoro, os companheiros de Alexandre perguntaram, no seu leito de morte, para quem ele deixaria o seu império gigantesco; sua resposta lacônica foi tôi kratistôi (“para o mais forte”).

Arriano e Plutarco dizem que Alexandre não tinha condições de falar, implicando que a história do “para o mais forte” é apócrifa. Diodoro, Cúrcio e Justino oferecem um fim mais plausível, com Alexandre passando seu anel de sinete para Pérdicas, seu guarda-costas e líder de sua cavalaria pessoal, em frente a testemunhas, o que teoricamente o teria feito seu sucessor. Pérdicas não clamou pelo poder inicialmente, sugerindo que o filho de Alexandre com Roxana deveria ser o rei, com ele próprio, Crátero, Leonato e Antípatro como guardiões.

Contudo, a infantaria macedônia, sob comando do general Meleagro, rejeitou esta ideia pois eles não teriam um papel a cumprir neste cenário. Em vez disso, eles apoiaram o meio irmão de Alexandre, Filipe Arrideu. Eventualmente, os dois lados se reconciliaram e depois do nascimento de Alexandre IV, ele e Filipe III foram nomeados como reis conjuntos, ainda que apenas no nome. 

Dissensão e rivalidade afligiram os macedônios, contudo. As satrapias entregues por Pérdicas na Partição da Babilônia tornaram-se bases de poder de cada general para tentar conseguir mais poder. Após o assassinato de Pérdicas em 321 a.C., a unidade macedônica foi quebrada e seguiram-se quarenta anos de guerra entre “Os Sucessores” (diádocos) até que o mundo helênico alcançou certa estabilidade com uma divisão formal e prática: os Ptolemeus no Egito, os Selêucidas na Mesopotâmia e Ásia Central, os Atálidas na Anatólia e os Antígonos na Macedônia. Nesse meio tempo, tanto Alexandre IV e Filipe III foram assassinados. 

Testamento

Diodoro afirmou que Alexandre deixou instruções em escrito para Crátero algum tempo antes da sua morte. Crátero começou a executar alguns de seus comandos, mas os sucessores do seu império decidiram parar, afirmando que alguns dos pedidos eram impraticáveis e extravagantes. Ainda assim, Pérdicas leu o testamento de Alexandre para as suas tropas. 

O texto do testamento dele pedia mais expansão territorial do império, indo para o sul e oeste do mediterrâneo, construção de monumentos e a união das populações do ocidente e do oriente. Também tinha: 

• Construção de um monumento para a tumba do seu pai Filipe II, “que se equiparasse a grandeza das Pirâmides egípcias”;
• Construção de grandes templos em Delos, Delfos, Dodona, Dio, Anfípolis e de templos-monumentos de Atena a Troia; 
• Expansão militar e conquista da Arábia e de toda a bacia do Mediterrâneo; 
• Circunavegação da África; 
• Desenvolvimento de cidades e “transporte de populações da Ásia para a Europa e da Europa para a Ásia, com o objetivo de unir os continentes e criar unidade e amizade entre os povos por casamentos e laços familiares”;

Comando

Alexandre passou a ser chamado de “o Grande” (Mégas Aléxandros) devido ao seu sucesso sem paralelo como comandante militar. Ele nunca perdeu uma batalha, apesar de quase sempre estar em menor número. Conhecido por usar muito bem o terreno, sua infantaria pesada (as falanges) e táticas de cavalaria, contava com a obediência de suas tropas em suas táticas ousadas. A falange macedônica, armada com longas sarissas (de até seis metros), havia sido aperfeiçoada por seu pai, Filipe II, através de rigoroso treinamento, e Alexandre usou sua força, velocidade e manobrabilidade com grande efeito contra forças inimigas maiores, como a dos persas.

Alexandre também conhecia o potencial de desunidade de exércitos diversificados, que continham diferentes línguas e armas. Ele era conhecido por participar pessoalmente das batalhas na linha de frente, à maneira dos reis macedônios. 

Na sua primeira grande batalha na Ásia, em Grânico, Alexandre usou uma pequena parte das suas forças, aproximadamente 13 000 soldados de infantaria e 5 000 de cavalaria, contra uma força persa de 40 000 homens. Ele colocou as falanges no centro e a cavalaria e os arqueiros nos flancos, para igualar o tamanho das linhas persas, de aproximadamente 3 km. Em contraste, a infantaria persa ficava estacionada atrás de sua cavalaria. Isso garantiu que Alexandre não fosse flanqueado, enquanto sua falange tinha uma clara vantagem sobre as cimitarras e lanças curtas persas. As perdas macedônias foram muito pequenas, comparada com as persas. 

Na Batalha de Isso, em 333 a.C., seu primeiro confronto direto com Dario, dispôs suas forças da mesma maneira de Grânico e novamente ordenou que sua falange central avançasse na vanguarda. Alexandre pessoalmente comandou o ataque da infantaria, colocando em retirada o inimigo. Na batalha decisiva em Gaugamela, Dario dispôs várias bigas para quebrar as linhas das falanges. Alexandre dispôs suas tropas em linhas, com o centro avançando em um ângulo mais para frente, o que quebrou a coesão do ataque inicial das bigas, obrigando-as a saírem de formação. Assim, o centro das linhas de Dario foram quebradas e ele novamente teve que fugir para salvar a própria vida. 

Quando enfrentou inimigos cujas táticas eram desconhecidas a ele, como na Ásia Central e na Índia, Alexandre rapidamente se adaptava ao novo cenário adverso e empregava novas táticas. Assim, em Báctria e Sogdiana, Alexandre usou lanceiros e arqueiros para impedir que o inimigo afobasse seus flancos, enquanto concentrava sua cavalaria no centro. Na Índia, quando confrontou o rei Poros e seus elefantes de guerra, os macedônios abriram suas linhas para envolver os elefantes e usavam suas sarissas para atacar os animais e os seus condutores. 

Aparência física

Segundo o biografo grego Plutarco (c. 46–120) descreveu a aparência de Alexandre como: 
A aparência exterior de Alexandre é melhor representada pelas estátuas de Lísipo, e foi por apenas este artista que o próprio Alexandre achou que poderia modelar ele.

Para estas particularidades que muitos dos seus sucessores e amigos iriam imitar, principalmente, o porte do pescoço, que era curvado ligeiramente para a esquerda, e o jeito nos olhos, o artista tinha observado muito bem. Apeles, contudo, quando o pintava, não reproduzia esta complexidade, mas o tornou mais escuro e moreno. Considerando que ele tinha pele clara, como dizem, essa clareza passou para vermelho no seu peito e face. Além disso, um odor muito agradável exalado de sua pele e que havia uma fragrância a respeito da sua boca e sua carne, de modo que suas vestes estavam cheios disso, isto estava escrito nas Memórias de Aristoxeno. 

O historiador grego Arriano descreveu Alexandre como: 
Forte e belo comandante com um dos olhos escuros como a noite e o outro azul como o céu. Em Romance de Alexandre é sugerido que Alexandre tinha heterocromia, com dois olhos de cores diferentes cada. O historiador britânico Peter Green descreveu assim a aparência de

Alexandre, baseado em sua interpretação de documentos antigos: 
Fisicamente, Alexandre não era atraente. Mesmo pelos padrões macedônios, ele era baixo, embora atarracado e resistente. Sua barba era escassa e ele se destacava dos outros nobres ao se apresentar sempre sem barba. Seu pescoço era de alguma forma torcido, de modo que ele parecia estar olhando para cima em um certo ângulo. Seus olhos (um azul e outro castanho) revelava uma orvalhada, uma qualidade feminina. Ele tinha uma alta compleição e uma voz ríspida. 

Autores da antiguidade afirmavam que Alexandre gostava tanto dos seus retratos feitos por Lísipo que proibiu que outros escultores fizessem retratos dele. Lísipo usava normalmente o esquema contrapposto escultural para reproduzir Alexandre e outros personagens como Apoxiômeno, Hermes e Eros. As esculturas de Lísipo, famosas pela sua naturalidade, se opunham às poses rígidas e estáticas, e são creditadas como sendo as que melhor oferecem uma ideia de como Alexandre era. 

Personalidade

Alexandre herdou uma personalidade forte dos seus pais. Sua mãe tinha grandes ambições e encorajava o filho a acreditar que o destino dele era conquistar o Império Persa. A influência de Olímpia incutiu o senso de destino nele, e Plutarco afirmou que “manteve seu espírito sério e sublime com o passar dos anos.” Contudo, seu pai, Filipe II, era a principal influência e modelo para Alexandre, enquanto ele observava o pai ir em campanha atrás de campanha em sua infância, conquistando várias vitórias, ignorando ferimentos. A relação pai e filho era competitiva no lado da personalidade; ele precisava sempre superar o pai, as vezes mostrando um comportamento impulsivo demais em batalha. 

De acordo com Plutarco, um dos traços mais importantes de Alexandre era seu temperamento violento e imprudente, impulsivo por natureza, o que contribuiu para o seu mecanismo de tomar decisões. Apesar de Alexandre ser teimoso e obstinado, ele não respondia bem as ordens do pai, mas era aberto ao debate.

Ele tinha um lado mais calmo-perceptivo, logico e calculista. Ele tinha um desejo por conhecimento, amor por filosofia e era um ávido leitor. Ele ganhou esses interesses através de seu tutor, Aristóteles. Alexandre era inteligente e aprendia rápido. Sua inteligência e lado racional era demonstrado em suas habilidades e sucesso como general. Ele tinha muito autocontrole com os “prazeres do corpo”, mas era propenso a beber muito álcool sem qualquer controle. 

Alexandre era erudita e um entusiasta e apadrinhador das artes e ciências. Contudo, tinha pouco interesse por esportes ou pelos Jogos Olímpicos (ao contrário do pai), buscando apenas a ideia Homérica de honra (timê) e glória (kudos). Possuía muito carisma e uma personalidade forte, características que fizeram-no um grande líder. Sua habilidade única é demonstrada pela inabilidade que outros generais macedônios tiveram em unir o país e manter o império após sua morte (algo que Alexandre não teve muita dificuldade de fazer em vida). 

Durante seus últimos anos de vida, e especialmente após a morte do amigo Heféstio, Alexandre começa a exibir sinais de megalomania e paranoia. Seus feitos extraordinários, somado ao seu inefável senso de destino e a bajulação de seus companheiros, podem ter contribuído para este efeito. Seus delírios de grandeza ficam óbvios em seu testamento e seu desejo de conquistar o mundo contribuiu para esta conclusão de que sua ambição não tinha limites. 

Acredita-se que ele também passou a se ver como uma divindade, ou ao menos ele parecia querer tentar se divinizar. Olímpia constantemente lhe dizia que ele era filho de Zeus, uma teoria que foi reforçada por um oráculo de Amom em Siuá. Ele começa a se identificar como filho de Zeus-Amom. Alexandre adotou elementos da vestimenta e costumes persas em sua corte, mais notavelmente a prosquínese, o que levou a desaprovação de muitos macedônios, os quais relutavam em imitar.

Esse comportamento lhe fez perder a simpatia de muitos dos seus compatriotas. Contudo, Alexandre também era um governante pragmático que entendia as dificuldades de reinar sobre povos com culturas tão diferentes. Muitos reinos conquistados tinham a cultura de cultuar seus reis como deuses. Assim, alguns acreditam que seu comportamento não era necessariamente apenas de megalomania, mas talvez uma tentativa prática de fortalecer seu reinado e manter o império unido. 

Relações pessoais

Alexandre foi casado três vezes: com Roxana, filha do nobre Oxiartes de Báctria (um casamento realizado por relações amorosas); e com as princesas Estatira II, filha de Dario III, e Parisátide (casamentos por razões políticas). Acredita-se que tenha tido dois filhos, Alexandre IV (nascido de Roxana) e, possivelmente, Héracles (que teria nascido de sua amante, Barsine). Ele teria tido outro filho com Roxana, porém ela sofreu de um aborto espontâneo na Babilônia. 

Alexandre tinha um relacionamento muito próximo com seu amigo, general e guarda-costas Heféstio, que era filho de um nobre macedônio. A morte de Heféstio foi devastadora para Alexandre. Este evento pode ter impulsionado o declínio da saúde física e emocional de Alexandre nos últimos meses da sua vida. A sexualidade de Alexandre é assunto de muita especulação e controvérsia. Nenhuma fonte da antiguidade relata que Alexandre tinha uma relação homossexual com algum homem, ou se a relação dele com Heféstio era sexual.

Eliano, contudo, escreveu sobre a visita de Alexandre a Troia onde ele afirma que o rei se via como Aquiles e Heféstio como Pátroclo, sendo que estes personagens possivelmente eram amantes. Eliano diz que Alexandre pode ter sido bissexual, o que na sua época não era algo tão controverso. O historiador Peter Green afirma que também não há muitas fontes que demonstrem Alexandre tinha muito interesse por mulheres (ele não produziu um herdeiro até ficar mais velho). Contudo, ele morreu relativamente jovem (aos 32 anos), e Ogden sugere que a vida matrimonial de Alexandre era mais impressionante que a do pai, para a sua idade. 

Além das esposas, Alexandre também teve várias amantes. De fato, ele tinha um harém de mulheres disponíveis (tais como os reis persas), mas não as visitava tão frequentemente; mostrando auto-controle com os “prazeres do corpo”. Ainda assim, Plutarco descreve que Alexandre era devoto à esposa Roxana, não se forçando em cima dela.

Green sugere que, no contexto da época, Alexandre forjou várias amizades relativamente fortes com mulheres, incluindo Ada de Cária, a qual o adotou como filho, Taís de Atenas, amante de Ptolomeu e com quem Alexandre pode ter tido um relacionamento mais íntimo, e inclusive até a mãe do seu antigo inimigo Dario, Sisigambis, que teria morrido devido à tristeza profunda que sentiu ao ouvir que Alexandre havia morrido. 

Legado

O legado de Alexandre vai além de suas habilidades como comandante militar. Suas campanhas aumentaram os contatos e o comércio entre o Ocidente e o Oriente, e vastas áreas orientais foram expostas à civilização grega e sua influência. Algumas cidades que ele fundou se tornariam grandes centros culturais, com muitas sobrevivendo até o século XXI. Seus cronistas registraram valiosas informações durante suas marchas, enquanto os gregos passaram a ter a noção de que eles pertenciam a um mundo maior que o Mediterrâneo. 

Reinos helênicos

Talvez o maior legado imediato de Alexandre foi a introdução de um governo macedônio para grandes faixas da Ásia. No período da sua morte, seu império se estendia da península Balcânica até ao subcontinente indiano, somando mais de 5,2 milhões de km²,[193] e era o maior império de sua época. Muitas destas áreas permaneceram sob poder ou influência macedônia ou grega pelos próximos 200–300 anos. Os estados sucessores que emergiram após a sua morte, pelo menos inicialmente, permaneceram a força dominante da região e nos 300 anos seguintes ofereceram ao mundo o chamado “período helenístico”. 

As fronteiras orientais do império de Alexandre começaram a entrar em colapso ainda durante a sua vida. Contudo, o vácuo de poder deixado no noroeste do subcontinente indiano com sua morte deu a oportunidade de ascensão de uma das mais poderosas dinastias indianas da antiguidade. O governante Chandragupta Máuria (referido em fontes gregas como Sandrócoto), de origem relativamente humilde, tomou controle da região de Panjabe, e se tornou a base de poder do subsequente Império Máuria. 

Fundação de cidades

Durante o curso de suas conquistas, Alexandre fundou mais de vinte cidades com seu nome, a maioria a leste do rio Tigre. A primeira (e a maior), na verdade, foi a própria Alexandria do Egito, que se tornou uma das grandes cidades do Mediterrâneo. Estas cidades normalmente ficavam em importantes rotas comerciais ou boas posições defensivas. No início, elas devem ter sido bem inóspitas, um pouco mais do que grandes quartéis. Após a morte de Alexandre, muitos dos gregos que foram assentados lá resolveram voltar para suas regiões de origem. Contudo, nos séculos seguintes, muitas das Alexandrias prosperaram, com elaborados prédios públicos e populações crescentes, que incluía gregos e habitantes de povos nativos da região. 

Helenização

O termo helenização foi cunhado pelo historiador alemão Johann Gustav Droysen para denotar a expansão pelo mundo da língua, cultura e população grega para além das regiões do Império Aquemênida após as conquistas de Alexandre. Que essa exportação de cultura aconteceu é inquestionável e pode ser visto nas grandes cidades helênicas como, por exemplo, Alexandria, Antioquia e Selêucia (ao sul da atual Bagdá). Alexandre queria inserir elementos gregos na cultura persa e tentou hibridizá-la com a cultura grega. Isso fazia parte dos seus esforços de homogenizar a Ásia e a Europa. Contudo, seus sucessores rejeitaram estes ideias. Ainda assim, a helenização se espalhou pela região, acompanhada por uma distinta e oposta orientalização dos Estados sucessores. 

O coração da cultura helênica ficava em Atenas. O relacionamento dos homens de toda a Grécia no exército de Alexandre levou ao crescimento do dialeto comum grego (o “Koiné”). O koiné se espalhou pelo mundo helênico, se tornando a língua franca das terras helênicas e, posteriormente, o antepassado do grego moderno. Além disso, planejamento urbano, educação, governo local e a arte no período helênico foram todas baseadas nos ideais da Grécia clássica, evoluindo em novas formas distintas de helenístico. Aspectos da cultura helênica ainda eram evidentes nas tradições do Império Bizantino em meados do século XV. 

Alguns dos principais efeitos da helenização pode ser visto no Afeganistão e na Índia, especialmente na região do Reino Greco-Báctrio (250 a.C.-125 a.C.) que englobava os territórios afegão, paquistanês e tajiquistanês, além também do Reino Indo-Grego (180 a.C.–10 d.C.), nos territórios afegão e indiano. Na nova “rota da Seda” a cultura grega hibridizou com a indiana, especialmente com a cultura budista.

O resultado do sincretismo conhecido como greco-budismo teve muitas influências no desenvolvimento da cultura budista em geral e criou também uma nova cultura de arte greco-budista. Os reinos greco-budistas enviaram os primeiros missionários budistas à China, ao Sri Lanka e até ao Mediterrâneo. Algumas das primeiras e mais influentes imagens de Gautama Buda apareceram neste período; talvez modelados igual a Apolo.

Várias tradições budistas podem ter sido influenciadas pelas religiões da Grécia Antiga: o conceito de Bodisatva é uma reminiscência de heróis divinos gregos, e algumas práticas cerimoniais maaianas (a queima de incenso, flores como presentes e comida nos altares) são similares as práticas dos antigos gregos, contudo práticas similares também eram vistas em povos nativos. Um rei grego em particular, Menandro I, provavelmente se tornou budista e foi imortalizado nas escrituras ‘Milinda’.

O processo de helenização intensificou o comércio entre o ocidente e o oriente. Por exemplo, instrumentos astronômicos gregos datados do século III antes de cristo foram encontradas na cidade greco-bactriana de Ai-Khanoum, no moderno Afeganistão, enquanto o conceito grego de terra redonda cercada de planetas igualmente redondos contrastava com a crença cosmológica de uma terra esférica com planetas em órbita elipsoide. 

Influência sobre Roma

Alexandre e suas façanhas eram admirados por muitos romanos, especialmente generais, que queriam se associar com seus feitos. Políbio começou sua obra Histórias relembrando aos romanos os feitos de Alexandre. Muitos líderes políticos e militares romanos se comparavam com Alexandre Magno, usando-o como modelo. O general e cônsul Pompeu também adotou o epíteto “Magno” (“Grande”) e até tentou copiar o estilo de cabelo de Alexandre. Ele ainda costumava usar uma capa vermelha, assim como Alexandre, como um sinal de grandeza. 

Júlio César chegou a construir uma estátua equestre de bronze em honra a Alexandre mas depois substituiu sua cabeça pela dele próprio, enquanto o imperador Augusto chegou a visitar a tumba dele em Alexandria. Trajano também admirava muito Alexandre, assim como Nero e Caracala. Os Macrianos, uma família romana que sob a liderança de Macrino rapidamente ascendeu ao trono imperial romano, usava roupas que lembravam Alexandre e também tinha várias peças dele. 

Por outro lado, alguns escritores romanos, particularmente na era republicana, usavam Alexandre como um conto preventivo de como tendências autocráticas podem ser colocadas em xeque com valores republicanos romanos. Mas na maioria dos casos, Alexandre era retratado como um exemplo de líder com valores como “amizade” (amicita) e “clemência” (clementia), mas também “raiva” (iracundia) e “excesso de desejo de glória” (cupiditas gloriae). 

Lenda

Relatos lendários cercaram a vida de Alexandre, provavelmente encorajados por ele mesmo.[213] Seu historiador cortesão Calístenes retratou o mar na Cilícia como desenhado de volta para ele em prosquínese. Escrevendo logo depois da morte de Alexandre, outro participante, Onesícrito de Astipaleia, inventou um cortejo entre Alexandre e Taléstris, a mítica rainha das Amazonas. Quando Onesícrito leu esta passagem para seu patrão, o general de Alexandre e depois rei Lisímaco relatadamente brincou, “Eu me pergunto onde estava naquele momento.” 

Nos primeiros séculos da morte de Alexandre, provavelmente em Alexandria, certa quantidade de material lendário foi agrupado em um texto conhecido como o Romance de Alexandre, depois falsamente atribuído a Calístenes e portanto conhecido como “Pseudo-Calístenes”. Este texto sofreu numerosas expansões e revisões através da Antiguidade e Idade Média, contendo muitas histórias dúbias, e foi traduzido em numerosas línguas. 

Legado na Antiguidade e na cultura moderna

Os feitos de Alexandre, o Grande e o seu legado são retratados em diversas culturas. Alexandre está na cultura popular desde sua era até os dias atuais. O Romance de Alexandre, em particular, teve um impacto profundo sobre a forma como o rei macedônio é retratado nas culturas, da Pérsia até a da Europa medieval até a Grécia Moderna. 

Alexandre já considerava a si mesmo como o “Rei da Ásia” logo após sua vitória em Isso, um conceito fortalecido após seus sucessos posteriores. Nos documentos babilônios, ele era referido como o “Rei do Mundo” (já que “Rei da Ásia” não tinha significado na geografia pelos habitantes da Babilônia). Alexandre também é chamado de Cosmocrátor (kosmokrator, “governador do mundo”) na obra Romance de Alexandre. 

Alexandre é figura presente no folclore da Grécia moderna, mais do que qualquer outra figura histórica. A forma coloquial do seu nome em grego moderno (“O Megalexandros”) é um nome familiar. Santo Agostinho, no seu livro A Cidade de Deus, reafirmou a parábola de Cícero que mostrava Alexandre, o Grande era pouco mais do que um líder de um bando de ladrões: 

“E então se a justiça for deixada de fora, o que são reinos além de um bando de ladrões? Pois o que são um bando de ladrões, se não pequenos reinos? O grupo também é um bando de homens governados por ordens de um líder, ligados por um pacto social, e seu espólio é dividido de acordo com uma lei que concordaram.

Por repetidamente adicionar homens desesperados, essa praga cresce ao ponto de controlar territórios e estabelecer um local fixo, controlando cidades e subjugando pessoas, em seguida, mais conspicuamente assume o nome de reino e então este nome é dado abertamente a ele, não por qualquer subtração de cupidez, mas pela adição de impunidade.

Pois foi uma elegante e verdadeira resposta que fez Alexandre o Grande por um certo pirata que ele havia capturado. Quando o rei perguntou o que ele estava pensando, que ele deveria molestar o mar, ele respondeu com uma independência desafiadora: ‘O mesmo que você quando você molesta o mundo! Já que eu faço isso de um pequeno navio eu sou chamado de pirata. Você o faz com uma grande frota e te chamam de imperador’.” 

Na literatura em persa médio pré-islâmica, Alexandre é referido pelo epíteto gujastak, que significa “amaldiçoado”, e ele foi acusado de destruir templos e queimar documentos sagrados do zoroastrismo. No Irã islâmico, sob influência da obra Romance de Alexandre (em persa: اسکندرنامه), uma visão mais positiva de Alexandre emerge. Em Épica dos Reis de Ferdusi cita Alexandre na linhagem de legítimos xás (governantes) do Irã, uma figura mítica que explorou até os cantos do mundo em busca da “fonte da juventude”. Escritores persas posteriores associaram ele com filosofia, o retratando como figuras conhecidas como Sócrates, Platão e Aristóteles, na busca por imortalidade. 

Na versão siríaca de o Romance de Alexandre o retratam como um conquistador cristão ideal que rezava ao “verdadeiro Deus”. No Egito, Alexandre é retratado como um filho de Nectanebo II, o último faraó antes da conquista do país pela Pérsia. A derrota que Alexandre infligiu ao rei Dario III é relatado como a salvação do Egito. 

A figura de Dhul-Qarnayn (literalmente “Aquele de dois chifres”) mencionado no Corão é acreditado por acadêmicos como uma representação de Alexandre, devido aos paralelos com a obra Romance de Alexandre. Nesta tradição, ele era uma figura histórica que construiu uma muralha para defender contra as nações de Gogue e Magogue. Ele então viajou o mundo em busca da ‘Água da Vida e Imortalidade’, eventualmente se tornando um profeta. 

Nas línguas hindi e urdu, o nome “Sikandar”, que deriva do persa, denota o surgimento de um jovem talento. Na Europa medieval, ele é membro dos “Nove da Fama”, um grupo de heróis que encapsulavam todas as qualidades ideais de cavalheirismo. 

Veja mais:

Historiografia

Além de poucas inscrições e fragmentos, textos escritos por contemporâneos de Alexandre, que o conheceram pessoalmente, ou pelos que tomaram como base relatos diretos de seus subordinados estão todos perdidos. Entre os contemporâneos que escreveram os feitos de sua vida estão o historiador das campanhas de Alexandre, Calístenes; os generais Ptolomeu e Nearco; Aristóbulo, um jovem oficial; e ainda Onesícrito, um timoneiro de Alexandre.

A maioria do trabalho deles foi perdido com o tempo, mas pesquisas feitas na antiguidade em cima destas fontes sobreviveram. Um dos primeiros historiadores não contemporâneos a escrever sobre Alexandre, citando como fonte trabalhos de pessoas que conheceram ele, foi Diodoro Sículo (século I a.C.), seguido por Quinto Cúrcio Rufo (no século I), Arriano (século I e II), o biografo Plutarco (século I e II), e finalmente Marco Juniano Justino, cujo trabalho foi feito no século IV. Destes, os relatos de Arriano são geralmente considerados os mais confiáveis, já que ele usou textos de Ptolomeu e Aristóbulo como fonte. Diodoro também é citado como uma ótima fonte dos fatos.

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Alexander Fleming https://canalfezhistoria.com/alexander-fleming/ https://canalfezhistoria.com/alexander-fleming/#respond Sat, 01 Mar 2025 13:38:13 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5510 Alexander Fleming (Lochfield, 6 de agosto de 1881 — Londres, 11 de março de 1955) foi um biólogo, botânico, médico, microbiólogo e farmacologista britânico. Autor de diversos trabalhos sobre bacteriologia, imunologia e quimioterapia, notabilizou-se como o descobridor da proteína antimicrobiana lisozima, em 1923, e da penicilina, obtida a partir do fungo Penicillium notatum, em 1928, pela qual foi laureado Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1945, juntamente com Howard Florey e Ernst Boris Chain.

Índice de Conteúdo

Biografia

Fleming nasceu em 6 de agosto de 1881 em Lochfield, no sudoeste da Escócia, e estudou medicina na Universidade de Londres. Concluindo o curso em 1906, começa a pesquisar, em seguida, substâncias com potencial bactericida que não fossem tóxicas ao organismo humano. Trabalhou como médico microbiologista no Hospital de St. Mary, Londres, até o começo da Primeira Guerra Mundial. Durante a guerra foi médico militar nas frentes de batalha da França e ficou impressionado pela grande mortalidade nos hospitais de campanha causada pelas feridas de arma de fogo que resultavam em gangrena gasosa. Finalizada a guerra, regressou ao Hospital St. Mary onde buscou intensamente um novo antisséptico que evitasse a dura agonia provocada pelas infecções durante a guerra. 

Os dois descobrimentos de Fleming ocorreram nos anos 20 e ainda que tenham sido acidentais demonstram a grande capacidade de observação e intuição deste médico britânico. O descobrimento da lisozima ocorreu depois que o muco de seu nariz, procedente de um espirro, caísse sobre uma placa de Petri onde cresciam colônias bacterianas. Alguns dias mais tarde notou que as bactérias haviam sido destruídas no local onde se havia depositado o fluido nasal. 

Ele chegou à descoberta da penicilina e de suas propriedades antibióticas em 1928, ao observar uma cultura de bactérias do tipo estafilococo e o desenvolvimento do mofo a seu redor, onde as bactérias circulam livres. O laboratório de Fleming estava habitualmente desarrumado, o que resultou em uma grande vantagem para sua segunda importante descoberta. Em setembro de 1928, Fleming estava a realizar várias experiências no seu laboratório e ao inspecionar uma das suas culturas antigas antes de destruí-las notou que a colônia de um fungo havia crescido espontaneamente, como um contaminante, numa das placas de Petri semeadas com Staphylococcus aureus.

Fleming observou outras placas e comprovou que as colônias bacterianas que se encontravam ao redor do fungo (mais tarde identificado como Penicillium notatum) eram transparentes devido a uma lise bacteriana. A lise significava a morte das bactérias, e no caso, das bactérias patogênicas (Staphylococcus aureus) crescidas na placa. Ainda que tenha reconhecido imediatamente a importância deste seu achado, seus colegas subestimaram-no. 

Aprofunda a pesquisa e constata que uma cultura líquida de mofo do gênero Penicillium evita o crescimento dos estafilococos. Publica os resultados desses estudos no British Journal of Experimental Pathology em 1929, mas não obtém reconhecimento nem recursos financeiros para aperfeiçoar o produto durante os anos seguintes. 

Howard Walter Florey, Ernest Boris Chain e Norman Heatley foram os grandes responsáveis para transformar a penicilina em medicamento antibiótico, porém isso somente foi possível após Fleming ter tomado os créditos pela pesquisa clínica gerenciada por Florey. A equipe de Florey foi responsável por criar uma maneira de extração e de purificação como também pelos ensaios clínicos. A produção industrial começou nos Estados Unidos (EUA) no início da II Guerra Mundial. Fleming, Florey e Chain recebem juntos o Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1945. 

Fleming trabalhou com o fungo durante algum tempo, mas a obtenção e purificação da penicilina a partir dos cultivos de Penicillium notatum resultaram difíceis e mais apropriadas para os químicos. Mas a comunidade científica da época achava que a penicilina só seria útil para tratar infecções banais e por isto não lhe deu atenção. No entanto, o antibiótico despertou o interesse dos investigadores estado-unidenses, que durante a Segunda Guerra Mundial tentavam imitar a medicina militar alemã que possuía as sulfamidas. Os farmacêuticos Ernst Boris Chain e Howard Walter Florey descobriram um método de purificação da penicilina que permitiu sua síntese e distribuição comercial para o resto da população. 

Fleming não patenteou sua descoberta, pois achava que assim seria mais fácil a difusão de um produto necessário para o tratamento das numerosas infecções que castigavam a população. Fleming foi membro do Chelsea Arts Club, um clube privado para artistas fundado em 1891 por sugestão do pintor James McNeil Whistler. Conta-se como anedota que Fleming foi admitido no clube depois de realizar “pinturas com germes” e que estas pinturas consistiam em pincelar o lenço com bactérias pigmentadas, as quais eram invisíveis no início, mas que surgiam com intensas cores uma vez incubadas e crescidas. As espécies bacterianas que utilizava eram: 

• Serratia marcescens – cor vermelha
• Chromobacterium violaceum – cor púrpura
• Micrococcus luteus – cor amarela
• Micrococcus varians – branca
• Micrococcus roseus – cor rosa
• Bacillus sp. – alaranjada

Alexander Fleming morreu em 1955 vitimado por um ataque cardíaco. Foi enterrado como herói nacional na cripta da Catedral de São Paulo em Londres. 

Seu descobrimento da penicilina significou uma mudança drástica para a medicina moderna, iniciando a chamada “Era dos antibióticos”.

Descobertas

Descobertas em 1928, por Fleming, permanecem até hoje como uma excelente classe de antimicrobianos. São divididas em: 

• Penicilinas naturais ou benzilpenicilinas;
• Aminopenicilinas;
• Penicilinas resistentes às penicilinases;
• Penicilinas de amplo espectro, as quais foram desenvolvidas na tentativa de evitar a aquisição de resistência das bactérias.

Fábula

Uma conhecida história conta que o pai de Winston Churchill custeou a educação de Fleming depois que o pai deste – um humilde lavrador – havia salvado Winston da morte num pântano. Essa história é falsa. Segundo Kevin Brown, na biografia Penicillin Man: Alexander Fleming and the Antibiotic Revolution, o próprio Alexander Fleming, numa carta a seu amigo Andre Gratia, chamou essa história de “fábula fantasiosa”. Também não foi ele quem salvou Winston Churchill durante a Segunda Guerra Mundial. 

Churchill foi salvo por Lord Moran, que usou sulfonamida (pois ele não tinha experiência com penicilina), quando Churchill adoeceu em Cartago, Tunísia, em 1943. Os jornais Daily Telegraph e The Morning Post de 21 de dezembro de 1943 noticiaram que ele havia sido salvo com penicilina. Na realidade, ele foi salvo com um recém-elaborado composto de sulfonamida, a Sulfapiridina, conhecida à época pelo código de pesquisa M&B693, descoberta e produzida por May & Baker Ltd – uma subsidiária do grupo francês Rhône-Poulenc. Num programa de rádio pouco tempo depois, Churchill se referiu à nova droga como “essa admirável M&B”. 

É provável que a informação correta não tenha sido publicada nos jornais porque, como a sulfonamida havia sido uma descoberta do laboratório alemão Bayer e o Reino Unido estava em guerra com a Alemanha, pretendeu-se elevar o moral do Reino Unido associando a cura de Churchill à milagrosa penicilina.

Veja mais:

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Albert Einstein https://canalfezhistoria.com/albert-einstein/ https://canalfezhistoria.com/albert-einstein/#respond Fri, 28 Feb 2025 09:27:39 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5487 Albert Einstein (Ulm, 14 de março de 1879 — Princeton, 18 de abril de 1955) foi um físico teórico alemão que desenvolveu a teoria da relatividade geral, um dos pilares da física moderna ao lado da mecânica quântica. Embora mais conhecido por sua fórmula de equivalência massa-energia, — que foi chamada de “a equação mais famosa do mundo” —, foi laureado com o Prêmio Nobel de Física de 1921 “por suas contribuições à física teórica” e, especialmente, por sua descoberta da lei do efeito fotoelétrico, que foi fundamental no estabelecimento da teoria quântica.

Nascido em uma família de judeus alemães, mudou-se para a Suíça ainda jovem e iniciou seus estudos na Escola Politécnica de Zurique. Após dois anos procurando emprego, obteve um cargo no escritório de patentes suíço enquanto ingressava no curso de doutorado da Universidade de Zurique. Em 1905 publicou uma série de artigos acadêmicos revolucionários. Uma de suas obras era o desenvolvimento da teoria da relatividade especial. Percebeu, no entanto, que o princípio da relatividade também poderia ser estendido para campos gravitacionais, e com a sua posterior teoria da gravitação, de 1916, publicou um artigo sobre a teoria da relatividade geral. Enquanto acumulava cargos em universidades e instituições, continuou a lidar com problemas da mecânica estatística e teoria quântica, o que levou às suas explicações sobre a teoria das partículas e o movimento browniano. Também investigou as propriedades térmicas da luz, o que lançou as bases da teoria dos fótons. Em 1917, aplicou a teoria da relatividade geral para modelar a estrutura do universo como um todo. Suas obras renderam-lhe o status de celebridade mundial enquanto tornava-se uma nova figura na história da humanidade, recebendo prêmios internacionais e sendo convidado de chefes de estado e autoridades. 

Estava nos Estados Unidos quando o Partido Nazista chegou ao poder na Alemanha, em 1933, e não voltou para o seu país de origem, onde tinha sido professor da Academia de Ciências de Berlim. Estabeleceu-se então no país, onde naturalizou-se em 1940. Na véspera da Segunda Guerra Mundial, ajudou a alertar o presidente Franklin Delano Roosevelt que a Alemanha poderia estar desenvolvendo uma arma atômica, recomendando aos norte-americanos a começar uma pesquisa semelhante, o que levou ao que se tornaria o Projeto Manhattan. Apoiou as forças aliadas, denunciando no entanto a utilização da fissão nuclear como uma arma. Mais tarde, com o filósofo britânico Bertrand Russell, assinou o Manifesto Russell-Einstein, que destacou o perigo das armas nucleares. Foi afiliado ao Instituto de Estudos Avançados de Princeton, onde trabalhou até sua morte em 1955. 

Realizou diversas viagens ao redor do mundo, deu palestras públicas em conceituadas universidades e conheceu personalidades célebres de sua época, tanto na ciência quanto fora do mundo acadêmico. Publicou mais de 300 trabalhos científicos, juntamente com mais de 150 obras não científicas. Suas grandes conquistas intelectuais e originalidade fizeram da palavra “Einstein” sinônimo de gênio. Em 1999 foi eleito por 100 físicos renomados o mais memorável físico de todos os tempos. No mesmo ano a revista TIME, em uma compilação com as pessoas mais importantes e influentes, o classificou a pessoa do século XX.

Primeiros anos e educação

Albert Einstein nasceu em Ulm, no Reino de Württemberg, Império Alemão (atual Baden-Württemberg, Alemanha), em 14 de março de 1879. Seus pais eram Hermann Einstein, um vendedor e engenheiro, e Pauline Einstein (nascida Koch). Os Einstein eram judeus asquenazes não praticantes. Em 1880 a família mudou-se para Munique, onde seu pai e tio fundaram a Elektrotechnische Fabrik J. Einstein & Cie, empresa que fabricava equipamentos elétricos acionados por corrente contínua. Um ano mais tarde seus pais deram à luz a uma menina, Maria “Maja” Einstein, sua irmã mais nova. Com cinco anos de idade o jovem Albert estudou em uma escola primária católica durante três anos. Aos oito foi transferido para o Ginásio Luitpold, hoje conhecido como Ginásio Albert Einstein, onde recebeu educação escolar primária e secundária, até deixar a Alemanha sete anos depois. Seu tio Jacob, um engenheiro, e Max Talmey, um jovem estudante pobre de medicina que jantava na casa da família uma vez por semana entre 1889 e 1894, foram grandes influências durante seus anos de formação. Eles incentivaram sua curiosidade inerente e insaciável sobre tudo. Talmey trouxe livros populares de ciência, incluindo Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant, que Einstein começou a ler. 

Em 1894, a empresa de seu pai faliu: a corrente contínua perdeu a Guerra das Correntes para a corrente alternada. Em busca de negócios, a família de Einstein mudou-se para a Itália, primeiro para Milão e, alguns meses mais tarde, para Pavia. Quando a família se mudou para a cidade italiana, Einstein ficou em Munique para terminar seus estudos no Ginásio Luitpold. Seu pai queria que seguisse a engenharia elétrica, mas o jovem entrou em choque com as autoridades e ressentiu-se com o regime da escola e o método de ensino. Escreveu mais tarde que o espírito do conhecimento e o pensamento criativo foram perdidos na esteira da aprendizagem mecânica. No final de dezembro de 1894, viajou para a Itália para se juntar à sua família em Pavia, convencendo a escola a deixá-lo ir usando um atestado médico. Foi durante seu tempo na Itália que escreveu um pequeno ensaio com o título “Sobre a Investigação do Estado do Éter num Campo Magnético”. 

No final do verão de 1895, com dezesseis anos, dois antes da idade padrão, realizou os exames de admissão para a Escola Politécnica Federal Suíça (hoje a ETH-Zurique). Ele não conseguiu alcançar o padrão exigido em várias disciplinas, mas obteve notas excepcionais em física e matemática. Seguindo o conselho do diretor da Politécnica, frequentou a Escola Cantonal em Aarau, Suíça, entre 1895 e 1896 para completar o ensino secundário. Enquanto se hospedava com a família do professor Jost Winteler, apaixonou-se por sua filha, Marie Winteler (mais tarde sua irmã Maja casou-se com o filho dos Wintelers, Paul). Em 28 de janeiro de 1896, com a aprovação de seu pai, renunciou à sua cidadania no Reino de Württemberg, para evitar o serviço militar. Em 29 de outubro foi aprovado no exame Matura com boas notas. Embora tivesse apenas 17 anos, um a menos que os demais alunos, matriculou-se no curso de quatro anos para obter o diploma de professor de física da Escola Politécnica. Durante os anos de graduação, viveu com uma mesada de 1 franco suíço por mês, da qual guardou uma pequena quantia para pagar por seus papéis de naturalização. Marie Winteler mudou-se para Olsberg, Suíça, onde obteve um cargo como professora. 

A futura esposa de Einstein, Mileva Marić, também se matriculou na Escola Politécnica no mesmo ano, e era a única mulher entre os seis estudantes de matemática e física nas aulas do curso. Com o passar dos anos, sua amizade com Marić se desenvolveu em romance, e juntos liam livros extra-curriculares de física onde Einstein estava mostrando um interesse crescente. Em 1900, Einstein foi agraciado com o diploma de ensino da Politécnica de Zurique, mas Marić foi reprovada no exame com uma nota baixa em um componente da matemática, a teoria das funções. Houve alegações de que Marić colaborou com Einstein em seus célebres trabalhos de 1905, mas os historiadores da física que estudaram a questão não encontraram nenhuma evidência de que ela tenha feito quaisquer contribuições substanciais. 

Família e início de carreira

Einstein e Marić casaram-se em 6 de janeiro de 1903, em Berna. Em 14 de maio de 1904 nasceu o primeiro filho do casal, Hans Albert Einstein, na capital suíça. Seu segundo filho, Eduard, nasceu em Zurique, em julho de 1910. Seu casamento não parece ter sido muito feliz. Em cartas reveladas em 2015, escreveu ao seu antigo amor, Marie Winteler, sobre seu casamento e seus ainda fortes sentimentos por ela. Em 1910, escreveu “penso em você do fundo do coração em cada minuto livre de que disponho, e estou tão infeliz como só um homem pode estar”, enquanto sua mulher estava grávida do seu segundo filho. Falou sobre um “amor mal orientado” e uma “vida desperdiçada” em relação aos seus sentimentos por Marie. Em 1914 mudou-se para Berlim, enquanto sua esposa ficou em Zurique com seus filhos. Eles se divorciaram em 14 de fevereiro de 1919, após viverem separados por cinco anos. Existem rumores de que ele era um “mulherengo devasso e teve muitos casos”. No entanto, essas histórias não seriam fundamentadas. Depois de se tornar famoso, muitas mulheres, jovens e velhas, aproximaram-se dele com o pretexto de tentar entender sua teoria. Mileva não toleraria esse comportamento e se tornou briguenta, e este foi um dos motivos de seu divórcio. Ela viveu em Zurique como uma viúva. Pela maioria dos relatos seu estado mental se acalmou, e ela cuidou de seus dois filhos. Einstein visitou sua ex-esposa e seu filho Eduard, que era esquizofrênico e vivia em uma instituição mental, pela última vez às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Marić morreu tranquilamente em um hospital em agosto de 1948. 

