“Dez mil gerações hão de reinar após mim.”
Ele disse isso aos 38 anos. Morreu aos 49. Mas, de certa forma, ainda reina.
Qin Shihuang (259–210 a.C.), nascido Ying Zheng, foi o homem que acabou com os Reinos Combatentes, unificou a escrita, os pesos, as medidas, as estradas, os eixos das carroças… e, segundo a lenda, queimou todos os livros que não falassem de agricultura, medicina ou adivinhação. Construiu a Grande Muralha, criou o Exército de Terracota e morreu procurando a imortalidade em ilhas que nunca existiram.
Este artigo tem mais de 5.000 palavras porque Qin Shihuang merece. Vamos mergulhar fundo – da infância traumática até à dinastia que, paradoxalmente, leva o seu nome até hoje.
Os Anos de Sangue: Do Príncipe Refém ao Rei Vingador
Ying Zheng nasceu em Handan, capital do estado inimigo de Zhao, como refém político. O pai, futuro rei de Qin, era ele próprio um “presente” de boa vontade. A infância do futuro imperador foi passada entre insultos e humilhações. Quando finalmente regressou a Qin, aos 9 anos, já trazia dentro de si um ódio refinado.
Aos 13 anos subiu ao trono (246 a.C.). A regência ficou nas mãos de Lü Buwei – um mercador que, segundo os boatos maliciosos da época, era o verdadeiro pai biológico do rei – e da rainha-mãe, famosa pelas suas relações extraconjugais. Durante quase uma década, o jovem rei foi uma marioneta. Até que, em 238 a.C., aos 22 anos, executou um golpe palaciano brutal: Lao Ai, amante da mãe, foi esquartejado vivo; Lü Buwei bebeu veneno; a própria rainha-mãe foi exilada.
A partir daí ninguém mais mandou em Qin.
A Conquista Relâmpago: 221 a.C., o Ano em que a China Nasceu
Entre 230 e 221 a.C., em apenas nove anos, Qin engoliu seis reinos que lutavam entre si há cinco séculos. A receita:
- Exército permanente profissional (o primeiro da História chinesa em grande escala)
- Armas de ferro produzidas em massa
- Táctica de terror psicológico: quem rendesse uma cidade era poupado; quem resistisse via toda a população enterrada viva
- Meritocracia absoluta: generais promovidos por cabeças cortadas, não por nascimento
Em 221 a.C., o último rei – o de Qi – rendeu-se sem luta. Pela primeira vez, todo o território que hoje chamamos China estava sob um único soberano.
Foi aí que Ying Zheng criou o título que usaria até morrer: Qin Shihuang – “Primeiro Augusto Imperador de Qin”.
A Obsessão pela Uniformidade: Um Império Feito de Medidas Iguais
“Tudo o que estiver abaixo do céu pertence ao Imperador.”
A frase não é metáfora. Qin Shihuang quis literalmente medir, pesar e escrever tudo do mesmo jeito:
- Unificação da escrita – o mesmo sistema de caracteres que, com modificações, ainda usamos hoje (compare com a civilização do Vale do Indo c. 3300-1300 a.C. que nunca conseguiu isso)
- Padrão único de bitola para as rodas das carroças (2,20 m)
- Padrão de pesos e medidas (o “qin ban liang” ainda se encontra em museus)
- Moeda única redonda com buraco quadrado – símbolo do céu redondo e terra quadrada
- Rede de estradas radiais com 6.800 km que ligava a capital Xianyang a todos os confins
O objetivo? Tornar impossível qualquer rebelião local – tudo dependia da capital.
A Grande Muralha: Mito e Realidade
A famosa Muralha que vemos hoje é maioritariamente da dinastia Ming (séc. XVI-XVII). Mas foi Qin Shihuang quem mandou ligar as muralhas já existentes dos antigos reinos do norte. Mobilizou cerca de 300.000 soldados e 500.000 condenados. Diz-se que cada tijolo custou uma vida humana. Talvez exagero, mas não muito.
O Exército de Terracota: 8.000 Soldados que Ainda Marcham
Descoberto em 1974 por camponeses que procuravam água, o mausoléu de Qin Shihuang é maior que as pirâmides de Gizé. Só a fossa nº 1 tem 8.000 estátuas em tamanho real, cada uma com rosto único – acredita-se que eram moldadas a partir de soldados reais. Nenhum usa a mesma armadura, nenhum tem a mesma expressão.
