“Posso não concordar com nenhuma das palavras que você diz, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las.”
Uma frase que todo mundo conhece… mas que Voltaire nunca escreveu. Mesmo assim, resume perfeitamente quem ele foi: o símbolo máximo da liberdade de pensamento.
Voltaire (1694-1778), pseudónimo de François-Marie Arouet, é provavelmente o pensador mais citado, mais caricaturado e – paradoxalmente – mais mal-entendido da história ocidental. Neste artigo gigantesco vamos mergulhar fundo na vida, nas ideias e no legado deste homem que transformou a Europa do século XVIII e cujas batalhas ainda ecoam em 2025.
Quem Foi Realmente Voltaire?
Nascido em Paris a 21 de novembro de 1694, François-Marie era filho de um notário rico. Estudou com os jesuítas no Colégio Louis-le-Grand – ironia deliciosa para quem mais tarde se tornaria o maior anticlerical da França. Aos 24 anos já era famoso pela tragédia Édipo e pela adoção do nome “Voltaire” (provavelmente um anagrama de “Arouet l.e. j.” – o jovem).
Exilado duas vezes na Inglaterra (1726-1729), apaixonou-se pelo empirismo de [John Locke], pela ciência de [Isaac Newton] e pela relativa liberdade de imprensa britânica. Voltou à França convertido ao que chamamos hoje de liberalismo clássico e decidido a “esmagar a Infame” (écraser l’infâme) – expressão que usava para designar o fanatismo religioso, a superstição e a intolerância.
As Grandes Obras Que Mudaram o Mundo
Cartas Filosóficas (1734)
Também conhecidas como Cartas Inglesas, este livro foi queimado publicamente em Paris. Nele Voltaire compara a tolerância inglesa com o absolutismo francês e elogia os quakers, os cientistas e até… os presbiterianos! Pode ler mais sobre o contexto do [Iluminismo c. 1715-1789] aqui no site.
Cândido ou o Otimismo (1759)
A obra-prima. Uma sátira feroz ao otimismo leibniziano (“vivemos no melhor dos mundos possíveis”). Depois do terramoto de Lisboa de 1755, Voltaire não aguentou mais a ideia de que tudo estava bem. Cândido viaja pelo mundo encontrando guerras, escravidão, inquisidores e até… jesuítas no Paraguai. No final, a conclusão é simples e revolucionária: “Il faut cultiver notre jardin” – temos que cuidar do nosso jardim.
Dicionário Filosófico (1764)
Uma enciclopédia de combate. Entradas curtas, irónicas, devastadoras. Sobre “Religião”? “A superstição é para a religião o que a astrologia é para a astronomia: a filha muito louca de uma mãe muito sensata.”
Tratado sobre a Tolerância (1763)
Escrito após o caso Calas – um protestante injustamente executado por supostamente matar o filho para impedir a conversão ao catolicismo. Voltaire moveu céu e terra para reabilitar a memória de Jean Calas. Este texto é um dos pilares do direito moderno à liberdade religiosa.
Voltaire e os Outros Gigantes do Iluminismo
- Com [Jean-Jacques Rousseau]: brigaram feio. Rousseau queria voltar à natureza; Voltaire respondia que quem quisesse viver como animal que fosse para o zoológico.
- Com [René Descartes]: admirava o racionalismo, mas preferia o empirismo inglês.
- Com [John Locke]: discípulo entusiasta.
- Com [Isaac Newton]: traduziu partes dos Principia e ajudou a divulgar a física newtoniana na França continental.
Voltaire e a Revolução Francesa: Herói ou Vilão?
Morreu em 1778, 11 anos antes da tomada da Bastilha, mas os revolucionários carregaram o seu busto em procissão em 1791. “Écrasez l’Infâme” tornou-se grito de guerra. No entanto…
- Defendia uma monarquia esclarecida, não a república.
- Tinha horror à multidão (“o povo é uma besta de muitas cabeças”).
- Era deísta, não ateu – acreditava num Deus criador, mas detestava igrejas organizadas.
Robespierre e os jacobinos eram tudo o que Voltaire mais temia: fanáticos com um novo culto (o Ser Supremo). A Revolução Francesa foi, em muitos aspectos, filha bastarda do Iluminismo – e Voltaire é o pai que não reconheceria os netos mais radicais.
Voltaire Hoje: Por Que Ainda Importa?
- Liberdade de expressão – a batalha que ele travou contra a censura é exatamente a mesma que enfrentamos em 2025 com cancelamentos, leis de “discurso de ódio” e plataformas digitais.
- Separação Igreja-Estado – o laicismo francês deve tudo a ele.
- Luta contra o fanatismo – troque-se “jesuítas” por qualquer extremismo religioso ou ideológico e as suas cartas continuam atuais.
- Humor como arma política – ninguém usou a ironia com tanta eficácia.
Perguntas Frequentes Sobre Voltaire
Voltaire era ateu?
Não. Era deísta. Acreditava num “relojoeiro” que criou o universo e depois se retirou. Detestava o ateísmo porque achava que sem Deus a moral desmoronava (posição que hoje parece conservadora!).
Ele realmente disse “Não gosto do que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de o dizer”?
Não. A frase foi inventada em 1906 pela escritora Evelyn Beatrice Hall para resumir o pensamento de Voltaire no caso Calas.
Voltaire era racista/antissemita?
Sim e não. Tinha preconceitos da época (escreveu coisas horríveis sobre judeus e africanos), mas também defendeu escravos negros, índios americanos e criticou duramente a escravatura. Era contraditório como quase todos os homens do século XVIII.
Ele era rico?
Muitíssimo. Especulou na bolsa, emprestou dinheiro a príncipes, fez fortuna fornecendo o exército francês. Morreu com o equivalente a centenas de milhões de euros atuais.
Qual é a melhor forma de começar a ler Voltaire?
Comece por Cândido (90 páginas de puro prazer). Depois o Dicionário Filosófico (pode ler uma entrada por dia). Evite as tragédias teatrais – são o que envelheceu pior.
Cultivemos o Nosso Jardim
Voltaire viveu 83 anos intensos, escreveu mais de 20 000 cartas e 2 000 livros/panfletos. Foi amigo de reis (Frederico II da Prússia) e defendeu tecelões protestantes executados. Riu de tudo e de todos – inclusive de si mesmo.
Num mundo onde parece que voltamos a queimar livros (agora em formato digital), reler Voltaire é um ato de resistência.
Quer continuar esta viagem pelo Iluminismo?
Veja o nosso artigo completo sobre o [Iluminismo c. 1715-1789] e descubra como aquelas ideias iluminaram o caminho para a [Revolução Francesa 1789-1799] e até para a independência do Brasil.
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Voltaire terminou Cândido com uma frase que vale para 2025:
“Il faut cultiver notre jardin.”
Vamos cultivar o nosso? O jardim da razão, da tolerância e do humor.
Porque, como diria o próprio:
“A superstição é a mãe de todas as tolices – e eu prefiro rir delas a chorar.”
Até ao próximo artigo – e lembrem-se:
Quanto mais lerem História, menos serão enganados pelo presente.
