A descoberta e publicação em 1987 de uma correspondência inicial entre Einstein e sua esposa revelou que eles tiveram uma filha, Lieserl, nascida em Novi Sad, onde Marić estava com seus pais. Marić voltou à Suíça sem a criança, cujo nome verdadeiro e destino são desconhecidos. Einstein provavelmente nunca viu sua filha. Seu destino é desconhecido, mas o conteúdo de uma carta que escreveu a Marić em setembro de 1903 sugere que a criança foi adotada ou morreu de escarlatina na infância. Posteriormente, casou-se com Elsa Löwenthal em 2 de junho de 1919, após ter tido um relacionamento com ela desde a Páscoa de 1912. Elsa era sua prima materna em primeiro grau e paterna em segundo grau. Em 1933, eles emigraram para os Estados Unidos. Em 1935 Elsa Einstein foi diagnosticada com problemas cardíacos e renais e morreu em 20 de dezembro de 1936. De seus filhos com Marić, Hans Einstein foi o único a gerar descendência, tendo um menino, Bernhard Caesar, nascido em 1930; o único neto conhecido de Einstein. Depois de formado, Einstein passou quase dois anos frustrantes procurando um cargo de professor. 

Adquiriu a nacionalidade suíça em 21 de fevereiro de 1901, mas não foi convocado para a conscrição por razões médicas. O pai de Marcel Grossmann o ajudou a conseguir um emprego em Berna, no Instituto Federal Suíço de Propriedade Intelectual, o escritório de patentes da Suíça, onde começou a trabalhar em 16 de junho de 1902 como examinador assistente. Dentre outras atividades avaliou pedidos de patentes de dispositivos eletromagnéticos. Em 1903 seu posto no escritório de patentes tornou-se permanente, embora tenha sido preterido para promoção até que “dominasse totalmente a tecnologia da máquina”. Muito de seu trabalho no escritório de patentes relacionava-se a questões sobre a transmissão de sinais elétricos e sincronização eletromecânica do tempo, dois problemas técnicos que aparecem visivelmente nos experimentos mentais que o levaram a suas conclusões radicais sobre a natureza da luz e da conexão fundamental sobre o espaço e tempo. Com alguns amigos que conheceu em Berna, começou um pequeno grupo de discussão, autodenominado Academia Olímpia, que se reunia regularmente para discutir ciência e filosofia. As leituras do grupo incluíam trabalhos de Henri Poincaré, Ernst Mach e David Hume, que influenciaram sua visão científica e filosófica.

Do escritório de patentes à consagração

Em fevereiro de 1901, Einstein adquiriu a nacionalidade suíça. Poucos meses depois, no início do mesmo ano, seu artigo “Conclusões Retiradas dos Fenômenos da Capilaridade” (“Folgerungen aus den Capillaritätserscheinungen”) foi publicado no prestigiado periódico acadêmico Annalen der Physik. Foi seu primeiro artigo científico a ser publicado, os editores ficaram impressionados e publicaram o trabalho do jovem cientista desconhecido em março, quando tinha completado apenas 22 anos.[46][47] Estimulado pelo seu sucesso inicial, poucos meses depois, em setembro, o jovem futuro pai iniciou seu doutoramento pela Universidade de Zurique com o professor de física experimental Alfred Kleiner como orientador, com a tese “Uma Nova Determinação das Dimensões Moleculares” (“Eine neue Bestimmung der Moleküldimensionen”), um artigo sobre as forças moleculares em gases na qual esperava que lhe conferisse o grau acadêmico de doutor. Ainda no verão de 1901, trabalhou como professor substituto numa escola técnica em Winterthur e como tutor numa escola particular em Schaffhausen. Einstein concluiu sua tese em 30 de abril de 1905. Neste mesmo ano, que tem sido chamado de o Ano Miraculoso, publicou quatro trabalhos revolucionários sobre o efeito fotoelétrico, o movimento browniano, a relatividade especial e a equivalência entre massa e energia, que o levariam ao conhecimento do mundo acadêmico. Em 1906, enquanto era promovido no escritório de patentes, recebeu formalmente o título de doutor e conheceu Max Planck, que começou a discutir algumas implicações da teoria da relatividade especial. No final desse ano terminou um artigo fundamental sobre calor específico, além de escrever resenhas de livros para o Annalen der Physik. No final de 1907, fez seus primeiros passos importantes em direção à teoria da relatividade geral tentando reconciliar a gravidade newtoniana com a relatividade especial, além de tentar usar o princípio da equivalência para a construção de uma nova teoria da gravidade. 

Em fevereiro de 1908 já era reconhecido como um importante cientista e foi nomeado Privatdozent (professor) na Universidade de Berna. No ano seguinte, deixou o escritório de patentes e o cargo de professor e começou a dar aulas de eletrodinâmica na Universidade de Zurique, Alfred Kleiner recomendou-lhe à faculdade um recém-criado cargo de professor em física teórica. Foi nomeado professor adjunto em 1909. Tornou-se professor catedrático na Universidade Carolina em Praga, em 1911, aceitando a cidadania austríaca no Império Austro-Húngaro para fazer isso. Em 1912, entretanto, retornou à sua alma mater, em Zurique. De 1912 até 1914 foi professor de física teórica no Instituto Federal de Tecnologia de Zurique (ETH), onde lecionou mecânica analítica e termodinâmica. Também estudou mecânica do contínuo, a teoria molecular do calor, e o problema da gravitação, no qual trabalhou com o matemático Marcel Grossmann. Em 1914, retornou à Alemanha depois de ser nomeado diretor do Instituto Kaiser Guilherme de Física (1914- 1932) e professor da Universidade Humboldt de Berlim, com uma cláusula especial em seu contrato que o liberou da maioria das obrigações dos docentes. Ele se tornou um membro da Academia Prussiana de Ciências. Em 1916, Einstein foi nomeado presidente da Sociedade Alemã de Física, cargo que ocuparia até 1918. 

Em novembro de 1911 foi convidado a participar da primeira Conferência de Solvay em Bruxelas, que reunia alguns dos maiores cientistas de todos os tempos, junto de Max Planck e Marie Curie. No mesmo ano, calculou que, com base em sua nova teoria da relatividade geral, a luz de uma estrela seria curvada pela gravidade do Sol. Essa previsão foi dada como confirmada em observações feitas por uma expedição britânica liderada por Sir Arthur Stanley Eddington na cidade de Sobral no estado do Ceará, durante o eclipse solar de 29 de maio de 1919. Notícias da mídia internacional fizeram Einstein instantaneamente famoso. Em 7 de novembro, The Times, o maior jornal britânico, publicou uma manchete que dizia: “Revolução na Ciência – Nova Teoria do Universo – Ideias de Newton Derrubadas”. Usando sua imagem na capa, a revista semanal alemã Berliner Illustrirte Zeitung publicou uma manchete intitulada “Nova figura na história do mundo”. Muito mais tarde, foram levantadas questões se os cálculos foram precisos o suficiente para apoiar a teoria. Em 1980, os historiadores John Earman e Clark Glymour publicaram uma análise sugerindo que Eddington tinha suprimido resultados desfavoráveis. A seleção dos dados de Eddington parece válida e sua equipe realmente fez medições astronômicas verificando a teoria. Posteriormente, em 1979 o Observatório Real de Greenwich fez uma reanalise moderna dos dados, apoiando a medição original de 1919. Em 10 de novembro de 1922, Einstein foi agraciado com o Prêmio Nobel de Física de 1921 “por suas contribuições à física teórica e, especialmente, por sua descoberta da lei do efeito fotoelétrico”. A relatividade não era bem compreendida. Mais tarde também recebeu a Medalha Copley da Royal Society em 1925 e a Medalha de Ouro da Royal Astronomical Society em 1926. 

Viagens para o exterior

Einstein visitou Nova Iorque pela primeira vez em 2 de abril de 1921, onde recebeu uma recepção oficial por parte do prefeito John Francis Hylan, seguido de três semanas de palestras e recepções. Apresentou diversas conferências na Universidade Columbia e na Universidade de Princeton, e em Washington acompanhou representantes da Academia Nacional de Ciências em uma visita à Casa Branca. Em seu retorno à Europa, foi convidado do estadista e filósofo britânico Visconde de Haldane, em Londres, onde se encontrou com várias figuras científicas, intelectuais e políticas de renome e apresentou uma palestra na King’s College de Londres.[68][69] Em 1922, viajou por toda a Ásia e depois à Palestina, como parte de uma excursão de seis meses apresentando palestras. Suas viagens incluíram Singapura, Ceilão e Japão, onde deu uma série de palestras para milhares de japoneses. Sua primeira palestra em Tóquio durou quatro horas e após a apresentação encontrou-se com o imperador e imperatriz no Palácio Imperial, onde milhares vieram assisti-lo. Em uma carta para seus filhos, descreveu sua impressão sobre os japoneses como modestos, inteligentes, atenciosos e tendo sensibilidade para a arte. Em sua viagem de volta também visitou a Palestina durante 12 dias, no que viria a ser sua única visita naquela região. Ao chegar na casa do alto comissário britânico Sir Herbert Louis Samuel com uma saudação com tiro de canhão, foi recebido como se fosse um chefe de Estado, em vez de um físico. Durante uma recepção, o edifício foi invadido por pessoas que queriam ver e ouvi-lo. Na palestra para a audiência, expressou sua felicidade de que o povo judeu estava começando a ser reconhecido como uma força no mundo. 

Einstein fez uma viagem à América do Sul, em 1925, visitando países como Argentina, Uruguai e também o Brasil. Além de fazer conferências científicas, visitou universidades e instituições de pesquisas. Em 21 de março passou pelo Rio de Janeiro, onde foi recebido por jornalistas, cientistas e membros da comunidade judaica. Visitou o Jardim Botânico e fez o seguinte comentário, por escrito, para o jornalista Assis Chateaubriand: “O problema que minha mente formulou foi respondido pelo luminoso céu do Brasil.” Tal afirmação dizia respeito a uma observação do eclipse solar registrada na cidade cearense de Sobral por uma equipe de cientistas britânicos, liderada por Sir Arthur Stanley Eddington, que buscava vestígios que pudessem comprovar a teoria da relatividade, até então mera especulação. Em 24 de abril de 1925, Einstein deixou Buenos Aires e alcançou Montevidéu. Fez ali três conferências e, tal como na Argentina, participou de várias recepções e visitou o presidente do Uruguai. Einstein permaneceu no Uruguai por uma semana, de onde saiu no primeiro dia de maio, em direção ao Rio de Janeiro, no navio Valdívia. Desembarcou novamente no Rio de Janeiro em 4 de maio. Nos dias seguintes percorreria vários pontos turísticos da cidade, incluindo o Pão de Açúcar, o Corcovado e a Floresta da Tijuca. As anotações de seu diário ilustram bem suas percepções quanto à natureza tropical do local. No dia 6 de maio, visitou o então presidente da república, Artur Bernardes, além de alguns ministros. 

Seu programa turístico-científico no Brasil incluiu diversas visitas a instituições, como o Museu Nacional do Rio de Janeiro, a Academia Brasileira de Ciências e o Instituto Oswaldo Cruz, e duas conferências: uma no Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, em 6 de maio, e a outra na Escola Politécnica do Largo de São Francisco, atual Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, dois dias depois. Através de ondas da rádio Sociedade, criada em 1923, Einstein proferiu em alemão uma mensagem à população, que foi traduzida pelo químico Mário Saraiva. Nesta mensagem, o cientista destacou a importância dos meios radiofônicos para a difusão da cultura e do aprendizado científico, desde que sejam utilizados e preservados por profissionais qualificados. Einstein deixaria o Rio no dia 12 de maio. Essa sua visita foi amplamente divulgada pela imprensa e influenciou na luta pelo estabelecimento de pesquisa básica e para a difusão das ideias da física moderna no Brasil. Deixando o Rio, o já famoso físico alemão enviou, do navio, uma carta ao Comitê Nobel. Nesta carta, sugeria o nome do marechal Cândido Rondon para o Nobel da Paz. Einstein teria se impressionado com o que se informou sobre as atividades de Rondon em relação à integração de tribos indígenas ao homem civilizado, sem o uso de armas ou algo do tipo. 

Em março de 1928, durante uma viagem a Davos, Suíça, entrou em colapso com uma condição cardíaca grave. Confinado à cama por quatro meses, levou um ano para se recuperar totalmente. Em dezembro de 1930, visitou os Estados Unidos pela segunda vez, originalmente concebida como uma visita de trabalho de dois meses como pesquisador no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech). Após a atenção nacional que recebeu durante sua primeira viagem ao país, ele e seus coordenadores tinham o objetivo de proteger sua privacidade. Embora inundado com telegramas e convites para receber prêmios ou falar em público, recusou todos eles. Depois de chegar em Nova Iorque, foi levado para vários lugares e eventos, incluindo Chinatown, um almoço com os editores do New York Times, e uma performance de Carmen no Metropolitan Opera, onde foi aplaudido pelo público em sua chegada. Durante os dias seguintes, recebeu as chaves da cidade pelo prefeito Jimmy Walker e conheceu o presidente da Universidade Columbia, que o descreveu como “o monarca da mente.” Harry Emerson Fosdick, pastor da Igreja de Riverside, lhe deu uma excursão pela igreja e o apresentou a uma estátua em tamanho real do físico, de pé na entrada. Além disso, durante sua estadia em Nova Iorque, Einstein se juntou a uma multidão de 15 mil pessoas no Madison Square Garden durante uma festa de Hanucá. Em seguida viajou para a Califórnia, onde se encontrou com o presidente da Caltech e Prêmio Nobel, Robert Andrews Millikan. Sua amizade com ele era “estranha”, já que Millikan “tinha uma propensão ao militarismo patriótico”, onde Einstein era um pacifista pronunciado. Durante um discurso aos alunos da instituição, observou que a ciência era muitas vezes disposta a fazer mais mal do que bem. 

Esta aversão à guerra também o levou a fazer amizade com o autor Upton Sinclair e a estrela de cinema Charlie Chaplin, ambos conhecidos por seu pacifismo. Carl Laemmle, chefe da Universal Studios, deu ao físico um passeio em seu estúdio e o apresentou a Chaplin. Tiveram uma comunicação instantânea, com Chaplin o convidando junto de sua esposa, Elsa, a sua casa para jantar. Chaplin disse que a personalidade exterior de Einstein, calma e gentil, parecia esconder um “temperamento altamente emocional”, a partir do qual chegou a sua “energia intelectual extraordinária.” Chaplin também lembrou que Elsa lhe contou sobre a época em que concebeu a teoria da relatividade. Durante o café da manhã, parecia perdido em pensamentos e ignorou sua comida. Ela lhe perguntou se algo o incomodava. Ele se sentou em seu piano e começou a tocar. Continuou tocando e escrevendo notas durante meia hora, em seguida, subiu para seus estudos, onde permaneceu por duas semanas, com Elsa trazendo sua comida. No final das duas semanas, desceu as escadas com duas folhas de papel que ostentavam sua teoria. Seu filme, Luzes da Cidade, teve lançamento alguns dias mais tarde, em Hollywood, e Chaplin os convidou a juntarem-se a ele como seus convidados especiais, descrito por Isaacson como “uma das cenas mais memoráveis da nova era das celebridades.” Ambos chegaram juntos, em gravata preta, com Elsa se juntando a eles, “radiante”. O público aplaudiu quando eles entraram no teatro. Chaplin visitou Einstein em sua casa em uma viagem mais tarde a Berlim, e recordou o seu “pequeno apartamento modesto” e o piano em que tinha começado a escrever sua teoria. Chaplin especulou que era “usado possivelmente como graveto pelos nazistas.” 

Instituto de Estudos Avançados

Em fevereiro de 1933, durante uma visita aos Estados Unidos, Einstein decidiu não voltar para a Alemanha devido à ascensão do Partido Nazista ao poder com seu novo chanceler Adolf Hitler. Enquanto em universidades norte-americanas no início daquele ano, realizou sua terceira visita de dois meses como professor na Caltech, em Pasadena. Junto de sua esposa Elsa, voltou de navio para a Bélgica no final de março. Durante a viagem, foram informados de que sua casa havia sido invadida pelos nazistas e seu veleiro pessoal confiscado. Após o desembarque em Antuérpia em 28 de março, foi imediatamente ao consulado alemão onde apresentou seu passaporte e formalmente renunciou à cidadania alemã. No mesmo dia enviou uma carta na qual apresentou sua renúncia à Academia Prussiana de Berlim. No início de abril, soube que o novo governo alemão tinha instituído leis que proibiam os judeus de ocupar cargos oficiais, incluindo lecionar em universidades. 

O historiador Gerald Holton descreveu que “praticamente nenhum protesto sonoro foi levantado por seus colegas”, milhares de cientistas judeus foram subitamente forçados a desistir de seus cargos universitários e seus nomes foram retirados das listas de instituições em que eram empregados. Um mês depois, as obras de Einstein estavam entre os alvos da queima de livros dos nazistas, e o Ministério da Propaganda Joseph Goebbels proclamou: “o intelectualismo judaico está morto”. Einstein também tomou conhecimento de que seu nome estava em uma lista de alvos de assassinato, com uma “recompensa de 5 mil dólares por sua cabeça”. Uma revista alemã o incluiu em uma lista de inimigos do regime com a frase “ainda não enforcado”. Residiu temporariamente em Coq sur Mer, na costa da Bélgica, onde junto de sua esposa tiveram guardas designados pelo governo para protegê-los. Em julho foi para Inglaterra por cerca de seis semanas, a convite pessoal do oficial da marinha britânica Comandante Oliver Locker-Lampson, que havia se tornado seu amigo nos anos anteriores. Para protegê-lo, Locker-Lampson secretamente tinha dois assistentes o vigiando em sua casa de campo isolada fora de Londres, com a imprensa publicando uma foto deles protegendo Einstein. Em uma carta para o seu amigo, o físico Max Born, que também emigrou da Alemanha e vivia na Inglaterra, Einstein escreveu que “o grau de brutalidade e covardia deles chegou como uma surpresa”.

Locker-Lampson o levou para conhecer Winston Churchill em sua casa e, mais tarde, Austen Chamberlain e o ex-Primeiro-Ministro David Lloyd George. Einstein pediu-lhes para ajudar a trazer cientistas judeus da Alemanha. Nos dias seguintes, o Comandante introduziu um projeto de lei no Parlamento para “ampliar as oportunidades de cidadania aos judeus”.Em 17 de outubro voltou para os Estados Unidos, assumindo um cargo no Instituto de Estudos Avançados de Princeton, o que exigia sua presença durante seis meses por ano. Ainda estava indeciso sobre o seu futuro, tinha ofertas de universidades europeias, incluindo a Christ Church, Oxford, mas em 1935 chegou à decisão de permanecer permanentemente nos Estados Unidos e requerer a cidadania norte-americana. No mesmo ano comprou uma casa em Princeton, na 112 Mercer Street, menos de uma milha a pé do futuro campus do Instituto, que estava em construção. Foi um dos membros do corpo docente do Instituto, juntamente com os matemáticos Oswald Veblen, James Alexander, John von Neumann e Hermann Weyl. Ele nunca mais voltou para a Europa. Sua afiliação com o Instituto de Estudos Avançados duraria até sua morte, em 1955. 

Em 1937 completou a versão final de um artigo sobre ondas gravitacionais. Um ano mais tarde, escreveu em parceria com seu amigo e físico Leopold Infeld A Evolução da Física, um livro popular de ciência publicado para ajudá-lo financeiramente. Einstein e Infeld se conheceram em Berlim, na época em que este era um estudante. Entre 1936 e 1937 foi membro do Instituto de Estudos Avançados, onde colaboraram juntos em três artigos sobre o problema no movimento na relatividade geral. Infeld foi professor da Universidade de Toronto de 1938 até 1950, e da Universidade de Varsóvia de 1950 até sua morte em 1968. 

Projeto Manhattan e a cidadania norte-americana

Em 1939, um grupo de cientistas húngaros que incluía o físico emigrante Leó Szilárd tentou alertar Washington de pesquisas nazistas em andamento sobre a bomba atômica. Os avisos do grupo foram ignorados. Einstein e Szilárd, junto com outros refugiados, como Edward Teller e Eugene Wigner, “consideravam como sua responsabilidade alertar os americanos para a possibilidade de que cientistas alemães pudessem ganhar a corrida para construir uma bomba atômica, e por avisar que Hitler estaria mais do que disposto a recorrer a tal arma”. Em 12 de julho, poucos meses antes do início da Segunda Guerra Mundial na Europa, Szilárd e Wigner visitaram Einstein e explicaram sobre a possibilidade de bombas atômicas por meio de experimentos com urânio e fissão, além de cálculos indicando uma reação em cadeia. Ele respondeu: “Nisto eu nunca havia pensado”. Foi convencido a emprestar seu prestígio, escrevendo uma carta com Szilárd ao presidente Franklin Delano Roosevelt para alertá-lo sobre essa possibilidade. A carta também recomendou que o governo dos Estados Unidos prestasse atenção e se envolvesse diretamente na pesquisa de urânio e de pesquisas associadas à reação em cadeia. Para Sarah Diehl e James Clay Moltz, a carta é “provavelmente o estímulo fundamental para a adoção pelos Estados Unidos de investigações sérias em armas nucleares na véspera da entrada do país na Segunda Guerra Mundial”.

O presidente nomeou um comitê para avaliar a carta, e o grupo que a enviou foi expandido para coordenar a investigação nuclear entre universidades americanas. Entre os membros estavam Szilárd, Teller e Wigner. Roosevelt seguiu a sugestão da carta. Einstein foi convidado a integrar o grupo, mas recusou. Entre 1940 e 1941, pesquisas preliminares confirmaram a viabilidade de uma bomba atômica. Em 7 de dezembro, um ataque japonês surpresa na base naval de Pearl Harbor forçou os Estados Unidos a entrar na guerra. Pouco tempo depois, a Alemanha também declarou guerra contra o país devido a um tratado de defesa com o Japão. Isto aumentou a urgência de pesquisa atômica. No ano seguinte, o governo americano autorizou um esforço maior para produzir bombas atômicas. A fim de manter este projeto secreto e evitar mencioná-lo, foi colocado sob o Distrito Manhattan do Corpo de Engenheiros do Exército e chamado de Projeto Manhattan. Para Einstein, “a guerra era uma doença, e ele sempre apelou para a resistência contra a guerra.” Ao assinar a carta a Roosevelt, agiu contrariamente aos seus princípios pacifistas. Em 1954, um ano antes do seu falecimento, disse ao seu velho amigo Linus Pauling, “Eu cometi um grande erro na minha vida — quando assinei a carta ao presidente Roosevelt recomendando a construção da bomba atômica; mas nesse tempo havia uma justificativa — o perigo de que os alemães a construíssem.” 

Einstein tornou-se um cidadão norte-americano em 1° de outubro de 1940. Não muito tempo depois de iniciar sua carreira na Universidade de Princeton, expressou o seu apreço pela “meritocracia” da cultura americana, quando comparada com a Europa. De acordo com Isaacson, ele reconheceu o “direito dos indivíduos a dizer e pensar o que quisessem”, sem barreiras sociais e, como consequência, o indivíduo era “incentivado” a ser mais criativo, uma característica que valorizava desde sua própria educação inicial. Após o fim da Segunda Guerra Mundial e as memórias e imagens de Hiroshima e Nagasaki ainda frescas na mente das pessoas, cientistas pediram-lhe para participar de um apelo à comunidade científica para que recusassem a trabalhar no desenvolvimento de energia nuclear por causa de seus possíveis usos para o mal. Apesar de relutante a fazê-lo devido as respostas negativas a questões críticas, Einstein posteriormente assinou a carta de proposta. Estava mais disposto a unir seu nome e participar de atividades coletivas com outros cientistas. Por insistência de Szilárd, em maio de 1946, concordou em ser o presidente do Comitê Emergencial de Cientistas Atômicos, cuja missão era promover o uso pacífico da energia nuclear, difundir o conhecimento e informação sobre energia atômica e promover a compreensão geral de suas consequências. 

Como membro da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP), em Princeton, que fazia campanha pelos direitos civis dos afro-americanos, Einstein se correspondia com o ativista dos direitos dos negros W.E.B. Du Bois, e, em 1946, chamou o racismo de “a pior doença da América”. Mais tarde, ele afirmou que “o preconceito de raça infelizmente se tornou uma tradição americana que é acriticamente transmitida de uma geração para a outra […] Os únicos remédios são a iluminação e a educação”. Einstein fez ainda uma palestra na Universidade Lincoln em Pensilvânia, a primeira universidade historicamente negra dos Estados Unidos, onde recebeu um título honoris causa do presidente Horace Mann Bond, em maio de 1946. Em outubro do mesmo ano recebeu os membros da mesma universidade para uma confraternização em sua casa em Princeton. Depois da morte do primeiro presidente de Israel, Chaim Weizmann, em novembro de 1952, o primeiro-ministro David Ben-Gurion lhe ofereceu a posição, um cargo principalmente cerimonial em um sistema que investia mais poder no primeiro-ministro e o gabinete. A oferta foi apresentada pelo embaixador de Israel em Washington, Abba Eban, que explicou que ela “encarna o mais profundo respeito que o povo judeu pode repousar em qualquer um de seus filhos”. No entanto, recusou e escreveu em sua resposta que estava “profundamente comovido” e “ao mesmo tempo triste e envergonhado”, pois não poderia aceitá-la: 

“Toda a minha vida eu tenho lidado com questões objetivas, daí me falta tanto a aptidão natural e a experiência para lidar corretamente com as pessoas e para o exercício da função oficial. Eu estou muito triste com essas circunstâncias, porque a minha relação com o povo judeu se tornou o meu laço humano mais forte, uma vez que eu consegui compreender a clareza sobre a nossa posição precária entre as nações do mundo”.

Últimos anos e morte

No verão de 1950, seus médicos descobriram que um aneurisma — um vaso sanguíneo fraco — em sua aorta abdominal estava ficando maior. Quando foi encontrado, os médicos tinham poucas opções de tratamento e envolveram o vaso sanguíneo inflamado com papel celofane na esperança de evitar uma hemorragia. Einstein parecia ter recebido bem a notícia, assim como recusou quaisquer tentativas cirúrgicas adicionais para corrigir o problema. Recusou a cirurgia dizendo: “Quero ir quando eu quiser. É de mau gosto ficar prolongando a vida artificialmente. Fiz a minha parte, é hora de ir embora e eu vou fazê-lo com elegância”. Em 18 de março de 1950, assinou seu testamento. Nomeou sua secretária, Helen Dukas, e amigo Otto Nathan como seus executores literários; deixou todos os seus manuscritos para a Universidade Hebraica de Jerusalém, a escola que ajudou a fundar em Israel; e legou seu violino para seu primeiro neto, Bernhard Caesar Einstein. 

Einstein também organizou seus assuntos funerários. Queria uma cerimônia simples e sem lápide. Escolheu não ser enterrado já que não queria ter um túmulo que poderia ser transformado em um local turístico, e, ao contrário da tradição judaica, pediu para ser cremado. Seus últimos dias foram relativamente pacíficos. Morreu na manhã de segunda-feira em 18 de abril de 1955, no Hospital de Princeton à 1h15 da manhã, com 76 anos de idade, tendo continuado a trabalhar até quase o fim de sua vida. Suas últimas palavras pronunciadas em alemão não puderam ser entendidas pela enfermeira. Durante a autópsia, o patologista de plantão do Hospital de Princeton, Thomas Stoltz Harvey, removeu o cérebro de Einstein para preservação. Harvey dissecou o órgão em cerca de 240 seções, vedou algumas das partes em parafina para preservá-las e outras foram deixadas flutuando livremente em formol. 

Conforme as pesquisas em seu cérebro continuaram, logo tornou-se público o ocorrido e o patologista realizou uma conferência de imprensa, dizendo que pretendia estudar o órgão para a ciência. Por não ser um neuropatologista, especialistas do campo questionaram sua capacidade de estudar o cérebro, e tentaram persuadi-lo a entregá-lo. Mas Harvey recusou. Desde então, o órgão vem sendo objeto de diversos estudos científicos. Pessoas têm pesquisado motivos anatômicos em relação à inteligência. Seus restos mortais foram cremados e suas cinzas espalhadas muito provavelmente ao longo do rio Delaware, perto de Princeton, por seus amigos. Em sua palestra no memorial de Einstein, o físico nuclear Robert Oppenheimer resumiu sua impressão sobre ele como pessoa: “Era quase totalmente sem sofisticação e totalmente sem mundanismo […] Havia sempre com ele uma pureza maravilhosa ao mesmo tempo infantil e profundamente teimosa”.

Após uma colaboração de longa data com o escritor, pacifista e vencedor do Nobel de Literatura Bertrand Russell, Einstein junto com um grupo de cientistas proeminentes assinou o Manifesto Russell-Einstein, em 11 de fevereiro de 1955. O manifesto é um apelo que declarava suas preocupações com o uso de armas nucleares na corrida armamentista entre os Estados Unidos e a União Soviética. Apelou aos cientistas para que assumissem suas responsabilidades sociais e informassem o público sobre as ameaças tecnológicas, particularmente as nucleares. Além de Einstein e Russell, os outros nove signatários do manifesto foram Max Born, Percy Williams Bridgman, Leopold Infeld, Frédéric Joliot-Curie, Hermann Muller, Linus Pauling, Cecil Frank Powell, Józef Rotblat e Hideki Yukawa. Foi publicado em 9 de julho de 1955, em Londres, alguns meses após a morte de Einstein. Foi sua última declaração política. 

Contribuições científicas

Ao longo de sua vida, Einstein publicou centenas de livros e artigos. Além do trabalho individual, também colaborou com outros cientistas em outros projetos, incluindo a estatística de Bose-Einstein, o refrigerador de Einstein e outros. Publicou mais de 300 trabalhos científicos, juntamente com mais de 150 obras não científicas. 

Artigos do Ano Miraculoso

Os textos do Ano Miraculoso são trabalhos acadêmicos que estabeleceram Einstein como um dos físicos mais importantes do mundo. Não só publicou artigos importantes nesse ano, mas também encontrou tempo para escrever outros 23 de revisão para uma série de revistas. Realizou tudo isso em seu tempo livre depois que chegava em casa do trabalho. No início de 1905 tinha 25 anos, era um homem de família, com dois anos de casamento, e encontrou tempo para pensar sobre física. Independentemente de como conseguiu concentrar-se com sua vida agitada, os resultados alcançados nesse ano foram notáveis. Estão entre os trabalhos mais profundos já publicados na física. Um deles iria finalmente lhe render o seu grau de doutor e ajudar a estabelecer que os átomos realmente existem. Outros dois lançaram uma nova área da física — a relatividade especial — pela qual ele se tornou mundialmente famoso. Um quarto artigo ligado a curiosa observação sobre o movimento errático do pólen — o movimento browniano — com o tamanho de átomos. Todos eles foram publicados na prestigiada revista alemã Annalen der Physik. Os quatro artigos são: 

• Sobre um ponto de vista heurístico relativo à produção e transformação da luz. Artigo científico que possui como foco o efeito fotoelétrico, foi recebido pelo periódico em 18 de março e publicado em 9 de junho. Resolveu um quebra-cabeça sem solução, sugerindo que a energia é trocada apenas em quantidades discretas (quanta). Esta ideia foi fundamental para o desenvolvimento inicial da teoria quântica. 
• Sobre o movimento de pequenas partículas em suspensão dentro de líquidos em repouso, tal como exigido pela teoria cinético-molecular do calor. Artigo focado no movimento browniano, foi recebido em 11 de maio e publicado em 18 de julho. Explicou evidência empírica para a teoria atômica, apoiando a aplicação da física estatística. 
• Sobre a Eletrodinâmica dos Corpos em Movimento. Com foco na relatividade restrita, foi apresentado em 30 de junho e publicado em 26 de setembro. Reconciliou as equações de eletricidade e de magnetismo de Maxwell com as leis da mecânica, introduzindo alterações importantes na mecânica perto da velocidade da luz, que resultam da análise com base na evidência empírica de que a velocidade da luz é independente do movimento do observador. Desacreditou o conceito de um “éter luminoso”.
• A inércia de um corpo depende do seu conteúdo energético?. Artigo que investiga a equivalência massa-energia, foi apresentado ao periódico em 27 de setembro e publicado em 21 de novembro. É apresentada a equivalência de matéria e energia, (e, por consequência, a capacidade da gravidade em “curvar” a luz), a existência da “energia de repouso” e a base da energia nuclear (a conversão de matéria em energia por seres humanos e no cosmos). 

Outros cientistas, especialmente Henri Poincaré e Hendrik Lorentz, tinham teorizado partes da relatividade especial. No entanto, Einstein foi o primeiro a reunir toda a teoria em conjunto e perceber o que era uma lei universal da natureza, não uma invenção de movimento no éter, como Poincaré e Lorentz tinham pensado. Originalmente, a comunidade científica ignorou os artigos do Ano Miraculoso. Isso começou a mudar depois que recebeu a atenção de Max Planck, o fundador da teoria quântica, um dos físicos mais influentes de sua geração e o único físico que notou os trabalhos. Ambos viriam a se conhecer em uma palestra internacional na Conferencia de Solvay, após Planck gradualmente confirmar sua teoria. 

Relatividade, e o princípio da equivalência

Articulou o princípio da relatividade. Isto foi entendido por Hermann Minkowski como uma generalização da invariância rotacional, do espaço para o espaço-tempo. Outros princípios postulados por Einstein e mais tarde provados são o princípio da equivalência e o princípio da invariância adiabática do número quântico. 

A relatividade geral é uma teoria da gravitação que foi desenvolvida por Einstein entre 1907 e 1915. De acordo com a relatividade geral, a atração gravitacional observada entre massas resulta da curvatura do espaço e do tempo por essas massas. A relatividade geral tornou-se uma ferramenta essencial na astrofísica moderna. Ela fornece a base para o entendimento atual de buracos negros, regiões do espaço onde a atração gravitacional é tão forte que nem mesmo a luz pode escapar. Como disse mais tarde, a razão para o desenvolvimento da relatividade geral foi a de que a preferência de movimentos inerciais dentro da relatividade especial não foi satisfatória, enquanto uma teoria que, desde o início, não prefere nenhum estado de movimento (mesmo os mais acelerados) deve parecer mais satisfatória. Consequentemente, em 1907, publicou um artigo sobre a aceleração no âmbito da relatividade especial. Nesse artigo intitulado “Sobre o Princípio da Relatividade e as Conclusões Tiradas Dela”, argumentou que a queda livre é um movimento inercial, e que para um observador em queda livre as regras da relatividade especial devem se aplicar. Este argumento é chamado de princípio da equivalência. No mesmo artigo, Einstein previu também o fenômeno da dilatação temporal gravitacional, desvio gravitacional para o vermelho e deflexão da luz. Em 1911, publicou “Sobre a Influência da Gravidade na Propagação da Luz”, em expansão do artigo de 1907, em que estimou a quantidade de deflexão da luz por corpos maciços. Assim, a previsão teórica de relatividade geral pode, pela primeira vez ser testada experimentalmente. 

Seu artigo “Sobre a Eletrodinâmica dos Corpos em Movimento” (“Zur Elektrodynamik bewegter Körper”) foi recebido em 30 de junho de 1905 e publicado em 26 de setembro daquele ano. Concilia as equações de Maxwell para a eletricidade e o magnetismo com as leis da mecânica, através da introdução de grandes mudanças para a mecânica perto da velocidade da luz. Isto mais tarde se tornou conhecido como a teoria da relatividade especial de Einstein. As consequências disto incluem o intervalo de espaço-tempo de um corpo em movimento, que parece reduzir de velocidade e se contrair (na direção do movimento), quando medido no plano do observador. Este documento também argumentou que a ideia de um éter luminífero — uma das entidades teóricas líderes da física na época — era supérflua. Em seu artigo sobre equivalência massa-energia, Einstein concebeu de sua equação da relatividade especial. Seu trabalho de 1905 sobre a relatividade permaneceu controverso por muitos anos, mas foi aceito pelos principais físicos, começando com Max Planck. 

A teoria da relatividade geral tem uma lei fundamental — as equações de Einstein que descrevem como o espaço se curva, a equação geodésica que descreve como as partículas que se movem podem ser derivadas a partir das equações de Einstein. Uma vez que as equações da relatividade geral são não-lineares, um pedaço de energia feita de campos gravitacionais puros, como um buraco negro, se moveria em uma trajetória que é determinada pelas equações de Einstein, e não por uma nova lei. Assim, Einstein propôs que o caminho de uma solução singular, como um buraco negro, seria determinado como uma geodésica da própria relatividade geral. Isto foi estabelecido por Einstein, Infeld e Hoffmann para objetos pontuais sem movimento angular e por Roy Kerr para objetos em rotação. 

Poucos meses após publicar seu artigo sobre a relatividade geral em 1916, perceberam que distorções no espaço poderiam levar objetos a atalhos que poderiam conectar áreas muito remotas. Foram encontradas soluções que permitiam a possibilidade de um buraco de minhoca — um atalho entre duas partes remotas do espaço e, possivelmente, do tempo. Um buraco de minhoca é criado quando uma grande massa cria uma singularidade no tecido do espaço-tempo, algo tornado possível pela relatividade geral. Quando a singularidade de uma massa encontra a de outra, ambas podem se unir e criar uma passagem através da qual algo — matéria, luz, radiação — pode passar relativamente rápido apesar da grande distância entre elas. No mesmo ano em que Einstein publicou a teoria, dois físicos, Ludwig Flamm e Karl Schwarzschild, descobriram independentemente que os túneis no espaço eram soluções válidas para as equações da relatividade, que eram ferramentas para descrever a forma do espaço. As equações mostram que a gravidade distorceu a própria natureza do espaço, e em áreas de imensa gravidade, uma distorção, ou túnel, poderia aparecer. Schwarzschild já havia postulado a existência do que acabaria se tornando conhecido como buracos negros — estrelas mortas tão densas e com uma gravidade tão forte que qualquer coisa que chegasse muito perto seria sugada para sempre. A intensa gravidade associada com esses buracos negros poderia muito bem levar a enormes distorções espaciais. Em 1935, Einstein e Nathan Rosen desenvolveram um modelo mais completo destes túneis, que hoje são referidos como pontes de Einstein-Rosen. 

Mecânica quântica e relacionados

Ao longo da década de 1910, a mecânica quântica expandiu em escopo para cobrir muitos sistemas diferentes. Depois de Ernest Rutherford descobrir o núcleo e propor que os elétrons orbitam como planetas, Niels Bohr foi capaz de mostrar que os mesmos postulados da mecânica quântica introduzidos por Planck e desenvolvidos por Einstein explicaria o movimento discreto dos elétrons nos átomos e a tabela periódica de elementos. 

Einstein contribuiu para estes desenvolvimentos, ligando-os com os argumentos que Wilhelm Wien tinha apresentado em 1898. Wien tinha mostrado que a hipótese de invariância adiabática de um estado de equilíbrio térmico permite que todas as curvas de um corpo negro a temperaturas diferentes sejam derivadas uma a partir da outra por um processo simples de deslocamento. Einstein observou em 1911 que o mesmo princípio adiabático mostra que a quantidade que é quantizada em qualquer movimento mecânico deve ser um invariante adiabático. Arnold Sommerfeld identificou esta invariante adiabática como a variável de ação da mecânica clássica. 

Embora o escritório de patentes o tenha promovido para técnico examinador de segunda classe em 1906, Einstein não tinha desistido da carreira acadêmica. Em 1908 tornou-se privatdozent na Universidade de Berna. Em “Sobre o desenvolvimento de nossa visão sobre a natureza e constituição da radiação” (“Über die Entwicklung unserer Anschauungen über das Wesen und die Konstitution der Strahlung”), sobre a quantização da luz, e antes em um artigo de 1909, Einstein mostrou que os quanta de energia de Max Planck devem ter momentos bem definidos e agir, em alguns aspectos, como partículas pontuais independentes. Este artigo introduziu o conceito de fóton (embora o nome fóton tenha sido introduzido mais tarde por Gilbert Newton Lewis em 1926) e inspirou a noção de dualidade onda-partícula na mecânica quântica. 

Quando os físicos desenvolveram a mecânica quântica, sentiu-se uma grande emoção pois estavam concebendo as ferramentas necessárias para descrever o mundo recém-descoberto das partículas subatômicas. Einstein compartilhava a emoção. Mas o campo da mecânica quântica tomou um rumo que o frustrou: as equações desenvolvidas pelos cientistas só foram capazes de prever as probabilidades de como um átomo agiria. A mecânica quântica insiste que as leis mais fundamentais da natureza são aleatórias. Mesmo que os primeiros trabalhos de Einstein levaram diretamente para o desenvolvimento da nova ciência, o próprio sempre se recusou a aceitar essa aleatoriedade. Em 1917, no auge de seu trabalho sobre a relatividade, publicou um artigo no Physikalische Zeitschrift que propôs a possibilidade da emissão estimulada, o processo físico que torna possíveis o maser e o laser. Este artigo mostra que as estatísticas de absorção e emissão de luz só seriam consistentes com a lei de distribuição de Planck se a emissão de luz em uma moda estatística com ‘’’n’’’ fótons fosse aumentada estatisticamente em comparação com a emissão de luz em uma moda vazia. Este artigo foi enormemente influente no desenvolvimento posterior da mecânica quântica, porque foi o primeiro trabalho a mostrar que as estatísticas de transições atômicas tinham leis simples. Einstein descobriu os trabalhos de Louis de Broglie e apoiou as suas ideias, que foram recebidas com ceticismo no início. Em outro grande artigo nessa mesma época, Einstein proveu uma equação de onda para as ondas de Broglie, que sugeriu como a equação de Hamilton-Jacobi da mecânica. Este trabalho iria inspirar o trabalho de Schrödinger de 1926. 

A intuição física de Einstein o levou a notar que as energias do oscilador de Planck tinham um ponto zero incorreto. Ele modificou a hipótese de Planck, definindo que o estado de menor energia de um oscilador é igual a 1⁄2 hf, a metade do espaçamento de energia entre os níveis. Este argumento, que foi feito em 1913 em colaboração com Otto Stern, foi baseado na termodinâmica de uma molécula diatômica que pode se separar em dois átomos livres. 

Teoria do campo unificado e cosmologia

Depois de sua pesquisa sobre a relatividade geral, Einstein entrou em uma série de tentativas de generalizar sua teoria geométrica da gravitação para incluir eletromagnetismo como outro aspecto de uma única entidade. Em 1950, ele descreveu sua “teoria do campo unificado” em um artigo da Scientific American, intitulado “Sobre a Teoria da Gravitação Generalizada”. Embora continuasse a ser elogiado por seu trabalho, tornou-se cada vez mais isolado em sua pesquisa, e seus esforços foram infrutíferos. Em sua busca por uma unificação das forças fundamentais, Einstein ignorou alguns desenvolvimentos da física corrente, principalmente as forças nucleares forte e fraca, que não foram muito compreendidas até muitos anos após sua morte. A física corrente, por sua vez, em grande parte ignorou suas abordagens à unificação. O sonho de Einstein de unificar as outras leis da física com a gravidade motivam missões modernas para uma teoria de tudo e em particular a teoria das cordas, onde os campos geométricos surgem em um ambiente da mecânica quântica unificada. 