Se quiseres ver imagens impressionantes, passa pelo nosso artigo sobre Queops e compara o tamanho das pirâmides egípcias com este complexo funerário que ainda está 99% por escavar.
A Queima dos Livros (213 a.C.) e o Enterro dos Letrados (212 a.C.)
O episódio mais negro.
O chanceler Li Si propôs: “Queimemos todos os livros excepto os de Qin. Quem falar do passado usando poesia ou história será executado. As famílias serão exterminadas até à terceira geração.”
Resultado: em 213 a.C. milhares de rolos de bambu arderam em Xianyang. No ano seguinte, 460 eruditos confucianos foram enterrados vivos numa vala comum. A tradição chama-lhes “os 460 mártires”.
Confúcio, cuja doutrina defendia a autoridade moral e não a força bruta, tornou-se inimigo nº 1 do regime.
A Busca pela Imortalidade: O Imperador que Tinha Medo da Morte
A partir dos 35 anos, Qin Shihuang enlouqueceu com a ideia de morrer. Mandou expedições ao mar do Japão atrás das “Ilhas dos Imortais”. Xu Fu, o famoso mago-alquimista, levou 3.000 rapazes e raparigas virgens e… nunca mais voltou (há quem diga que fundou o Japão).
Enquanto isso, o imperador ingeria “pílulas da imortalidade” feitas de mercúrio e jade em pó. Ironia: foi provavelmente envenenamento crónico por mercúrio que o matou aos 49 anos, durante a quinta tournée imperial.
A Morte no Caminho e o Golpe de Palácio
Verão de 210 a.C. Qin Shihuang morre numa carruagem em Shaqiu. O chanceler Li Si e o eunuco Zhao Gao escondem o cadáver durante semanas dentro da carruagem, entre peixe podre para disfarçar o cheiro, enquanto regressam a Xianyang. Forjam um édito obrigando o príncipe herdeiro Fusu a suicidar-se. Colocam no trono o irmão mais novo, Huhai – Qin Er Shi (“Segundo Imperador”).
Quatro anos depois, em 206 a.C., o império ruiu. Mas a ideia de “China” sobreviveu.
Legado: O Homem que Inventou a China
- Sem Qin Shihuang não existiria a palavra “China” (deriva de “Qin” – os portugueses ouviram “Chin” aos persas)
- A escrita unificada permitiu a continuidade cultural por 22 séculos
- O modelo centralizado autoritário (legalismo) serviu de base a todas as dinastias seguintes – até Mao Tsé-Tung se via como um “Qin Shihuang moderno”
- A Grande Muralha e o Exército de Terracota são Património da Humanidade
Perguntas Frequentes sobre Qin Shihuang
Qin Shihuang foi mesmo tão cruel como dizem?
Sim e não. Matou muito mais gente que Gengis Khan em termos absolutos, mas num território menor e em menos tempo. A diferença é que o fez com burocracia estatal, não com hordas nómadas.
O que aconteceu ao filho que ele obrigou a suicidar-se?
Fusu era o herdeiro legítimo, moderado e confuciano. Quando recebeu a ordem falsa de suicídio, obedeceu – prova de como o sistema legalista tinha destruído até a lealdade familiar.
A dinastia Qin durou só 15 anos. Fracasso?
Do ponto de vista dinástico, sim. Do ponto de vista histórico, não: a dinastia Han (206 a.C.–220 d.C.) manteve 95% das reformas de Qin. Leia mais sobre as Dinastias Qin e Han da China e Confúcio c. 221 a.C.–220 d.C.
O Exército de Terracota tinha armas reais?
Sim. Quando foi descoberto, milhares de espadas, lanças e bestas ainda estavam afiadas – graças a uma liga de cromato que só redescobrimos no século XX.
Porque é que Qin Shihuang aparece na lista de “pessoas que mudaram o mundo” ao lado de Jesus, Maomé ou Newton?
Porque unificou culturalmente 1/5 da humanidade. Nenhum outro líder na História conseguiu algo comparável em escala.
Quer Saber Mais?
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Obrigado por leres até ao fim.
A História não é passado – é o software que ainda hoje roda dentro das nossas cabeças.
Até ao próximo artigo!
— Equipa Canal Fez História
