Em 1917, aplicou a teoria da relatividade geral para modelar a estrutura do universo como um todo. Ele queria que o universo fosse eterno e imutável, mas este tipo de universo não é consistente com a relatividade. Para corrigir isso, modificou a teoria geral através da introdução de uma nova noção, a constante cosmológica. Com uma constante cosmológica positiva, o universo poderia ser uma esfera eterna estática. 

Einstein acreditava que um universo esférico estático é filosoficamente preferido, porque obedeceria ao princípio de Mach, elaborado por Ernst Mach. Ele havia mostrado que a relatividade geral incorpora o princípio de Mach, até um certo ponto, no arraste de planos por campos gravitomagnéticos, mas ele sabia que a ideia de Mach não funcionaria se o espaço continuasse para sempre. Em um universo fechado, ele acreditava que o princípio de Mach se manteria. O princípio de Mach tem gerado muita controvérsia ao longo dos anos. 

Fótons, átomo e quantum de energia

Em seu artigo “Sobre um ponto de vista heurístico relativo à produção e transformação da luz” (“Über einen die Erzeugung und Verwandlung des Lichtes betreffenden heuristischen Gesichtspunkt”), Einstein postulou que a luz em si consiste de partículas localizadas (quanta). Os quanta de luz de Einstein foram quase universalmente rejeitados por todos os físicos, incluindo Max Planck e Niels Bohr. Essa ideia só se tornou universalmente aceita em 1919, com os experimentos detalhados de Robert Millikan sobre o efeito fotoelétrico, e com a medida de espalhamento Compton. Einstein concluiu que cada onda de frequência f é associada com um conjunto de fótons com uma energia hf cada, em que h é a constante de Planck. Ele não diz muito mais, porque não tinha certeza de como as partículas estão relacionadas com a onda. Mas ele sugere que essa ideia poderia explicar alguns resultados experimentais, especialmente o efeito fotoelétrico. 

Em 1907, propôs um modelo de matéria em que cada átomo de uma estrutura de rede é um oscilador harmônico independente. No modelo de Einstein, cada átomo oscila de forma independente — uma série de estados quantizados igualmente espaçados para cada oscilador. Einstein estava consciente de que obter a frequência das oscilações reais seria diferente, mas ele propôs esta teoria porque era uma demonstração particularmente clara de que a mecânica quântica poderia resolver o problema do calor específico na mecânica clássica. Peter Debye aprimorou este modelo. 

Teoria da opalescência crítica

Einstein voltou para o problema das flutuações termodinâmicas, dando um tratamento das variações de densidade de um fluido no seu ponto crítico. Normalmente as flutuações de densidade são controladas pela segunda derivada da energia livre em relação à densidade. No ponto crítico, esta derivada é zero, levando a grandes flutuações. O efeito da flutuação da densidade é que a luz de todos os comprimentos de onda é dispersada, fazendo com que o fluido pareça branco leitoso. Einstein relaciona isso com a dispersão de Rayleigh, que é o que acontece quando o tamanho da flutuação é muito menor do que o comprimento de onda, e que explica por que o céu é azul. 

Argumento do buraco e teoria Entwurf

Ao desenvolver a relatividade geral, Einstein ficou confuso sobre a invariância de gauge na teoria. Formulou um argumento que o levou a concluir que uma teoria geral do campo relativístico é impossível. Desistiu de procurar equações tensoriais covariantes completamente gerais e procurou por equações que seriam invariantes apenas sob transformações lineares gerais. Em junho de 1913, a teoria Entwurf (do alemão “rascunho”) foi o resultado dessas investigações. Como o próprio nome sugere, era um esboço de teoria, com as equações de movimento complementadas por condições adicionais de fixação de calibre. Ao mesmo tempo menos elegante e mais difícil do que a relatividade geral, após mais de dois anos de intenso trabalho, Einstein abandonou a teoria em novembro de 1915, depois de perceber que o argumento do buraco estava errado. 

Flutuações termodinâmicas e física estatística

O primeiro trabalho de Einstein, publicado em 1900 no Annalen der Physik, versou sobre a atração capilar. Foi publicado em 1901 com o título “Folgerungen aus den Kapillarität Erscheinungen”, que se traduz como “Conclusões sobre os fenômenos de capilaridade”. Dois artigos que publicou entre 1902 e 1903 (termodinâmica) tentaram interpretar fenômenos atômicos a partir de um ponto de vista estatístico. Estas publicações foram a base para o artigo de 1905 sobre o movimento browniano, que mostrou que pode ser interpretado como evidência sólida da existência das moléculas. Sua pesquisa em 1903 e 1904 estava centrada principalmente sobre o efeito do tamanho atômico finito em fenômenos de difusão. 

Pseudotensor de momento de energia

A relatividade geral inclui um espaço-tempo dinâmico, por isso é difícil identificar a energia e momento conservados. O teorema de Noether permite que essas quantidades sejam determinadas a partir da função de Lagrange com invariância de translação, mas a covariância geral transforma a invariância de translação em uma espécie de simetria de calibre. A energia e o momento derivados pela relatividade geral pelas prescrições de Noether não fazem um tensor real por este motivo. Einstein argumentou que isso é verdade por motivos fundamentais, pois o campo gravitacional poderia ser levado ao desaparecimento por uma escolha de coordenadas. Ele sustentou que o pseudotensor não-covariante de momento de energia era de fato a melhor descrição da distribuição de momento de energia em um campo gravitacional. Esta abordagem tem sido ecoada por Lev Landau e Evgeny Lifshitz, dentre outros, e tornou-se padrão. 

Colaboração com outros cientistas

Além de colaboradores de longa data como Leopold Infeld, Nathan Rosen, Peter Bergmann e outros, também teve algumas colaborações pontuais com vários cientistas, como Banesh Hoffmann. Einstein e Wander de Haas demonstraram que a magnetização é devida ao movimento de elétrons, o que hoje em dia é conhecido como a rotação. Para mostrar isto, inverteram a magnetização em uma barra de ferro suspensa em um pêndulo de torção. Confirmaram que isso leva a barra a rodar, devido a mudanças no momento angular do elétron com as mudanças de magnetização. Esta experiência precisava ser sensível, porque o momento angular associado com os elétrons é pequeno, mas estabeleceu definitivamente que o movimento de elétrons é responsável pela magnetização. 

Sugeriu a Erwin Schrödinger que seria capaz de reproduzir as estatísticas de um gás de Bose-Einstein ao considerar uma caixa. Então, para cada possível movimento quântico de uma partícula em uma caixa, associar um oscilador harmônico independente. Quantizando estes osciladores, cada nível terá um número inteiro de ocupação, que será o número de partículas na mesma. Essa formulação é uma forma de segunda quantização, mas é anterior à moderna mecânica quântica. Schrödinger a aplicou para derivar as propriedades termodinâmicas de um gás ideal semiclássico. Schrödinger pediu que adicionasse seu nome como coautor, mas Einstein recusou o convite. 

Os debates entre Bohr e Einstein foram uma série de disputas públicas sobre a mecânica quântica entre Einstein e Niels Bohr, que foram dois dos seus fundadores. Seus debates são lembrados por causa de sua importância para a filosofia da ciência. 

Em 1924 recebeu uma carta com a descrição de um modelo estatístico do físico indiano Satyendra Nath Bose, que criou um método de contagem onde se assume que a luz pode ser entendida como um gás de partículas indistinguíveis, usando uma nova forma para chegar à Lei de Planck. As novas estatísticas de Bose ofereceram mais informações sobre como entender o comportamento dos fótons. Ele mostrou que se um fóton entrou em um estado quântico específico, então há uma tendência para que o próximo entre no mesmo estado. Einstein notou que as estatísticas de Bose aplicavam-se a alguns átomos, bem como partículas de luz propostas, e submeteu a tradução do artigo em alemão para o Zeitschrift für Physik. Também publicou seus próprios artigos descrevendo o modelo e suas implicações. Entre os resultados, em 1925 fez a notável descoberta em que algumas partículas aparecem em temperaturas muito baixas; se um gás tivesse uma temperatura bem próxima do zero absoluto — o ponto em que os átomos não se movem — todos eles caíam no mesmo estado quântico. O condensado de Bose-Einstein é um tipo de matéria que é distintamente diferente das outras na Terra — diferente de líquido, sólido ou gasoso. Foi a última grande contribuição de Einstein à física. Somente em 1995 o primeiro condensado foi produzido experimentalmente por Eric Allin Cornell e Carl Wieman usando equipamentos de ultrarresfriamento construídos no laboratório do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia — Instituto Conjunto do Laboratório de Astrofísica da Universidade do Colorado em Boulder. Hoje, as estatísticas de Bose-Einstein são usadas para descrever o comportamento de qualquer conjunto de bósons. 

Entre os anos de 1926 e 1930, Einstein e Szilárd trabalharam juntos e desenvolveram um silencioso refrigerador doméstico. Em 11 de novembro de 1930, a Patente 1.781.541 dos Estados Unidos foi atribuída a ambos pelo refrigerador de Einstein. Sua invenção não foi imediatamente colocada em produção comercial, uma vez que a mais promissora de suas patentes foi rapidamente comprada pela empresa sueca Electrolux para proteger sua tecnologia de refrigeração da competição. 

Em 1935, Einstein, Boris Podolsky e Nathan Rosen produziram um famoso argumento para mostrar que a interpretação da mecânica quântica defendida por Bohr e sua escola em Copenhague era incompleta se certas suposições razoáveis fossem feitas a respeito de “realidade” e “localidade” contra o qual não havia um pouco de evidência empírica naqueles dias. Bohr escreveu um desmentido e foi declarado o vencedor. O debate persistiu em um nível filosófico até 1964, quando John Stewart Bell produziu sua famosa desigualdade baseada no realismo local (ou seja, a localidade mais realidade, tal como definido por Einstein, Podolsky e Rosen) na qual a mecânica quântica viola. Por fim, a questão foi trazida a baixo de sua altura filosófica ao nível empírico. Mas teve que esperar até 1982 para um verdadeiro veredito experimental. Os experimentos engenhosos realizados pela Aspect e seus colegas com fótons correlacionados mais uma vez pareciam vindicar a mecânica quântica. Após o aparecimento do argumento EPR e a resposta de Bohr, a escola de Copenhague teve que mudar sua postura. Tiveram que abandonar a ideia de que toda medida causava uma “perturbação” inevitável do sistema de medida. De fato, Bohr admitiu que, em uma causa como a correlatada no paradoxo EPR, “não havia dúvida de uma perturbação mecânica do sistema sob investigação”.

A teoria da gravidade de Einstein-Cartan é uma modificação da teoria da relatividade geral, permitindo que o espaço-tempo tenha torção, além de curvatura, e torção relativa à densidade da quantidade de momento angular intrínseco. Esta modificação foi proposta em 1922 por Élie Cartan, antes da descoberta do spin. Cartan foi influenciado pelo trabalho dos irmãos Cosserat (1909), que consideravam, além de um (assimétrico) tensor força de estresse, também um tensor momento de estresse em um meio contínuo adequadamente generalizado. 

Vida pessoal

Política e religião

Com seis anos de idade, no final de 1885, Einstein entrou na escola primária católica de seu bairro, provavelmente a partir do segundo grau. Era a única criança judia na classe. Instrução religiosa fazia parte do currículo escolar, assim ele se familiarizou com as histórias da Bíblia e dos santos. Sua visão política era a favor do socialismo e contra o capitalismo, que ele detalhou em seu ensaio Por que o Socialismo?. Suas opiniões políticas surgiram publicamente em meados do século XX, devido à sua fama e reputação de gênio. Einstein ofereceu-se e foi chamado a opinar em questões muitas vezes não relacionadas à física teórica e matemática. 

Seus pontos de vista sobre a crença religiosa foram coletados a partir de entrevistas e escritos originais. Quando jovem dizia que acreditava no conceito de “Deus” conforme preconizado pelo filósofo Baruch Espinoza, mas não em um Deus pessoal, crença que ele criticava. Nesta visão, deus e a natureza são uma mesma entidade. Chamava-se de agnóstico, ao mesmo tempo que se dissociava do rótulo de ateu quando vinculado ao ateísmo forte (ateísmo não cético). “Você pode me chamar de agnóstico, mas eu não concordo com o espírito do ateu profissional cujo fervor é um ato de dolorosa restrição da doutrinação religiosa da juventude. Eu prefiro ter uma atitude de humildade em relação ao quão pouco entendemos sobre a natureza e nossos próprios seres”, escreveu a Guy H. Raner Jr. em setembro de 1949. 

Numa carta manuscrita em alemão em 1954 e dirigida ao filósofo judeu Eric Gutkind, Einstein critica enfaticamente as religiões institucionalizadas, em particular a religião judaica, de forma a posicioná-lo como ateu um ano antes de sua morte. Na missiva em questão, o cientista declara que “A palavra Deus para mim é nada mais que a expressão e produto da fraqueza humana, a Bíblia é uma coleção de lendas honradas, mas ainda assim primitivas, que são bastante infantis.” Conhecida como a “Carta de Deus”, a carta foi vendida em 2018 em Nova Iorque por 2,89 milhões de dólares num leilão organizado pela Christie’s. 

Amor pela música

“O que tenho a dizer sobre a obra de Bach? Ouvir, tocar, amar, adorar … ficar calado!” 
— Albert Einstein em resposta a um inquérito da revista alemã Illustrierten Wochenschrift, 1928. 

Einstein desenvolveu apreciação musical em uma idade precoce. Sua mãe tocava piano razoavelmente bem e queria que seu filho aprendesse a tocar violino, não só para incutir nele o amor pela música, mas também para ajudá-lo a assimilar a cultura alemã. De acordo com o maestro Leon Botstein, Einstein disse ter começado a tocar quando tinha cinco anos, mas não o apreciava nessa idade. Quando completou treze anos, no entanto, descobriu as sonatas para violino de Mozart. “Einstein se apaixonou”, e estudou música com mais vontade. Aprendeu a tocar sozinho sem “nunca praticar sistematicamente”, acrescentando que “o amor é um professor melhor do que um sentido de dever”. Aos dezessete anos, foi ouvido por um examinador de sua escola em Aarau quando tocava as sonatas de violino de Beethoven, tendo o examinador afirmado depois que seu toque era “notável e revelador de ‘uma grande visão’.” O que impressionou o examinador, escreve Botstein, era que Einstein “exibiu um amor profundo pela música, uma qualidade que foi e continua a ser escassa. A música possuía um significado incomum para esse estudante.” 

Embora tenha se apresentado em público para concertos de caridade e como um representante da Liga das Nações, Einstein não tocou principalmente para os espectadores, mas para se divertir com amigos — ou sozinho, para relaxamento e inspiração. Ele muitas vezes se sentava ao piano e improvisava. Onde quer que fosse, seu violino “Lina” estava com ele. Desde sua infância havia procurado oportunidades de tocar com outros músicos. Até o fim dos seus dias, teve encontros com outros estudantes e colegas, com Michele Besso e Max Born, Max Planck e Paul Ehrenfest, com particulares e celebridades, com Pauline Winteler, que cuidou dele quando morava em Aarau, e com a Rainha Isabel da Bélgica em Bruxelas. À época, tocar música em casa era uma coisa natural durante os encontros, e ele reuniu cientistas e músicos em Princeton para visitar e tocar Mozart, Bach e Schubert. 

“Se eu não fosse um físico, provavelmente seria músico. Eu penso sobre música frequentemente. Eu sonho acordado com música. Eu vejo minha vida em termos de música … obtenho mais alegria na vida através da música.” 
— Einstein, 1929

A música assumiu um papel fundamental e permanente em sua vida. Embora a ideia de se tornar um profissional não estivesse em sua mente em nenhum momento, entre aqueles com os quais Einstein tocou a música de câmara estavam alguns profissionais, e ele se apresentou para os amigos e em privado. A música de câmara também se tornou uma parte regular de sua vida social, enquanto vivia em Berna, Zurique e Berlim, onde tocou com Max Planck e seu filho, entre outros. Em 1931, quando estava envolvido em pesquisa no Instituto de Tecnologia da Califórnia, ele visitou o Conservatório da família Zoellner em Los Angeles e tocou algumas das obras de Beethoven e Mozart com os membros do Quarteto Zoellner, que tinha se retirado recentemente após duas décadas de turnês aclamado em todos os Estados Unidos; Einstein mais tarde presenteou o patriarca da família com uma fotografia autografada como uma lembrança. Perto do fim de sua vida, em 1952, quando o Quarteto de Cordas Juilliard (da Juilliard School, de Nova Iorque) visitou-o em Princeton, ele tocou seu violino com eles; ainda que diminuísse o ritmo para acomodar suas habilidades técnicas menores, Botstein observa que o quarteto ficou “impressionado com o nível de coordenação e entonação de Einstein.” 

Legado

Quando em viagem, Einstein escrevia diariamente para sua esposa Elsa e as enteadas Margot e Ilse. As cartas foram incluídas nos documentos legados à Universidade Hebraica de Jerusalém. Margot Einstein permitiu que as cartas pessoais fossem disponibilizadas ao público, solicitando que fossem esperados vinte anos após sua morte para a publicação, o que ocorreu em 1986. Barbara Wolff, dos Albert Einstein Archives da Universidade Hebraica de Jerusalém, disse à BBC que há cerca de 3.500 páginas de correspondência privada, escritas entre 1912 e 1955. 

Einstein doou os royalties do uso de sua imagem para a Universidade Hebraica de Jerusalém. Corbis, sucessor da The Roger Richman Agency, licencia o uso de seu nome e imagens associadas, como agente para a universidade. Suas grandes conquistas intelectuais e originalidade fizeram da palavra “Einstein” sinônimo de gênio. Sua fórmula de equivalência massa-energia — — foi chamada por Karen Fox e Aries Keck de “a equação mais famosa do mundo”. Ao lado da mecânica quântica, sua teoria da relatividade geral foi considerada um dos pilares da física moderna. 

Veja mais:

No período anterior à Segunda Guerra Mundial, era tão conhecido nos Estados Unidos a ponto de ser indagado na rua por pessoas que solicitavam que ele explicasse “aquela teoria”. Einstein finalmente descobriu uma maneira de lidar com as perguntas incessantes. Ele passou a responder a elas com o bordão “Perdão, sinto muito! Sou sempre confundido com o Professor Einstein.” Foi o assunto ou inspiração para muitas novelas, filmes, peças de teatro e obras de música. É o modelo favorito para representações de cientistas loucos e professores distraídos, seu rosto expressivo e penteado característico têm sido amplamente copiado e exagerado. Em 1999, a revista Time publicou a compilação Time 100: The Most Important People of the Century, no qual classificava as pessoas mais influêntes do século XX. Einstein ficou em primeiro lugar como a pessoa mais importante do século, acrescentando que “foi o cientista preeminente em um século dominado pela ciência. As pedras fundamentais da época — a bomba, o Big Bang, física quântica e eletrônicos — todas trazem sua marca”. Frederic Golden escrevendo para a mesma revista disse na publicação que Einstein era “o sonho realizado de um cartunista”. Também em 1999, 100 físicos renomados elegeram-no o mais memorável físico de todos os tempos.

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Agostinho de Hipona https://canalfezhistoria.com/agostinho-de-hipona/ https://canalfezhistoria.com/agostinho-de-hipona/#respond Fri, 28 Feb 2025 09:21:20 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5484 Agostinho de Hipona, conhecido universalmente como Santo Agostinho, foi um dos mais importantes teólogos e filósofos nos primeiros séculos do cristianismo, cujas obras foram muito influentes no desenvolvimento do cristianismo e filosofia ocidental. Ele era o bispo de Hipona, uma cidade na província romana da África. Escrevendo na era patrística, ele é amplamente considerado como sendo o mais importante dos Padres da Igreja no ocidente. Suas obras-primas são De Civitate Dei (“A Cidade de Deus”) e “Confissões”, ambas ainda muito estudadas atualmente.

De acordo com Jerônimo, seu contemporâneo, Agostinho “restabeleceu a antiga fé”. Em seus primeiros anos, Agostinho foi muito influenciado pelo maniqueísmo e, logo depois, pelo neoplatonismo de Plotino. Depois de se converter ao cristianismo e aceitar o batismo (387), desenvolveu uma abordagem original à filosofia e teologia, acomodando uma variedade de métodos e perspectivas de uma maneira até então desconhecida. Acreditando que a graça de Cristo era indispensável para a liberdade humana, ajudou a formular a doutrina do pecado original e deu contribuições seminais ao desenvolvimento da doutrina da guerra justa. 

Quando o Império Romano do Ocidente começou a ruir, Agostinho desenvolveu o conceito de “Igreja Católica” como uma “Cidade de Deus” espiritual (na obra homônima) distinta da cidade terrena e material de mesmo nome. “A Cidade de Deus” estava também intimamente ligada ao segmento da Igreja que aderiu ao conceito da Trindade como postulado pelo Concílio de Niceia e pelo Concílio de Constantinopla. Na Igreja Católica e na Comunhão Anglicana, Agostinho é venerado como um santo, um proeminente Doutor da Igreja e o patrono dos agostinianos. Sua festa é celebrada no dia de sua morte, 28 de agosto. Muitos protestantes, especialmente os calvinistas, consideram Agostinho como um dos “pais teológicos” da Reforma Protestante por causa de suas doutrinas sobre a salvação e graça divina. Na Igreja Ortodoxa, algumas de suas doutrinas não são aceitas, como a da cláusula Filioque, do pecado original e do monergismo. Ainda assim, apesar destas controvérsias, é considerado também um santo, sendo comemorado como “Beato Agostinho” no dia 15 de junho. Ainda assim, numerosos autores ortodoxos advogaram a favor de suas obras e de sua personalidade, como Genádio II de Constantinopla e Seraphim Rose.

Infância e educação

Agostinho nasceu em 354 no município de Tagaste na província romana da Numídia. Sua mãe, Mônica, era uma cristã devota e seu pai, Patrício, um pagão convertido ao cristianismo no leito de morte. Estudiosos acreditam que entre seus ancestrais estavam berberes, latinos e fenícios, mas ele próprio considerava-se um púnico. Seu nomen, Aurélio, sugere que os ancestrais de seu pai eram libertos da gente Aurélia e que receberam a cidadania romana depois do Édito de Caracala (Marco Aurélio Antonino) em 212 e, portanto, a família já era romana do ponto de vista legal por pelo menos um século quando Agostinho nasceu. 

Assume-se que Mônica era berbere por causa do nome, mas, como a família era formada por honestitores, uma classe mais elevada de cidadãos chamados de “homens honrados”, é muito provável que Agostinho tenha sido educado em latim. Aos onze anos, ele foi enviado para uma escola em Madauro (atual M’Daourouch), uma pequena cidade númida a apenas 30 quilômetros ao sul de Tagaste, e ali aprendeu literatura latina e as práticas e crenças pagãs. Foi ali também, por volta de 369 ou 370, que leu o diálogo perdido de Cícero, “Hortênsio”, que o próprio Agostinho credita como responsável por despertar seu interesse em filosofia. 

Aos dezessete, graças à generosidade de um amigo, Romaniano, Agostinho mudou-se para Cartago para estudar retórica. Embora tenha sido criado um cristão, passou a seguir ali o maniqueísmo, para desespero de sua mãe. Como todos os jovens de sua época e classe social, Agostinho adotou um estilo de vida hedonista por um tempo, associando-se a outros jovens que se vangloriavam de suas aventuras sexuais com mulheres e homens. Os mais velhos estimulavam os mais inexperientes a contar ou inventar histórias sobre aventuras para que fossem aceitos. É deste período uma famosa oração de Agostinho, “Senhor, conceda-me castidade e continência, mas não ainda”.

Dois anos depois, Agostinho iniciou um romance com uma jovem cartaginesa, mas, provavelmente para manter-se em condições de realizar o desejo de sua mãe de casar com alguém de sua própria classe social, o casal se manteve em concubinato por mais de treze anos, período no qual tiveram um filho, Adeodato, um rapaz considerado extremamente inteligente por seus contemporâneos. 

Professor de retórica 

Entre 373 e 374, Agostinho ensinou gramática em Tagaste. No ano seguinte, mudou-se para Cartago para dirigir uma escola de retórica e lá permaneceu pelos nove anos seguintes. Perturbado pelo comportamento indomável de seus estudantes, fundou, em 383, uma escola em Roma, onde acreditava estarem os maiores e mais brilhantes retóricos. Porém, se desapontou com a apatia com que foi recebido pelas escolas romanas. Para piorar, seus estudantes, quando chegava o momento de pagar pelas aulas, simplesmente fugiam. Seus amigos maniqueístas então o apresentaram ao prefeito urbano, Símaco, que tentava conseguir um professor de retórica para servir na corte imperial em Mediolano (Milão). Agostinho conseguiu a posição e viajou para o norte para assumi-la no final de 384. Aos trinta anos de idade, já havia conquistado a mais visível de todas as posições acadêmicas do mundo latino, justamente numa época que tais postos eram portas de entrada para carreiras políticas. Neste período, embora demonstrasse algum fervor pelo maniqueísmo, jamais tornou-se um iniciado (um “eleito”), permanecendo um “ouvidor”, o nível mais baixo da hierarquia da seita. 

Ainda em Cartago, já havia começado a se distanciar do maniqueísmo, em parte por causa de um frustrante encontro com o bispo Fausto de Milevi, um importante expoente da teologia maniqueísta. Em Roma, afastou-se completamente do maniqueísmo e abraçou o ceticismo do movimento da Nova Academia. Em Mediolano, sua mãe retomou a pressão para que ele se reconvertesse ao cristianismo. Os próprios estudos de Agostinho sobre o neoplatonismo também passaram a atraí-lo, uma direção que foi depois estimulada por seu amigo Simpliciano. Mas foi o bispo de Mediolano, Ambrósio, quem mais influenciou Agostinho. Como ele, Ambrósio era um mestre na retórica, mas era mais velho e mais experiente. 

Em Mediolano, Agostinho permitiu que sua mãe lhe arranjasse um casamento e foi por conta disso que ele abandonou sua concubina. Acredita-se que Agostinho realmente amasse sua parceira de mais de treze anos e o rompimento foi bastante difícil para ele. Confirmando esta tese, há evidências de que Agostinho tenha considerado seu relacionamento como equivalente ao matrimônio, apesar de não ser válido perante a lei. Em suas Confissões, ele admitiu que a experiência da separação acabou amortecendo gradualmente sua sensibilidade à dor. Agostinho teve que esperar por mais dois anos até que sua noiva atingisse a idade para casar e logo em seguida tomou uma nova concubina. Ele finalmente terminou o noivado com sua prometida (que tinha onze anos), mas não retomou o relacionamento com nenhuma de suas antigas concubinas. 

Alípio de Tagaste foi o responsável por afastar Agostinho do casamento ao ensinar-lhe que jamais poderia viver no amor a sabedoria se casasse. Muitos anos depois, Agostinho relembrou seus dias em Cassicíaco (Cassago Brianza), uma vila nos arredores de Mediolano onde viveu com seus seguidores, e descreveu-os como Christianae vitae otium – a vida cristã de ócio. 

Conversão e sacerdócio

No verão de 386, depois de ouvir a história da vida de Santo Antão do Deserto por Placiano e seus amigos, Agostinho se converteu. Como ele próprio contou depois, a conversão foi incitada por uma voz infantil que ele ouviu pedindo-lhe para “tomar e ler” (em latim: tolle, lege), o que ele entendeu ser um comando divino para abrir a Bíblia, abri-la e ler a primeira coisa que encontrasse. Agostinho abriu na Epístola aos Romanos num trecho conhecido como “transformação dos crentes”, os capítulos 12 ao 15, no qual Paulo delineia como o Evangelho transforma os crentes e seu comportamento. O trecho exato, segundo ele, foi: “ «Andemos honestamente como de dia, não em orgias e bebedices, não em impudicícias e dissoluções, não em contendas e ciúmes; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo, e não vos preocupeis com a carne para não excitardes as suas cobiças.» (Romanos 13:13-14) ” 

— Agostinho de Hipona, Confissões.

Ambrósio batizou Agostinho e seu filho Adeodato na Vigília da Páscoa de 387 em Mediolano. Um ano depois, em 388, Agostinho completou sua apologia “Sobre a Santidade da Igreja Católica”. No mesmo ano, a família decidiu voltar para a África, mas Mônica morreu em Óstia, perto de Roma, quando se preparava para embarcar. Quando chegaram, passaram a viver aristocraticamente com os rendimentos auferidos pelas extensivas propriedades da família na região. Logo depois, Adeotato também faleceu e Agostinho, entristecido, vendeu todo seu patrimônio e deu o dinheiro aos pobres, mantendo apenas a casa da família, que ele converteu numa fundação monástica para si e alguns amigos. 

Em 391, foi ordenado sacerdote em Hipona e rapidamente tornou-se um pregador muito famoso – há mais de 350 sermões de Agostinho que se acredita serem autênticos – e um ardoroso adversário do maniqueísmo, sua religião da juventude. Em 395, foi nomeado bispo coadjutor de Hipona e, logo depois, assumiu o trono episcopal, motivo pelo qual é conhecido como “Agostinho de Hipona”, uma posição que manteve até sua morte em 430. Suas “Confissões” foram escritas entre 397 e 398, ao passo que “A Cidade de Deus” foi escrita para consolar os cristãos logo depois do traumático saque de Roma pelos visigodos em 410. Neste período, Agostinho trabalhou incansavelmente para converter o povo de Hipona. Apesar de ter deixado o mosteiro, continuou a levar uma vida asceta na residência episcopal. Para seus companheiros, deixou uma regula que fez com que, muito depois, fosse considerado como o “padroeiro do clero regular”. Grande parte do que sabemos sobre os anos finais de Agostinho foi relatado por seu amigo Possídio, o bispo de Calama (moderna Guelma, na Argélia), em sua obra Sancti Augustini Vita. Possídio admirava Agostinho como uma pessoa intelectualmente poderosa e de retórica arrebatadora que aproveitava todas as oportunidades para defender o cristianismo contra seus detratores. Ele preservou também os traços pessoais de Agostinho em detalhes, revelando um indivíduo que comia pouco, trabalhava muito, desprezava fofocas, evitava as tentações da carne e era muito prudente na administração financeira de sua sé. 

Morte e veneração

Na primavera de 430, os vândalos, uma tribo germânica convertida ao arianismo, invadiram a África romana e cercaram Hipona. Agostinho, porém, já estava irremediavelmente doente. De acordo com Possídio, um dos poucos milagres atribuídos a ele, a cura de um doente, deu-se durante o cerco. Ainda segundo ele, Agostinho passou seus últimos dias em oração e penitência, com salmos pendurados nas paredes de seu quarto para que pudesse lê-los. Antes de morrer, ordenou que a biblioteca da igreja de Hipona e todos os seus livros fossem cuidadosamente preservados, e faleceu finalmente em 28 de agosto de 430. Logo em seguida, os vândalos desistiram do cerco, mas retornaram não muito depois e incendiaram a cidade, destruindo tudo menos a catedral e a biblioteca de Agostinho. 

Agostinho foi canonizado por aclamação popular e foi depois reconhecido como Doutor da Igreja em 1298 pelo papa Bonifácio VIII. 

Relíquias

De acordo com o “Verdadeiro Martirológio” de Beda, o corpo de Agostinho foi depois trasladado para Cálhari, Sardenha, pelos bispos católicos expulsos do norte da África por Hunerico. Por volta de 720, seu corpo foi novamente trasladado por Pedro, bispo de Pavia e tio do rei lombardo Liuprando, para a igreja de San Pietro in Ciel d’Oro, em Pavia, para protegê-lo contra os frequentes raides dos sarracenos. Em janeiro de 1327, João XII emitiu a bula papal Veneranda Santorum Patrum na qual nomeou os agostinianos como guardiões do túmulo de Agostinho, que foi reformado em 1362 com ricos baixo-relevos com cenas de sua vida. 

Em outubro de 1695, trabalhadores em San Pietro in Ciel d’Oro descobriram um sarcófago de mármore com alguns ossos humanos, inclusive parte de um crânio e uma disputa irrompeu entre os eremitas da Ordem de Santo Agostinho e os clérigos dos Cânones Regulares de Santo Agostinho sobre sua autenticidade, estes afirmando que eram autênticos e aqueles, que não. No fim, Bento XIII (r. 1724–1730) ordenou ao bispo de Pavia, monsenhor Pertusati, que decidisse e ele declarou que, na sua opinião, eram verdadeiros. Os agostinianos foram expulsos de Pavia em 1700 e se refugiaram em Milão levando com eles as relíquias de Agostinho e seu sarcófago desmontado, abrigando tudo na catedral da cidade. San Pietro ficou arruinada e só foi reformada na década de 1870 depois de uma campanha liderada por Agostino Gaetano Riboldi. As relíquias de Santo Agostinho e seu sarcófago foram reinstalados ali em 1896, quando a igreja foi reconsagrada. 

Pensamento

Agostinho foi um dos primeiros autores cristãos latinos a professar uma visão clara sobre a antropologia teológica ao defender o ser humano como a união perfeita de duas substâncias, o corpo e a alma. Em seu tratado tardio “Sobre os Cuidados com os Mortos” (420), por exemplo, defendeu o respeito ao corpo dos mortos afirmando que ele era parte da natureza humana. Uma das metáforas preferidas de Agostinho para ilustrar esta unidade é o matrimônio: caro tua, coniunx tua (“Seu corpo é sua esposa”). Ele acreditava que os dois elementos estavam inicialmente em perfeita harmonia, mas, depois da queda da humanidade, passaram a combater entre si de forma dramática. Afirmava também que os dois elementos são parte de duas categorias bem distintas. Enquanto o corpo é um objeto tri-dimensional composto de quatro elementos, a alma não tem dimensões espaciais e é composta por um tipo de substância adequada para governar o corpo e que é parte da razão. Agostinho não estava preocupado, como Platão e Descartes, em explicar em detalhes a metafísica envolvida nesta união. Bastava para ele admitir que os homens eram formados por duas substâncias metafisicamente distintas, sendo a alma superior ao corpo. Esta última afirmação baseada em sua própria classificação hierárquica para todas as coisas, classificando em ordem de importância as coisas que somente existem, as que existem e vivem e, finalmente, as que existem, vivem e tem inteligência ou dispõem da razão. 

Assim como outros Padres da Igreja, como Atenágoras por exemplo, Agostinho “condenou vigorosamente a prática do aborto induzido” e considerava-o um crime em qualquer estágio da gravidez, embora ele tenha aceitado a distinção entre fetos “formados” e “não formados” mencionada na tradução da Septuaginta do Êxodo 21:22-23, um trecho que, segundo ele, não classificava como assassinato o aborto de um feto “não formado”, pois não se podia defender com certeza se ele já teria recebido uma alma. 

Astrologia 

Os contemporâneos de Agostinho acreditavam que a astrologia era uma ciência exata e genuína; seus praticantes eram considerados como verdadeiros eruditos e chamados mathemathici. A disciplina tinha um importante papel na doutrina maniqueísta e Agostinho se sentiu atraído por este tipo de literatura quando jovem, fascinado principalmente pelos que alegavam poder prever o futuro. Posteriormente, já como bispo, costumava aconselhar seus fieis a evitarem astrólogos que combinassem ciências com horóscopos (é frequente que o termo mathematici nas obras de Agostinho seja traduzido como “matemático”). De acordo com ele, estes não eram verdadeiros estudantes de Hiparco ou Erastótenes e sim “vigaristas comuns”. 

Criação

Em “Cidade de Deus”, Agostinho rejeitou tanto a imortalidade da raça humana proposta pelos pagãos quanto as ideias sobre “eras” comuns na sua época (como as pregadas por alguns gregos e pelos egípcios) e que diferiam dos escritos sagrados da Igreja. Em “A Interpretação Literal do Gênesis”, Agostinho defende a posição que tudo no universo foi criado simultaneamente por Deus e não nos sete dias do calendário como requer uma interpretação literal do relato no Gênesis. Ele argumenta que a estrutura de seis dias para a criação apresentada ali representa um arcabouço lógico e não uma passagem de tempo física – o relato teria, portanto, um significado espiritual e não físico, mas, nem por isso, menos literal. Uma razão para esta interpretação é a passagem em Siraque 18:1 (conhecido também como Eclesiástico), creavit omni simul (“Criou todas as coisas simultaneamente”), que Agostinho assumiu como prova de que os dias citados em Gênesis 1 não devem ser entendidos fisicamente. Agostinho também não acreditava que o pecado original tenha provocado mudanças estruturais no universo e chegou a sugerir que os corpos de Adão e Eva já teriam sido criados mortais antes da “queda”. Finalmente, Agostinho reconhece que a interpretação da história da criação é difícil e lembra que devemos estar dispostos a mudar nossas ideias conforme novas informações forem aparecendo. 

Eclesiologia 

Agostinho desenvolveu sua doutrina sobre a Igreja principalmente como reação à controvérsia donatista. Segundo ele, há apenas uma Igreja, mas dentro dela há duas realidades, o aspecto visível (a hierarquia institucional, os sacramentos e os fieis) e o invisível (as almas dos que estão na Igreja). O primeiro é o corpo institucional estabelecido por Cristo na terra que proclama a salvação e administra os sacramentos enquanto o segundo é o corpo invisível dos eleitos, composto pelos fieis genuínos de todas as épocas, conhecido apenas por Deus. A Igreja, que é visível e social, é composta por “trigo” e “joio”, ou seja, pelos bons e pelos maus (vide a parábola do Trigo e do Joio), até o fim dos tempos. Este conceito era diretamente contrário à suposição donatista de que apenas os que vivem num estado de graça eram parte da igreja “verdeira” ou “pura” na terra e que sacerdotes e bispos que não estivessem em estado de graça não tem autoridade ou habilidade para conferir os sacramentos. A eclesiologia de Agostinho foi desenvolvida principalmente na “Cidade de Deus”. Na obra, ele concebe a Igreja como uma cidade ou um reino celestial governado pelo amor que triunfará no final sobre todos os impérios terrenos que são auto-indulgentes e governados pelo orgulho. Agostinho seguiu Cipriano ao defender que bispos e padres da Igreja são sucessores dos Apóstolos e que sua autoridade é conferida por Deus. 

Escatologia

Agostinho originalmente acreditava no premilenialismo, ou seja, que Cristo iria literalmente fundar um reino de 1 000 anos na terra antes da ressurreição geral, mas rejeitou depois a crença afirmando que ela era “carnal”. Ele foi o primeiro teólogo a expor uma doutrina sistemática do amilenialismo, embora alguns teólogos e historiadores cristãos acreditem que sua visão era mais próxima dos modernos pós-milenialistas. A Igreja medieval construiu seu sistema escatológico sobre o amilenialismo de Agostinho, no qual Cristo governa a terra espiritualmente através do triunfo da Igreja. Durante a Reforma, teólogos como João Calvino aceitaram a doutrina. 

Agostinho ensinou que o destino eterno da alma é determinado na morte e que o fogo do purgatório sobre os que estão no estado intermediário purifica apenas os que morreram em comunhão com a Igreja, uma tese que deu origem a diversas outras teologias posteriormente. 

Pontos de vista epistemológicos

Preocupações epistemológicas permearam o desenvolvimento intelectual de Agostinho. Seus primeiros diálogos (“Contra academicos”, 386; “De Magistro”,389), ambos escritos logo depois de sua conversão, refletem o uso que ele fazia de argumentos céticos e demonstram o desenvolvimento de sua doutrina da iluminação interior. Agostinho também propôs o problema das outras mentes em diversas obras – mais famosamente talvez em “Sobre a Trindade” (VIII.6.9) – e desenvolveu o que viria a ser uma solução padrão: o argumento a partir da analogia a outras mentes. Ao contrário de Platão e outros filósofos anteriores, Agostinho reconheceu a centralidade do testemunho para o conhecimento humano e argumentou que o que os outros nos contam pode nos trazer novos conhecimentos mesmo se não tivermos razões independentes para acreditar em seus relatos testemunhais. 

Guerra justa

Agostinho afirmou que os cristãos deveriam ser pacifistas como postura pessoal e filosófica. Apesar disso, afirmou que passividade perante uma grave injustiça que só pudesse ser detida com violência seria um pecado. A auto-defesa ou a defesa de outros pode ser uma necessidade, especialmente quando comandada por uma autoridade legítima. Apesar de não detalhar as condições necessárias para a guerra, Agostinho cunhou o termo “guerra justa” em sua obra “Cidade de Deus”. Essencialmente, a busca pela paz deve incluir a opção de lutar para preservá-la no longo prazo. Uma guerra justa não pode ser preemptiva; deve ser defensiva e objetivar a restauração da paz. 

Tomás de Aquino, séculos depois, baseou-se na autoridade dos argumentos de Agostinho em sua tentativa de definir as condições nas quais uma guerra poderia ser considerada justa. 

Trindade

Agostinho tentou e esforçou-se exaustivamente por compreender e desvendar o mistério da Santíssima Trindade e uma de suas principais obras, “Sobre a Trindade”, é o resultado deste esforço. Após muito tempo de reflexão, esforço e trabalho, chegou à conclusão que nós, devido à nossa mente extremamente limitada, nunca poderíamos compreender e assimilar plenamente a dimensão (infinita) de Deus somente com as nossas próprias forças e o nosso raciocínio. Concluiu que a compreensão plena e definitiva deste grande enigma só é possível quando, na vida eterna, nos encontrarmos no Paraíso com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. 

Mariologia 

Embora Agostinho não tenha desenvolvido uma mariologia independente, suas afirmações sobre Maria ultrapassam em número e em quantidade as dos autores anteriores. Mesmo antes do Concílio de Éfeso, ele defendeu a sempre Virgem Maria como a “Mãe de Deus” e por causa de sua virgindade, é cheia de graça. Ele também afirmou que a Virgem Maria “concebeu virgem, deu à luz virgem e permaneceu virgem para sempre”. 

Conhecimento natural e interpretação bíblica

Agostinho defende que o texto bíblico não deve ser interpretado literalmente e sim metaforicamente se ele contradisser o que conhecemos pela ciência ou pela razão (conferida por Deus em sua doutrina). Enquanto cada passagem das Escrituras tem um sentido literal, isto não quer dizer que o texto escritural é sempre mera história; por vezes as passagens são metáforas. 

Pecado original

Agostinho acreditava que o pecado original de Adão e Eva foi ou um ato de estupidez (“insipientia”) seguido de orgulho e desobediência a Deus ou desde o princípio um ato de orgulho. O primeiro casal desobedeceu a Deus, que os havia comandado que não comessem da Árvore do conhecimento do bem e do mal (Gênesis 2:17), o símbolo da ordem da criação. Segundo ele, o egoísmo fê-los comer o fruto da árvore, levando-os assim ao fracasso em reconhecer e respeitar o mundo como fora criado por Deus, com sua hierarquia de seres e valores. Contudo, eles não teriam sucumbido ao orgulho e falta de sabedoria se Satã não tivesse semeado em seus sentidos “a raiz do mal” (“radix Mali”). Agostinho acredita que, neste momento, a natureza humana foi ferida pela concupiscência (ou libido), o que lhes afetou a inteligência e a vontade além das afeições e desejos, inclusive o sexual. Em termos metafísicos, concupiscência não é algo, mas uma má qualidade, a ausência do bem, ou uma ferida. 

A compreensão de Agostinho sobre as consequências do pecado original e da necessidade da graça redentora se desenvolveu principalmente durante a controvérsia contra Pelágio e seus discípulos Celéstio e Juliano de Eclano, inspirados por Rufino da Síria, que era, por sua vez, discípulo de Teodoro de Mopsuéstia. Eles se recusavam a concordar que a libido teria ferido a mente e a vontade insistindo que a natureza humana recebeu o poder de agir, falar e pensar quando Deus a criou; ela não poderia perder sua capacidade moral de fazer o bem, mas as pessoas são livres para agir ou não de maneira justa. Em sua defesa, Pelágio lançou mão do exemplo dos olhos: eles tem a capacidade de enxergar, mas a pessoa pode fazer disto bom ou mau uso. Como Joviniano, os pelagianos insistiam que as afeições e desejos humanos também não teriam sido afetados pela queda. A imoralidade – como a fornicação – é unicamente uma questão de vontade, ou seja, o ato de uma pessoa que não usa seus desejos naturais de forma apropriada. Como argumento, Agostinho lembrou que da aparente desobediência da carne frente ao espírito e explicou que este era uma das consequências do pecado original, a punição pela desobediência de Adão e Eva. Agostinho foi maniqueísta por cerca de nove anos, uma doutrina que ensinava que o pecado original era o “conhecimento carnal”.

Porém, a luta de Agostinho para compreender a origem do mal no mundo começou muito antes disso, quando ele tinha apenas dezenove anos. Por “malum” (“mal”), ele entendia toda concupiscência, que interpretava como um vício que domina o ser humano e provoca a desordem moral em homens e mulheres. A. Trapè insiste que sua doutrina sobre concupiscência não pode ser creditada à experiência pessoal de Agostinho, como defendem alguns acadêmicos. Seu casamento, mesmo sem a cerimônia cristã típica, foi exemplar, normal e feliz. Como demonstrou J. Brachtendorf, Agostinho utilizou conceitos estoicos ciceronianos de paixão para interpretar a doutrina paulina de pecado universal e de redenção. 

O ponto de vista de que não apenas a alma humana, mas também seus sentidos foram influenciados pela queda de Adão e Eva era amplamente aceito na época de Agostinho entre os Padres da Igreja. É claro que as razões para Agostinho se distanciar dos afazeres da carne era diferente das de Plotino, um neoplatônico que ensinava que apenas através do desprezo pelos desejos carnais que se poderia alcançar o estado final da humanidade. Agostinho ensinava a redenção, ou seja, a transformação e a purificação, do corpo na ressurreição. 

Alguns autores interpretam a doutrina de Agostinho como sendo dirigida contra a sexualidade humana e atribuem sua insistência em continência e devoção a Deus como originando na necessidade de Agostinho de rejeitar sua própria natureza altamente sensual, descrita por ele mesmo em suas “Confissões”. Mas, à luz de suas obras, esta tese tem sido refutada. A doutrina de Agostinho era que a sexualidade humana havia sido ferida juntamente com o resto da natureza humana e requeria a redenção de Cristo. Esta cura é um processo que se realiza nos atos conjugais. A virtude da continência é conquistada pela graça do sacramento do casamento cristão, que torna-se, assim, um “remedium concupiscentiae”. A redenção da sexualidade humana só será, porém, completamente realizada com a ressurreição do corpo. 

Segundo Agostinho, o pecado de Adão é herdado por todos os seres humanos. Já em seus escritos pré-pelagianos, ele ensinava que o pecado original é transmitido pela concupiscência, que ele considerava como sendo a paixão tanto do corpo quanto da alma, o que resultava que, para ele, a humanidade era uma “massa damnata” (“massa condenada”) que fragiliza – mas não destrói – a liberdade da vontade. Teólogos reformadores como Lutero e Calvino, por outro, lado, afirmavam que o pecado original destruía completamente a liberdade (veja depravação total). 

A formulação da doutrina do pecado original de Agostinho foi confirmada pelos papas Inocêncio I (r. 401–417) e Zósimo (r. 417–418) e pela Igreja em diversos concílios:

• Concílio de Cartago em 418

• Concílio de Éfeso em 431

• Concílio de Orange em 529

• Concílio de Trento em 1546

Anselmo de Cantuária estabeleceu em seu opúsculo “Cur Deus Homo” (Por que Deus [tornou-se] homem?) a definição que foi depois seguida por todos os demais acadêmicos, a de que o pecado original é “a falta de retidão comum a todos os homens”, interpretando assim a concupiscência como algo mais do que o desejo sexual segundo a definição de alguns discípulos de Agostinho, inclusive Lutero e Calvino, uma doutrina que foi condenada em 1567 pelo papa Pio V. 

Predestinação

Alguns exegetas argumentam que Agostinho ensinava que algumas pessoas estavam predestinadas por Deus a serem salvas por um decreto eterno e soberano que não se baseia na vontade e nem nos méritos do homem. Esta graça salvadora que Deus concede é irresistível e infalivelmente resulta na conversão. Deus também concede àqueles que salva o dom da perseverança para que nenhum dos escolhidos de Deus possa se afastar ou cair em tentação. Este aspecto de sua obra foi enfatizado pelo jansenismo e pelo calvinismo. Já a Igreja Católica considera que a doutrina de Agostinho é consistente com a do livre arbítrio e afirma que ele disse muitas vezes que qualquer um pode ser salvo se quiser. Apesar de Deus saber quem será salvo e quem não será, sem possibilidade de alguém que estava destinado a se perder ser salvo, este conhecimento representa o conhecimento perfeito de Deus sobre como os homens irão escolher livremente seus destinos. 

Teologia sacramental

Também como reação aos donatistas, Agostinho desenvolveu uma distinção entre “regularidade” e “validade” dos sacramentos. São considerados regulares os que são realizados pelo clero da Igreja Católica e os realizados pelos cismáticos são considerados irregulares. Já a validade dos sacramentos não depende da santidade dos padres que os realizam (“ex opere operato”); portanto, sacramentos irregulares são aceitos como válidos desde que tenham sido feitos em nome de Cristo e da forma prescrita pela Igreja. Neste tema, Agostinho se afasta do entendimento de Cipriano, que ensinava que os convertidos de movimentos cismáticos precisavam ser rebatizados. Porém, Agostinho reforçou que os sacramentos administrados fora da Igreja Católica, apesar de verdadeiros, não serviam para nada. Também afirmou que o batismo, apesar de não conferir graça alguma quando feito fora da Igreja, concede ao batizado essa graça tão logo ele seja recebido na Igreja Católica. 

Agostinho defendia o entendimento do cristianismo primitivo sobre a presença real de Cristo na Eucaristia afirmando que quando Jesus disse “Este é o meu corpo” era uma referência ao pão que ele tinha nas mãos e que os cristãos devem acreditar que o pão e o vinho são de fato o corpo e o sangue de Cristo, a despeito do que vêem seus olhos. 

Contra os pelagianos, Agostinho sublinhou fortemente a importância do batismo infantil. Sobre o tema da necessidade absoluta do batismo para a salvação, ele foi refinando suas crenças durante a vida, o que provocou uma certa confusão entre os teólogos posteriores sobre qual seria sua posição. Ele disse em de seus sermões que apenas os batizados seriam salvos, uma crença compartilhada por muitos dos primeiros cristãos. Porém, uma passagem de sua “Cidade de Deus” sobre o Apocalipse pode indicar que Agostinho de fato acreditava numa exceção para crianças pequenas nascidas de pais cristãos. 

Afirmações sobre os judeus

Contra certos movimentos cristãos, alguns dos quais rejeitavam as Escrituras hebraicas, Agostinho afirmou que Deus havia escolhido os judeus como um povo especial e considerava que a dispersão do povo judeu pelo Império Romano como a realização de uma profecia. Ele rejeitava atitudes homicidas contra eles citando parte da mesma profecia: «Não os mates, para que o meu povo não se esqueça; Dispersa-os pelo teu poder, e derruba-os, Jeová, escudo nosso.» (Salmos 59:11). Finalmente, Agostinho acreditava que os judeus se converteriam ao cristianismo no “fim dos tempos” e defendia que Deus havia permitido que eles sobrevivessem como um aviso aos cristãos e como testemunhas de que o Antigo Testamento não fora forjado pela Igreja. Sendo assim, argumentava, os governantes deveriam permitir que eles residissem em terras cristãs. 

Sexualidade

Para Agostinho, o mal da imoralidade sexual não decorria do ato sexual em si, mas das emoções que tipicamente o acompanham. Em “Sobre a Doutrina Cristã”, ele contrasta o amor, que é a realização por conta de Deus, e o desejo, que não tem a ver com Ele. Para Agostinho, o amor apropriado ocorre quando se nega o prazer egoísta e se subjuga o desejo corporal em homenagem a Deus. Ele escreveu que as virgens piedosas que foram estupradas durante o saque de Roma eram inocentes por que não tiveram a intenção de pecar.

A visão de Agostinho sobre os sentimentos de origem sexual como pecaminosos afetaram sua visão sobre as mulheres, porém. Ele considerava, por exemplo, que a ereção masculina era um pecado, apesar de ser involuntária. A solução encontrada por ele foi colocar o controle sobre ela nas mulheres e na sua habilidade de influenciar os homens. 

Agostinho acreditava que a serpente havia se aproximado de Eva por que ela seria menos racional e lhe faltaria o auto-controle dos homens, ao passo que a escolha de Adão de comer o fruto proibido seria um ato de gentileza para que Eva não ficasse sozinha. Além disso, Agostinho acreditava que o pecado havia entrado no mundo porque o homem (o “espírito”) não havia controlado a mulher (a “carne”). Porém, nem todas as crenças de Agostinho sobre as mulheres são negativas. Em seu “Tratados sobre o Evangelho de João”, ao comentar sobre a a samaritana de João 1:42, ele a utiliza como uma metáfora para a Igreja. De acordo com Raming, a autoridade do Decreto de Graciano, uma coleção de leis canônicas católicas romanas que proíbe as mulheres de liderar, ensinar ou dar testemunho, repousa unicamente sobre as crenças dos primeiros Padres da Igreja e Agostinho, o bispo de Hipona, é um dos mais importantes deles. As leis e tradições fundamentadas sobre as crenças de Agostinho sobre a sexualidade e as mulheres continuam a exercer considerável influência sobre as posições doutrinárias da Igreja Católica sobre o papel das mulheres. 

Filosofia de ensino

Agostinho é considerado uma figura muito influente na história da educação e uma de suas primeiras obras, De Magistro (“Do Professor”), contém muitos de seus pensamentos sobre o tema. Durante sua vida, suas ideias foram mudando conforme foi encontrando novas direções ou formas melhores de expressa-las. Finalmente, já nos seus anos finais, escreveu as “Retratações” (ou “Reconsiderações”), revisitando suas obras mais antigas e melhorando alguns textos. A partir dela, fica claro que Agostinho acreditava que a educação era uma busca incansável por compreensão, significado e verdade que sempre deixa aberto o espaço para a dúvida, o desenvolvimento e a mudança. 

Gary N. McCloskey identificou quatro “encontros de aprendizado” (“aulas”) na abordagem agostiniana à educação: as experiências transformadoras; a jornada em busca da compreensão, significado e verdade; o aprendizado com os outros em comunidade; e a criação dos hábitos de aprendizado. Segundo ele, Agostinho acreditava ainda que o diálogo, a dialética e a discussão eram as melhores formas de aprender e que este método deveria servir de modelo para as aulas. 

Agostinho também introduziu a tese das três diferentes categorias de estudantes às quais os professores deveriam adaptar seus estilos de ensino: a dos que foram bem educados por professores de renome; a dos que não foram educados; e a dos que tiveram uma educação pobre, mas acreditam terem sido bem educados. Com os primeiros, o professor deve tomar cuidado para não repetir o que já aprenderam e deve desafiar cada estudante com matérias que ainda não domina completamente. Com o estudante que não recebeu educação, o professor deve ser paciente e estar disposto a repetir os temas até que ele os compreenda e deve ser simpático também. Porém, o mais difícil é aquele que recebeu uma educação inferior e acredita ser alguém que ainda não é. Para estes, Agostinho reforçou a importância de mostrar a diferença entre “ter as palavras e ter a compreensão” e de ajudá-los a permanecerem humildes em seus processos de aprendizado. Agostinho introduziu a ideia de professores respondendo positivamente às questões que possam receber de seus estudantes, mesmo quando forem interrompidos. Agostinho também criou o estilo “contido” de ensino, que assegurava a compreensão completa de um conceito pelos estudantes através de táticas simples: não bombardeá-los com matéria em excesso; foco em um tópico por vez; ajudar na compreensão do tema ao invés de avançar a matéria rapidamente; antecipação de questionamentos; e, finalmente, ajudar na resolução de dificuldades e na busca pela solução dos problemas. 

Outro exemplo de uma grande contribuição de Agostinho para a educação foi seu estudo sobre os estilos de ensino. Segundo ele, existem dois estilos básicos: o “estilo misto”, que utiliza linguagem complexa, por vezes “exibida”, para ajudar os estudantes a enxergarem a arte e a beleza que está por trás do tema estudado, e o “estilo grandioso”, que não é tão elegante quanto o misto, mas é apaixonado e sincero, e tem com objetivo inflamar uma paixão similar a do professor no coração dos estudantes. 

Obras

Agostinho foi um dos mais prolíficos autores latinos em termos de obras sobreviventes e a lista de seus trabalhos tem mais de cem títulos diferentes. Entre eles estão obras apologéticas contra as heresias dos arianos, donatistas, maniqueístas e pelagianos; textos sobre a doutrina cristã, principalmente “De Doctrina Christiana” (“Sobre a Doutrina Cristã”); obras exegéticas como comentários sobre o Gênesis, os Salmos e a carta de Paulo aos Romanos; diversos sermões e cartas; e uma “Retractationes”, uma revisão de suas primeiras obras escrita no final de sua vida. Além destas, Agostinho é também bastante conhecido por suas “Confissões”, que é um relato pessoal de seus primeiros anos, e pela “Cidade de Deus” (De Civitate Dei; em 22 livros), que ele escreveu para restaurar a confiança aos seus companheiros cristãos abalados pelo saque de Roma pelos visigodos em 410. Sua “Sobre a Trindade”, na qual ele desenvolve a tese conhecida como “analogia psicológica” da Trindade, é uma de suas obras primas e possivelmente uma das maiores obras teológicas de todos os tempos. Finalmente, Agostinho escreveu ainda “Sobre a Livre Escolha da Vontade” (“De libero arbitrio”), que trata do motivo pelo qual Deus dá aos homens o livre arbítrio que depois pode ser usado para realizar o mal. 

Influência

Tanto em sua argumentação filosófica quanto na teológica, Agostinho foi fortemente influenciado pelo estoicismo, platonismo e neoplatonismo, particularmente pela obra de Plotino, o autor das “Enéadas”, provavelmente por intermédio de Porfírio e Vitorino (como defendeu Pierre Hadot). Embora ele tenha depois abandonado o neoplatonismo, algumas ideias ainda transparecem em suas primeiras obras. Sua obra primal e influente sobre o livre arbítrio, um tema central da ética, tornar-se-ia o foco de filósofos posteriores como Schopenhauer, Kierkegaard e Nietzsche. Agostinho foi influenciado também por Virgílio (conhecido por suas obras sobre a linguagem), Cícero (conhecido por suas obras sobre a argumentação) e Aristóteles (principalmente a “Retórica” e a “Poética”). 

Tomás de Aquino foi fortemente influenciado por Agostinho. No tema do pecado original, Aquino propôs uma visão mais otimista do homem que a de Agostinho ao preservar os poderes da razão, vontade e das paixões do homem caído mesmo depois da queda. A doutrina de Agostinho sobre a graça eficaz encontrou uma eloquente expressão na obra de Bernardo de Claraval. 

O filósofo Bertrand Russell se impressionou com a meditação sobre a natureza do tempo de Agostinho nas “Confissões” e comparou-a favoravelmente à de Kant, que afirmava que o tempo é subjetivo. Teólogos católicos geralmente subscrevem a crença de Agostinho de que Deus existe “fora do tempo” num “eterno presente”; que o tempo só existe dentro do universo criado por que apenas no espaço é possível discernir o tempo, através do movimento e das mudanças. Estas meditações estão intimamente ligadas às suas considerações sobre a habilidade humana da memória. Frances Yates, em seu estudo “A Arte da Memória”, de 1966, defende que uma curta passagem de “Confissões” (10.8.12), na qual Agostinho escreve sobre a subida de um lance de escadas e a entrada nos vastos campos da memória claramente indica que os antigos romanos estavam cientes de como utilizar metáforas espaciais e arquiteturais explícitas como uma técnica mnemônica para organizar grandes quantidades de informação. 

O método filosófico de Agostinho, demonstrado especialmente em suas “Confissões”, exerceu uma contínua influência sobre a filosofia europeia continental por todo o século XX. Sua abordagem descritiva sobre a intencionalidade, memória e linguagem conforme estes fenômenos são experimentados no tempo e na consciência anteciparam e inspiraram ideias na moderna fenomenologia e hermenêutica. Edmund Husserl escreveu: “A análise da consciência do tempo é uma antiga crux [desafio] da psicologia descritiva e da teoria do conhecimento. O primeiro pensador a ser profundamente sensível às imensas dificuldades neste campo foi Agostinho, que trabalhou quase a ponto de se desesperar sobre este problema”. Martin Heidegger faz referência à filosofia descritiva de Agostinho em diversos pontos de sua obra mais influente, “Ser e Tempo”. Hannah Arendt começou sua carreira filosófica com uma dissertação sobre o conceito de amor de Agostinho, “Der Liebesbegriff bei Augustin” (1929): A jovem Arendt tentou mostrar que a base filosófica para a “vita socialis” em Agostinho pode ser entendida como sendo o amor entre vizinhos com base em sua compreensão da origem comum da humanidade”. Jean Bethke Elshtain em “Augustine and the Limits of Politics” (“Agostinho e os Limites da Política”) encontrou relações entre Agostinho e Arendt em seus respectivos conceitos sobre o mal: “Agostinho não via o mal como glamorosamente demônico, mas, ao invés disso, como uma ausência do bem, algo que paradoxalmente é, na realidade, nada. Arendt… vislumbrou o mal extremo que produziu o Holocausto como meramente banal [em “Eichmann em Jerusalém”]”. Ludwig Wittgenstein citou Agostinho extensivamente em suas “Investigações Filosóficas” por sua abordagem a linguagem, tanto de forma positiva quanto como contraponto para suas próprias ideias, incluindo uma longa passagem de abertura das “Confissões”. Em seu livro autobiográfico, “Milestones”, o papa Bento XVI afirmou que Agostinho foi uma de suas mais importantes influências. 

De acordo com Leo Ruickbie, os argumentos de Agostinho contra a Mágica, que a diferenciavam dos milagres, foram cruciais para a luta do cristianismo primitivo contra o paganismo e transformaram-se na tese central na denúncia posterior contra bruxas e a bruxaria. De acordo com o professor Deepak Lal, a visão de Agostinho sobre a “cidade celeste” influenciou projetos e tradições seculares do iluminismo, marxismo, freudianismo e o eco-fundamentalismo.

Veja mais:

Agostinho foi interpretado por Dary Berkani no filme para televisão de 1972 “Augustine of Hippo”. Ele foi interpretado também por Franco Nero na mini-série de 2010 “Augustine: The Decline of the Roman Empire” e no filme de 2012 “Restless Heart: The Confessions of Saint Augustine” The modern day name links to the Agostinelli Family. 

Bob Dylan gravou uma música chamada “I Dreamed I Saw St. Augustine” em seu álbum “John Wesley Harding”. O artista pop Sting homenageou de certa forma as lutas de Agostinho contra o desejo na música “Saint Augustine in Hell” (“Santo Agostinho no Inferno”) que aparece no álbum de 1993 do cantor, “Ten Summoner’s Tales”.

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Adolf Hitler https://canalfezhistoria.com/adolf-hitler/ https://canalfezhistoria.com/adolf-hitler/#respond Fri, 28 Feb 2025 09:12:19 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5481 Adolf Hitler; Braunau am Inn, 20 de abril de 1889 – Berlim, 30 de abril de 1945), por vezes em português Adolfo Hitler, foi um político alemão que serviu como líder do Partido Nazista (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei; NSDAP), Chanceler do Reich (de 1933 a 1945) e Führer (“líder”) da Alemanha Nazista de 1934 até 1945. Como ditador do Reich Alemão, ele foi o principal instigador da Segunda Guerra Mundial na Europa e figura central do Holocausto.

Hitler nasceu na Áustria, então parte do Império Austro-Húngaro, e foi criado na cidade de Linz. Mudou-se para a Alemanha em 1913 e serviu com distinção no exército alemão durante a Primeira Guerra Mundial. Juntou-se ao Partido Alemão dos Trabalhadores, precursor do Partido Nazista, em 1919, e tornou-se seu líder em 1921. Em 1923, organizou um golpe de estado em Munique para tentar tomar o poder. O fracassado golpe resultou na prisão de Hitler. Enquanto preso, ele ditou seu primeiro trabalho literário, a sua autobiografia e manifesto político, Mein Kampf (“Minha Luta”). Quando foi solto da cadeia, em 1924, Hitler ganhou apoio popular pela Alemanha com sua forte oposição ao Tratado de Versalhes e promoveu suas ideias de pangermanismo, antissemitismo e anticomunismo, com seu carisma e forte propaganda. Ele frequentemente criticava o sistema capitalista e comunista como sendo parte de uma conspiração judia. Em 1933, o Partido Nazista tornou-se o maior partido eleito no Reichstag, com seu líder, Adolf Hitler, sendo apontado Chanceler da Alemanha no dia 30 de janeiro do mesmo ano. Após novas eleições, ganhas por sua coalizão, o Parlamento aprovou a Lei habilitante de 1933, que começou o processo de transformar a República de Weimar na Alemanha Nazista, uma ditadura de partido único totalitária e autocrática de ideologia nacional socialista. Hitler pregava a eliminação dos judeus da Alemanha e o estabelecimento de uma Nova Ordem para combater o que ele via como “injustiças pós-Primeira Grande Guerra”, numa Europa dominada pelos britânicos e franceses. 

Em seus primeiros seis anos no poder, a economia alemã recuperou-se da Grande Depressão, as restrições impostas ao país após a Primeira Guerra Mundial foram ignoradas e territórios na fronteira, lar de milhões de Volksdeutsche (alemães étnicos), foram anexados — ações que deram a ele grande apoio popular. Hitler queria estabelecer o Lebensraum (“espaço vital”) para o povo alemão. Sua política externa agressiva é considerada um dos motivos que levaram a Europa e o mundo a segunda grande guerra. Ele iniciou um grande programa de reindustrialização e rearmamento da Alemanha em meados da década de 1930 e então, a 1 de setembro de 1939, ordenou a invasão da Polônia, resultando numa declaração de guerra por parte do Reino Unido e da França alguns dias depois. Em junho de 1941, Hitler ordenou a invasão da União Soviética. Em meados de 1942, a Wehrmacht (as forças armadas nazistas) e as tropas do Eixo já ocupavam boa parte da Europa continental, do Norte da África e quase um-quarto do território soviético. Contudo, após falharem em conquistar Moscou e serem derrotados em Stalingrado, as forças nazistas começaram a retroceder. A entrada dos Estados Unidos na guerra ao lado dos Aliados forçou a Alemanha a ficar na defensiva, acumulando uma série de derrotas a partir de 1943. Nos últimos dias do conflito, durante a Batalha de Berlim em 1945, Hitler se casou com sua amante de longa data, Eva Braun. No dia 30 de abril de 1945, os dois cometeram suicídio para evitar serem capturados pelo exército vermelho. Seus corpos foram queimados e enterrados. Uma semana mais tarde a Alemanha se rendeu formalmente. 

Sob a liderança de Adolf Hitler, com uma ideologia racialmente motivada, o regime nazista perpetrou um dos maiores genocídios da história da humanidade, matando pelo menos 6 milhões de judeus e milhares de outras pessoas que Hitler e seus seguidores consideravam como Untermenschen (“sub-humanos”) e socialmente “indesejáveis”. Os nazistas também foram responsáveis pela morte de mais de 19,3 milhões de civis e prisioneiros de guerra. Além disso, no total, 29 milhões de soldados e civis morreram como resultado do conflito na Europa durante a Segunda Guerra Mundial. O número de fatalidades neste conflito foi sem precedentes e ainda é uma das guerras mais mortais da história. 

Primeiros anos 

Seu pai, Alois Hitler, Sr. (1837–1903) era filho ilegítimo de Maria Anna Schicklgruber. Sua certidão de nascimento não trazia o nome do seu pai, então Alois inicialmente assumiu o sobrenome da mãe, Schicklgruber. Em 1842, Johann Georg Hiedler se casou com Maria Anna. Alois foi criado na família do irmão de Georg, Johann Nepomuk Hiedler. Em 1876, Alois foi legitimado e seu registro batismal foi mudado por um padre para registrar Johann Georg Hiedler como pai de Alois (registrado como “Georg Hitler”). Alois assumiu então o sobrenome “Hitler”, também escrito e soletrado como Hiedler, Hüttler ou Huettler. O sobrenome Hitler é provavelmente baseado em “aquele que vive em uma cabana” (alemão: Hütte para “cabana”). 

O oficial nazista Hans Frank sugeriu que a mãe de Alois era empregada doméstica em uma casa de uma família judia em Graz, e que o filho de 19 anos desta família, Leopold Frankenberger, seria o pai de Alois. Mas nenhum Frankenberger foi registrado em Graz neste período e nenhum documento comprova a existência de Leopold Frankenberger, então a maioria dos historiadores consideram que a ideia de que o avô de Hitler era judeu é falsa. 

Infância e educação 

Adolf Hitler nasceu em 20 de abril de 1889 em Braunau am Inn, uma cidade da Áustria-Hungria (hoje em dia localizada na Áustria), próximo a fronteira do Império Alemão. Ele era um dos seis filhos nascidos de Alois Hitler e Klara Pölzl (1860–1907). Três dos seus irmãos — Gustav, Ida e Otto — morreram ainda na infância. Quando Hitler tinha apenas três anos, sua família se mudou para Passau, na Alemanha. Lá ele adquiriu um dialeto bávaro, que trouxe uma marca reconhecível a sua voz. A família retornou para a Áustria e se assentou em Leonding em 1894 e em junho de 1895 Alois se aposentou em Hafeld, próximo de Lambach, onde ele passou a criar abelhas. Hitler estudou numa Volksschule (escola pública) próximo a Fischlham. 

A mudança para Hafeld coincidiu com um aumento nos conflitos pai-filho causados pela recusa de Hitler de se conformar à estrita disciplina de sua escola. A ideia da fazenda de abelhas de Alois Hitler em Hafeld terminou em fracasso e em 1897 a família se mudou para Lambach. Aos oito anos de idade Hitler começou a ter aulas de canto e chegou a se apresentar no coral de sua igreja. Neste período até considerou virar padre. Em 1898 retornou novamente para Leonding. A morte do seu irmão mais novo, Edmund, devido ao sarampo, em 1900, afetou muito Hitler. Ele mudou de uma pessoa confiável, extrovertida e um aluno consciencioso para um rapaz taciturno e desapegado que batia de frente com seus pais e professores. Alois havia feito sucesso na carreira como funcionário público da alfândega e queria que seu filho seguisse seus passos. Hitler descreveu mais tarde um dia que seu pai o levou até o escritório em que trabalhava, dizendo que este evento que deu origem a um antagonismo irreconciliável entre pai e filho, já que ambos tinham temperamento forte. Ignorando a vontade do filho de frequentar uma escola clássica e se tornar um artista, Alois enviou Hitler para um Realschule (uma escola secundária) em Linz em setembro de 1900. Hitler rebelou-se contra esta decisão e no livro Mein Kampf afirmou que propositalmente foi mal na escola, esperando que uma vez que seu pai visse o pouco progresso que fazia na escola técnica ele então o deixaria perseguir seu sonho numa escola artística. 

Como muitos austríacos alemães, Hitler começou a desenvolver ideias nacionalistas pan-germânicas desde muito jovem. Ele expressava apoio a Alemanha, desprezando a decadente Monarquia de Habsburgo e seu império multiétnico.[31][32] Hitler e seus amigos cumprimentavam-se com “Heil” e cantavam o “Deutschlandlied” ao invés do hino imperial austríaco. 

Após a repentina morte de Alois em 3 de janeiro de 1903, o desempenho de Hitler na escola deteriorou-se e a mãe dele permitiu que abandonasse os estudos naquele momento. Ele então se matriculou em uma Realschule em Steyr em setembro de 1904, onde seu comportamento e desempenho escolar melhoraram. Em 1905, após passar no exame final, Hitler deixou a escola sem ambições de aprofundar os estudos ou fazer planos de carreira. 

Juventude em Viena e Munique 

Desde 1905, Hitler passou a viver uma vida boêmia em Viena, financiada pela pensão de órfão que recebia e do apoio proveniente de sua mãe. Ele teve vários trabalhos, incluindo o de pintor, vendendo aquarelas de locais turísticos de Viena. A Academia de Belas-Artes o rejeitou em 1907 e em 1908, afirmando que ele era “inapto para pintura”. O diretor da academia sugeriu que Hitler estudasse arquitetura, que também era do seu interesse, mas ele não tinha as qualificações acadêmicas já que ele não tinha terminado a escola secundária. Em 21 de dezembro de 1907, sua mãe morreu de câncer de mama aos 47 anos. Hitler acabou ficando sem dinheiro e foi forçado a viver em abrigos para sem-tetos. 

No tempo que vivia lá, Viena era um viveiro de preconceito religioso e racismo. O medo de serem sobrepujados por imigrantes vindos do leste Europeu era grande e o prefeito populista Karl Lueger explorava a retórica anti-semita para fins políticos. O nacionalismo alemão estava em alta no distrito de Mariahilf, onde Hitler vivia. O nacionalista Georg Ritter von Schönerer, que advogava o pangermanismo, anti-semitismo, anti-eslavismo e anti-catolicismo, era uma grande influência para Hitler. Ele lia jornais como o Deutsches Volksblatt que espalhava preconceito e cultivava o medo dos cristãos de serem inundados pelo influxo de judeus do leste. Hitler também lia jornais que pregavam o darwinismo social e exploravam algumas das ideias dos filósofos Nietzsche, Le Bon e Schopenhauer. Era hostil ao que ele via como “Germanofobia Católica” e demonstrou admiração por Martinho Lutero. 

A origem do antissemitismo de Hitler e a primeira vez que ele a expressou é motivo de debates. Ele afirmou no Mein Kampf que ele se tornou um anti-semita em Viena. Seu amigo próximo, August Kubizek, afirmou que Hitler era um “convicto anti-semita” antes dele deixar Linz. Várias fontes dão evidência que Hitler tinha amigos judeus quando jovem no começo da sua estadia em Viena. O historiador Richard J. Evans diz que “historiadores agora geralmente concordam que seu notório e assassino anti-semitismo surgiu com força após a derrota alemã [na Primeira Grande Guerra], como uma paranoia da Dolchstoßlegende (lenda da punhalada pelas costas)”. 

Hitler recebeu a parte final da pensão do seu pai em maio de 1913 e se mudou para Munique, no sul da Alemanha. Historiadores acreditam que ele deixou Viena para fugir do alistamento do exército austro-húngaro. Hitler mais tarde afirmou que não queria servir no exército austríaco devido a alta miscigenação das forças armadas. Após ser julgado inapto para o serviço — ele falhou em um exame físico em Salzburgo em 5 de fevereiro de 1914 — retornou para Munique. 

Primeira Guerra Mundial 

Quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial, Hitler vivia em Munique e, embora fosse um cidadão austríaco, ele se voluntariou no Exército da Baviera. Um relatório feito pelas autoridades bávaras em 1924 diz que Hitler serviu no exército local por erro. Ele se juntou ao 16º Regimento Reserva de Infantaria Bávara (1ª Companhia do Regimento), servindo como mensageiro na Frente Ocidental na França e na Bélgica, uma função perigosa, que envolvia exposição a fogo inimigo, em vez da proteção proporcionada por uma trincheira. Serviu também parte do tempo no quartel-general do regimento em Fournes-en-Weppes. Ele esteve presente nas batalhas de Ypres, do Somme (onde foi ferido), de Arras e de Passchendaele. Ele foi condecorado por bravura, recebendo a Cruz de Ferro, de segunda classe, ao fim de 1914. Sob recomendação do oficial judeu Hugo Gutmann, Hitler recebeu outra medalha, a Cruz de Ferro de primeira classe, em 4 de agosto de 1918, uma condecoração raramente dada a um soldado de sua patente (Gefreiter). Ele também recebeu o Distintivo de Ferido em 18 de maio de 1918. A folha de serviço de Hitler, no geral, foi exemplar, mas nunca foi promovido além de Cabo, que era a patente mais alta oferecida a um estrangeiro no exército alemão à época. 

Durante seu serviço no Quartel-general, Hitler continuou seu trabalho como artista, fazendo desenhos e ilustrações para o jornal do exército. Durante a batalha do Somme, em outubro de 1916, ele foi ferido na coxa quando um disparo de artilharia caiu perto de sua posição. Hitler passou dois meses em um hospital em Beelitz, retornando ao seu regimento em 5 de março de 1917. Em 15 de outubro de 1918, ele foi cegado temporariamente por gás mostarda durante um ataque e foi hospitalizado em Pasewalk. Enquanto estava lá, Hitler foi informado da derrota da Alemanha. Segundo ele próprio, ao receber esta notícia, sofreu novamente por cegueira devido a tristeza. 

Hitler descreveu seu tempo na guerra como “a maior das experiências”. Ele foi muito elogiado por seus oficiais superiores devido a bravura que demonstrava. Sua experiência em combate reforçou seu patriotismo, tornando ele um nacionalista apaixonado. Hitler ficou chocado com a capitulação da Alemanha em novembro de 1918. Sua amargura a respeito do colapso do esforço de guerra moldou sua ideologia. Como muitos outros nacionalistas alemães e veteranos de guerra, ele acreditava no Dolchstoßlegende (a “teoria da punhalada nas costas”), que consistia na ideia de que o exército alemão, “invicto no campo de batalha”, fora traído e apunhalado pelas costas pela liderança política civil e pelos marxistas, que mais tarde foram chamados pelos nazistas de “criminosos de novembro”. 

O Tratado de Versalhes de 1919 julgou que a Alemanha era a única responsável pela guerra e portanto deveria ser severamente punida. O país perdeu várias partes do seu território e a região estratégica da Renânia foi desmilitarizada. O tratado também impôs pesadas sanções econômicas e exigiu que o país pagasse grandes reparações para as nações vencedoras. Muitos alemães viram o tratado como uma humilhação injusta. O rancor com o Tratado de Versalhes, junto com a grave crise econômica, social e política do pós-guerra na Alemanha seria explorado por Hitler para fins políticos. 

Início da carreira política 

Após a primeira guerra mundial, Hitler retornou para Munique. Sem uma educação formal ou prospectos de carreira, ele decidiu permanecer no exército. Em julho de 1919, ele foi apontado como Verbindungsmann (agente de inteligência) da Aufklärungskommando (Comando de Reconhecimento) do Reichswehr (o novo exército alemão), com o propósito de influenciar outros soldados e se infiltrar no Partido Alemão dos Trabalhadores (DAP). Enquanto monitorava as atividades do DAP, Hitler foi atraído pelo fundador do partido, Anton Drexler, e sua retórica anti-semita, nacionalista, anti-capitalista e anti-marxista. Drexler favorecia um governo forte e ativo, uma versão não judaica do socialismo (como ele descrevia), e solidariedade entre os membros da sociedade. Impressionado com as capacidades oratórias de Hitler, Drexler o convidou para se juntar ao DAP. Hitler aceitou a 12 de setembro de 1919, se tornando o membro nº 555 (o partido havia começado a contagem de membros no número 500 para dar a impressão de serem maiores do que realmente eram). 

No DAP, Hitler conheceu Dietrich Eckart, um dos fundadores do partido e membro da ocultista Sociedade Thule.[81] Eckart se tornou um dos mentores de Hitler, trocando ideias com ele e o apresentando a alta sociedade de Munique. Para aumentar seu apelo popular, o DAP mudou seu nome para Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães; NSDAP, ou Partido Nazista). Hitler desenhou a bandeira do partido colocando uma suástica preta dentro de um círculo branco com um fundo vermelho. 

Hitler foi formalmente dispensado pelo exército em 31 de março de 1920 e começou a trabalhar em tempo integral no Partido Nazista (NSDAP). O quartel-general do partido era em Munique, um viveiro do sentimento nacionalista alemão anti-governo determinado a esmagar o marxismo e minar a autoridade da República de Weimar. Em fevereiro de 1921 — já acostumado a falar para grandes públicos — ele se dirigiu a uma platéia de mais de 6 000 numa noite. Para divulgar a reunião, dois caminhões cheios de partidários do seu movimento dirigiram por Munique balançando suásticas e distribuindo panfletos nazistas. Hitler ganhou notoriedade por seus grandes e polêmicos discursos contra o Tratado de Versalhes, rivais políticos e especialmente contra os marxistas-comunistas e os judeus. 

Em junho de 1921, enquanto Hitler e Eckart estavam em uma viagem para angariar fundos em Berlim, um motim irrompeu na sede do NSDAP em Munique. Membros do comitê executivo queriam fundir a legenda com os rivais do Partido Socialista Alemão (DSP), que também era de extrema-direita. Hitler retornou para Munique em 11 de julho e, com raiva, renunciou sua filiação do partido. Os membros do comitê sabiam que a resignação da sua principal figura pública e orador significaria o fim do partido. Hitler anunciou que ele retornaria a legenda na condição de que ele substituiria Drexler na liderança do partido e o quartel-general deles permaneceria em Munique. O comitê aceitou e ele formalmente retornou ao NSDAP em 26 de julho como o membro nº 3 680. Hitler continuou a enfrentar oposição dentro do próprio NSDAP: entre seus principais oponentes estava Hermann Esser, que fora expulso do partido. Foram impressos mais de 3 000 panfletos criticando Hitler, o acusando de ser um traidor. Nos dias seguintes, Hitler discursou em vários locais (sempre lotados) e se defendeu, atacando Esser, sempre recebendo estrondosos aplausos. Sua estratégia foi bem sucedida e em uma reunião com a cúpula do partido, em 29 de julho, foi concedido a ele poderes absolutos dentro do Partido Nazista, substituindo Drexler, numa votação de 533 a 1. Os discursos vitriólicos de Hitler na cervejaria de Munique começaram a atrair grandes multidões com muita frequência. Ele utilizava táticas populistas, incluindo o uso de bode expiatórios, no qual ele jogava toda a culpa pelos males que o país atravessava. Hitler usava magnetismos pessoais e seu entendimento da psicologia das multidões para se engajar com o público durante os discursos. Ele sabia como falar e o que falar e em qual momento. Historiadores notam o efeito hipnótico da oratória de Hitler, manipulando as massas. Alfons Heck, um ex membro da Juventude Hitlerista, mais tarde afirmou: “ Nós nos irrompemos em um frenesi de orgulho nacionalista que beirava a histeria. Por vários minutos, nós gritávamos a plenos pulmões, com lágrimas caindo dos nossos rotos: Sieg Heil, Sieg Heil, Sieg Heil! Daquele momento em diante, eu pertencia, de corpo e alma, a Adolf Hitler. ” Contudo, alguns visitantes que encontraram Hitler em privado notavam que sua aparência e comportamento não eram nada impressionantes. 

Entre seguidores que o apoiaram desde o início inclui Rudolf Hess, o ex piloto Hermann Göring e o capitão do exército Ernst Röhm. Hitler recrutou Röhm para organizar e comandar o grupo paramilitar conhecido como Sturmabteilung (SA), que servia como braço armado do partido, protegendo as reuniões e os líderes nazistas e também atacavam oponentes políticos. Uma influência importante sobre o pensar de Hitler aconteceu durante o período da Aufbau Vereinigung, um grupo conspiratório formado por “russos brancos” (como eram chamados os monarquistas contrarrevolucionários do antigo Império Russo) exilados e nacionais socialistas no início. Este grupo, financiado por industrialistas ricos, introduziu a Hitler a ideia de uma conspiração judaica internacional, ligada ao movimento bolchevique. 

Golpe da Cervejaria 

Em 1923, Hitler se aproximou do general Erich Ludendorff, que também era veterano da primeira guerra mundial, para tentar tomar o poder na Baviera através de um golpe (conhecido como “Putsch da Cervejaria”). O Partido Nazista se inspirou no fascismo italiano como modelo para sua aparência, estilo e até políticas. Hitler queria emular a “Marcha sobre Roma” de Benito Mussolini, feita em 1922, dando seu próprio golpe em Munique, desafiando o governo central em Berlim. Hitler e Ludendorff buscaram apoio do Staatskommissar (comissário do estado) Gustav Ritter von Kahr, o de facto governador da Baviera. Contudo, Kahr, junto com o chefe de polícia Hans Ritter von Seisser e o general do exército Otto von Lossow, queriam tentar seu próprio golpe e instituir no país uma ditadura militar sob sua liderança, sem a participação de Hitler. 

Em 8 de novembro de 1923, Hitler e vários membros da SA invadiram uma reunião pública, organizada por Kahr, onde 3 000 pessoas estavam reunidas na Bürgerbräukeller, uma grande cervejaria de Munique. Interrompendo o discurso de Kahr, ele anuciou que a revolução nacional havia começado e declarou a formação de um novo governo com Ludendorff. Numa sala nos fundos, Hitler, com uma pistola em mãos, exigiu apoio de Kahr, Seisser e Lossow. Eles, temporariamente, concordaram. As tropas de Hitler inicialmente conseguiram ocupar o quartel-general do Reichswehr e da polícia, mas Kahr e seus colegas retiraram seu apoio e fugiram. As forças de segurança da Baviera decidiram não apoiar Hitler. No dia seguinte, os nazistas marcharam da cervejaria até o prédio do ministério da guerra bávaro para derrubar o governo local, mas a polícia estava preparada e abriu fogo contra as multidões, dispersando eles. Cerca de dezesseis membros do NSDAP e quatro policiais morreram no fracassado golpe. 

Hitler fugiu para casa de Ernst Hanfstaengl, um membro do partido, e lá chegou a contemplar suicídio. Ele estava depressivo mas foi acalmado e acabou sendo preso pelas autoridades locais em 11 de novembro de 1923 sob acusação de alta traição. Foi levado a corte popular de Munique e seu julgamento começou em fevereiro de 1924. Alfred Rosenberg assumiu interinamente a liderança do partido. Hitler usou o julgamento em seu benefício, usando a publicidade que a tentativa de golpe fracassada lhe trouxe. Ele discursou em defesa própria e chamou a atenção de muita gente para sua causa. Ainda assim, em 1 de abril, Hitler foi sentenciado a cinco anos de prisão em Landsberg. Lá, ele foi muito bem tratado pelos guardas e foi permitido que recebesse constantes visitas de camaradas do NSDAP, além de cartas e encomendas de apoiadores. Após ser perdoado pela Suprema Corte da Baviera, foi liberado da cadeia em 20 de dezembro de 1924, sob objeções do procurador-geral do estado. Incluindo o tempo da prisão preventiva, Hitler ficou apenas um pouco mais de um ano na prisão. 

Enquanto estava preso em Landsberg, Hitler ditou boa parte do seu livro Mein Kampf (“Minha Luta”; originalmente chamado de Quatro anos e meio de Lutas contra Mentiras, Estupidez e Covardice) para o seu ajudante, Rudolf Hess. O livro, dedicado ao membro da Sociedade Thule e amigo Dietrich Eckart, era uma autobiografia e exposição de suas ideologias. O livro detalhou os planos de Hitler para transformar a sociedade alemã sob apenas uma raça. Algumas passagens do livro deixavam explicita a ideia de um genocídio. Publicado em dois volumes, em 1925 e 1926, vendeu pelo menos 228 000 cópias entre 1925 e 1932. Um milhão de cópias foram vendidas então apenas em 1933, o primeiro ano de Hitler no poder. Pouco antes de Hitler poder entrar com um pedido de condicional, o governo da Baviera tentou extraditá-lo para a Áustria. Contudo, o Chanceler da Áustria, Rudolf Ramek, recusou o pedido. Hitler renunciou sua cidadania austríaca em 7 de abril de 1925. 

Reconstruindo o Partido Nazista

No período que Hitler foi solto da cadeia, a situação política na Alemanha havia se tornado menos combativa e a situação da economia havia melhorado, limitando as oportunidades políticas de Hitler para agitação política. Como resultado do golpe fracassado, o Partido Nazista e suas organizações filiadas foram banidas da Baviera . Após um encontro com Heinrich Held, então primeiro-ministro bávaro, em 4 de janeiro de 1925, Hitler concordou em respeitar a autoridade do estado e prometeu que buscaria poder político agora apenas por meios democráticos. Um mês depois da reunião, o Partido Nazista deixou de ser banido e voltou a ativa. Hitler, contudo, foi barrado de fazer discursos públicos mas este banimento foi suspenso também em 1927. Para avançar suas ambições políticas, apesar destes contratempos, Hitler nomeou Gregor Strasser, Otto Strasser e Joseph Goebbels para organizar e fazer crescer o Partido Nazista no norte da Alemanha. Um grande organizador, Gregor Strasser dirigiu um curso político mais independente, enfatizando os elementos socialistas do programa do partido. 

Em 29 de outubro de 1929, na Terça-Feira Negra, a bolsa de valores dos Estados Unidos quebrou. O impacto atingiu o mundo todo, inclusive a Alemanha. Várias empresas fecharam as portas, resultando em milhares de desempregados. Bancos faliram, causando um colapso parcial do sistema financeiro da nação. Hitler e os nazistas tomaram vantagem da situação emergencial para angariar apoio ao partido. Eles prometeram ao povo repudiar o Tratado de Versalhes, fortalecer a economia e garantir empregos e oportunidades. 

Ascensão ao poder

Governo Brüning

A Grande Depressão providenciou a Hitler uma ótima oportunidade política. Os alemães estavam ambivalentes sobre a república parlamentarista, que enfrentava forte oposição de extremistas de esquerda e direita. Já os partidos moderados não conseguiam competir com os radicais. No referendo de 1929, o povo alemão votou, por grande maioria, repudiar o pagamento de reparações de guerra estipulados no Tratado de Versalhes. A ideologia nazista, neste período, ganhou muito apoio popular. As eleições de setembro de 1930 resultou na quebra da “grande coalizão”, substituindo a administração do país por um governo de minoria. O chanceler Heinrich Brüning, do Partido do Centro, governava a nação por meio de decretos emergenciais do presidente Paul von Hindenburg. Governar por decreto acabou pavimentando o caminho para uma forma de governo mais autoritarista. O Partido Nazista saiu da obscuridade e conquistou 18,3% dos votos (ou 6,409,600 de pessoas) e 107 assentos no parlamento nas eleições de 1930, tornando-se a segunda maior bancada no Reichstag. 

Hitler teve uma participação proeminente no julgamento de dois oficiais do Reichswehr, os tenentes Richard Scheringer e Hans Ludin, ao fim de 1930. Eles foram acusados de serem membros do Partido Nazista (filiação partidária era proibida aos militares). A acusação disse que os nazistas eram extremistas, e o advogado de defesa, Hans Frank, chamou Hitler para testemunhar. Em 25 de setembro de 1930, Hitler afirmou novamente que buscaria poder político apenas pela via democrática. Seu discurso neste julgamento chamou atenção do corpo de oficiais do exército e muitos lá passaram a apoia-lo. 

As medidas de austeridade do chanceler Brüning trouxe poucos resultados e eram tremendamente impopulares. Hitler explorou isso em suas mensagens políticas para o povo, falando especialmente as classes mais baixas que eram mais extensamente afetadas pela hiperinflação e a retração econômica. Assim, os nazistas conquistaram bastante apoio de fazendeiros, veteranos de guerra e trabalhadores da classe média. 

Apesar de Hitler ter renunciado a sua cidadania austríaca em 1925, demorou cerca de sete anos para ele se tornar cidadão alemão. Isso significava que, na prática, ele era um apátrida e não podia se candidatar a um cargo público e até podia ser deportado. Em 25 de fevereiro de 1932, o ministro do interior de Brunswick, Dietrich Klagges, que era membro do Partido Nazista, nomeou Hitler como administrador da delegação do estado para o Reichsrat em Berlim, fazendo de Hitler um cidadão de Brunswick, e assim um alemão. 

Em 1932, agora como pleno cidadão alemão, Hitler concorreu contra Paul von Hindenburg nas eleições presidenciais. A 27 de janeiro de 1932, ele fez um discurso no Clube Industrial de Düsseldorf e lá conquistou apoio dos principais empresários industrialistas alemães. Hindenburg tinha apoio de vários partidos nacionalistas, monarquistas, católicos e republicanos, e até mesmo dos Sociais Democratas. Hitler usou como slogan de campanha a frase “Hitler über Deutschland” (“Hitler sobre a Alemanha”), uma referência as suas ambições políticas e sua campanha, sendo que ele viajava muito de aeronave pelo país. Ele foi um dos primeiros políticos a usar viagens do avião para fins políticos e utilizava este método rápido de viagem de forma eficiente. Hitler terminou em segundo lugar nesta eleição, ganhando cerca de 36% dos votos (ou 13,418,517 de pessoas). Apesar dele ter perdido o pleito para Hindenburg, esta eleição estabeleceu Hitler como uma figura forte na política alemã. 

Indicação para Chanceler

A ausência de um governo eficiente fez com que dois políticos influentes, Franz von Papen e Alfred Hugenberg, juntos com vários industrialistas e empresários, escrevessem uma carta para Hindenburg. Os signatários pediram para o presidente apontar Adolf Hitler como líder do governo “independente dos partidos parlamentares”, dizendo que isso iria “encantar milhões de pessoas”. 

Hindenburg desprezava Hitler, mas foi ficando sem opções, com o governo no Parlamento a beira do colapso, sem base política para se sustentar. Relutantemente, o presidente decidiu concordar em indicar Hitler para o cargo de chanceler (chefe de governo) após duas turbulentas eleições parlamentares — em julho e novembro de 1932 — que não tinham conseguido formar um governo de maioria. Hitler liderou uma coalizão, que durou pouco tempo, formada pelo Partido Nazista e os apoiadores de Alfred Hugenberg do Partido Popular Nacional Alemão (DNVP). Em 30 de janeiro de 1933, um novo gabinete foi formado e oficializado no escritório do presidente Hindenburg. O Partido Nazista ganhou três postos no governo: Hitler passou a ser o chanceler, Wilhelm Frick o Ministro do Interior do país e Hermann Göring o Ministro do Interior da Prússia. Hitler queria estes postos ministeriais pois ele almejava controlar por completo a polícia alemã. 

Incêndio do Reichstag e eleições de março 

Como chanceler, Hitler trabalhou para impedir que os oponentes do Partido Nazista se unificassem e tentassem formar um governo de coalizão de maioria contra ele. A oposição, contudo, não conseguia se unificar, com os comunistas e socialistas não se entendendo com os partidos sociais democratas de esquerda. Com o impasse político se acentuando no Reichstag, Hitler pediu para o presidente Hindenburg dissolver o parlamento e convocar novas eleições para março. Em 27 de fevereiro de 1933, o prédio do Reichstag pegou fogo e ficou parcialmente destruído. Hermann Göring culpou os comunistas pelo atentado. De fato, um comunista holandês Marinus van der Lubbe foi capturado dentro do edifício. De acordo com o historiador britânico Sir Ian Kershaw, o consenso entre os acadêmicos era que van der Lubbe possivelmente foi mesmo o responsável pelo incêndio. Outros, contudo, incluindo William L. Shirer e Alan Bullock, e acreditam que os próprios nazistas foram os responsáveis, em uma operação de bandeira falsa. Por insistência de Hitler, Hindenburg aprovou o Decreto do Incêndio do Reichstag de 28 de fevereiro de 1933, que suspendeu vários direitos civis e permitiu que o governo fizesse prisões sem mandato judicial. O decreto era permitido devido ao Artigo 48 da Constituição de Weimar, que dava ao presidente poderes emergenciais para proteger a população e manter a ordem pública. As atividades do Partido Comunista Alemão (KPD) foram reprimidas e mais de 4 000 comunistas foram presos. 

Além da campanha política, o Partido Nazista engajou em violência paramilitar nas ruas e espalhou propaganda anticomunista antes das próximas eleições. No dia do pleito, a 6 de março de 1933, os nazistas conquistaram 43,9% dos votos (ou 17,277,180 de pessoas) e se tornaram o maior partido no Parlamento. Ainda assim, o partido de Hitler não tinha maioria absoluta para formar um governo de maioria, necessitando fazer outra coalizão com o DNVP.

Dia de Potsdam e Lei habilitante de 1933

Em 21 de março de 1933, o novo Reichstag foi constituído com uma cerimônia feita na Igreja Garrison em Potsdam. Este “Dia de Potsdam” deveria demonstrar a unidade entre o movimento nazista e a velha elite prussiana e militar. Hitler utilizava um fraque e humildemente e com toda a reverência cumprimentou o presidente Hindenburg. 

Para conquistar controle político total, apesar de não ter maioria absoluta no parlamento, o governo de Hitler levou para votação no recém eleito Reichstag o projeto de lei Ermächtigungsgesetz (Lei habilitante de 1933). A lei, oficialmente chamada Gesetz zur Behebung der Not von Volk und Reich (“Lei para Redimir a angústia do Povo e do Reich”), deu a Hitler e seu gabinete de governo o poder de passar leis sem o consentimento do Parlamento por um período de quatro anos. Estas leis (com certas exceções) não eram contempladas pela constituição. 

Já que iria afetar a constituição, a Lei Habilitante precisava da aprovação de dois-terços do parlamento para passar. Deixando nada ao acaso, os nazistas utilizaram provisões aprovadas no Decreto do Incêndio do Reichstag para prender 81 deputados comunistas[155] e impediram que muitos parlamentares de esquerda, como os Sociais Democratas, participassem da votação. 

Em 23 de março de 1933, o Reichstag se reuniu na Casa de Ópera Kroll sob circunstâncias turbulentas. Linhas de homens da SA serviam como guardas dentro do prédio, enquanto grandes grupos de opositores da proposta gritavam slogans de discórdia e ameaças durante a chegada dos parlamentares no prédio. A posição do Partido do Centro, a terceira maior legenda do Reichstag, era decisiva. Após Hitler verbalmente prometer a Ludwig Kaas, o líder deste partido, que Hindenburg reteria o poder de veto, Kaas anunciou que seus correligionários apoiariam a Lei Habilitante. No final, a lei passou por 441 votos a 84, com todos os partidos, exceto os Sociais Democratas, votando a favor (os comunistas foram impedidos de participar). A Lei Habilitante, junto com o Decreto do Incêndio do Reichstag, transformou, legalmente, o governo de Adolf Hitler em uma de facto ditadura. 

Expansão final dos poderes 

“ Sob o risco de parecer estar falando besteira eu te digo que o Nacional Socialismo durará mais de 1 000 anos! […] Não se esqueça como o povo riu de mim quinze anos atrás quando eu declarei que um dia governaria a Alemanha. Eles riem agora, de forma igualmente tola, quando eu digo que vou manter o poder! ” 

— Adolf Hitler em uma entrevista para um correspondente britânico em Berlim, em junho de 1934.. Tendo alcançado poder legislativo e executivo total, Hitler e seus aliados iniciaram o processo de reprimir a oposição. O Partido Social Democrata foi banido e seus bens apreendidos. Enquanto várias lideranças de sindicatos estavam em Berlim para as atividades do Dia de Maio, soldados das SA atacaram escritórios dos líderes de sindicatos por todo o país. Em 2 de maio de 1933 todos os sindicatos foram dissolvidos e seus presidentes foram presos. Muitos foram enviados para os recém abertos campos de concentração, onde os nazistas passaram a aprisionar os seus oponentes políticos. A Frente Alemã para o Trabalho, uma organização que visava representar todos os trabalhadores, administradores e donos de companhias, foi criada refletindo o conceito nazista de Volksgemeinschaft (“comunidade do povo”). Ao fim de junho, vários partidos, não só de esquerda, passaram a ser dissolvidos. Isto incluiu o antigo parceiro de coalizão dos Nazistas, o DNVP; com a ajuda dos paramilitares da SA, Hitler forçou o seu líder, Alfred Hugenberg, a renunciar em 29 de junho. Duas semanas depois, o Partido Nazista foi declarado o único partido legal na Alemanha. A ascensão da SA como uma força política e militar causava ansiedade entre as elites militares, industriais e políticas na Alemanha. Em resposta, Hitler decidiu expurgar a liderança da SA na chamada “Nacht der langen Messer” (a “Noite das facas longas”), que aconteceu de 30 de junho a 2 de julho de 1934. Hitler mirou no seu velho amigo Ernst Röhm e em outros líderes da SA que, junto com outros adversários políticos (como Gregor Strasser e Kurt von Schleicher), foram presos e executados. Enquanto várias nações e muitos alemães ficaram chocados com os assassinatos, a maioria da população da Alemanha acreditava que estas ações eram simplesmente Hitler restaurando a ordem no país. O presidente Hindenburg, então prestes a completar 87 anos de idade, ficou desorientado ao ser informado sobre o massacre. 

Em 2 de agosto de 1934, o presidente Paul von Hindenburg faleceu. No dia anterior, o gabinete de governo aprovou a “Lei sobre o Mais Alto Cargo do Reich”, que afirmava que, caso Hindenburg morresse, o cargo de presidente seria abolido e seus poderes seriam fundidos aos do chanceler da Alemanha. Hitler, então, tornou-se tanto chefe de estado quanto de governo, sendo formalmente chamado agora de Führer und Reichskanzler (“Líder e Chanceler”). Assim, ele derrubou o único remédio legal que poderia remove-lo do cargo. Sua ditadura estava agora firmemente estabelecida. 

Como chefe de estado, Hitler se tornou o comandante em chefe das forças armadas. O tradicional juramento de lealdade feito pelos militares passou a ser um voto de lealdade pessoal a Hitler. Em 19 de agosto, a fusão da presidência e da chancelaria foi aprovada por quase 90% da população mediante plebiscito. No começo de 1938, Hitler usou de chantagem para consolidar seu poder sobre os militares instigando o Caso Blomberg-Fritsch. Hitler forçou seu ministro da guerra, o marechal Werner von Blomberg, a renunciar usando um dossiê que dizia que a nova esposa de Blomberg já tinha sido uma prostituta. O comandante do exército, o coronel-general Werner von Fritsch foi removido do seu cargo também após a Schutzstaffel (SS) produzir alegações de que ele tinha tido uma relação homossexual no passado. Na verdade, ambos estes homens haviam caído em desgraça com Hitler quando eles se opuseram a ordem do Führer para a Wehrmacht se preparar para uma guerra até 1938. Hitler substituiu o ministério da guerra pelo Oberkommando der Wehrmacht (OKW, ou “Alto Comando das Forças Armadas”), sob a chefia do general Wilhelm Keitel. No mesmo dia, dezesseis generais foram demitidos dos seus cargos e outros quarenta e quatro foram transferidos; todos estes homens eram suspeitos de não serem tão pró-nazismo. Em fevereiro de 1938, mais doze generais foram afastados dos seus cargos. 

Hitler queria dar a sua ditadura toda a aparência de legalidade. Várias das leis que ele passou eram protegidas pelo Decreto do Incêndio do Reichstag e assim respeitando o Artigo 48 da Constituição de Weimar. O Parlamento renovou a Lei de Habilitante mais duas vezes, cada uma por um período de quatro anos. Enquanto eleições para o Reichstag continuaram (em 1933, 1936 e 1938), era apresentado aos eleitores uma lista com candidatos nazistas e pró-nazistas, que levaram em cada eleição pelo menos 90% dos votos válidos. A votação não era secreta; os nazistas ameaçavam com duras represálias quem votasse contra ou aqueles que pretendessem não votar. 

Ditador da Alemanha

Economia e cultura

Em agosto de 1934, Hitler nomeou o presidente do Reichsbank, Hjalmar Schacht, como o novo Ministro da Economia e no ano seguinte, iniciou os processos de reforma econômica para preparar o país para a guerra. A reconstrução e rearmamento do país foram financiados pelas leis Mefo-Wechsel, imprimindo dinheiro e tomando bens de pessoas presas como inimigos do Estado, incluindo milhares de judeus. O número de desempregados caiu de seis milhões em 1932 para menos de um milhão em 1936. Hitler supervisionou um extenso programa de reorganização e melhorias da infraestrutura da Alemanha, levando a construção de represas, autobahns, ferrovias e outras obras públicas. De início os salários caíram no final da década de 1930, enquanto o custo de vida aumentou. Porém a média salarial voltou a subir em 1939, com o alemão comum trabalhando com uma jornada de 47 a 50 horas semanais. 

O governo de Hitler patrocinou várias obras de arquitetura em imensa escala. Albert Speer, instrumental em implementar a reinterpretação do Führer da cultura alemã, foi colocado na liderança da proposta de renovação arquitetônica de Berlim. Em 1936, Hitler participou da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Verão na capital alemã. 

Rearmamento e novas alianças

Em 3 de fevereiro de 1933, durante uma reunião com a liderança militar alemã, Hitler falou que a “conquista do Lebensraum no Leste e a implacável Germanização” eram seus objetivos principais de política externa. Em março, o príncipe Bernhard Wilhelm von Bülow, secretário do Auswärtiges Amt (Ministério de Relações Exteriores), emitiu uma declaração dos principais objetivos de política externa do país: o Anschluss com a Áustria, a restauração das fronteiras nacionais de 1914 da Alemanha, rejeição de todas as restrições militares impostas pelo Tratado de Versalhes, devolução das colônias alemãs na África e a criação de uma zona de influência alemã na Europa Oriental. Hitler achava, na verdade, os objetivos de Bülow modestos demais. Em discursos feitos na época, ele afirmou que suas políticas eram pacíficas e estava disposto a trabalhar dentro dos acordos internacionais. Na sua primeira reunião de gabinete em 1933, Hitler priorizou aumento de gastos com os militares. 

Hitler retirou a Alemanha da Liga das Nações e da Conferência para o Desarmamento em Genebra em outubro de 1933. Em janeiro de 1935, mais de 90% da população de Saarland, até então sob administração da Liga das Nações, votou num plebiscito por se unir a Alemanha. Em março, Hitler anunciou que a Wehrmacht seria expandida para mais de 600 000 membros — seis vezes mais que o número permitido pelo Tratado de Versalhes — incluindo o desenvolvimento de uma nova força aérea (Luftwaffe) e o aumento da marinha de guerra (Kriegsmarine). O Reino Unido, a França, a Itália e outros países da Liga das Nações protestaram contra o rearmamento alemão em violação do tratado, mas nada fizeram para impedi-lo. O Acordo Naval Anglo-Germânico de 18 de junho de 1935 permitiu que a tonelagem da marinha alemã aumentasse para 35% daquele da marinha britânica. Hitler chamara tal acordo com os ingleses de “o melhor dia da minha vida”, acreditando que este acordo seria o primeiro passo para a aliança anglo-germânica que ele havia previsto no Mein Kampf. A França e a Itália não foram consultadas a respeito deste entendimento, minando diretamente a Liga das Nações e jogando o Tratado de Versalhes no caminho da irrelevância. Sob ordens do Führer, a Alemanha reocupou a zona desmilitarizada da Renânia em março de 1936, em uma nova violação direta do Tratado de Versalhes. Hitler também enviou tropas para a Espanha em apoio ao General Franco durante a sangrenta guerra civil espanhola após receber um pedido de ajuda dos nacionalistas espanhóis em julho de 1936. Ao mesmo tempo, Hitler continuou com seu esforço de criar uma aliança Anglo-Germânica. Em agosto de 1936, em resposta a um princípio de crise econômica devido aos gastos com o rearmamento, Hitler ordenou que Göring implementasse o Vierjahresplan (“Plano de Quatro Anos”) para preparar a Alemanha para a guerra nos próximos quatro anos. O plano previa uma luta total entre os “Judeus-Bolchevistas” e o nazismo alemão, onde Hitler pretendia prosseguir com o rearmamento do país independente do custo econômico. 

O conde Galeazzo Ciano, ministro de relações exteriores do governo de Benito Mussolini, declarou um eixo Alemanha e Itália, e em 25 de novembro de 1936, os alemães assinaram o Pacto Anticomintern com o Japão. Reino Unido, China, Itália e Polônia também foram convidados para se unir a este pacto, que tinha como propósito defender as nações do comunismo, mas apenas os italianos aceitaram, assinando o acordo em 1937. Hitler abandonou seu plano de uma aliança Anglo-Germânica, culpando a “inadequada” liderança política britânica. 

Em uma reunião na Chancelaria do Reich com seus ministros de estado e chefes militares, em novembro de 1936, Hitler voltou a falar de suas intenções de estabelecer o Lebensraum para o povo alemão. Ele ordenou que preparações fossem feitas para uma guerra no leste, para começar, no mais cedo, em 1938 ou no mais tardar em 1943. Ele acreditava que a queda no padrão de vida na Alemanha como resultado de uma crise econômica poderia apenas ser parada por uma agressão militar para anexar a Áustria e ocupar a Tchecoslováquia. Hitler exigiu ações rápidas antes que a França e o Reino Unido passassem a frente na corrida armamentista. No começo de 1938, na sequência do Caso Blomberg-Fritsch, Hitler tomou controle total do aparato das políticas externas e militares, apontando a si mesmo como Oberster Befehlshaber der Wehrmacht (“comandante supremo das forças armadas”). De 1938 em diante, Hitler fazia uma política externa que, em última análise, destinava-se à guerra. 

Segunda Guerra Mundial

Aliança com o Japão

Em fevereiro de 1938, seguindo o conselho do seu novo ministro de relações exteriores, o conde Joachim von Ribbentrop, Hitler começou a encerrar a Aliança Sino-Alemã com a República da China para então firmar uma maior cooperação com o mais poderoso e moderno Império do Japão. Hitler anunciou que reconhecia a região de Manchukuo, o estado fantoche ocupado pelos japoneses da Manchúria, e que renunciava as reivindicações sobre as antigas colônias alemãs na Ásia, que foram ocupados pelo Japão após a primeira guerra mundial. O führer alemão ordenou o fim do envio de carregamentos de armas para a China e chamou de volta todos os oficiais alemães trabalhando com o exército chinês. Em retaliação, o general Chiang Kai-shek (de facto líder da China) cancelou todos os acordos econômicos entre os países, privando a Alemanha de muitas matérias primas vindas necessárias. 

Áustria e Tchecoslováquia 

Em 12 de março de 1938, Hitler anunciou a unificação da Áustria com a Alemanha Nazista (o Anschluss). A anexação austríaca foi rápida e sem percalços. Ele então virou sua atenção para a população etnicamente alemã na região dos Sudetos na Tchecoslováquia. 

Entre 28 e 29 de março de 1938, Hitler teve várias reuniões secretas em Berlim com Konrad Henlein do Sudetendeutsche Partei, o maior partido pan-germânico dos Sudetos. Os dois concordaram que Henlein passaria a exigir do governo tchecoslovaco mais autonomia para os alemães dos Sudetos, assim dando um motivo para intervenção militar alemã no país. Em abril de 1938, Henlein disse para o ministro de relações exteriores da Hungria que “não importa o que o governo tcheco ofereça, ele aumentaria as exigências […] ele queria sabotar um entendimento de toda a forma porque essa era a única maneira de explodir a Tchecoslováquia rapidamente”. Em privado, Hitler considerava a região dos sudetos como não muito importante; seu principal objetivo era conquistar a Tchecoslováquia e tomar o controle de sua forte indústria. 

Ainda em abril de 1938, Hitler ordenou que o quartel-general das forças armadas (o OKW) preparasse um plano, o Fall Grün (“Caso Verde”), para a invasão da Tchecoslováquia. Como resultado de intensa pressão diplomática por parte dos franceses e britânicos, a 5 de setembro, o presidente tchecoslovaco Edvard Beneš anunciou o “quarto plano” para reorganização constitucional do seu país, cedendo as exigências de Henlein a respeito da autonomia dos Sudetos. Alemães tchecos simpatizantes dos nazistas passaram então organizar protestos e ações contra o governo, enfrentando a polícia tcheca, forçando a declaração de lei marcial nos Sudetos. 

A Alemanha dependia muito da importação de petróleo; então confronto com a Grã-Bretanha a respeito da Tchecoslováquia poderia resultar em um embargo de combustível aos alemães. Isso forçou Hitler a cancelar o plano Fall Grün, que estava sendo planejado para outubro de 1938. Em 29 de setembro, Hitler, Neville Chamberlain, Édouard Daladier e Mussolini se reuniram em Munique e firmaram um acordo, que deu o controle dos distritos dos Sudetos para a Alemanha. 

Chamberlain ficou satisfeito com os resultados da conferência de Munique, afirmando que significava “peace for our time” (“Paz para o nosso tempo”), enquanto Hitler estava irritado a respeito da oportunidade perdida para a guerra em 1938; ele expressou este desapontamento em um discurso feito em 9 de outubro em Saarbrücken. Segundo ele, a paz feita pelos britânicos, apesar de favorável para os termos alemães, foi uma derrota diplomática que estragou seus planos de limitar o poder britânico na Europa Continental para abrir caminho para o poder da Alemanha no leste. Como resultado da Conferência de Munique, Hitler foi nomeado pela revista Time como o “Homem do Ano” de 1938. 

Ao fim de 1938 e começo de 1939, para evitar uma crise econômica, devido aos altos gastos do governo, Hitler anunciou cortes no orçamento de defesa. No seu discurso de “Exportar ou Morrer” de 30 de janeiro de 1939, ele anunciou seus planos de aumentar as exportações da Alemanha e o comércio internacional para pagar pelas tão necessárias matérias primas (como minério de ferro) para completar a reconstrução das forças armadas. Ao fim da década de 1930, a economia alemã voltou a crescer com força total e sua indústria se tornou uma das mais poderosas do mundo, com a Alemanha retomando seu posto de grande centro tecnológico e de inovação. 

Em 15 de março de 1939, em violação do Acordo de Munique, Hitler ordenou que a Wehrmacht invadisse Praga e ocupassem a Boêmia e a Moravia, proclamando a criação de um protetorado na região. Um dos motivos desta invasão era a necessidade crônica de matérias primas para suprir a economia alemã e impedir uma nova crise. 

Começo da Segunda Guerra Mundial

Em discussões privadas em 1939, Hitler declarou que o Reino Unido era o principal inimigo do país e que a Polônia deveria ser obliterada como preludio para a guerra com os ingleses. O flanco leste da Alemanha tinha que estar seguro e terras da Lebensraum adicionadas ao país. Em 31 de março de 1939, o governo britânico “garantiu” apoio para um Estado polonês independente e isso irritou os nazistas. Hitler afirmou: “Vou preparar-lhes uma bebida do diabo”. Em um discurso em Wilhelmshaven para o lançamento do navio de guerra Tirpitz, em 1 de abril, ele ameaçou romper o Acordo Naval Anglo-Germânico se os britânicos continuassem a dispensar apoio para os poloneses, numa política que ele descreveu como um “cerco”. Para os nazistas, a Polônia deveria virar um estado satélite alemão ou deveria ser neutralizada para garantir a segurança do flanco esquerdo do Reich para impedir um bloqueio inglês. Hitler inicialmente favorecia a ideia de criar estados satélites nas fronteiras, mas após a rejeição do governo polonês para algum tipo de acordo, ele decidiu que iria invadir o país e fez disso seu objetivo de política externa para 1939. Em 3 de abril, Hitler ordenou que as forças armadas preparassem um plano, o Fall Weiss (“Caso Branco”), para atacar a Polônia. Em um discurso para o Reichstag, em 28 de abril, ele renunciou tanto o Acordo Naval Anglo-Germânico como o Pacto de não agressão germano-polonês. Hitler estava preocupado que um ataque militar contra a Polônia poderia causar uma guerra prematura contra o Reino Unido. O ministro de relações exteriores da Alemanha e ex embaixador em Londres, Joachim von Ribbentrop, garantiu que nem a Grã-Bretanha ou a França iriam honrar seus acordos para proteger a Polônia. Assim, em 22 de agosto de 1939, Hitler ordenou uma mobilização militar contra os poloneses. O plano de invasão da Polônia necessitava do apoio tácito da União Soviética, a principal potência do leste europeu. É firmado então um pacto de não-agressão entre os alemães e os soviéticos (o Pacto Molotov-Ribbentrop), que também firmava, com o ditador russo Joseph Stalin, um acordo secreto para partição do território polonês entre as duas nações. Ao contrário do que Ribbentrop havia prevido, contudo, os britânicos assinaram um tratado de aliança com a Polônia, em 25 de agosto de 1939. Isso, junto com notícias de que a Itália de Mussolini não iria honrar o Pacto de Aço para ajudar a Alemanha, fez com que Hitler adiasse seus planos para fazer guerra, de 25 de agosto para 1 de setembro. Hitler não conseguiu garantir a neutralidade britânica ao oferecer a Londres um pacto de não-agressão em 25 de agosto; ele então instruiu Ribbentrop para apresentar um plano de paz de última hora numa tentativa de botar a culpa da guerra na inação polonesa e britânica. 

Em 1 de setembro de 1939, a Alemanha invadiu a Polônia pelo oeste sob o pretexto de que lhes havia sido negado acesso a Cidade Livre de Danzig e ao território do Corredor polonês, regiões que pertenciam aos alemães antes do Tratado de Versalhes. Em resposta, o Reino Unido e a França declararam guerra a Alemanha em 3 de setembro, surpreendendo Hitler. O ditador alemão teria então se irritado com Ribbentrop e se virou para ele e gritou “E agora?” Para sua sorte, os britânicos e franceses não agiram imediatamente, e em 17 de setembro, tropas soviéticas invadiram a Polônia pelo leste. 

A Polônia foi conquistada em apenas um mês. O que se seguiu foi um período chamado de “Guerra de Mentira” ou Sitzkrieg (“guerra sentada”). Hitler instruiu então que os dois Gauleiters da Polônia, Albert Forster (do Reichsgau Danzig Westpreußen) e Arthur Greiser (do Reichsgau Wartheland), a iniciar o processo de “germanização” dos territórios ocupados, “sem querer saber” como isso seria alcançado. Os alemães então começaram um brutal processo de limpeza étnica contra a população polonesa, mirando especialmente na população judaica local. Greiser reclamou com Hitler que Forster estava aceitando milhares de poloneses como “racialmente” alemães, ameaçando a “pureza racial” pregada pelo nazismo. Hitler não se interessou em se envolver. Esse tipo de inação fazia parte de um dos estilos de trabalhar do Führer: Hitler dava instruções vagas e esperava que seus subordinados agissem em suas próprias políticas. 

Outra disputa começou com Heinrich Himmler e Greiser, que advogavam políticas de limpeza racial, contra Hermann Göring e Hans Frank (Governador do Governo Geral da Polônia ocupada), que queriam transformar o território polonês no “celeiro” do Reich, utilizando mão de obra local escrava. Em 12 de fevereiro de 1940, Hitler decidiu por favorecer a visão de Göring e Frank, que terminou com as deportações em massa que não eram boas para a economia. A partir de maio de 1940, milhares de poloneses passaram a ser usados como escravos para suprir a máquina de guerra da Alemanha. Hitler elogiou os planos de Himmler e iniciou uma política para lidar com os judeus na Polônia, dando início ao Holocausto em território polonês. No começo de 1940, Hitler começou a engrossar as defesas no oeste da Alemanha e a convocar tropas para campanhas militares. Em abril, forças alemãs invadiram e tomaram de assalto a Noruega e a Dinamarca. No dia 9 desse mês, Hitler proclamou o Grande Reich Germânico, sua visão de um império unificado de todas as nações germânicas da Europa, com os holandeses, flamengos e escandinavos se juntando a política de “pureza racial” sob a liderança alemã. Em maio de 1940, a Alemanha atacou a França, e conquistou Luxemburgo, a Holanda e a Bélgica. Essas vitórias convenceram Mussolini a trazer a Itália para a guerra ao lado dos alemães a 10 de junho. Sem alternativa, os franceses decidiram pedir a cessação das hostilidades. A França e a Alemanha assinaram um armistício em 22 de junho. Arthur Greiser afirmou que a popularidade de Hitler – e o apoio a guerra – dentre o povo alemão chegou ao seu auge em 6 de julho de 1940, quando Hitler voltou para Berlim após visitar Paris. Milhares de pessoas foram nas ruas para saudar o Führer. Após as vitórias rápidas nas frentes de batalha, Adolf Hitler promoveu doze generais para a patente de marechal de campo. 

Os britânicos, cujas tropas foram derrotadas na batalha de Dunquerque e tiveram que evacuar de forma desesperada da França através da operação Dínamo, continuaram a lutar na Batalha do Atlântico junto com seus Domínios ultramarinos. Hitler chegou a fazer propostas de paz para o líder britânico, Winston Churchill, mas este rejeitou, jurando lutar até a morte. Irritado, Hitler ordenou uma série de ataques aéreos para destruir as bases da força área britânica e seus postos de radar no sul da Inglaterra. A Luftwaffe (força áerea nazista) falhou em derrotar a aviação inglesa no que ficou conhecido como “a Batalha da Grã-Bretanha”. Ao fim de outubro de 1940, Hitler percebeu que já não dava mais para garantir a superioridade aeronaval sobre a Inglaterra e decidiu por adiar indefinidamente a invasão das ilhas britânicas (a Operação Leão Marinho), e então ordenou uma enorme campanha de bombardeios aéreos punitivos contra várias cidades britânicas, como Londres, Plymouth e Coventry. 

Em 27 de setembro de 1940, o Pacto Tripartite foi assinado em Berlim com Saburō Kurusu do Império do Japão, Hitler e o ministro de relações exteriores italiano, Galeazzo Ciano. O acordo de cooperação se expandiu, abrangendo a Hungria, a Romênia e a Bulgária, formando o Eixo. A tentativa de Hitler de integrar a União Soviética ao bloco anti-britânico falhou em novembro. Então, em busca de novas regiões para conquistar novas matérias primas (principalmente minério de ferro e petróleo), foi iniciado o planejamento de invasão do território soviético. 

Na primavera de 1941, a guerra ia bem para a Alemanha e a popularidade de Hitler estava mais alta do que nunca. A Wehrmacht enviou o Afrika Korps para o norte da África para tomar a região e abrir caminho para um ataque ao Oriente Médio. Em fevereiro, os alemães chegaram na Líbia para apoiar os italianos. Em abril, Hitler mandou tropas para os Bálcãs e invadiu a Iugoslávia, movendo-se logo em seguida para conquistar a Grécia. Por ordens do Führer, os alemães ajudaram os iraquianos a lutar contra os britânicos e depois invadiram e conquistaram a ilha de Creta. 

Caminho para a derrota

Em 22 de junho de 1941, quebrando o Pacto de não agressão firmado em 1939, cerca de 4 milhões de soldados do Eixo invadiram a União Soviética. Esta ofensiva (codinome Operação Barbarossa) tinha como objetivo destruir o Estado soviético e assumir o controle dos seus abundantes recursos naturais para alimentar a máquina de guerra nazista contra o Ocidente. O ataque inicial foi um sucesso, com as forças alemãs conquistando várias regiões, incluindo a região Báltica, a Bielorrússia e o oeste da Ucrânia. Em agosto de 1941, as forças do Eixo avançaram mais de 500 km dentro do território soviético. Logo após as tropas nazistas terem derrotado o exército vermelho na Batalha de Smolensk, Hitler ordenou que o Grupo de Exércitos Centro temporariamente se detivesse nas cercanias de Moscou e enviou tropas para cercar Leninegrado e Kiev. Seus generais discordaram disso, preferindo ter focado suas forças em avançar contra a capital russa. Hitler manteve-se irredutível e as lideranças militares da Wehrmacht começaram a questionar a estratégia da guerra. Esta parada deu tempo para o exército soviético se reorganizar e mobilizar suas reservas; a decisão de Hitler de atrasar o ataque contra Moscou é creditada como um dos maiores erros táticos do conflito. Em novembro de 1941 Hitler finalmente ordenou que a ofensiva contra Moscou recomeçasse mas o avanço terminou em desastre em dezembro. 

Em 7 de de dezembro de 1941, o Japão lançou um ataque contra a base americana de Pearl Harbor, no Havaí. Quatro dias mais tarde, Hitler declarou guarra contra os Estados Unidos. Seus conselheiros, como o seu ministro de relações exteriores, o conde Ribbentrop, tentaram dissuadi-lo disso, mas Hitler achava que confrontar os americanos poderia trazer apoio dos japoneses na sua luta contra a União Soviética, mas Tóquio estava ocupado demais lutando na Guerra do Pacífico. Para muitos historiadores, esta decisão foi mais um erro de cálculo de Hitler. 

Em 18 de dezembro de 1941, Himmler perguntou a Hitler, “O que fazer com os judeus da Rússia?” e recebeu como resposta: “als Partisanen auszurotten” (“extermine-os como partisans”). O historiador israelense Yehuda Bauer afirma que esta ordem é provavelmente a coisa mais perto que os acadêmicos chegaram de encontrar uma ordem específica de genocídio por parte do Führer durante o Holocausto. Em setembro de 1942, no norte da África, as forças alemãs foram derrotadas na segunda batalha de El Alamein, estragando os planos de Hitler de tomar o Canal de Suez e o Oriente Médio. Ainda superconfiante de suas capacidades devido as suas vitórias militares em 1940, Hitler começou a nutrir desconfiança do alto-comando do exército e começou a interferir com mais frequência nas decisões táticas, o que não foi bom para o esforço de guerra. Entre dezembro de 1942 e janeiro de 1943, Hitler se recusou a acatar qualquer conselho dado a ele e deu ordens para que o 6º Exército Alemão, preso em Stalingrado, no sul da Rússia, não se retirasse e lutasse até as últimas consequências. A decisão foi desastrosa, com as tropas alemãs sendo derrotadas e sofrendo pesadas baixas. Mais de 200 000 soldados do Eixo foram mortos e outros 235 000 foram feitos prisioneiros (incluindo 91 mil alemães). Após outro revés na Batalha de Kursk, meses mais tarde, o julgamento de Hitler se tornou mais errático, com a posição econômica e militar alemã se deteriorando, assim como a própria saúde de Adolf Hitler. 

Após a invasão aliada da Sicília em meados de 1943, Mussolini é removido do cargo de primeiro-ministro da Itália, após receber um voto de desconfiança do Grande Conselho do Fascismo, com apoio do rei Vítor Emanuel III. O marechal Pietro Badoglio assumiu o controle do governo e logo começou a negociar a rendição do seu país para os Aliados. Enfurecido, Hitler ordenou que a Wehrmacht invadisse a Itália, prologando os combates naquela nação. Enquanto isso, na frente leste, entre 1943 e 1944, os exércitos da União Soviética empurravam as forças de Hitler para trás. Em 6 de junho de 1944, os Aliados ocidentais abriram a tão esperada segunda frente, desembarcando no norte da França com uma grande invasão anfíbia, a Operação Overlord. Muitos oficiais do exército alemão concluíram então que a derrota era inevitável e que continuar sob a liderança de Hitler levaria a destruição completa da Alemanha. 

Entre 1939 e 1945, vários alemães tentaram assassinar Hitler, fracassando todas as vezes. A maioria aconteceu dentro da Alemanha e a resistência alemã ganhou mais força com o passar do tempo, quando a derrota parecia mais eminente. Em 1944 foi organizado o atentado de 20 de julho, através da Operação Valquíria, planejado pelo coronel Claus von Stauffenberg que plantou uma bomba no quartel-general do Führer, a Toca do Lobo (Wolfsschanze), em Rastenburg. Hitler sobreviveu com alguns poucos ferimentos. Mais de 4 900 alemães foram mortos nas represálias nazistas. 

Derrota e morte

Ao fim de 1944, o exército vermelho e os Aliados Ocidentais (principalmente os Estados Unidos, o Reino Unido e a França Livre) continuavam avançando a todo o vapor contra a Alemanha. Paris havia sido libertada e o exército alemão havia quase que completamente sido expulso da França, da Bélgica e Holanda. Na Itália, as forças nazifascistas também recuavam para o norte, mas o principal perigo estava no leste, com Stalin tomando os países da Europa oriental um a um. Assim, reconhecendo a força e determinação dos soviéticos, Hitler decidiu que seria quebrando as linhas do inimigo no Ocidente que a maré da guerra poderia mudar em favor dos alemães. Ele então começou a planejar um ataque contra os americanos e ingleses. Em 16 de dezembro, os nazistas lançaram a Ofensiva das Ardenas para tentar desunir os Aliados e talvez convence-los assim a parar de lutar. Apesar de sucessos iniciais, a batalha das Ardenas terminou em fracasso e as últimas reservas de homens e máquinas da Alemanha foi perdida. No começo de 1945, a situação dos alemães era precária. Aviões aliados bombardeavam o país dia e noite, deixando várias cidades alemãs e seus principais centros industriais em ruínas. O exército estava em frangalhos e pouco podiam fazer a não ser recuar em todas as frentes de batalha. Hitler falou então no rádio ao povo alemão: “Mesmo sendo grave a crise neste momento, ela irá, apesar de tudo, ser domada por nossa vontade inalterável.” Hitler nutria esperanças de que a morte do presidente americano Franklin D. Roosevelt pudesse resultar em paz no Ocidente em 12 de abril de 1945, mas nada aconteceu e a determinação dos Aliados permaneceu forte. Agindo conforme sua visão de que os fracassos militares alemães significavam abrir mão do seu direito de sobreviver como nação, Hitler ordenou a destruição da infraestrutura industrial e tecnológica alemã, para que estes não caíssem em mãos dos Aliados. O ministério dos armamentos, sob a liderança de Albert Speer, recebeu ordens de adotar uma política de terra arrasada, mas tais instruções secretamente não foram obedecidas. 

Em 20 de abril, no seu aniversário de 56 anos, Hitler saiu pelo última vez do Führerbunker, em Berlim, para a superfície. No meio do jardim arruinado da Chancelaria do Reich, enquanto as bombas caiam, ele participou de uma cerimônia para entregar medalhas Cruz de Ferro para crianças soldados da Juventude Hitlerista, que agora eram (junto com a Volkssturm) a última linha de defesa alemã. Em 21 de abril, as tropas do marechal Georgy Zhukov derrotaram as forças do general Gotthard Heinrici na batalha de Seelow e começaram a atacar as cercanias de Berlim. Em negação da situação precária, Hitler acreditava que o destacamento Armeeabteilung Steiner, sob comando do general Felix Steiner, da Waffen SS, poderia vir do norte e se juntar ao 9º Exército, do general Theodor Busse, para atacar os russos em um movimento de pinça. 

Durante uma conferência com seus líderes militares em seu bunker, em 22 de abril de 1945, Hitler perguntou se Steiner já tinha começado o seu ataque. Porém falaram a ele que a ofensiva sequer tinha começado e que as tropas soviéticas já estavam marchando por Berlim. Hitler pediu então para que todos exceto Wilhelm Keitel, Alfred Jodl, Hans Krebs e Wilhelm Burgdorf deixassem a sala e então começou a gritar irritado. Ele afirmou que a liderança das forças armadas eram incompetentes e traidoras e, pela primeira vez, declarou que “tudo estava perdido”. Hitler anunciou que permaneceria em Berlim até o amargo final e não seria capturado vivo, preferindo se suicidar. 

Em 23 de abril, o exército vermelho cercava completamente Berlim e já havia tomado alguns pontos estratégicos na cidade. Joseph Goebbels, agora praticamente o segundo no comando do III Reich, fez uma declaração para que o povo berlinense pegasse em armas para defender a cidade. No mesmo dia, Hermann Göring enviou um telegrama para Berchtesgaden, falando que Hitler estava isolado em Berlim e que ele, Göring, assumiria o comando da Alemanha afirmando que o Führer logo estaria incapacitado. Hitler respondeu ordenando a prisão de Göring e tirando dele todas as suas posições no governo. Em 28 de abril, Hitler descobriu que Heinrich Himmler, chefe das SS, havia deixado a capital oito dias antes e estava tentando negociar a paz com os Aliados Ocidentais. Ele ordenou que Himmler também fosse preso e autorizou a execução de Hermann Fegelein (o representante de Himmler no QG do Führer). Enquanto isso, Hitler (que naquela altura já tinha perdido a noção da realidade, movendo exércitos imaginários no seu mapa), ordenou que o general Walther Wenck atacasse e quebrasse o cerco a Berlim, mas ele foi detido em Potsdam e, contrariando ordens do Führer, retirou-se com seus soldados para o Oeste e, logo depois, rendeu-se aos americanos, enterrando qualquer possibilidade de salvar a capital alemã. 

Perto da meia-noite de 29 de abril, Hitler se casou com a sua amante de longa data Eva Braun em uma pequena cerimonia dentro do Führerbunker. Após um café da manhã com sua nova esposa, Hitler ditou seu testamento político para sua secretária particular Traudl Junge. O evento foi testemunhado e os documentos assinados por Krebs, Burgdorf, Goebbels e Martin Bormann. Logo depois, na parte da tarde, Hitler foi informado da execução de Mussolini, que havia sido preso e torturado antes de morrer, e depois teve seu corpo pendurado em praça pública para ser cuspido pela população. Isso aumentou a determinação de Hitler de se suicidar para evitar a captura e deu ordens específicas para que seu cadáver fosse queimado e seus restos escondidos. 

A 30 de abril de 1945, as tropas soviéticas estavam a apenas algumas horas de marcha da Chancelaria do Reich. Hitler então cometeu suicídio com um tiro na cabeça e sua mulher, Eva Braun, ingeriu uma cápsula de cianeto. Seus corpos foram levados para fora do bunker no jardim atrás da Chancelaria, onde foram colocados dentro de uma cratera de bomba e encharcados em gasolina, enquanto nos arredores as bombas russas caiam. Os corpos foram então incendiados. O almirante Karl Dönitz e o ministro Joseph Goebbels assumiram os postos de Hitler de Chefe de Estado e Chanceler, respectivamente. 

Berlim se rendeu em 2 de maio. A Alemanha Nazista capitulou formalmente seis dias depois. O Dia da Vitória finalizou a guerra na Europa. Documentos nos arquivos soviéticos liberados após a dissolução da União Soviética afirmam que os restos mortais de Hitler, Braun, Joseph e Magda Goebbels (e os seus filhos), do general Hans Krebs e de Blondi (a cadela de Hitler) foram repetidamente enterrados e exumados. Em 4 de abril de 1970, um time de agentes da KGB usou mapas detalhados para exumar cinco caixas com ossos de uma fábrica da SMERSH em Magdeburgo. Os restos encontrados nestas caixas foram queimados, esmagados e dispersos, e depois jogados no rio Biederitz, um afluente do Elba. De acordo com o historiador Kershaw, os corpos de Hitler e Braun foram completamente queimados quando o exército vermelho chegou e apenas uma parte da mandíbula com a arcada dentária que poderia ter identificado o cadáver de Hitler sobrou.

O Holocausto

Ver artigos principais: Holocausto, Solução final e Lista dos campos de concentração nazistas “ Se os financiadores judeus internacionais de dentro e fora da Europa forem bem sucedidos em mergulhar as nações mais uma vez numa guerra mundial, então o resultado não seria a bolchevização da Europa, e, assim, a vitória dos judeus, mas a aniquilação da raça judia da Europa! ” — Discurso de Adolf Hitler no Reichstag, em 30 de janeiro de 1939. O Holocausto e a guerra da Alemanha no leste eram baseados na visão de longa data de Hitler de que os judeus eram os verdadeiros inimigos do Reich e do povo alemão e que o Lebensraum (“espaço vital”) era necessário para a expansão da Alemanha. Ele focou no leste da Europa para a sua expansão, mirando em derrotar a Polônia e a União Soviética e então removendo os judeus e os eslavos. O Generalplan Ost (“Plano Geral Leste”) previa a deportação da população da Europa oriental e da União Soviética para o oeste da Sibéria, para serem usados como mão de obra escrava ou para serem mortos; os territórios tomados seriam então ocupados por colonizadores alemães ou passariam por um processo de germanização. A ideia era implementar este plano após a conquista da União Soviética, mas quando isso falhou Hitler antecipou os planos. Em janeiro de 1942, Hitler decidiu que os judeus, eslavos e outros deportados considerados “indesejáveis” seriam mortos. No mesmo ano, a cúpula nazista orquestrou a chamada “Solução Final” para o problema judeu, para exterminar todos os que o regime considerassem indesejáveis e inferiores. 

O genocídio foi ordenado por Hitler e organizado por Heinrich Himmler e Reinhard Heydrich. Os arquivos da Conferência de Wannsee, que aconteceu em 20 de janeiro de 1942 e foi presidido por Heydrich, na presença de quinze oficiais de alta patente nazistas, mostram a prova definitiva de que o genocídio em massa (o Holocausto) foi sistemático e premeditado. Em 22 de fevereiro, Hitler afirmou: “nós iremos reganhar nossa saúde apenas eliminando os judeus”. Apesar de nunca ter havido uma ordem direta e expressa de Hitler autorizando os assassinatos em massa, em seus discursos públicos, ordens dos seus generais e diários oficiais nazistas, demonstram que ele concebeu e autorizou o extermínio dos judeus da Europa. Ele autorizou as ações dos Einsatzgruppen — esquadrões da morte da SS que atuavam principalmente na Polônia, nos Bálcãs e na União Soviética — e estava ciente de todas as suas atividades. No verão de 1942, Auschwitz foi expandido para atender a um maior número de deportados para serem mortos ou escravizados. Campos de concentração, pequenos e grandes, começaram a aparecer pela Europa, com vários destes devotados primordialmente para o extermínio. Apenas em Auschwitz-Birkenau morreram mais de um milhão de pessoas. 

Entre 1939 e 1945, a Schutzstaffel (SS), auxiliados por colaboradores dos países ocupados, foram os principais responsáveis pelos mais de onze milhões de mortos no Holocausto, incluindo 5,5 a 6 milhões de judeus (ou quase dois terços da população judia da Europa), e 200 000 a 1 500 000 ciganos porajmos. As mortes aconteceram primordialmente em campos de concentração e de extermínio, nos guetos e em outras áreas de execução em massa. Muitas vítimas do Holocausto morreram em câmaras de gás, enquanto outros morreram de fomes, doenças ou maus tratos enquanto faziam trabalhos forçados. Além da eliminação dos judeus, os nazistas planejavam também acabar com a população (algo em torno de 30 milhões de pessoas) nos territórios ocupados através da fome em um plano chamado Hungerplan (“Plano Fome”). Os suprimentos de comida dos países eram desviados para alimentar o exército alemão ou para os civis na Alemanha. Cidades seriam arrasadas e terras eram descartadas ou ocupadas com colonos alemães. Juntos, o Hungerplan e o Generalplan Ost levaram, por consequência, a fome de mais de 80 milhões de pessoas na União Soviética. Isso ajudou a cumprir os planos democídas e terminaram na morte de quase 19,3 milhões de civis e prisioneiros de guerra. 

As políticas de Hitler resultaram na morte de pelo menos dois milhões de poloneses e mais de três milhões de prisioneiros de guerra soviéticos, comunistas, prisioneiros políticos, homossexuais, pessoas física e mentalmente deficientes, testemunhas de Jeová, adventistas e líderes de sindicatos. Hitler não falava publicamente a respeito dessas mortes e, até onde se sabe, nunca visitou um campo de concentração. 

Os nazistas acreditavam no conceito de higiene racial. Em 15 de setembro de 1935, Hitler apresentou duas leis — conhecidas como Leis de Nuremberg — para o Reichstag. Tais leis baniam relações sexuais e casamentos entre arianos e judeus e depois foi expandido para incluir “ciganos, negros e suas crianças bastardas”. A lei tirou a cidadania de todos os não-arianos e proibiu o emprego de mulheres não-judias com menos de 45 anos em casas de famílias judiais. As políticas de eugenia de Hitler miravam crianças com deficiências ou que tiveram problemas de desenvolvimento em geral em um programa chamado de Kinder-Euthanasie e depois ele autorizou um programa de eutanásia para adultos com sérios problemas mentais e deficiências físicas no que ficou conhecido como Aktion T4.

Estilo de liderança

Hitler governava o Partido Nazista de forma autocrática ao afirmar sua Führerprinzip (“Princípio do Líder”). O princípio se baseava em lealdade absoluta dos subordinados aos seus superiores; ele via a estrutura do governo como uma pirâmide, com o próprio Hitler — o “Líder infalível” — no ápice. As posições dentro do partido não eram preenchidas mediante eleições mas sim as pessoas eram indicadas pelos superiores, que exigiam obediência completa a vontade do líder. O estilo de liderança de Hitler era dar ordens contraditórias aos seus subordinados e coloca-los em uma posição que seus deveres e responsabilidades se entrelaçavam uns com os outros, para ter “o mais forte completar o trabalho”. Deste jeito, gerava desconfiança, competição e luta interna entre seus subordinados para consolidar e maximizar o seu poder. O gabinete do líder nunca se encontrou até 1938 e ele desencorajava seus ministros de se encontrarem de forma independente. Hitler tipicamente quase nunca dava ordens por escrito, preferindo se expressar verbalmente ou passava os comandos através dos seus associados mais próximos, como Martin Bormann. Ele instruía Bormann com seus papéis, nomeações e finanças pessoais; Bormann usava sua posição para controlar o fluxo de informações e o acesso a Hitler. 

Hitler dominou o esforço de guerra do seu país durante a Segunda Guerra Mundial em uma extensão muito superior ao dos outros líderes durante o conflito. Ele assumiu o posto de líder supremo das forças armadas em 1938 e subsequentemente foi responsável por muito da estratégia militar da Alemanha na guerra. Sua decisão de lançar uma série de campanhas militares rápidas contra a Noruega, a França, os Países Baixos e a Bélgica em 1940, contra a recomendação dos seus líderes militares, provou-se muito bem sucedida, apesar de seus esforços militares e diplomáticos para derrotar o Reino Unido tenham eventualmente falhado. Hitler se envolvia cada vez mais no esforço de guerra, apontando a si mesmo como o comandante em chefe do exército em dezembro de 1941; deste ponto em diante ele tomou controle da estratégia para sobrepujar a União Soviética, enquanto seus comandantes militares na frente ocidental tinham um grau maior de autonomia. A liderança de Hitler se tornou cada vez mais desconexa com a realidade uma vez que a maré da guerra começou a se voltar contra a Alemanha, com a estratégia defensiva sendo prejudicada por seu processo lento de tomar decisões e frequentes diretivas para manter posições indefensáveis. Mesmo assim, ele continuava a acreditar que sua liderança levaria a vitória. Nos meses finais da guerra, Hitler se recusou a considerar negociações de paz, afirmando que a destruição completa da Alemanha seria um resultado mais preferível que a rendição. Os militares praticamente nunca desafiavam a dominância de Hitler sobre o esforço de guerra e os oficiais de patente mais graduada frequentemente expressavam apoio e confiança em sua liderança. 

Legado

O lado de fora do edifício que Hitler nasceu em Braunau am Inn, na Áustria, com um memorial em pedra para lembrar os horrores da Segunda Guerra Mundial. A tradução diz: 

“Pela paz, liberdade 
e democracia
fascismo nunca mais
milhões de mortos lembram” 

O suicídio de Hitler é ligado por muitos contemporâneos como “um feitiço sendo quebrado”. O apoio popular a Hitler havia colapsado no período próximo a sua morte e pouquíssimos alemães lamentaram seu falecimento; Kershaw afirma que a maioria dos civis e militares estavam ocupados demais se ajustando ao colapso do país ou fugindo da luta para demonstrar qualquer interesse no destino do führer (“líder”). De acordo com o historiador John Toland, o Nazismo “estourou feito uma bolha” sem seu líder. 

As ações de Hitler e a ideologia nazista são quase que universalmente retratadas como gravemente imorais; de acordo com Kershaw, “nunca na história tanta ruína, imoralidade e maldade foi tão associada ao nome de um homem”. O programa político de Hitler trouxe uma guerra mundial, deixou para trás devastação e pobreza pela Europa. A própria Alemanha sofreu muito e foi assolada pela destruição, caracterizada pelo termo Stunde Null (“Hora Zero”). As políticas do líder nazista infligiram a humanidade sofrimento em uma escala jamais vista; de acordo com R.J. Rummel, o regime nazista democida matou mais de 19,3 milhões de civis e prisioneiros de guerra. Além disso, 29 milhões de soldados e civis também morreram como resultado das ações militares durante o teatro de operações europeu da Segunda Guerra Mundial. O número de civis mortos durante a segunda grande guerra foi sem precedentes na história do conflito humano e causou grande devastação no mundo. Historiadores, filósofos e políticos usam, normalmente, o termo “mal” para descrever o regime nazista. Muitos países europeus, incluindo a Alemanha, criminalizaram as ideologias nazistas e o negacionismo do holocausto. 

O historiador Friedrich Meinecke descreveu Hitler como “um dos grandes exemplos do poder singular e incalculável da personalidade na vida histórica”. O historiador inglês Hugh Trevor-Roper o via como “um dos ‘simplificadores terríveis’ da história, o mais sistemático, o mais histórico, o mais filosófico e ainda assim o mais grosseiro, cruel e menos magnânimo dos conquistadores que o mundo já conheceu”. Já o acadêmico John M. Roberts, acha que a derrota de Hitler marcou o fim da história europeia dominada pela Alemanha. No seu lugar surgiu a Guerra Fria, uma grande deflagração entre o Bloco Ocidental, dominado pelos Estados Unidos e por nações da OTAN, e o Bloco do Leste, dominado pela União Soviética. O historiador Sebastian Haffner afirma que sem Hitler e o deslocamento dos judeus, o moderno Estado de Israel não teria existido. Sem o líder nazista, a descolonização das esferas de influência europeia pelo mundo teria acontecido bem mais tarde do que foi. Além disso, Haffner alega que Hitler teve um maior impacto do que qualquer outra figura histórica comparável, que causou grande impacto pelo mundo e drásticas mudanças no cenário geopolítico em um curto espaço de tempo. 

Visões religiosas

Hitler nasceu de uma mãe que era católica praticante e um pai anti-clérigo; após deixar sua casa, Hitler praticamente nunca mais frequentou missas ou recebeu sacramentos. Albert Speer afirmou que Hitler fez pronunciamentos duros contra a Igreja para seus associados políticos e apesar de não ter abandonado a fé, nunca ligou muito para ela. Hitler dizia que se os fiéis abandonassem a igreja eles iriam se virar ao misticismo, o que ele considerava um retrocesso. De acordo com Speer, o Führer acreditava que a religião japonesa ou o islamismo seriam religiões melhores para os alemães do que o cristianismo, com sua “mansidão e flacidez”. 

O historiador John S. Conway afirmou que Hitler se opunha fundamentalmente as igrejas cristãs. De acordo com Alan Bullock, Hitler não acreditava em Deus, era anti-clérigo e não acreditava muito na ‘ética cristã’ por que ela ia de encontro a sua crença de “sobrevivência do mais apto”. Ele, contudo, favorecia alguns pontos de vista do protestantismo e adotou elementos da hierarquia organizacional da Igreja Católica, a liturgia e fraseologia nas suas políticas. 

Hitler via a igreja como uma importante influência política conservadora na sociedade, e adotou uma estratégia para lidar com eles que “se encaixava com seus propósitos políticos imediatos”. Em público, Hitler exaltava a herança cristã alemã e sua cultura, professando sua crença no “Jesus Ariano”, que havia lutado contra os judeus. Muitas de suas retóricas pró-cristãs não eram as mesmas que ele fazia em privado, descrevendo o cristianismo como o “absurdo” fundado em mentiras. 

De acordo com um relatório da Agência de Serviços Secretos dos Estados Unidos, intitulado “The Nazi Master Plan” (“O Plano mestre Nazista”), Hitler planejava destruir a influência da igreja cristã dentro do Reich. Seu plano final seria a eliminação total do cristianismo. De acordo com Bullock, Hitler iria executar tal plano após a conclusão da guerra na Europa. 

Speer escreveu que Hitler também tinha visões negativas a respeito das tendências ao misticismo de Heinrich Himmler e Alfred Rosenberg. O führer não gostava da tentativa de Himmler de tentar mitificar a SS. Hitler era mais pragmático e suas ambições centravam em preocupações mais práticas. Pessoas próximas a Hitler afirmavam que ele era teísta. Frequentemente, ele mencionava que a “Providência” o protegia e dizia estar em uma missão divina na terra para eliminar os judeus e reerguer o povo alemão. 

Saúde

Pesquisadores sugerem que Hitler sofria de vários males, incluindo síndrome do cólon irritável, lesões na pele, arritmia cardíaca, aterosclerose, doença de Parkinson, sífilis, arterite de células gigantes com arterite temporal, e acufeno. Em um relatório feito para a Agência de Serviços Estratégicos em 1943, Walter C. Langer da Universidade Harvard descreveu Hitler como um “neurótico psicopata”. Em seu livro de 1977, The Psychopathic God: Adolf Hitler, o historiador Robert G. L. Waite afirma que o Führer sofria de transtorno de personalidade limítrofe. Já os historiadores Henrik Eberle e Hans-Joachim Neumann consideravam que Hitler sofria mesmo de várias doenças, incluindo a de Parkinson, mas que ele não tinha nenhuma desilusão patológica e sempre estava ciente, e portanto responsável, das decisões que tomava. Teorias a respeito da saúde pessoal do ditador alemão são difíceis de provar e dar muito peso a estas suposições podem tirar um pouco das responsabilidades das consequências dos atos perpetrados pela Alemanha Nazista. Kershaw acredita que é necessário ter uma visão mais ampla da história da Alemanha ao examinar as forças sociais que levaram a ditadura nazista e suas forças, ao invés de perseguir explicações limitadas para o Holocausto e a Segunda Guerra Mundial baseado apenas em uma única pessoa. Hitler seguia uma dieta vegetariana. Em eventos sociais ele as vezes dava relatos gráficos sobre o assassinato de animais para fazer com que seus convidados evitassem comer carne nos jantares. Bormann mandou construir uma estufa em Berghof (próxima de Berchtesgaden) para garantir um suprimento contínuo de frutas e vegetais frescos para Hitler durante a guerra. Hitler publicamente evitava álcool. Ele as vezes bebia cerveja e vinho em privado, mas abriu mão destas bebidas quando começou a ganhar peso em 1943. Ele não fumava durante boa parte da sua vida adulta, mas na sua juventude chegava a fumar de 25 a 40 cigarros por dia. Ele largou o fumo argumentando que o hábito era um “desperdício de dinheiro”. Ele encorajava seus associados mais próximos a parar de fumar também oferecendo a eles relógios de ouro como estímulo. Hitler utilizava anfetamina ocasionalmente em 1937 e se tornou viciado nisso em 1942. Speer ligou o aumento do comportamento errático e sua inflexibilidade (como sua recusa em ordenar retiradas militares) ao uso da anfetamina. 

Durante a guerra, mais de 90 medicamentos foram prescritos para Hitler. Ele tomava pílulas todos os dias para dores crônicas no estomago e outros problemas de saúde. Ele constantemente consumia metanfetamina, barbitúrico, opiáceo e cocaína. Ele tinha uma perfuração no tímpano como resultado da explosão do atentado de 20 de julho de 1944. Neste atentado, cerca de 200 estilhaços de madeira foram removidos de sua perna. Imagens de Hitler feitas perto do fim da guerra mostravam tremores agudos em sua mão esquerda e seu caminhar era embaralhado. Isso começou logo antes da guerra, mas se acentuou durante ela. Ernst-Günther Schenck e vários outros médicos que encontraram Hitler em suas últimas semanas de vida o diagnosticaram com doença de Parkinson. 

Família 

Hitler queria passar a imagem de um homem celibatário que não tinha vida doméstica, dedicando-se inteiramente a sua missão política e a sua nação. Ele conheceu sua principal amante, Eva Braun, em 1929, e se casou com ela em abril de 1945. Em setembro de 1931, sua meia-sobrinha, Geli Raubal, cometeu suicídio com a arma do próprio Hitler no apartamento dele em Munique. Entre as razões que levaram Geli ao suicídio seria um suposto interesse romântico de Hitler nela e sua morte seria resultado de uma obsessão dele por ela. Paula Hitler, a irmã do Führer e seu último parente vivo de sua família imediata, faleceu em 1960. 

Em filmes de propaganda 

Hitler explorava filmes documentários e vários outras peças de propaganda de forma extensa na parte do seu culto de personalidade. Ele participou de vários filmes de propaganda durante sua carreira política, como Der Sieg des Glaubens e Triumph des Willens— feitos pela lendária diretora Leni Riefenstahl. 

Veja mais:

Lista com alguns filmes

• Der Sieg des Glaubens (Vitória da Fé, 1933)

• Triumph des Willens (Triunfo da Vontade, 1935)

• Tag der Freiheit: Unsere Wehrmacht (Dia da Liberdade: Nossas Forças Armadas, 1935) 

• Olympia (1938)

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Adam Smith https://canalfezhistoria.com/adam-smith/ https://canalfezhistoria.com/adam-smith/#respond Fri, 28 Feb 2025 09:04:38 +0000 https://canalfezhistoria.com/?p=5477 Adam Smith (Kirkcaldy, 5 de junho de 1723 — Edimburgo, 17 de julho de 1790) foi um filósofo e economista britânico nascido na Escócia. Teve como cenário para a sua vida o atribulado Século das Luzes, o século XVIII.

É o pai da economia moderna, e é considerado o mais importante teórico do liberalismo econômico. Autor de Uma investigação sobre a natureza e a causa da riqueza das nações, a sua obra mais conhecida, e que continua sendo usada como referência para gerações de economistas, na qual procurou demonstrar que a riqueza das nações resultava da atuação de indivíduos que, movidos inclusive (e não apenas exclusivamente) pelo seu próprio interesse (self-interest), promoviam o crescimento econômico e a inovação tecnológica. 

Adam Smith ilustrou bem seu pensamento ao afirmar “não é da benevolência do padeiro, do açougueiro ou do cervejeiro que eu espero que saia o meu jantar, mas sim do empenho deles em promover seu auto-interesse”. Assim acreditava que a iniciativa privada deveria agir livremente, com pouca ou nenhuma intervenção governamental, sendo defensor do free banking (sistema bancário livre). A competição livre entre os diversos fornecedores levaria não só à queda do preço das mercadorias, mas também a constantes inovações tecnológicas, no afã de baratear o custo de produção e vencer os competidores. 

Ele analisou a divisão do trabalho como um fator evolucionário poderoso a propulsionar a economia. Uma frase de Adam Smith se tornou famosa: “Assim, o mercador ou comerciante, movido apenas pelo seu próprio interesse (self-interest), é levado por uma “mão invisível” a promover algo que nunca fez parte do interesse dele: o bem-estar da sociedade.” Como resultado da atuação dessa “mão invisível”, o preço das mercadorias deveria descer e os salários deveriam subir. 

Biografia

Nascimento e juventude

Adam Smith era filho de Margaret Douglas e de um advogado, funcionário público também de nome Adam Smith, tendo nascido em Kirkcaldy, Fife, na Escócia. O pai faleceu dois meses depois do nascimento. Apesar de a data exata do seu nascimento seja desconhecida, o seu batismo foi registado em 5 de Junho de 1723 em Kirkcaldy. Apesar de poucos acontecimentos da juventude de Smith serem conhecidos, o jornalista escocês e biógrafo de Smith, John Rae registou que Smith teria sido raptado aos quatro anos e libertado logo quando o procuraram e acharam. Em Life of Adam Smith, Rae escreve: “Em seu quarto ano, durante uma visita à casa de seu avô, em Strathendry nas margens do Leven, Smith foi roubado por uma banda de passagem de ciganos, e por um tempo não pôde ser encontrado. Mas, um cavalheiro afirmou que havia encontrado uma cigana a poucos quilômetros pela estrada carregando uma criança que chorava copiosamente. Guardas foram enviados imediatamente na direção indicada, e eles se depararam com a mulher, que os avistando jogou a criança no chão e fugiu. Smith Foi trazido, assim, de volta à sua mãe. Smith era próximo da sua mãe, que o encorajou a seguir os seus desejos de se tornar um acadêmico. Frequentou o Burgh School of Kirkcaldy — caracterizado por Rae como “uma das melhores escolas secundárias da Escócia daquele período” – entre 1729 e 1737. Na sua estadia nesse estabelecimento de ensino, Smith estudou latim, matemática, história, e escrita. 

Educação formal

Aos 14 anos, Smith matriculou-se na Universidade de Glasgow, onde estudou Filosofia moral com o “inesquecível” Francis Hutcheson. Em 1740, entrou para o Balliol College da Universidade de Oxford, mas, como disse William Robert Scott, “…Oxford deste tempo deu-lhe pouca ajuda (se é que a deu) para o que viria a ser a sua obra.” e acabou por abdicar da sua bolsa em 1746. Em 1748 começou a dar aulas em Edimburgo sob o patronato de Lord Kames. Algumas destas aulas eram de retórica e de literatura, mas mais tarde dedicou-se à cadeira de “progresso da opulência”, e foi então, em finais dos anos 1740, que ele expôs pela primeira vez a filosofia econômica do “sistema simples e óbvio da liberdade natural” que ele viria a proclamar no seu Inquérito sobre a natureza e as causas da riqueza das Nações. Por volta de 1750, conheceu o filósofo David Hume, que se tornou um dos seus mais próximos amigos. Smith também era amigo de Edmund Burke – o filósofo que viria a ser conhecido como o “pai do conservadorismo moderno” – que inclusive fez resenhas elogiosas de suas duas grandes obras, A Riqueza das Nações e Teoria sobre os Sentimentos Morais. 

Em 1751, Smith foi nomeado professor de Lógica na Universidade de Glasgow, passando, no ano seguinte, a dar a cadeira de filosofia moral.[13] Nas suas aulas, cobria os campos da ética, retórica, jurisprudência e política econômica ou ainda “política e rendimento”. 

Em 1759, publicou a Teoria dos sentimentos morais, uma das suas mais conhecidas obras, incorporando algumas das suas aulas de Glasgow. Este trabalho, que estabeleceu a reputação de Smith durante a sua própria vida, refere-se à explicação da aprovação ou desaprovação moral. A sua capacidade de argumentação, fluência e persuasão, mesmo que através de uso da retórica, estão ali bem patenteados. Ele baseia a sua explicação, não como o terceiro Lord Shaftesbury e Hutcheson tinham feito, num “sentido moral”, nem como David Hume, com base num decisivo sentido de utilidade, mas sim na empatia e simpatia. Tem havido uma controvérsia considerável quanto a saber se há ou não uma contradição ou contraste entre a ênfase de Smith na empatia (ou compaixão) como motivação humana fundamental em “sentimentos morais”, e o papel essencial do auto-interesse na “riqueza das nações”. Este parece colocar mais ênfase na harmonia geral dos motivos e atividades humanas sob uma providência benigna no primeiro livro, enquanto que no segundo livro, apesar do tema geral da “mão invisível” promovendo a harmonia de interesses, Smith encontra mais ocasiões para apontar causas de conflitos e o egoísmo estreito da motivação humana. Smith começava agora a dar mais atenção à jurisprudência e à economia nas suas aulas, e menos às suas teorias de moral. Esta ideia é reforçada pelas notas tomadas por um dos seus alunos por volta de 1763, mais tarde editadas por Edwin Cannan Aulas de justiça, polícia, rendimento e armas, 1896, e pelo que Scott, que o descobriu e publicou, descreve em “Um esboço inicial de parte da Riqueza das Nações” (“An early draft of part of the Wealth of Nations”), datado de 1763. No final de 1763, Smith obteve um posto bem remunerado como tutor do jovem duque de Buccleuch e deixou o cargo de professor. 

De 1764 a 1766, viajou com o seu protegido, sobretudo pela França, onde veio a conhecer líderes intelectuais como Turgot, d’Alembert, André Morellet, Helvétius e, em particular, François Quesnay. Depois de voltar para Kirkcaldy, dedicou muito do seu tempo nos dez anos seguintes à sua magnum opus, que surgiu em 1776. 

Em 1778, recebeu um posto confortável como comissário da alfândega da Escócia e foi viver com a sua mãe em Edimburgo. Faleceu na capital escocesa a 17 de julho de 1790, depois de uma doença não especificada. Encontra-se sepultado em Canongate Churchyard, Edimburgo, na Escócia. Tinha aparentemente dedicado uma parte considerável dos seus rendimentos a numerosos atos secretos de caridade. 

Personalidade 

Pouco se sabe sobre as visões pessoais de Smith além do que pode ser deduzido de suas publicações. Seus escritos pessoais foram destruídos após sua morte a seu pedido. Ele nunca se casou, parece ter tido uma relação estreita com sua mãe, com quem viveu após seu retorno da França e que morreu seis anos antes de sua própria morte. 

Smith foi descrito pela maioria de seus contemporâneos e biógrafos comicamente como um distraído, com uma peculiaridade na fala e ao andar, e portador de um indescritível sorriso. Tinha mania de conversar consigo mesmo, um hábito que começou durante sua infância, quando ele sorria na conversa extasiada com companheiros invisíveis. Ocasionalmente também tinha doenças imaginárias. Também foi descrito envolto em altas pilhas de livros em seus momentos de estudo. 

De acordo com algumas histórias, Smith disse a Charles Townshend que em uma visita a uma fabrica de couros, enquanto discutia sobre o livre mercado, sem perceber, caiu em um buraco de cortume, onde precisou de ajuda para sair. Certa vez disse que, também devido sua distração, colocou pão com manteiga dentro de um bule e ao beber aquela mistura, declarou ter bebido o pior chá já feito por ele. Em outro conto, Smith disse ter se distraído em uma caminhada e só percebeu que atravessara 24 quilômetros para fora da cidade, e só retornou à realidade após os sinos de uma igreja próxima o tocarem. 

James Boswell que foi um estudante de Smith na Universidade de Glasgow, que mais tarde seria seu companheiro em um clube literário, disse que Smith pensava que ao falar sobre suas ideias poderia reduzir a venda de seus livros, o que fazia de suas falas discursos inexpressivos. De acordo com Boswell, ele certa vez disse a Sir Joshua Reynolds que “Quando em companhia tinha uma regra, jamais falar sobre o que entendido por ele”. 

Posição face à situação nos Estados Unidos 

Na sua estada em Glasgow, onde foi professor na universidade local entre 1751 e 1764, Adam Smith travou contato com vários dos comerciantes de tabaco da cidade, como por exemplo John Glassford. Estes punham-no a par dos últimos acontecimentos nas colônias inglesas, nas quais os ingleses impunham uma restritiva política econômica, como altos impostos e frequentemente situações de monopólio. As manufaturas inglesas tinham nas colônias americanas um importante cliente, e alguns empresários influentes exigiram junto ao parlamento inglês que fosse proibido aos norte-americanos a produção de bens similares, a fim de proteger seus negócios. Adam Smith sabia que estas restrições acabariam por resultar na revolta dos americanos. A solução de Adam Smith para as colónias americanas era fomentar o livre comércio, acabar com os pesados impostos aduaneiros e restrições comerciais e oferecer às colônias uma representação política no parlamento de Westminster. 

Obra 

Nos seus últimos anos de vida, Smith compôs manuscritos para dois grandes tratados que esperava publicar, um sobre a teoria e história do Direito e outro sobre ciências e artes. Pouco antes da sua morte, porém, Smith ordenou que seus manuscritos fossem destruídos, com exceção de alguns poucos textos avulsos, que seriam publicados postumamente em 1795, no volume Essays on philosophical subjects (Ensaios sobre temas filosóficos).

Teoria dos Sentimentos Morais

Em 1759, Smith publicou seu primeiro trabalho, A Teoria dos Sentimentos Morais (The Theory of Moral Sentiments no original). Continuou a fazer grandes revisões do livro até à sua morte. Apesar de A Riqueza das Nações ser considerada como a obra mais influente de Smith, acredita-se que o próprio Smith considerasse a Teoria dos Sentimentos Morais uma obra superior. 

Na obra, Smith examina criticamente o pensamento moral do seu tempo, e sugere que a consciência surge das relações sociais. Com a sua obra pretende explicar a origem da capacidade da humanidade em formar juízos morais, apesar da natural tendência dos homens ao auto-interesse. Smith propõe uma teoria da simpatia, em que o ato de imaginar-se no lugar dos outros torna as pessoas conscientes de si e da moralidade de seu comportamento. 

Estudiosos do século XIX apontaram o que ficou conhecido como Das Adam Smith Problem, isto é, um conflito entre o argumento da Teoria dos Sentimentos Morais e a visão prevalecente em A Riqueza das Nações: a primeira enfatizaria a simpatia, enquanto a segunda focaria no papel do auto-interesse. Deve-se apontar que a visita de Smith a França (1764-1766) influenciou a última obra mas não a primeira. De certa forma, A Riqueza das Nações só pode ser compreendida no quadro de referência da economia política dos fisiocratas (e de Quesnay, em particular). Nos últimos anos, porém, a maioria dos estudiosos da obra de Smith têm argumentado que não existe contradição. Em A Teoria dos Sentimentos Morais, Smith postula que os indivíduos buscam a aprovação através do “observador imparcial” que é resultado de um ato de imaginação, em que o agente busca observar sua própria ação de um ponto de vista imparcial, para bem julgá-la moralmente. As obras, portanto, enfatizam aspectos diferentes da natureza humana, que variam dependendo da situação. A Riqueza das nações baseia-se em situações onde a moralidade do homem é susceptível de desempenhar um papel menor, como o trabalhador envolvido na elaboração do trabalho, enquanto que a Teoria dos Sentimentos Morais se centra em situações onde a moralidade do homem é susceptível de desempenhar um papel dominante entre as relações intercambiáveis das pessoas. Um dos aspectos mais importantes ressaltados aqui por Adam Smith é o caráter democrático. A economia, na forma como Smith a via, como era o caso do comércio, tinha como efeito positivo a liberação dos pobres de sua dependência em relação aos ricos. Smith não utilizava a divisão de classes, mas partia de uma estrutura baseada na origem da renda obtida e, nesse sentido, os trabalhadores não seriam a classe inferior, mas a intermediária, pois seriam os parceiros mais diretos no empreendimento econômico, de tal forma que jamais se poderia violar o sagrado direito de propriedade deles sobre seu trabalho. O comércio também é visto como um impulso natural, o que tornaria um traço elementar e “comum a todos os homens”, e que faria do trabalhador um ser moral, da mesma forma que os sentimentos morais formavam a base de uma sociedade boa e justa. A noção preponderante em Smith sobre a natureza humana seria a da igualdade, não a política ou econômica, tampouco a sociedade, mas uma igualdade básica entre os homens, os quais, por meio da educação poderão se tornar, inclusive filósofos. 

Riqueza das Nações 

A Riqueza das Nações foi muito influente, uma vez que foi uma grande contribuição para o estudo da economia e para a tornar uma disciplina independente. Este livro tornar-se-ia uma das obras mais influentes no mundo ocidental. 

Quando o livro, que se tornaria um estudo contra o mercantilismo, foi publicado em 1776, havia um sentimento forte contra o livre comércio, quer no Reino Unido como também nos Estados Unidos. Esse novo sentimento teria nascido das dificuldades econômicas e as privações causadas pela guerra. No entanto, ao tempo da publicação nem toda a gente estava convencida das vantagens do livre comércio: o parlamento inglês, a oligarquia rentista local e o público em geral continuariam apegados ao mercantilismo por muitos anos. 

A Riqueza das nações, e também a Teoria dos sentimentos morais, este de menor impacto, tornaram-se ponto de partida para qualquer defesa ou crítica de formas do comunismo, nomeadamente influenciando a escrita de Karl Marx e de economistas humanistas. Em anos recentes, muitos afirmaram que Adam Smith foi tomado de rapto por economistas liberais (Laissez-faire economists) e que como a Teoria dos sentimentos morais mostra, Smith tinha uma inclinação pelo humanismo. 

Tem havido alguma controvérsia sobre a extensão da originalidade de Smith em Riqueza das nações; alguns argumentam que esta obra acrescentou pouco às ideias estabelecidas por pensadores como David Hume e Montesquieu. No entanto, ela permanece como um dos livros mais influentes neste campo até hoje. A obra de Smith é aclamada quer pelo mundo acadêmico como na prática. O primeiro-ministro britânico William Pitt, a braços com a derrocada econômica e social dos anos que se seguiram à independência americana, foi um partidário do comércio livre e chamou Riqueza das nações de “a melhor solução para todas as questões ligadas à história do comércio e com o sistema de economia política”. 

A obra Riqueza das Nações popularizou-se pelo uso da expressão da mão invisível do mercado. Segundo Adam Smith os agentes econômicos atuando livremente chegariam a uma situação de eficiência, dispensando assim a ação do Estado para esse efeito. Assim, atuando de forma livre, os mercados seriam regidos como se por uma mão invisível que o regula automaticamente sempre chegando a situação ótima ou de máxima eficiência. Curiosamente a expressão aparece apenas uma vez na obra Riqueza das Nações. Hoje, a teoria da mão invisível tem aplicações em muitos campos da economia. 

Apesar disso, ele era por vezes tolerante à intervenção estatal nos bancos no combate a pobreza, e na promoção da equidade, se as regulações apoiassem o trabalhador. Também nessa obra, ele se mostra a favor das moedas nacionais, reguladas pelo Estado e que fossem emitidas em função da mais-valia e não em função da dívida. Ele também afirma que o principal problema das relações econômicas da época era a falta de probidade e de pontualidade, o que gerava uma crise de confiança e defendia uma regulação no mercado financeiro. Ele ainda foi crítico da guerra. 

Críticas e posições divergentes 

Alfred Marshall criticou a definição de economia de Smith em vários pontos. Ele argumentou que o homem deve ser tão importante quanto o dinheiro, os serviços são tão importantes quanto os bens, e que deve haver uma ênfase no bem-estar humano, em vez de apenas na riqueza. A “mão invisível” só funciona bem quando tanto a produção como o consumo opera em mercados livres, com pequenos (“atomistas”) produtores e consumidores, permitindo que a oferta e a procura flutuem e se equilibrem. Em condições de monopólio e oligopólio, a “mão invisível” falha. O economista ganhador do prêmio Nobel Joseph E. Stiglitz diz, sobre o tema de uma das mais conhecidas ideias de Smith: “a razão que a mão invisível muitas vezes parece invisível é que muitas vezes ela não está lá.”

Muitos críticos veem incoerência entre o filósofo moral e o economista político, muito embora vários dos elementos de A Riqueza das Nações (1776) já estariam presentes em Teoria dos Sentimentos Morais (1759). Alguns autores alegam que a obra de economia refutava as ideias morais, ou, ao menos, retirava da teoria econômica os aspectos morais da primeira obra. 

Outra crítica sobre o conceito da mão invisível seria a de que ela traria muita liberdade ao indivíduo, o que seria uma forma de sancionar as ações daqueles que tinham vistas apenas ao interesse próprio, não sendo, assim, a propriedade à promoção do interesse de uma coletividade. Essa ideia, que é em geral citada a partir de A Riqueza das Nações, já estava presente na Teoria dos Sentimentos Morais, com a mesma forma e o mesmo sentido.

Veja mais:

De opiniões divergentes, outros pensadores alegam que o conceito de Smith caminha, antes, na direção do encontro de múltiplos interesses individuais, o que seria a forma mais segura para promover o bem coletivo, materializado no incremento da riqueza da nação, entendida aqui como o povo que a compunha, como as pessoas que “vivem e trabalham na sociedade”. A riqueza desse povo é que seria aumentada a partir de uma política econômica que privilegiasse a Liberdade. Smith era da opinião de que o aumento da riqueza individual (salários mais elevados) seria um fator de estimulo ao maior envolvimento com o trabalho, o que teria como consequência o aumento geral da riqueza de todos. A Busca da melhoria de vida em uma economia mercantilista faria parte de uma visão que valoriza a liberdade acima de tudo em seus diversos aspectos: não apenas a liberdade econômica, mas também civil e religiosa. A liberdade seria, assim, o maior estímulo ao comércio.

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Índice de Conteúdo

Abraham Lincoln (Hodgenville, 12 de fevereiro de 1809 — Washington, D.C., 15 de abril de 1865) foi um político norte-americano que serviu como o 16° presidente dos Estados Unidos, posto que ocupou de 4 de março de 1861 até seu assassinato em 15 de abril de 1865. Lincoln liderou o país de forma bem-sucedida durante sua maior crise interna, a Guerra Civil Americana, preservando a União e abolindo a escravidão, fortalecendo o governo nacional. 

Criado em uma família carente na fronteira oeste, Lincoln foi autodidata, se tornou um advogado, líder do Partido Whig, deputado estadual de Illinois durante os anos de 1830, e membro da Câmara dos Representantes por um mandato durante a década de 1840. Após uma série de debates em 1858 que repercutiu em todo o país mostrando a sua oposição à escravidão, Lincoln perdeu uma disputa para o Senado a seu arquirrival Stephen A. Douglas. Lincoln, um moderado de um swing state (estado decisivo), garantiu a nomeação para a candidatura presidencial de 1860 pelo Partido Republicano.

Com quase nenhum apoio do Sul do País, ele percorreu o Norte e foi eleito presidente. Sua eleição fez com que sete estados escravistas do sul declarassem cessão à União e formassem os Estados Confederados da América. A ruptura com os sulistas fez com que o partido de Lincoln obtivesse amplo controle do Congresso, mas nenhuma ação ou reconciliação foi feita. Em seu segundo discurso de posse, ele explicou que “ambas as partes depreciaram a guerra, mas um deles faria guerra ao invés de permitir a sobrevivência da Nação, e o outro aceitaria a guerra ao invés de deixar esta perecer, e veio a guerra.”

Quando o Norte com entusiasmo optou pela União nacional após o ataque confederado no Forte Sumter em 12 de abril de 1861, Lincoln concentrou os esforços militares e políticos na guerra. Seu objetivo neste momento era unir a nação. Como o Sul estava em rebelião, Lincoln exerceu sua autoridade para suspender habeas corpus, prender e deter temporariamente milhares de separatistas suspeitos sem julgamento. Lincoln evitou o reconhecimento do Reino Unido para com os Confederados, tendo habilmente lidado com o conflito diplomático do incidente Trent Affair no final de 1861.

Seus esforços para a abolição da escravidão incluíram a assinatura da lei de Proclamação de Emancipação em 1863, encorajando os estados escravocratas de fronteira (border states) a tornarem a escravidão ilegal, e dando impulso ao Congresso para a aprovação da Décima Terceira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, que finalmente pôs fim a escravidão em dezembro de 1865. Lincoln supervisionou ostensivamente os esforços de guerra, especialmente na escolha de generais importantes, incluindo o comandante geral Ulysses S. Grant.

Lincoln reuniu os líderes das maiores facções de seu partido em seu governo e pressionou-os a cooperarem. Sob a liderança de Lincoln, a União criou um bloqueio naval que fechou o comércio normal com o Sul, assumiu o controle dos border states no início da guerra, ganhou o controle das comunicações com canhoneiras nos sistemas fluviais do Sul, e tentou repetidamente capturar a capital confederada de Richmond (Virgínia). A cada general que não obteve sucesso, Lincoln os substituiu até que finalmente Grant obteve êxito em 1865. 

Um político excepcionalmente astuto e profundamente envolvido com questões de poder em cada estado, Lincoln apoiou os War Democrats e conseguiu sua reeleição em 1864. Como líder de uma facção moderada do Partido Republicano, Lincoln notou que suas políticas e personalidade haviam “explodido para todos os lados”: os “Republicanos Radicais” exigiam um severo tratamento com o Sul, os War Democrats desejavam um maior comprometimento (os “Copperheads”, democratas pacifistas, desprezavam os membros do seu partido que defendiam o conflito), e os secessionistas irreconciliáveis tramaram o seu assassinato.

Politicamente, Lincoln reagiu, colocando seus oponentes um contra o outro, e apelando para o povo americano com seu poder de oratória. O seu Discurso de Gettysburg de 1863 tornou-se um dos discursos mais citados na história dos EUA, e foi um ícone de demonstração dos princípios de nacionalismo, republicanismo, igualdade, liberdade e democracia. Ao fim da guerra, Lincoln teve uma visão moderada sobre a Reconstrução, buscando reunir a nação rapidamente através de uma política de reconciliação generosa em face da persistente amarga divisão. Seis dias depois de o general Robert E. Lee das forças Confederadas se render, Lincoln foi assassinado pelo ator e simpatizante confederado John Wilkes Booth, sendo o primeiro presidente dos Estados Unidos a ser assassinado e fazendo o país entrar em luto. Lincoln tem sido consistentemente considerado por estudiosos e pelo povo como um dos três maiores presidentes dos Estados Unidos. 

Família e infância 

Primeiros anos

Abraham Lincoln nasceu em 12 de fevereiro de 1809, o segundo filho de Thomas Lincoln e Nancy Lincoln (nome de solteira: Hanks) num quarto de uma cabana na Fazenda Sinking Spring no Condado de Hardin (Kentucky), atual Condado de LaRue). Ele descende de Samuel Lincoln, originário do condado de Norfolk na Inglaterra, este que partiu para Hingham no estado americano de Massachusetts no século XVII. O avô paterno de Lincoln, que tinha o mesmo nome, Abraham, mudou-se da Virgínia para o Kentucky, onde ele foi emboscado e morto por um ataque indígena em 1786 na presença de seus filhos, incluindo Thomas que ficou paralisado. A mãe de Lincoln, Nancy, nasceu no atual Condado de Mineral da Virgínia Ocidental e era filha de Lucy Hanks, posteriormente, elas foram viver no Kentucky. Nancy Hanks se casou com Thomas, que se tornou um respeitável cidadão. Ele comprou e vendeu várias fazendas, incluindo a Fazenda Knob Creek (residência de Lincoln de 1811 a 1816). A família participou de uma Igreja Batista que tinha normas morais e oposição a bebida alcoólica, dança e escravidão. Thomas gozava de considerável status no Kentucky, onde ele participou de jurados, avaliava o valor de propriedades, participou de patrulhas de vigilância a escravos no país, e vigiava prisioneiros. No momento em que seu filho Abraham nasceu, Thomas possuía duas fazendas de 600 acres (240 hectares), diversos lotes na cidade, gado e cavalos, estando entre os homens mais ricos do condado. No entanto, em 1816, Thomas perdeu toda a sua terra em processos judiciais por causa de títulos de propriedade com erros. br>br> A família se mudou para o norte, atravessando o Rio Ohio em direção a um território não escravista no qual fez-se um novo capítulo de suas vidas no que era o então Condado de Perry (atual Condado de Spencer) no Indiana. Lincoln observou que esta mudança foi “particularmente devida a escravidão”, mas principalmente devido às dificuldades com título de terra. Em Indiana, Lincoln estava com nove anos quando sua mãe morreu em decorrência da ingestão de leite contaminado pela toxina da planta serpentária branca em 5 de outubro de 1818. A irmã mais velha, Sarah, ficou encarregada de cuidar dele até o ano seguinte, quando seu pai se casou novamente. Ela morreu com vinte anos de idade ao dar à luz a um natimorto em 1828. 

A nova esposa de Thomas Lincoln era a viúva Sarah Bush Johnston, mãe de três crianças. Abraham se tornou muito próximo a sua madrasta e se referia a ela como “mãe”. Um pré-adolescente, não gostava de trabalhos difíceis associados com aquele estilo de vida do Velho Oeste. Alguns familiares, e na vizinhança, por um tempo o consideraram ocioso. Com o amadurecimento na adolescência, ele voluntariamente assumiu as responsabilidades por todos os trabalhos esperados para um menino em um lar e se tornou um lenhador em seu trabalho construindo cercas. Ele alcançou reputação através de sua audácia e força corporal após uma luta muito competitiva de wrestling para o qual foi desafiado por um conhecido líder do grupo de desordeiros “os meninos do Bosque de Clary” (“the Clary’s Grove boys”). Em sua juventude foi considerado um bom lutador, apesar de não se tratar de competições profissionais, o que seria mencionado em suas campanhas políticas por seus apoiantes e oponentes. Lincoln concordou com a obrigação habitual de um filho dar ao seu pai todos os rendimentos de seu trabalho feito antes dos 21 anos, e, mesmo nos anos seguintes, emprestou dinheiro para o pai. Apesar disso, os dois se distanciaram, em parte por causa da ausência de educação paternal. Enquanto a educação formal do jovem consistiu em aproximadamente um ano de aula de vários professores itinerantes, foi essencialmente um autodidata e foi um ávido leitor tendo muitas vezes buscado novos livros no povoado. Ele leu e releu a Bíblia da Versão Autorizada do rei Jaime, as fábulas de Esopo, O Peregrino de Bunyan, Robinson Crusoe de Defoe, e a Autobiografia de Benjamin Franklin. 

Em 1830, temendo um surto de leite contaminado por uma toxina ao longo do Rio Ohio — doença que já havia provocado a morte da mãe de Lincoln — a família se estabeleceu em terras públicas no Condado de Macon, no estado não escravista de Illinois. Em 1831, Thomas mudou a família para uma nova propriedade rural cedida pelo governo no Condado de Coles, no mesmo estado. Aos 22 anos de idade, com idade suficiente para tomar suas próprias decisões, o ambicioso Lincoln desceu à canoa o rio Sangamon, chegando a vila de New Salem (Condado de Sangamon). Na primavera de 1831, fora contratado junto de amigos pelo empresário Denton Offutt para transportar mercadorias pelos rios Illinois e Mississippi, indo de New Salem à Nova Orleans. Ao chegar em Nova Orleans, testemunhou práticas da escravidão, e voltou para a casa. 

Casamento e filhos 

O primeiro interesse romântico de Lincoln foi Ann Rutledge, a qual ele conheceu quando se mudou para Nova Salem; em 1835 tiveram um relacionamento informal. Ann morreu aos 22 anos em 25 de agosto de 1835, provavelmente de febre tifoide. No início da década de 1830, conheceu Mary Owens do estado de Kentucky quando ela estava visitando sua irmã. No final de 1836, Lincoln concordou em corresponder à Mary caso ela retornasse a Nova Salem. Mary voltou em novembro de 1836, e Lincoln a cortejou por um certo tempo, porém, ambos tinham dúvidas sobre a relação deles. Em 16 de agosto de 1837, Lincoln escreveu uma carta para Mary sugerindo que ele não iria culpá-la se ela terminasse o namoro. Ela nunca respondeu e pôs fim. Em dezembro de 1839, Lincoln conheceu Mary Todd em Springfield (Illinois), vindo a noivarem um ano depois. Mary Todd nasceu em uma família rica e escravista de Lexington (Kentucky). O casamento estava agendado para 1 de janeiro de 1841 quando os dois romperam o noivado por iniciativa dele. Posteriormente, eles se encontraram novamente em uma festa e se casaram em 4 de novembro de 1842, em Springfield, na mansão da irmã de Mary. Enquanto se preparava para as núpcias e sentindo ansiedade, Lincoln, ao lhe perguntarem onde estava indo, respondeu: “Para o inferno, eu suponho”. 

Em 1844, o casal comprou uma casa em Springfield, próximo ao escritório de advocacia de Lincoln. Mary Todd Lincoln cuidava do lar, muitas vezes com a ajuda de um parente ou empregada contratada. Robert Todd Lincoln nasceu em 1843 e Edward Baker Lincoln (Eddie) em 1846. Lincoln “foi notavelmente apaixonado pelas crianças”, e o casal não era considerado rigoroso com seus filhos. Edward morreu em 1 de fevereiro de 1850 em Springfield, provavelmente de tuberculose. “Willie” Lincoln nasceu em 21 de dezembro de 1850, e morreu em 20 de fevereiro de 1862. O quarto filho, Thomas “Tad” Lincoln, nasceu em 4 de abril de 1853, e morreu aos 18 anos em 16 de julho de 1871 causado possivelmente por tuberculose, problemas pulmonares, pneumonia, ou insuficiência cardíaca. Robert foi o único a viver até a idade adulta e ter filhos. Seu último descendente, o neto Robert Todd Lincoln Beckwith, morreu em 1985. 

A morte dos filhos teve profundos efeitos nos pais. Abraham Lincoln sofria de “melancolia”, uma condição que atualmente é conhecido como depressão clínica. Mais tarde, Mary lutou contra o stress pela perda do marido e dos filhos, sofrendo de alucinações a partir de 1871; Robert Lincoln instaurou um processo alegando demência da mãe e consegue interná-la em um asilo em Batavia (Illinois) em 1875, sendo libertada quatro meses depois com a ajuda da primeira advogada de Illinois, Myra Bradwell. Ela viveu quatro anos no município de Pau (França), onde sofreu uma lesão na espinha ao cair duma escada. Doente, volta para a casa da irmã e morre em 15 de julho de 1882. 

O sogro de Lincoln vivia em Lexington (Kentucky); este e outros da família Todd conviviam entre proprietários de escravos ou comerciantes de escravos. Lincoln era muito próximo dos Todds, e sua família ocasionalmente visitava a propriedade Todd em Lexington. Lincoln era afetuoso, embora frequentemente ausente, esposo e pai de quatro filhos. 

Início de carreira e serviço militar

Em 1832, aos 23 anos de idade, Lincoln e um sócio compraram uma pequena loja em New Salem (Illinois). Embora a economia estivesse crescendo na região, houve esforço na atividade econômica exercida, e Lincoln eventualmente vendeu sua parte. Naquele mês de março ele iniciou sua carreira política com a primeira campanha para a Assembleia Geral de Illinois (legislatura estadual). Ele alcançou popularidade local e poderia atrair uma considerável quantidade de pessoas como um contador de histórias em New Salem, embora não possuísse uma educação formal, amigos influentes e dinheiro, o que pode ter sido a causa de sua derrota na disputa política na qual defendeu melhorias na navegação no Rio Sangamon. Antes da eleição, Lincoln serviu como capitão em uma milícia de Illinois durante a Guerra de Black Hawk. Ao retornar, continuou sua campanha para a eleição em 6 de agosto para a Assembleia Geral de Illinois. Com um metro e noventa e três centímetros (193 cm), ele era alto e “forte o bastante para intimidar qualquer rival”. Em seu primeiro discurso, ao ver um apoiante seu sendo atacado, Lincoln segurou o agressor pelo “pescoço e o assento das calças” e o jogou. Lincoln terminou em oitava posição entre treze candidatos (os quatro primeiros foram eleitos) apesar de ter recebido 277 dos 300 votos no distrito eleitoral de New Salem. 

Lincoln serviu como agente do correio em New Salem e posteriormente como inspetor do condado. Sempre teve o hábito de realizar leituras. Lincoln decidiu se tornar advogado, e para isso iniciou estudos sobre legislação lendo o livro “Comentários sobre as Leis da Inglaterra” do jurista William Blackstone e outros livros, “mergulhando no assunto a sério” por dois anos. De seu método de ensino, Lincoln declarou: “Eu estudei sozinho”. Sua segunda campanha em 1834 o elegeu para a legislatura estadual pelo Partido Whig, tendo recebido apoio de muitos democratas. Ao ser aprovado no exame de admissão para o exercício da advocacia em 1836, se mudou para Springfield (Illinois), trabalhando junto com o colega John Todd Stuart, primo de sua esposa. Lincoln se tornou um ágil advogado com a reputação de ser um adversário formidável durante os interrogatórios e argumentos finais. De 1841 a 1844, Stephen T. Logan se tornou seu sócio, depois trabalhou com William Herndon, cujo acreditou ser “um jovem estudioso”. Lincoln foi membro da Câmara dos Representantes pelo Partido Whig em quatro mandatos consecutivos pelo Condado de Sangamon. 

Nas atividades legislativas de 1835 a 1836, Lincoln votou para expandir o sufrágio dos homens brancos, seja proprietário de terra ou não. Tornou-se conhecido pela defesa da postura “free soil” (solo livre) em oposição tanto a escravidão quanto o abolicionismo, falando pela primeira vez sobre o tema em 1837, afirmou que “[A] instituição da escravidão está fundada na injustiça e na má política, mas a promulgação das doutrinas abolicionistas tende mais propriamente a aumentar do que diminuir tais males.” Acompanhou de perto Henry Clay no apoio do programa American Colonization Society para fazer com que a abolição prática da escravidão ajudasse os escravos libertos a se fixarem no país africano de Libéria. 

Congressista Lincoln

No início da década de 1830, Lincoln era um forte partidário Whig e proferiu aos seus colegas em 1861 para serem “um tradicional Whig, um discípulo de Henry Clay”. O partido, incluindo Lincoln, favoreceu a modernização econômica no setor bancário, tarifas protecionistas para financiar melhorias internas no avanço de ferrovias e urbanização. 

Em 1846, eleito para Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, serviu por um mandato de dois anos como sendo o único Whig na delegação do estado de Illinois, mostrou lealdade ao seu partido por participar em quase todas as votações e fazer discursos remetidos as ideias partidárias. Em colaboração com o congressista abolicionista Joshua R. Giddings, Lincoln elaborou um projeto de lei para abolir a escravidão no Distrito de Columbia com a indenização para com os proprietários, captura dos escravos fugitivos e um plebiscito sobre a questão. No entanto, ele não deu seguimento a proposta ao passo que não obteve apoio suficiente de seus partidários Whigs. Sobre políticas externas e militares, posicionou-se contra a Guerra Mexicano-Americana, atribuindo como o desejo do presidente James K. Polk (D) para a “glória militar, esse atrativo arco-íris, que se levanta em chuvas de sangue”. Lincoln apoiou o Wilmot Proviso, que, se aprovado, teria banido a escravidão nos novos territórios conquistados do México. 

Lincoln enfatizou sua oposição ao presidente Polk através de uma série de resoluções; a guerra havia iniciado com um massacre do México para com os soldados americanos em território disputado pelo México e os Estados Unidos; Polk insistiu que os soldados mexicanos tinham “invadido nosso território e derramado o sangue dos nossos concidadãos em nosso próprio solo”. O congressista exigia que Polk mostrasse o local exato no qual ocorreu o derramamento de sangue e que provasse que aquele território era americano. O Congresso nunca aprovou essa resolução ou sequer debateu-a, os jornais nacionais o ignoraram, e o resultado foi uma consequente perda de apoio político em seu distrito. Lincoln se arrependeu de algumas de suas declarações, especialmente o ataque aos poderes bélicos do presidente. 

Percebendo ser pouco provável que Henry Clay conseguisse ser candidato presidencial e se elegesse, Lincoln, que em 1846 tinha prometido a servir por apenas um único mandato na Câmara dos Representantes, apoiou a pré-candidatura do general Zachary Taylor no Partido Whig para a eleição presidencial de 1848. Taylor venceu e Lincoln esperava ser nomeado para comandar o General Land Office, mas o lucrativo emprego foi para um rival de Illinois, Justin Butterfield, considerado pela administração como sendo um advogado altamente habilidoso, mas na visão de Lincoln, um “velho antiquado”. A administração ofereceu-lhe como recompensa de consolação a função de secretário ou governador do Território de Oregon, um território distante e extremamente Democrata, o que na prática representava efetivamente o fim de sua carreira política, de forma a qual recusou a proposta e se dedicou às funções de advocacia. 

Advogado interiorano

Após um período interrupto de seus exercícios de Direito quando congressista, Lincoln voltou a fazê-lo em Springfield, lindando com “todo o tipo de negócios que viria perante um advogado interiorano”. Como de hábito, Lincoln realizava dois circuitos por ano (num total de dezesseis anos), viagens que duravam cerca de dez semanas em cada circuito, tendo comparecido as sedes de condados na região central do estado quando as cortes do condado estavam em sessão. De tal forma ele percorria o seu estado aceitando casos que lhe eram apresentados. Lincoln tratou de muitos casos referentes a meios de transportes na expansão para o Oeste do país, particularmente nos conflitos decorrente das operações das barcaças sob as muitas novas pontes ferroviárias. Como um barqueiro, inicialmente defendeu tais interesses, mas posteriormente representou qualquer um que lhe contratasse. Sua reputação aumentou, e compareceu diante da Suprema Corte dos Estados Unidos, discutindo sobre um caso envolvendo um barco que afundou após bater em uma ponte. Em 1849, Lincoln patenteou um dispositivo de flutuação para a movimentação de barcos em águas rasas. A ideia nunca foi comercializada, mas ele foi o único presidente a obter uma patente. Em 1851, Lincoln representou a companhia ferroviária “Alton & Sangamon Railroad” em uma disputa com um de seus acionistas, James A. Barret, que tinha se negado a comprar ações da ferrovia como prometido, sob o argumento de que a empresa mudou as rotas de trens originalmente traçadas. Lincoln persuadiu que a companhia de trens não estava através de seu alvará original comprometida na existência do compromisso firmado naquela época com Barret; o alvará estava retificado pelos interesses públicos mais recentes estipulados, superiores, numa rota menos dispendiosa, de forma que a corporação preservava os direitos de pagamentos requisitados para Barret. A decisão da Corte Suprema de Illinois foi citada por numerosas outras cortes na nação, Lincoln apareceu antes em 175 casos, em 51 deles oferecendo conselhos, dos quais 31 foram decididos a seu favor. De 1853 a 1860, outro notório cliente de Lincoln foi a “Illinois Central Railroad”. 

O julgamento criminal mais notável do qual Lincoln participou ocorreu em 1858 quando defendeu William “Duff” Armstrong, réu acusado de assassinar James Preston Metzker. A fama ao caso se dá pelo uso de um fato estabelecido por notificação judicial contrariando a credibilidade de uma testemunha ocular. Após uma testemunha afirmar que viu o crime sendo realizado sob a luz do luar, Lincoln apresentou o Farmers’ Almanac (periódico estadunidense astronômico e meteorológico), mostrando que a lua estava a um ângulo baixo de forma que reduziu drasticamente a visibilidade. Baseado nesta evidência, Armstrong foi absolvido. Lincoln raramente levantava objeções no tribunal, porém em um caso de 1859 ao defender um primo, Peachy Harrison, acusado de esfaquear uma vítima até a morte, o advogado protestou furiosamente a decisão do juiz por ter excluído evidências favoráveis ao seu cliente. O juiz, um democrata, poderia tê-lo prendido por desacato ao tribunal, mas reverteu sua decisão e permitiu as evidências que levaram a absolvição de Harrison. 

Mesmo que tivesse bons rendimentos, manteve seu “hábitos simples e modestos”, cobrando pouco pelos seus serviços, uma vez que seus clientes não eram em sua maioria detentores de riquezas. Em 1850, diferentemente da elite política, ele resistiu à especulação de terras. O preço dos honorários variavam entre 2,50 e 50 dólares, quando chegavam a altas instâncias, em tribunais federais e a Suprema Corte, esse valor podia chegar a até 100 dólares. Anualmente, seu escritório faturava cerca de 1 200 a 1 500 dólares. Durante 25 anos de advocacia, Lincoln dedicou-se principalmente a questões relacionadas com propriedade. Em seu primeiro ano de trabalho, assumiu 91 casos, dois terços ligados a dívidas. De 1837 a 1861, recebeu 5 600 casos, sendo 194 criminais e 17 assassinatos notórios; as disputas de terras nas estradas de ferro no estado eram as mais movimentadas e lucrativas. Bem-humorado, tinha a habilidade para apontar contradições em depoimentos. O colega William Herndon afirmou que “seu raciocínio lógico, analógico e comparativo era certeiro e mortal”. 

Políticas do Partido Republicano (1854-1860) 

A escravidão e a “Casa Dividida”

Na década de 1850 a escravidão era legalmente aceita no sul dos Estados Unidos, mas tinha sido generalizadamente proibida nos estados do norte. Lincoln tinha repúdio dessa prática que se expandia pelos novos territórios à Oeste. Voltou para a política a fim de se opor ao Ato de Kansas-Nebraska (1854) que permitia a expansão da escravidão que havia sido restringida pelo Compromisso do Missouri (1820). O senador sênior Stephen A. Douglas de Illinois inseriu o conceito de soberania popular numa proposta, a qual Lincoln se opôs, especificava que os colonizadores tinham o direito de determinar localmente se consentiriam com a escravidão no novo território, em vez de restringir a decisão para o Congresso Nacional. Eric Foner (2010) diferencia os abolicionistas e radicais republicanos do Nordeste que viam a escravidão como um pecado, enquanto os conservadores republicanos pensavam que era maléfico por ferir as pessoas brancas e impedir o progresso. Foner argumenta que Lincoln era um moderado, opondo-se a escravidão primariamente por violar os princípios republicanos dos Pais Fundadores, especialmente a igualdade de todos os homens e democraticamente o próprio governo como expresso na Declaração de Independência. 

Em 16 de outubro de 1854, em seu discurso de Peoria, Lincoln declarou oposição a escravidão. Falando em sotaque de Kentucky, com uma voz muito forte, disse que o Ato de Kansas tinha “declarado indiferença, mas como eu posso pensar, um verdadeiro zelo secreto para a propagação da escravidão. Eu não posso, mas eu odeio isso. Eu odeio isso por causa de uma injustiça monstruosa da prória escravidão. Eu odeio isso porque priva o nosso exemplo republicano de ser a única influência no mundo …” No final de 1854, Lincoln disputou uma vaga para o Senado federal pelo estado de Illinois pelo Partido Whig. Naquele tempo, os senadores eram eleitos pelo Legislativo estadual. Após liderar as seis primeira rodadas de votação na Assembleia de Illinois, a sua força política começou a diminuir, e Lincoln instruiu seus partidários a votarem em Lyman Trumbull, que se elegeu, derrotando o seu oponente Joel Aldrich Matteson. Os Whigs tinham sido irreparavelmente divididos pelo Ato de Kansas-Nebraska. Lincoln escreveu, “Eu acredito ser um Whig, mas os outros dizem que não há Whigs, e que eu sou um abolicionista, apesar de eu não fazer mais do que se opor a expansão da escravidão.” Baseando-se em remanescentes do velho Partido Whig, e em membros desiludidos dos partidos Solo Livre, Liberdade e Democrata, ele foi fundamental para forjar o molde do novo Partido Republicano. Na Convenção Nacional Republicana de 1856, Lincoln obteve a segunda colocação para a nomeação do candidato a vice-presidente. 

Em 1857 e 1858, Douglas divergiu com o presidente James Buchanan, levando a uma disputa pelo controle do Partido Democrata. Alguns republicanos da parte Oeste da nação viram-se favoráveis a reeleição de Douglas para o Senado em 1858, desde que ele liderasse a oposição com a relação a segunda proposta de constituição estadual do Kansas (Lecompton Constitution), na qual consentia que o Kansas fosse um estado escravocrata. Em março de 1857, a Suprema Corte emitiu a decisão para o Caso Dred Scott, o chefe de justiça Roger B. Taney concluiu que os negros não eram considerados cidadãos, e portanto não estavam protegidos pelos direitos constitucionais. Lincoln atacou a decisão por considerá-la o produto duma conspiração dos democratas. Lincoln argumentou que os “autores da Declaração de Independência nunca pretenderam ‘dizer que todos eram iguais em cor, tamanho, intelecto, desenvolvimentos morais ou capacidades sociais’, mas eles ‘consideravam todos os homens criados iguais, iguais em certos direitos intransferíveis, entre os quais estão a vida, a liberdade, e a busca pela felicidade’.” Após a convenção estadual republicana nomeá-lo candidato ao Senado em 1858, Lincoln pronunciou o seu Discurso da Casa Dividida baseado no evangelho segundo Marcos, capítulo 3, versículo 25: “‘Uma casa dividida contra si mesma não pode permanecer.’ Eu acredito que este governo não pode suportar, permanentemente, ser metade escravo e metade livre. Eu não espero a dissolução da União, eu não espero ver a casa cair, mas espero que deixe de ser dividida. Terá que se tornar inteiramente algo uno, ou todo de outra forma.” O discurso invocou a criação de uma imagem do perigo da desunião causada pelo debate, e reagrupou os republicanos no Norte. O cenário era de campanha eleitoral pela vaga da legislatura de Illinois, na qual deveria escolher-se entre Lincoln ou Douglas como senador dos Estados Unidos. 

Os debates Lincoln–Douglas e o discurso da Cooper Union 

A campanha para o Senado destacou os sete debates entre Lincoln e Douglas em 1858, um dos debates políticos mais notórios na história estadunidense. Os dois estavam em gritante contraste, tanto na aparência quanto politicamente. Lincoln advertiu que o “Poder dos Escravistas” (“Slave Power”) estava ameaçando os valores do republicanismo e acusou Douglas de distorcer os valores dos Pais Fundadores que todos os homens são criados iguais, enquanto Douglas enfatizava sua Doutrina Freeport, na qual os colonizadores locais eram livres para escolher entre permitir ou não a escravidão, e atacou Lincoln por ter reunido os abolicionistas. Os debates tiveram uma atmosfera de uma luta de boxe e atraiu multidões aos milhares. Lincoln afirmou que a teoria de soberania popular de Douglas era uma ameaça à moral da nação e que este representou uma conspiração para estender a escravidão para os estados livres. Seu oponente, por sua vez, declarou que tal estava desafiando a autoridade da Suprema Corte e a decisão do Caso Dred Scott. 

Embora os candidatos republicanos para o legislativo tenham obtido mais votos, os democratas conseguiram uma colocação melhor, com mais cadeiras, e a legislatura estadual reelegeu Douglas para o Senado. Apesar da amargura de sua derrota, tratou de articular assuntos que lhe dessem reputação nacional. Em maio de 1859, Lincoln adquiriu o “Illinois Staats-Anzeiger”, um jornal em língua alemã que era consideravelmente respeitado; a maioria dos 130 mil teuto-estadunidenses no estado votaram no Partido Democrata, mas havia apoio republicano o suficiente para que fosse mobilizado por um jornal de língua alemã. Em 27 de fevereiro de 1860, líderes nova-iorquinos do partido convidaram-no para dar um discurso na universidade de Cooper Union para um grupo de influentes republicanos. Lincoln expôs que os Pais Fundadores tinham pouco uso da soberania popular e tinham insistentemente procurado restringir a escravidão, insistindo que a conduta da fundação dos republicanos requeria a oposição à escravidão, e rejeitar qualquer “tentativa de algo intermediário entre o certo e o errado”. Apesar de sua aparente deselegância, tendo muitos na plateia o considerado esquisito ou até mesmo feio, Lincoln demonstrou uma liderança intelectual capaz de colocá-lo nas fileiras do partido, indo de encontro com a disputa pela nomeação a candidato presidencial republicano. O jornalista Noah Brooks informou que “nenhum homem nunca antes causou tanta impressão em seu primeiro apelo para um público de Nova Iorque”. O historiador David Herbert Donald descreve seu discurso como uma “excelente ação política para um candidato desconhecido, que mostra-se um rival de um outro do próprio estado (William H. Seward), em um evento patrocinado por um segundo rival lealista (Salmon P. Chase), e apesar de não mencionar o seu nome durante o seu pronunciamento”. Em resposta de um questionamento sobre suas intenções presidenciais, Lincoln disse: “o gosto está um pouco em minha boca”. 

A nomeação presidencial de 1860 e a campanha 

A Convenção Estadual Republicana de Illinois de 9 a 10 de maio de 1860 foi realizada em Decatur. Os partidários de Lincoln organizaram um grupo de campanha liderada por David Davis, Norman Judd, Leonard Swett, e Jesse DuBois, recebendo seu primeiro endosso à corrida pela Presidência. Explorando a lenda adornada de seus tempos com seu pai na fronteira, ganhou de seus defensores o rótulo “The Rail Candidate”, em alusão ao candidato dos trilhos de trem. Em 18 de maio, a Convenção Nacional Republicana em Chicago, seus companheiros prometeram e manipularam a vitória na terceira votação, derrotando candidatos como William H. Seward e Salmon P. Chase. Um ex-democrata, Hannibal Hamlin de Maine, foi escolhido como vice-presidente numa expectativa de dar mais equilíbrio à chapa. Seu sucesso se deveu por sua reputação moderada na questão escravocata e pelo seu forte apoio aos programas “Whiggish” por melhorias internas e as tarifas protecionistas. Na terceira votação, o estado da Pensilvânia colocou-o no topo. Os interesses da Pensilvânia pelo ferro foram garantidos pela proposta protecionista. Os gestores da campanha de Lincoln focaram habilmente nesta delegação tão bem quanto em outras, seguindo um forte ditame do candidato para “não fazer contratos que me vinculem”. 

A maioria dos republicanos concordaram com Lincoln que o Norte foi o lado prejudicado nos acontecimentos, o “Slave Power” obstruiu a aliança do governo federal com a descisão do Caso Dred Scott e o mandato do presidente James Buchanan. Ao longo dos anos de 1850, Lincoln duvidou da perspectiva de uma guerra civil, e seus seguidores rejeitaram a alegação de que sua eleição pudesse representar um estopim para esta secessão. Enquanto isso, Stephen A. Douglas foi nomeado candidato democrata pelo Norte. Delegados de onze estados abandonaram a Convenção Nacional Democrata, em desacordo com a posição de soberania popular proposta por Douglas; e escolheram John C. Breckinridge como candidato para representá-los. Tal como Douglas e outros candidatos fizeram suas campanhas, Lincoln foi o único deles que não realizou discursos. Em vez disso, monitorou a campanha de perto e contou com o entusiasmo do Partido Republicano. O partido viajou a pé e conseguiu maioria no Norte, produziu uma abundância de pôsteres, panfletos, e editoriais jornalísticos. Havia milhares de oradores republicanos que se concentraram principalmente na plataforma partidária e em segundo na história de vida de Lincoln, enfatizando a pobreza financeira em que se encontrava na infância. O objetivo era demonstrar o poder superior do “trabalho livre”, em que um menino comum vindo da agricultura poderia trabalhar de seu modo até alcançar o topo por seus próprios esforços. A produção literária durante a campanha do Partido Republicano reduziu a força da oposição; um escritor do “Chicago Tribune” produziu um folheto com uma biografia detalhada do candidato, e vendeu de cem mil a duzentas mil cópias. 

Presidência 

A eleição de 1860 e a secessão

Em 6 de novembro de 1860, Lincoln foi eleito o décimo sexto presidente dos Estados Unidos e o primeiro presidente pelo Partido Republicano; derrotando seus oponentes: o democrata Stephen A. Douglas, o democrata sulista John C. Breckinridge, e John Bell do recém-criado Partido União Constitucional. Tendo ganhado a eleição inteiramente com o apoio do Norte e Oeste, nenhum voto lhe foi depositado em dez de quinze estados escravocratas do Sul, e obteve maioria em apenas 2 de 996 condados sulistas. Lincoln recebeu 1 866 452 votos, Douglas conseguiu 1 376 957 votos, Breckinridge com 849 781 votos e John Bell com 588 789 votos. O comparecimento eleitoral foi 82,2%, tendo Lincoln vencido nos estados livres do Norte, bem como na Califórnia e no Oregon. Douglas conquistou o Missouri e dividiu os votos de Nova Jersey com Lincoln. Bell saiu vitorioso na Virgínia, no Tennessee, e Kentucky, sendo o restante dos estados do Sul vencidos por Breckinridge. Embora tenha conseguido uma maioria simples no voto popular, o resultado do colégio eleitoral foi decisivo: Lincoln teve 180 e seus oponentes somados conseguiram 123 votos. Havia coligações políticas na qual os opositores do abolicionista se comprometeram em apoiar a mesma chapa de eleitores Nova Iorque, Nova Jersey e Rhode Island, mas mesmo que todos os seus oponentes se unissem, ainda assim o republicano teria sido eleito por uma maioria no Colégio Eleitoral. Sendo evidente a eleição de Lincoln que estava por vir, os secessionistas deixaram claro a intenção de sair da União antes que ele tomasse posse em março. Em 20 de dezembro de 1860, a Carolina do Sul se tornou o primeiro estado a declarar a secessão; em 1 de fevereiro de 1861, Flórida, Mississippi, Alabama, Geórgia, Louisiana e Texas seguiram a separação. Seis desses estados adotaram uma Constituição e declararam eles próprios serem uma nação soberana, os Estados Confederados da América. Os estados do Sul mais ao norte e os estados da fronteiriços (Delaware, Maryland, Virgínia, Carolina do Norte, Tennessee, Kentucky, Missouri e Arkansas) inicialmente rejeitaram o apelo separatista. O presidente James Buchanan e o presidente-eleito Lincoln recusaram-se a reconhecer os Confederados, declarando que isto era ilegal. Os Confederados escolheram Jefferson Davis como seu presidente provisório em 9 de fevereiro de 1861. Houve tentativas de um acordo. O Compromisso Crittenden estenderia a linha do Compromisso de Missouri de 1820, dividindo os territórios entre escravocratas e livres, contrariando a plataforma de solo-livre do Partido Republicano. Lincoln rejeitou a ideia, afirmando, “Eu irei padecer de morte antes de consentir (…) com uma concessão ou acordo que veja isto como uma compra de privilegio para tomar posse deste governo na qual teremos um direito constitucional.” No entanto, apoiou taticamente a proposta de Emenda Corwin à Constituição, que aprovada pelo Congresso antes de Lincoln tomar posse e aguardava a ratificação pelos estados. A proposta de emenda deveria proteger a escravidão nos estados onde já existia e teria garantido que o Congresso não interferiria no assunto escravista sem o consentimento do Sul. Algumas precedentes à guerra, Lincoln enviou uma carta para cada governador informando-os que o Congresso aprovou um conjunto de resoluções de emenda constitucional. Lincoln estava aberto a possibilidade de uma convenção constitucional para fazer novas alterações. 

Na viagem de trem para a sua posse, Lincoln entrou em contato com multidões e várias legislaturas no Norte. O presidente-eleito contornou uma possível tentativa de assassinato em Baltimore, descoberto por seu chefe de segurança, Allan Pinkerton. Em 23 de fevereiro de 1861, chegou disfarçado em Washington D.C., tendo sido colocado sob guarda militar. Lincoln direcionou seu discurso de posse para o Sul, anunciando mais uma vez que não possuía intenção, ou inclinação, a abolir a escravidão nos estados do Sul: 

A apreensão parece existir entre as pessoas dos estados sulistas, na qual a ascensão de uma administração republicana faz suas propriedades, e sua paz, e sua segurança pessoal estarem em perigo. Nunca houve qualquer motivo razoável para tal apreensão. De fato, a mais ampla evidência do contrário existe o tempo todo e foi aberto ao seu controle. Pode ser encontrado em quase todos os discursos publicados daquele que agora dirige a você. Eu faço citar um daqueles discursos em que declarei: “Eu não possuo nenhuma proposta, direta ou indiretamente, em interferir na instituição da escravidão nos estados em que existe. Acredito que não tenho o direito legal de fazê-lo, e eu não tenho nenhuma inclinação para fazê-lo.” 

— Primeiro discurso de posse, 4 de março de 1861. 

O presidente terminou seu discurso com um apelo para o povo do Sul: “Nós não somos inimigos, somos amigos. Nós não deveríamos ser inimigos (…) Os acordes místicos da memória, que se estende de cada campo de batalha, e patriota, a cada coração vivo e lareira, em todo esse amplo terreno, ainda vai expandir o coro da União, quando novamente tocado, como certamente será, pelos melhores anjos da nossa natureza”. O fracasso da Conferência de Paz de 1861 sinalizou que o compromisso legislativo foi implausível. Em março de 1861, nenhum líder da insurreição propôs reunir União em quaisquer condições. Enquanto isso, Lincoln e quase todos os líderes republicanos concordaram que o desmantelamento da União não poderia ser tolerado. 

O início da guerra

O comandante do Fort Sumter (Carolina do Sul), o major Robert Anderson, enviou uma requisição de provisões à Washington, com o pedido tendo sido atendido por Lincoln. Os separatistas viram essa atitude como uma forma de o governo federal estar presente naquele local, portanto, um estopim para a guerra. Em 12 de abril de 1861, as foças confederadas dispararam contra as tropas da União no Fort Sumter, forçando-os a se renderem, e começando a guerra. O historiador Allan Nevins argumenta que a recente posse de Lincoln fez ocorrer três enganos: subestimou a gravidade da crise, exagerou o forte sentimento da União no Sul, e não percebeu os sulistas que se opuseram à separação e foram insistentemente contrários a qualquer invasão. William Tecumseh Sherman dialogou com Lincoln durante a semana de posse e estava “tristemente desapontado” com o fracasso no qual “o país estava dormindo sobre um vulcão” enquanto o Sul estava se preparando para a guerra. Donald conclui que “seus repetidos esforços em evitar um conflito nos meses entre a posse e o ataque do Fort Sumter pelos confederados mostrou que ele cumpriu a sua promessa de não ser o primeiro a derramar o sangue fraternal; porém ele também prometeu não entregar os fortes. A única proposta dessas posições contraditórias era para que os confederados disparassem o primeiro tiro, o que de fato ocorreu.” 

Em 15 de abril, Lincoln apelou a todos os estados para enviarem destacamentos, totalizando 75 mil tropas para recapturar fortes, proteger Washington, e preservar a “União”, que, em sua visão, ainda existiam intactas apesar dos acontecimentos nos estados separatistas. Este apelo forçou os estados a escolherem um dos lados. A Virgínia declarou secessão e foi recompensada com a capital confederada, apesar da posição da cidade de Richmond estar próxima às linhas de frente da União. Carolina do Norte, Tennessee, e Arkansas também votaram pela secessão durante os próximos dois meses. O sentimento separatista era forte no Missouri e Maryland, mas não prevaleceu; Kentucky tentou ser neutro. 

Em 19 de abril, simpatizantes confederados em Baltimore que controlavam a malha ferroviária atacaram tropas que viajavam para a capital. George William Brown, prefeito de Baltimore, a outros políticos de Maryland suspeitos foram detidos e presos, sem mandado e sendo suspenso o habeas corpus. John Marryman, um líder dum grupo separatista em Maryland, requereu ao chefe de justiça Roger B. Taney o decreto de um habeas corpus, afirmando que sua prisão sem uma audiência era inconstitucional. Taney aceitou o pedido de habeas corpus decretando-o, mas Lincoln ignorou a decisão judicial. Em seguida e durante a guerra, Lincoln sofreu fortes críticas dos democratas antiguerra, chamados de Copperheads. 

Assumindo o comando da União em guerra

Após a queda do Forte Sumter, Lincoln notou a importância de tomar o imediato controle da guerra e fazer um plano para pôr fim à rebelião. Lincoln encontrou uma crise política e militar sem precedentes, e respondeu atuando como comandante em chefe, usando de poderes sem precedentes. Ampliado seus poderes bélicos, impôs um bloqueio à todos os portos marítimos confederados, desembolsou fundos antes da aprovação pelo Congresso, e após suspender o habeas corpus, prendeu milhares de suspeitos simpatizantes dos confederados. Apoiado pelo Congresso e o povo nortista, reforçou os laços de simpatizantes da União nos estados de fronteira. 

Lincoln concentrou-se nos esforços bélicos, que lhe tomaram grande parte do tempo e da atenção. Desde o início ficou evidenciado que o apoio bipartidário seria essencial para obter-se a vitória, e qualquer compromisso incluiu facções de ambos os lados, tais como a nomeação de republicanos e democratas para posições de comando das Forças Armadas. Os Copperheads o criticaram pela recusa a comprometer-se com a questão escravocrata; enquanto que os radicais republicanos reprovaram a lentidão do governo em realizar a abolição. Em 6 de agosto de 1861, Lincoln assinou o “Confiscation Act” que autorizou processos judiciários a confiscar escravos livres usados pelas ações confederadas em guerra. Na prática a lei teve pouco efeito, mas sinalizou o apoio político para abolir a escravidão nos Estados Confederados. No final de agosto de 1861, o general John C. Frémont, candidato presidencial republicano de 1856, sem consultar Washington, emitiu uma proclamação de lei marcial em Missouri, declarando que qualquer cidadão sob o porte de armas poderia ser levado à corte marcial e fuzilado, e que os escravos de pessoas ajudando na revolta deveriam ser livres. Frémont já estava em uma situação embaraçosa com acusações de negligência no comando do Departamento do Oeste somado a alegações de fraude e corrupção. Lincoln rejeitou a Proclamação de Emancipação de Frémont acreditando ser um objetivo político, desnecessária militarmente e legalmente. Depois do ocorrido, a União alistou soldados no Maryland, Kentucky e Missouri aumentando mais 40 mil tropas. 

O incidente diplomático do Caso Trent no final de 1861 ameaçou uma guerra com a Grã-Bretanha. A Marinha dos Estados Unidos ilegalmente interceptou um navio mercante britânico, o Trent, em alto mar, e prendeu dois enviados diplomáticos dos confederados; a Grã-Bretanha protestou enquanto os Estados Unidos comemoravam. Lincoln resolveu a questão soltando os dois homens e evitou a guerra com a Grã-Bretanha. O governo Lincoln ensaiou um aproximação com o Império Russo que tinha abolido a servidão em 19 de fevereiro de 1861 e que viva uma crescente hostilidade com o governo britânico. A política externa de Lincoln havia sido inicialmente sem interferências devido a sua inexperiência, tendo deixado a maior parte dos assuntos diplomáticos e externos a cargo de seu Secretário de Estado William Seward. A reação inicial de Seward no Caso Trent era, porém, muito bélica, de modo que o presidente pediu também auxílio ao senador Charles Sumner, presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado e experiente na diplomacia britânica. 

Para aprender termos técnicos militares, Lincoln obteve emprestado da Biblioteca do Congresso o livro “Elements of Military Art and Science” (Elementos da Arte Militar e Ciência, em tradução livre) de Henry Halleck. Cautelosamente, Lincoln monitorou as mensagens telegráficas que chegavam ao Departamento de Guerra em Washington. Manteve um rígido controle em todas as fases do conflito, consultou governadores e escolheu generais conforme o êxito que haviam anteriormente obtidos, bem como o estado e o partido do qual cada um fazia parte. Em janeiro de 1862, após muitas reclamações de ineficiência e especulações no Departamento de Guerra, o Secretário de Guerra Simon Cameron foi substituído por Edwin M. Stanton. Stanton foi um dos muitos democratas conservadores (ele apoiou Breckenridge na eleição de 1860) que se tornaram republicanos anti-escravidão sob o governo Lincoln. Em assuntos de estratégia de guerra, Lincoln articulou duas prioridades: assegurar que Washington estava bem defendido, e conduzir uma ação agressiva que deveria satisfazer a demanda no Norte para uma imediata vitória decisiva. Os principais editores de jornais do Norte esperavam uma vitória dentro de 90 dias. Duas vezes por semana, Lincoln reunia-se com seu gabinete à tarde, e ocasionalmente Mary forçava-o a dar um passeio de carruagem porque acreditava que seu marido estava trabalhando demasiadamente. Lincoln aprendeu com seu chefe de gabinete, o general Henry Halleck, um estudante do estrategista europeu Antoine-Henri Jomini, da grande necessidade de se controlar pontos estratégicos, como o Rio Mississippi, compreendendo a importância de Vicksburg (Mississippi) e a necessidade de se derrotar o exército inimigo, e não apenas simplesmente dominar os territórios. 

General McClellan

Após a derrota da União na Primeira Batalha de Bull Run e a aposentadoria por idade de Winfield Scott no final de 1861, o major general George B. McClellan foi escolhido para comandar todas as tropas. McClellan, um jovem executivo ferroviário e democrata da Pensilvânia, levou vários meses para planejar e conduzir a Campanha da Península, indo mais longe do que queria o presidente. O objetivo da campanha era capturar Richmond e levar o Exército do Potomac de barco para a península, e depois por terra para a capital confederada. As repetitivas demoras do general frustraram Lincoln e o Congresso, bem como sua visão de que não eram necessárias tropas para defender Washington. Lincoln insistiu em manter algumas tropas na defesa da capital; McClellan, que superestimava as tropas inimigas, culpou tal decisão pelo fracasso da campanha. 

Depois que Lincoln recebeu uma carta, na qual McClellan ofereceu aconselhamento político não solicitado, pedindo cautela nos esforços bélicos, o presidente destituiu-o do comando e nomeou Henry Wager Halleck em março de 1862. A carta indignou os radicais republicanos, que pressionaram o governo, e com êxito, John Pope foi nomeado chefe do Exército da Virgínia. Pope concordou com o desejo estratégico de Lincoln em se mover em direção à Richmond pelo norte, protegendo Washington de um possível ataque. Entretanto, a falta dos reforços solicitados por McClellan (agora à frente do Exército de Potomac) ocasionou a derrota de Pope na Segunda Batalha de Bull Run no verão de 1862, o que pela segunda vez forçou o Exército de Potomac a defender a capital. A guerra também usou de operações navais em 1862, quando o CSS Virginia (anteriormente o USS Merrimack) causou avarias ou destruiu três embarcações da União em Norfolk (Virgínia), antes de ser danificado pelo USS Monitor. Lincoln analisou criteriosamente as expedições e interrogou oficiais navais durante a Batalha de Hampton Roads. 

Apesar de sua insatisfação com o fracasso de McClellan, Lincoln estava desesperado, e restaurou-o no comando de todas as forças ao redor de Washington para o espanto de seu gabinete, exceto Seward. Dois dias após McClellan retornar ao comando, as forças do general Robert E. Lee atravessaram o Rio Potomac à Maryland, liderando a Batalha de Antietam em setembro de 1862. A vitória da União nesta que foi a batalha mais sangrenta da história americana garantiu a confiança e o anúncio Proclamação de Emancipação em janeiro. Tendo já estado pronto a Proclamação, Lincoln esperou por uma vitória militar para que pudesse publicá-la sem parecer um ato desesperado. McClellan resistiu ao pedido do presidente em perseguir Lee aproveitando o recuo deste e expondo o exército, enquanto que o seu colega, o general Don Carlos Buell também recusou as ordens de mover o Exército de Ohio contra rebeldes no leste do Tennessee. Como resultado, Lincoln substituiu Buell por William Rosecrans, e após as eleições de 1862, McClellan foi substituído pelo republicano Ambrose Burnside. Ambas as substituições foram por políticos moderados e que fossem mais favoráveis ao comandante-em-chefe. 

Burnside, contrário ao conselho do presidente, prematuramente lançou uma ofensiva através do Rio Rappahannock e foi surpreendentemente derrotado por Lee na Batalha de Fredericksburg em dezembro. Burnside não havia apenas sido derrotado no campo de batalha, pois seus soldados estavam desmotivados e indisciplinados. As milhares de deserções aumentaram após a Batalha de Fredericksburg. Lincoln convocou Joseph Hooker, apesar da crença deste na necessidade de uma ditadura militar. 

As eleições legislativas de 1862 trouxeram aos republicanos severas perdas devido a incapacidade da administração em pôr um fim rápido à guerra, bem como o aumento da inflação, os novos impostos exorbitantes, rumores de corrupção, a suspensão do habeas corpus, a conscrição, e o temor de que os escravos libertos prejudicariam o mercado de trabalho. A Proclamação de Independência anunciada em setembro angariou votos para os republicanos nas áreas rurais da Nova Inglaterra e no norte do Meio-Oeste, mas perdeu votos nas regiões urbanas e no sul do Meio-Oeste. Enquanto estavam desencorajados, os democratas estavam unindo forças e o fizeram muito bem especialmente na Pensilvânia, Ohio, Indiana e Nova Iorque. A Gazeta de Cincinnati afirmou que os eleitores estavam “entristecidos pela natureza interminável desta guerra, como até agora aconteceu, e pela rápida exaustão dos recursos nacionais sem progresso”. 

Na primavera de 1863, Lincoln estava otimista sobre as próximas campanhas militares de forma a pensar que o fim do conflito poderia estar próximo se tivesse várias vitórias conseguintes. Esses planos incluíam vários ataques, um realizado por Hooker contra o general Lee na cidade de Richmond, outro executado por Rosecrans em Chattanooga, outro por Grant em Vicksburg e um pelo mar em Charleston. Hooker foi derrotado por Lee na Batalha de Chancellorsville em maio, mas continuou a comandar suas tropas por algumas semanas. Ao rejeitar a ordem presidencial de dividir as tropas, logo pediu a demissão, que foi aceita. Em seu lugar, George Meade, que seguiu Lee na Pensilvânia na Campanha de Gettysburg, uma vitória para a União. Ao mesmo tempo, após algumas derrotas iniciais, Grant sitiou Vicksburg e a força naval unionista obteve algum êxito no porto de Charleston. Após a Batalha de Gettysburg, Lincoln notadamente percebeu que suas decisões militares seriam mais efetivas transmitindo-se as ordens através de seu Secretário de Guerra ou do general-em-chefe para os demais generais, que ressentiam pela interferência de um civil nos planos militares. Mesmo assim, em muitas ocasiões continuou dando detalhosas instruções aos generais como sendo o Comandante-em-chefe. 

Proclamação de Emancipação

Lincoln compreendeu que o poder do governo federal e o fim da escravidão estavam limitados pela Constituição, que antes de 1865, levou a questão para os estados de forma individual. Antes e durante sua eleição, em sua concepção, a eventual extinção da escravidão resultaria na expansão de novos territórios. No início da guerra, ele tentou persuadir os estados a aceitarem a emancipação dos escravos indenizando seus respectivos proprietários. Assim como os Pais Fundadores, acreditava que a restrição à escravidão poderia economicamente desvalorizá-la. Duas propostas que criavam limites geográficos à tal prática, concebidas pelos generais John C. Frémont em agosto de 1861 e David Hunter em maio de 1862, foram por ele rejeitados porque isso não satisfazia o seu desejo e poderia estragar a relação com estados fronteiriços, aqueles que apesar de permitirem a escravidão não declararam secessão, mantendo-se portanto fiéis à União. 

Em 19 de junho de 1862, o Congresso, com o consentimento presidencial, aprovou uma lei para banir a escravidão de todos os territórios federais. Em julho de 1862, a Segunda Lei de Confisco (Second Confiscation Act) foi aprovada, a qual estabeleceu procedimentos que poderiam libertar escravos daqueles que se envolvessem em atos bélicos não patrióticos. Embora Lincoln acreditasse não possuir poder suficiente no Congresso para dar alforria dentro dos estados, conseguiu fazê-lo apoiado pelo legislativo. Ele sentia que tal ação só se concretizaria como comandante-em-chefe, usando da força militar garantida ao presidente pela Constituição, assim fazendo. Naquele mês, dialogou sobre um projeto de Proclamação de Emancipação com o seu gabinete, afirmando que “como uma medida militar apta e necessária, em 1º de janeiro de 1863, todas as pessoas mantidas como escravos nos estados confederados passam desde então, e para sempre, sendo livres”.

Particularmente, Lincoln concluiu neste momento que a base escravocrata dos Confederados tinha de ser eliminada. Todavia, os democratas pacifistas viam a emancipação como um obstáculo para a paz e a reunificação. O editor republicano Horace Greeley do notório e influente New York Tribune sentiu que a manobra política era um fracasso, ao qual o presidente desprezou por meio de uma astuta carta em 22 de agosto de 1862. Utilizando-se explicitamente da primeira pessoa para referir-se à sua “missão oficial”, como Presidente dos Estados Unidos da América, a preservação da União: 

Meu objetivo primordial nesta luta é salvar a União, e não entre resguardar ou destruir a escravidão. Se eu pudesse salvar a União sem libertar qualquer escravo, eu o faria, e se eu pudesse salvá-la libertando a todos, eu o faria; e se eu pudesse salvá-la libertando alguns e deixando outros, eu também o faria. O que eu faço referente à escravidão, e à raça de cor, faço porque acredito que ajuda a salvar a União; e ao que se dá minha resistência é porque acredito que não ajudará … Tenho aqui o meu propósito de acordo com a minha visão da missão oficial; e não tenho a intenção de modificar o meu desejo pessoal expresso de que todos os homens em todos os lugares podem ser livres. 

A Proclamação de Emancipação, emitida em 22 de setembro de 1862, e colocada em prática em 1º de janeiro de 1863, declarou livres os escravos em dez estados que não estavam sob o controle unionista, com isenções específicas à duas áreas já controladas em dois estados. Lincoln passou os próximos cem dias preparando o Exército e a nação para a emancipação, enquanto os democratas se reuniam com seus eleitores nas eleições de fins de 1862 diante da ameaça dos escravos libertos. 

Uma vez que a abolição da escravidão nos estados rebeldes se tornou um objetivo militar, com as tropas da União avançando para o sul, mais escravos foram libertados até chegar a totalidade de três milhões destes no território confederado. Ao assinar a Proclamação, seu comentário foi: “Eu nunca em minha vida senti mais certeza de que isto que eu estou fazendo é o certo, do que ao assinar este papel.” Por algum tempo, Lincoln deu continuidade aos seus planos iniciais em criar colônias para os recém libertos, tendo comentado favoravelmente sobre a colonização na Proclamação de Emancipação, mas todas as tentativas de um empreendimento tão massivo falharam. Alguns dias após o anúncio da nova lei, treze governadores republicanos se reuniram em uma conferência e o apoiaram, mas sugeriram a retirada do general Gorge B. McClellan como comandante do Exército da União. 

O alistamento de ex-escravos nas forças armadas foi a política oficial do governo após a emissão da Proclamação. Na primavera de 1863, Lincoln estava pronto para recrutar tropas de negros em mais do que números simbólicos. Em uma carta ao governador do Tennessee Andrew Johnson, encorajando-o a esforçar-se para aumentar as tropas de negros, Lincoln escreveu: “A visão nua de 50 mil soldados negros armados atravessando as margens do Mississippi terminaria a rebelião de uma só vez.” Em fins de 1863, sob a direção de Lincoln, o general Lorenzo Thomas recrutou vinte regimentos de negros no Vale do Mississippi.[197] Frederick Douglass ao observar o presidente declarou: “Em sua companhia, eu nunca me lembrei de minha origem humilde ou de minha cor impopular.” 

Discurso de Gettysburg 

Com a grande vitória da União na Batalha de Gettysburg em julho de 1863, e a derrota dos democratas pacifista (conhecidos como “Copperheads”) na eleição de Ohio, Lincoln manteve uma forte base política de apoio e estava em uma posição favorável para redefinir os esforços de guerra, apesar dos protestos tumultuados em Nova Iorque. O cenário estava montado para o seu discurso no cemitério de soldados da Guerra Civil em Gettysburg em 19 de novembro de 1863. Desafiando a previsão do presidente, no qual o mundo não se lembraria deste momento, seu discurso tornou-se o mais citado na História dos Estados Unidos. 

Em 272 palavras e três minutos, Lincoln afirmou que a nação foi fundada em 1776, “concebida na liberdade e dedicada ao conceito de que todos os homens foram criados em igualdade.” Assim, definiu que a guerra foi um esforço dedicado a esses princípios de liberdade e igualdade para todos, sendo que a emancipação dos escravos passou a fazer parte de um esforço de guerra nacional. Em sua oratória, declarou que a morte de muitos soldados bravos não seriam em vão, a escravidão terminaria como um resultado de diversas perdas, e o futuro da democracia no mundo estaria assegurado, pois o “governo do povo, pelo povo e para o povo não perecerá neste mundo”. Por fim, concluiu que a Guerra Civil tinha um profundo objetivo: um renascimento da liberdade da nação. 

General Grant

O fracasso de George Gordon Meade para capturar o Exército inimigo após ter recuado a Gettysburg, e a contínua passividade do Exército de Potomac, persuadiu Lincoln de que uma mudança no comando das tropas era necessária. As vitórias do general Ulysses S. Grant na Batalha de Shiloh e a Campanha de Vicksburg o impressionou e fez de Grant um forte candidato à chefia do Exército da União. Respondendo às críticas de Grant em Shiloh, o presidente afirmou que não poderia deixá-lo passar despercebido devido ao seus esforços. Com Grant no comando, o Exército poderia perseguir implacavelmente uma série de ofensivas coordenadas em várias frentes, e ter um alto comandante que concordasse com o uso de tropas negras. No entanto, a possível ambição de Grant à Presidência em 1864 levou Lincoln a fazer, por meio de um intermediário, uma sondagem sobre as intenções políticas dele. Após ter se certificado, ele submeteu ao Senado a decisão sobre a promoção de Grant à comandante das forças, obtendo ainda do Congresso a aprovação ao posto de tenente-general, que não havia sido cedido desde George Washington. 

Grant travou a sangrenta Campanha de Overland em 1864, frequentemente caracterizada como uma guerra de exaustão, acarretando em grandes perdas para a União em batalhas tais como as de Wilderness e Cold Harbor. Apesar de terem a vantagem de atuarem na defensiva, as forças confederadas tinham “quase tão alto percentual de baixas quanto os unionistas”. Um terço das tropas havia sido perdida, o que alarmou o Norte, de forma que Lincoln questionou Grant, tendo recebido a reposta de que este planejava lutar até o fim nesta linha de combate mesmo que tomasse todo o verão. 

Os confederados estavam desprovidos de reforços, por isso o Exército de Lee minguava a cada batalha. Grant, movia sua tropa ao sul, tendo atravesado o Rio James, forçando um cerco e uma guerra de trincheiras ao redor de Petersburg (Virgínia). Apressadamente, William Tecumseh Sherman, que estava na Carolina do Norte, conseguiu uma visita a Grant em City Point. Lincoln também fez uma visita ao general Grant, e pode se informar com ambos sobre as hostilidades. No Norte, o Partido Republicano e Lincoln conseguiram mobilizar apoio o suficiente para repor todas as perdas da União. 

Lincoln autorizou Grant de usar meios para comprometer a infra-estrutura confederada, tais como ataques à plantações, ferrovias e pontes, objetivando desmoralizar o inimigo e enfraquecer sua capacidade econômica durante a guerra. O avanço de Grant em Petersburg resultou na obstrução de três ferrovias entre Richmond e o Sul, permitindo que os generais Sherman e Philip Sheridan destruíssem plantações e cidades no Vale do Shenandoah em Virgínia. Os danos causados na Marcha ao Mar, incursão na Geórgia em 1864, foram limitados a uma faixa de terra de 97 quilômetros, mas nem Lincoln nem seus comandantes ambicionavam a destruição como objetivo principal, mas sim derrotar as forças confederadas. Neely (2004) conclui que não havia esforços para engajar uma “guerra total” contra os civis como ocorreu na Segunda Guerra Mundial. 

O general confederado Jubal Anderson Early iniciou uma série de assaltos no Norte que ameaçavam a capital. Durante os ataques por Early à Washington, D.C. em 1864, enquanto Lincoln via-os de uma posição exposta, o capitão Oliver Wendell Holmes gritava para ele, “Se abaixe, seu tolo, antes de levar um tiro!” Após repetidas chamadas para Grant defender Washington, Sheridan foi nomeado e a ameaça de Early foi desfeita. 

Enquanto Grant continuava desgastando as forças de Lee, iniciavam-se discussões para a paz. O vice-presidente confederado Alexander H. Stephens liderou um grupo para visitarem Lincoln, Seward, e outros em Hampton Roads. Lincoln se recusou a permitir qualquer negociação com os Estados Confederados, para ele o único objetivo era um acordo para pôr fim ao conflito armado, e as reuniões não produziam resultados. Em 1º de abril de 1865, Grant venceu com êxito as tropas de Lee na Batalha de Five Forks e quase cercou Petersburg, forçando o governo confederado evacuar de Richmond. Dias depois, quando a cidade caiu, Lincoln visitou a capital confederada dominada, e enquanto caminhava, alguns sulistas brancos eram impassíveis, mas os escravos libertos saudavam-o como um herói. Em 9 de abril, Lee se rendeu em Appomattox e a guerra efetivamente teve fim. 

Reeleição (1864)

Enquanto a guerra ainda estava em curso, Lincoln enfrentou sua reeleição em 1864. Ele era um político habilidoso, reunindo todas as principais facções do Partido Republicano e os War Democrats tais como Edwin M. Stanton e Andrew Johnson. Muitas horas por semana foram gastas dialogando com políticos de todo o País e usando de suas artimanhas clientelistas difundidas em tempos de paz, manteve as facções de seu partido juntos, construiu o apoio para as suas próprias políticas e afastou os radicais que desejavam removê-lo das cédulas eleitorais de 1864. Na Convenção Nacional, o Partido Republicano escolheu Johnson, um War Democrat do sul do Tennessee como candidato vice-presidencial na chapa. Para ampliar sua coalizão, incluindo os War Democrats e republicanos, Lincoln concorreu pelo recém criado Partido União Nacional. Quando as campanhas militares de Grant na primavera de 1864 mostraram-se embates sangrentos e as baixas do Exército unionista aumentando, o insucesso militar residia nas perspectivas da reeleição presidencial, muitos republicanos em todo o país temiam ser derrotados nas urnas. Compartilhando desse temor, Lincoln escreveu e assinou um compromisso em que, se ele perdesse a eleição, ainda derrotaria os confederados antes de sair da Casa Branca: 

Esta manhã, assim como alguns dias anteriores, parece muito provável que esta administração não será reeleita. A seguir, será meu dever coperar com o presidente-eleito, tanto para resguardar a União desde a eleição até a posse; quanto para assegurar a sua eleição sob o fundamento de que isto não poderia ser feito posteriormente. 

Lincoln não mostrou o compromisso ao seu gabinete, mas pediu-lhes para assinarem o envelope selado. Enquanto a plataforma democrata seguia as “asas da paz” do partido e chamava a guerra de um “desastre”, o candidato deles, o general George B. McClellan, apoiava a guerra e repudiava a plataforma. Lincoln proveu à Grant mais tropas e mobilizou seu partido para renovar o apoio para a guerra. A tomada das cidades confederadas de Atlanta e Mobile pelos generais Sherman e Farragut, respectivamente, puseram fim ao pessimismo derrotista. O Partido Democrata estava profundamente dividido, com alguns líderes e a maioria dos soldados favoráveis à Lincoln. Em contraste, o Partido União Nacional estava unido e impulsionado com a questão central de emancipação levantada, os republicanos a nível estadual salientaram a deslealdade dos Copperheads (democratas pacifistas). Lincoln foi eleito por uma maioria, com exceção em três estados, e 78% dos soldados unionistas votaram nele. 

Em 4 de março de 1865, Lincoln discursou em sua posse para seu segundo mandato, na qual julgou que a grande quantidade de baixas em ambos os lados era por vontade de Deus. O historiador Mark Noll classifica este “entre o pequeno punhado de textos semi-sagrados pelos quais os americanos conceberam o seu lugar neste mundo”. Lincoln disse: 

Carinhosamente esperamos e rezamos fervorosamente para que este flagelo da guerra possa rapidamente sucumbir. Ainda, se Deus desejar que continue, até que todas as riquezas acumuladas pelo trabalho incansável dos escravos, ao longo de duzentos e cinqüenta anos, sejam dissipadas, e até que cada gota de sangue retirada por meio do chicote, seja paga por outra gota, retirada pela espada, como foi dito três mil anos atrás, ainda assim se terá de dizer que ′os julgamentos do Senhor são de todo verdadeiros e justos′. Sem malícia contra ninguém, com caridade para com todos; com firmeza no correto que Deus nos permita ver, que nos seja possível lutar para concluirmos o trabalho que começamos, fechar as feridas da nação, cuidar daquele que enfrentou a batalha de sua viúva e órfão, e fazer tudo o que pode ser feito para se alcançar paz longa e justa entre nós e entre todas as nações. 

A Reconstrução 

A reconstrução do País começou ainda durante a guerra, de forma que Lincoln e seus aliados anteciparam questões de como reintegrar os estados conquistados, e como determinar o destino dos líderes confederados e dos escravos libertos. Logo após a rendição de Lee, um general questionou Lincoln sobre como seria dado o tratamento aos derrotados, cuja resposta foi: “deixe-os em paz”. Com este sentimento de empatia, Lincoln liderou os moderados na política de reconstrução, e se opôs aos republicanos radicais que integravam o representante Thaddeus Stevens, o senador Charles Summer e o senador Benjamin Wade, aliados políticos do presidente em outros assuntos. Determinado a encontrar um caminho para reunir a nação e num processo de inclusão do Sul, Lincoln ansiava em eleições rápidas com condições generosas. Em 8 de dezembro de 1863, sua Proclamação de Anistia ofereceu o perdão para aqueles que não tivessem obtido cargos políticos nos Estados Confederados, não havia maltratado prisioneiros da União e assinasse um juramento de fidelidade. 

Os estados sulistas estavam dominados, decisões críticas tinham de ser feitas em seu mandato para não permitir a estagnação. De importância especial estavam os estados do Tennessee e Arkansas, para onde foram nomeados os generais Andrew Johnson e Frederick Steele como governadores militares, respectivamente. Na Louisiana, foi incumbido o general Nathaniel P. Banks a promover um plano de restauração enquanto 10% dos eleitores concordavam com esta política. Os oponentes democratas de Lincoln aproveitaram essas nomeações para acusá-lo de usar militares para se assegurar com suas aspirações políticas republicanas. Por outro lado, os republicanos radicais reclamavam que suas táticas eram muito lentas, e passaram a ter uma proposta própria, a Wade-Davis Bill (1864). Quando a proposta foi vetada pelo presidente, os radicais retaliaram recusando a tomar posse aqueles eleitos representantes por Louisiana, Arkansas e Tennessee. 

As nomeações de Lincoln buscavam manter tanto os moderados quanto os radicais sob controle. Para ocupar o lugar do chefe de justiça Taney na Suprema Corte, ele designou a escolha dos radicais, Salmon P. Chase, que Lincoln acreditava apoiar as políticas de emancipação e monetárias. 

Com a implementação da Proclamação de Emancipação, que não se aplicou a todos os estados, Lincoln aumentou a pressão sobre o Congresso para proibir a escravidão em todo o território nacional por meio de uma emenda constitucional, que poria um final irrevogável para a questão.. Em dezembro de 1863, essa proposta foi levada para apreciação e se tornou a primeira tentativa de mudança na carta magna que não obteve sucesso, pois não alcançou o apoio necessário de dois terços da Câmara dos Representantes em votação no dia 15 de junho de 1864. A aprovação dessa emenda se tornou parte da plataforma ideológica dos republicanos/unionistas na eleição de 1864. O que se seguiu foram várias negociações na Câmara, e numa nova tentativa o Congresso aprovou-a em 31 de janeiro de 1865. O texto então foi enviado para as legislaturas estaduais para ratificação,[234][235] fazendo-o oficialmente a Décima Terceira Emenda à Constituição dos Estados Unidos em 6 de dezembro de 1865. 

À medida em que a guerra civil se aproximava do fim, a Reconstrução ocorreu em fluxo no Sul, crendo o governo federal ter limitado a responsabilidade dos milhões de homens libertos. Lincoln sancionou uma lei do senador Charles Summer (chamada de “Freedman’s Bureau”) criando uma agência federal temporariamente para satisfazer as necessidades materiais imediatas dos ex-escravos. A lei atribuiu um arrendamento de terras por três anos com a possibilidade da compra de títulos de propriedade pelos mesmos. Lincoln afirmou que o seu plano para a Louisiana não se aplicava a todos os estados sob reconstrução. Pouco antes de seu assassinato, Lincoln havia anunciado um novo plano para a reconstrução do Sul. As discussões em seu gabinete revelaram o planejamento de um controle militar a curto prazo nos nesses estados até a retomada do controle por unionistas dessas áreas. 

Redefinindo a República e o republicanismo 

Na língua portuguesa, é uma dúvida frequente a colocação do termo “Estados Unidos” em plural ou singular. As regras gramaticais definem que quando vier precedido do artigo “os” se faz concordância com o verbo no plural (os Estados Unidos são…); no entanto, se o artigo estiver implícito, é admitido o singular (Estados Unidos é…). Na língua materna dos Estados Unidos também houve essa dúvida, que diferentemente não possuía uma regra gramatical. Assim sendo, durante grande parte histórica, as referências ao nome se dava em plural (are – são), mas a partir da Guerra Civil essa concepção mudou. Incluindo motivos políticos, o termo passou ao singular (is – é). O que se via era um substantivo coletivo, reforçando a ideia de que seria a União (com sua singularidade). Foi essa nova visão que predominou desde o final do século XIX até a atualidade. 

Nos anos recentes, historiadores tais como Harry Jaffa, Herman Belz, John Diggins, Vernon Burton e Eric Foner destacam uma redefinição dos valores republicanos por Lincoln. No início da década de 1850, em uma época em que a retórica política se centrava na idoneidade da Constituição, Lincoln direcionou ênfase para a Declaração de Independência como a base para os valores políticos, considerando-a como uma “grande âncora” para o republicanismo. O destaque para a liberdade e a igualdade para todos contida na Declaração, em contraste com a tolerância à escravidão na Constituição, impulsionou o debate. Como Diggins conclui ao mencionar o influente discurso na universidade de Cooper Union (1860), “Lincoln apresentou aos americanos uma parte da História que oferece uma profunda contribuição para a teoria e o destino do próprio republicanismo.” Sua posição ganhou força porque ele destacou a base moral do republicanismo, ao invés de sua jurisprudência. Todavia, em 1861, Lincoln justificou a guerra usando de termos da legislação — a Constituição formava um contrato, e uma de suas partes só poderia sair se todas as outras concordassem —, e como um dever nacional para garantir uma forma republicana de governo em cada estado. Burton (2008) argumenta que o republicanismo de Lincoln foi sendo incorporado aos libertos à medida em que foram sendo emancipados. 

Em março de 1861, no primeiro discurso de posse, Lincoln havia explorado a natureza da democracia. Ele denunciou a secessão como um ato anarquista, e explicitou que a maioria das regras tinham de ser equilibradas por meio de restrições constitucionais no sistema americano: “uma maioria assegura restrições através de limitações constitucionais, e a mudança sempre ocorre facilmente com diferentes sentimentos e opiniões populares, essa é a única e verdadeira soberania de um povo livre.” 

Outros decretos 

Lincoln aderiu ao projeto presidencial dos Whigs: ao Congresso cabia a função de escrever as leis, enquanto o Executivo a aplicava. Durante seu governo, apenas quatro projetos de lei foram vetados. O veto mais importante foi sobre o projeto de lei “Wade-Davis Bill”, no qual determinava que para um estado sulista ser reintegrado, pelo menos metade de sua população teria de assinar um juramento de nunca ter apoiado os Estados Confederados, o que ameaçava a Reconstrução da União. Em 1862, assinou o Homestead Act, projeto de colonização do Oeste concedendo 160 acres (65 hectares) para quem cultivasse a terra por cinco anos, o que atraiu grandes levas de europeus. O “Morrill Land-Grant Colleges Act” (1862) provia recursos federais para instituições de ensino agrícola em cada estado. Por meio dos “Pacific Railroad Acts” de 1862 a 1864 foram emitidos títulos públicos e garantidas terras para companhias ferroviárias, permitindo a construção da Primeira Ferrovia Transcontinental, concluída em 1869. A aprovação do “Homestead Act” e os “Pacific Railroad Acts” somente foi possível devido à ausência de congressistas e senadores do Sul que eram contrários às medidas na década de 1850. 

Outra importante lei envolveu duas medidas para aumentar a arrecadação do governo federal: as tarifas (com longa precedência) e um novo imposto de renda. Em 1861, a segunda e a terceira Tarifa Morril foram ratificadas e limitavam a concorrência de indústrias europeias, a primeira tarifa já havia entrado em vigor no mandato do presidente anterior, James Buchanan (D). Ainda em 1861, foi criado o primeiro imposto de renda dos Estados Unidos, o “Revenue Act”, que correspondia a três por cento de rendas acima de 800 dólares (~20 800 dólares atuais). No ano seguinte, a lei foi modificada e passou a aderir um aumento progressivo do imposto conforme a renda. 

Lincoln manteve controle sobre a expansão da influência econômica do governo. A criação de um sistema bancário ocorreu por meio do “National Bank Act”, que promoveu uma forte rede financeira no país e estabilizou a moeda nacional. Em 1862, o Congresso criou sob a aprovação presidencial o Departamento de Agricultura. Nesse mesmo ano, o general John Pope foi convocado para resolver os conflitos entre os Estados Unidos e os índios Sioux no estado de Minnesota. 303 mandados de execução foram ordenados à indígenas acusados de assassinarem fazendeiros inocentes. Lincoln deu sua opinião pessoal em cada mandado e sentenciou 39 deles para a pena de morte (um deles foi perdoado posteriormente). Lincoln tinha planejado uma reforma federal na política indígena. 

No rastro das mortes causadas pelo general Grant durante sua campanha militar contra Lee, Lincoln considerou ainda a possibilidade de nomear outro gestor de tropas militares, mas isso nunca foi debatido. Devido aos rumores, entretanto, os editores do New York World e do The Journal of Commerce publicaram uma falsa proclamação militar na qual criaram a oportunidade dos editores entre outros empregados da mídia a fazerem publicidade e terem sucesso mercantil. A reação de Lincoln foi enviar mensagens enérgicas para a mídia sobre tal comportamento; ele ordenou aos militares que aproveitassem a distração. A apreensão durou dois dias. 

Lincoln é creditado como o responsável pela instituição do feriado de Ação de Graças nos Estados Unidos. Anteriormente, a Ação de Graças, enquanto feriado no estado de Nova Inglaterra desde o século XVII, tinha sido proclamado pelo governo federal em datas esporádicas. A última vez como feriado nacional havia sido há 50 anos atrás sob a presidência de James Madison. Em 1863, Lincoln declarou oficialmente a última quinta-feira de novembro daquele ano como o dia de Ação de Graças. Em junho de 1864, o presidente aprovou a criação sem precedentes de uma área de proteção federal, atualmente conhecida como Parque Nacional de Yosemite. 

Em 20 de junho de 1863 a Virgínia Ocidental passou a fazer parte da União. Até então, a Virgínia Ocidental fazia parte do estado da Virgínia, mas a população nessa região não desejava a secessão e era abolicionista, em contrariedade com os demais habitantes, por isso ocorreu a divisão interna do estado. A Virgínia Ocidental teve de criar para si uma constituição que estabelecesse a abolição gradualmente. Nevada, tornou-se o terceiro estado à Oeste do continente, figurando como novo estado não escravocrata em 31 de outubro de 1864. 

Nomeações para o judiciário 

Foram nomeados para a Suprema Corte dos Estados Unidos: 

• Noah Haynes Swayne, 1862;

• Samuel Freeman Miller, 1862;

• David Davis, 1862;

• Stephen Johnson Field, 1863;

• Salmon Portland Chase (Chefe de Justiça), 1864. 

A filosofia declarada por Lincoln nas nomeações para juízes era a de que “nós não podemos perguntar a um homem o que ele irá fazer, e se [isso for um] dever, ele deverá nos responder e nós o desprezaremos por isso. Por isso, precisamos de um homem cujas opiniões são conhecidas. Foram cinco nomeações para a Suprema Corte. Noah Haynes Swayne, um advogado anti-escravocrata que estava comprometido com a União, foi escolhido em 24 de janeiro de 1862. Samuel Freeman Miller, nomeado em 16 de julho de 1862, apoiou Lincoln na eleição de 1860 e era reconhecidamente um abolicionista. David Davis, gerente de campanha eleitoral de Lincoln em 1860, nomeado em 8 de dezembro de 1862, também serviu como juiz em Illinois. Stephen Johnson Field, então juíz da Suprema Corte da Califórnia, foi nomeado em 10 de março de 1863, causou uma espécie de equilíbrio geograficamente e politicamente (Field era democrata). Por fim, o Secretário de Tesouro Salmon P. Chase foi nomeado Chefe de Justiça em 6 de dezembro de 1864, visto pelo presidente como um hábil jurista que apoiaria as medidas para a Reconstrução e que sua nomeação poderia unir o Partido Republicano. Lincoln nomeou 32 juízes federais (incluindo cinco juízes para a Suprema Corte) e 27 juízes para as cortes distritais. 

O Governo Lincoln (síntese)

A marcha dos acontecimentos acelerou-se no Sul durante os meses que antecederam a posse de Lincoln na Presidência. Vários líderes do Sul haviam ameaçado retirar seus estados da Federação caso Lincoln ganhasse as eleições. Quando ele tomou posse, em março de 1861, sete estados do Sul haviam-se retirado e mais quatro fizeram o mesmo depois. Esses estados formaram, então, os Estados Confederados da América. Apesar de ter intentado um esforço extraordinário de conciliação, a sua escolha eleitoral para aquele cargo provocou a eclosão da Guerra Civil Americana. Em 12 de abril, os confederados bombardeavam o forte Sumter. Lincoln enfrentou a crise com energia: decretou o bloqueio dos portos sulistas e aumentou o exército além dos limites impostos pela lei. Após perderem as primeiras batalhas, os nortistas acabaram por vencer a guerra, a qual durou quatro anos e deixou um saldo de 600 mil mortos. Apesar dos insucessos iniciais e da consequente impopularidade, Lincoln jamais se deixou abater. Para ele, os EUA representavam uma experiência da capacidade de um povo para se governar a si mesmo. Em 22 de Setembro de 1862 publicou a proclamação que concedia a liberdade aos escravos dos estados confederados. Aos olhos das outras nações, a libertação deu um novo sentido à guerra e abriu caminho para a abolição da escravatura em todo o país, em 1865. Em 1864, as vitórias dos nortistas possibilitaram a reeleição de Lincoln, cujo novo mandato teve início no ano seguinte. 

Assassinato 

John Wilkes Booth, um notório ator e espião confederado de Maryland, formulara originalmente um plano de sequestrar Lincoln em troca da libertação de prisioneiros Confederados. Após presenciar um discurso em 11 de abril de 1865 no qual Lincoln promovia o direito de voto aos negros, John Wilkes, enfurecidamente mudou de ideia, determinado a assassinar o presidente. Em 14 de abril de 1865, ao ficar sabendo que o presidente, a primeira-dama e o comandante geral Ulysses S. Grant assistiriam a uma peça no Teatro Ford, ele deu continuidade a seus planos, combinando com cúmplices o assassinato simultâneo do vice-presidente Andrew Johnson e do secretário de Estado William Henry Seward. Sem seu guarda-costas principal, Ward Hill Lamon, Lincoln deixou a Casa Branca para assistir à encenação da peça Our American Cousin no Ford, acompanhado em seu camarote pelo major Henry Rathbone e sua noiva Clara Harris. Grant, juntamente com sua esposa, escolheu viajar de última hora para a Filadélfia em vez de assistir a peça. 

O guarda-costas presidencial John Parker saiu do Teatro Ford durante o intervalo para, juntamente com o cocheiro, tomar alguma bebida no bar próximo. O presidente desprotegido estava em seu camarote quando John Wilkes viu a oportunidade e por volta das 22h13m, tendo como vista a parte de trás da cabeça de Lincoln, disparou-lhe um tiro que o feriu mortalmente. O major Henry Rathbone momentaneamente lutou com John Wilkes, mas foi esfaqueado e o criminoso fugiu. 

Após dez dias de procura, John Wilkes foi localizado em uma fazenda na Virgínia, a aproximadamente 110 quilômetros (70 milhas) ao sul de Washington DC; tentando resistir à captura, o criminoso terminou morto pelo sargento Boston Corbett em 26 de abril. 

Um cirurgião do Exército, Charles Leale, estava sentado próximo e imediatamente deu assistência ao presidente, que não apresentou reação: estava quase sem respirar e sem a pulsação sanguínea detectável. Tendo diagnosticado que a bala havia atingido sua cabeça, e não perfurado o ombro como se pensou inicialmente, o médico tentou limpar o coágulo de sangue, momento em que passou a respirar de forma mais natural. Ao atravessar a rua em direção ao edifício Peterson House, o presidente entrou em coma, o qual durou nove horas, não resistindo e vindo a óbito às 7 h e 22 min da manhã do dia 15 de abril. O ministro presbiteriano Phineas Densmore Gurley, então presente, foi convidado a fazer uma oração, em seguida o Secretário de Guerra Stanton disse: “Agora ele pertence às Eras”. 

O corpo de Lincoln foi envolto numa bandeira e era transportado sob chuva em direção à Casa Branca por oficiais unionistas com as cabeças descobertas, sem o uso do chapéu, enquanto os sinos das igrejas eram tocados. Às dez horas da manhã, menos de três horas após a morte de Lincoln, o vice-presidente Johnson foi empossado para substituí-lo no comando da nação. De 19 a 21 de abril o corpo permaneceu na Sala Oeste, antiga Rotunda do Capitólio. Durante os dias finais de velório, juntamente com o caixão do seu filho Willie, ambos foram transportados em vagão executivo dos “Estados Unidos”. Durante três semanas, um trem fúnebre foi decorado com estamenhas pretas e levava os restos mortais em uma lenta jornada com diversos pontos de parada de Washington capital à Springfield (Illinois), parando em muitas cidades pelo norte do país que se constituíam em grandes memoriais com centenas de milhares de pessoas, assim como muitos americanos informalmente se reuniram para homenageá-lo com bandas, fogueiras e cânticos ou pela reverência com o silêncio segurando o chapéu com a mão enquanto as procissões do trem lentamente decorriam. 

Religião e crenças filosóficas

Quando jovem, Lincoln era um cético religioso, ou, nas palavras de um biógrafo, até mesmo um iconoclasta. Posteriormente, o uso frequente de imagens e textos religiosos pode ter sido reflexo de suas crenças pessoais, ou pode ter sido uma forma de atrair seguidores, que eram na maioria protestantes.

Ele nunca se aliou a uma igreja, apesar de ter frequentemente visitado-as com sua esposa e estivesse familiarizado com a Bíblia, a qual citava e elogiava em seus discursos. Lincoln nunca exerceu uma clara demostração de fé cristã, mantendo-se reservado e respeitando a diversidade religiosa. Entretanto, ele acreditava em um Deus todo-poderoso e demonstrava isso por meio dos eventos que participava, e especialmente em 1865, com louváveis discursos.

Nos anos de 1840, Lincoln firmou-se na Doutrina da Necessidade, atestando que a mente humana é controlada por um poder superior. Na década seguinte, de uma forma generalista ele reconhecia a “providência divina”, mas raramente usava uma linguagem ou a aparência dos evangélicos, o republicanismo propagado pelos Pais Fundadores era quase como uma reverência religiosa para si próprio.

A morte de seu filho Edward fez com que cada vez se sentisse mais dependente de Deus, e com a morte de outro filho, Willie, em fevereiro de 1862, ele lançou o olhar para a religião em busca de respostas e consolo.

Foi nesse estado espiritual, do ponto de vista divino, que ele considerou que o agravante de guerra era necessário. Nessa época, em suas palavras, “Deus poderia ter salvado ou destruído a União sem a contestação humana. No entanto, a contestação começou. E tendo a contestação começado Ele poderia dar a vitória final para qualquer um dos lados em qualquer dia. No entanto, a contestação continua.” No dia em que Lincoln foi assassinado, ele teria dito a sua esposa que desejava visitar a Terra Santa.

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Curiosidades

No local onde Lincoln nasceu, foi criado o Abraham Lincoln Birthplace National Historic Site, um templo em cujo interior existe uma réplica da cabana, que simboliza as origens humildes do presidente. O monumento foi inaugurado em 1916 por um grupo de benfeitores, que incluiu Mark Twain.

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