“Há dois princípios opostos e eternos: a Luz e as Trevas. Tudo o que é bom vem da Luz; tudo o que é mau vem das Trevas.”
— Manes (Mani), século III
Poucos personagens da Antiguidade Tardia conseguiram criar uma religião que, em menos de um século, se espalhou da Hispânia até à China. Manes (ou Mani, 216–276/277 d.C.) foi um desses raros génios sincreticos que ousou misturar Zoroastro, Buda e Jesus numa única doutrina universal. Neste artigo mergulhamos na vida, na obra e no legado do profeta que desafiou impérios e deixou marcas profundas em Agostinho de Hipona, nos cátaros medievais e até na imaginação de Salman Rushdie.
Quem Foi Manes? Origens na Babilónia Selêucida-Parta
Mani nasceu a 14 de abril de 216 d.C. em Mardinu, perto da antiga Babilónia, numa região então dominada pelos partos arsácidas e, pouco depois, pelos sassânidas. O seu nome completo era Cubricus, mas adotou “Mani” (“o Vivo”) ou “Manes” na tradição latina.
O pai, Patek (ou Futtuq), pertencia a uma comunidade elcasaita — seita batista judaico-cristã que praticava abluções rituais e seguia um vegetarianismo rigoroso. A mãe era de origem parta arsácida, possivelmente ligada à nobreza. Desde criança, Mani viveu num ambiente de sincretismo extremo: judaísmo, cristianismo gnóstico, zoroastrismo e influências budistas que chegavam pela Rota da Seda.
Aos 12 e aos 24 anos, Mani afirmou ter recebido revelações do seu “gêmeo celestial” (o Syzygos), um anjo que lhe transmitiu a missão de ser o último profeta, o “Selo dos Profetas”, após Zoroastro, Buda e Jesus.
A Doutrina Maniqueia: Uma Cosmologia Dualista Radical
O maniqueísmo é talvez o dualismo mais coerente da história das religiões:
- Dois princípios incriados e eternos:
- Deus da Luz (Ohrmazd na terminologia zoroástrica que Mani adotou)
- Príncipe das Trevas (Ahriman)
- O mundo material é o resultado de uma guerra cósmica. A matéria é má por essência.
- A alma humana contém partículas de luz presas na carne. A salvação consiste em libertar essas partículas através do conhecimento (gnose) e de uma ética ascética rigorosa.
Mani escreveu sete livros sagrados, alguns em aramaico, outros em persa médio:
- Shabuhragan (dedicado ao xá Sapor I)
- Livro dos Gigantes
- Tesouros da Vida
- Evangelho Vivo
- Epístolas
- Salmos e Orações
- Arzhang (o Livro das Imagens — obra ilustrada que escandalizou muçulmanos séculos depois)
Se queres conhecer mais sobre as fontes zoroástricas que influenciaram Mani, dá uma olhada no artigo sobre o Império Sassânida (224-651 d.C.).
A Expansão Fulminante (240–555 d.C.)
Em 240, Mani começou a pregar abertamente. Sapor I (241–272) protegeu-o inicialmente — o profeta acompanhou mesmo o xá em campanhas militares. Missionários maniqueus partiram em todas as direções:
- Oeste: Síria, Egito (onde influenciou os mosteiros coptas), Norte de África, Roma e até à Hispânia.
- Este: Ásia Central, Sogdiana, até à corte chinesa dos Tang (século VII–IX).
No Egito, papiros maniqueus foram encontrados em Kellis (Dakhla) e em Medinet Madi. Na China, o maniqueísmo foi oficialmente reconhecido em 731 d.C. como “Religião da Luz”.
A Perseguição e o Martírio
Com a morte de Sapor I, o clero zoroástrico mobed liderado por Kirdir ganhou influência. Bahram I (273–276) mandou prender Mani em Gundeshapur. Acorrentado com pesadas correntes (o célebre “grilhão de Mani”), foi torturado durante 26 dias e morreu (ou foi executado) a 26 de fevereiro de 277 — ou, segundo outras fontes, foi esfolado vivo.
A sua pele recheada de palha foi exposta nas portas da cidade como aviso. Os seus discípulos fugiram levando fragmentos dos seus livros.
O Impacto em Grandes Figuras da História
Santo Agostinho (354–430)
O maior convertido e depois o maior inimigo. Agostinho foi maniqueu durante 9 anos (373–382). Em Hipona escreveu dezenas de tratados anti-maniqueus: Contra Faustum, De Moribus Ecclesiae Catholicae et de Moribus Manichaeorum, etc. Paradoxalmente, o pensamento de Agostinho sobre o mal, o livre-arbítrio e a graça deve muito à sua fase maniqueia.
Os Cátaros e Bogomilos
Na Idade Média, o dualismo maniqueu renasceu nos Balcãs (bogomilos) e no sul de França (cátaros ou albigenses). A Igreja lançou a Cruzada Albigense (1209–1229) para os exterminar.
Islão
Apesar de Maomé nunca ter conhecido Mani, o Alcorão (sura 37:83-98) parece aludir a ele quando fala dos “sabeus”. Autores muçulmanos como al-Biruni e Ibn al-Nadim preservaram informações preciosas sobre o maniqueísmo.
Maniqueísmo Hoje: Sobrevivência e Redescoberta
Hoje restam apenas algumas centenas de maniqueus na província chinesa de Fujian (região de Quanzhou e Jinjiang), descendentes dos missionários do século VII. Desde 2010, a UNESCO reconhece o “Templo de Mani, o Buda da Luz” em Cao’an como Património da Humanidade.
No Ocidente, o termo “maniqueu” tornou-se sinónimo de visão simplista do mundo (“bem vs. mal”), mas poucos sabem que vem de um profeta real que tentou unir as grandes religiões da Eurásia.
Perguntas Frequentes
1. Mani considerava-se superior a Jesus ou a Buda?
Não. Ele dizia ser o “Paráclito” prometido por Jesus (João 14:16) e o Maitreya budista — o último mensageiro que completaria as revelações anteriores.
2. Os maniqueus praticavam o suicídio ritual (endura)?
Isso foi uma acusação medieval contra os cátaros. Nos textos originais de Mani não existe nada semelhante; apenas um ascetismo extremo para os “eleitos”.
3. Porque é que o maniqueísmo desapareceu no Ocidente?
Perseguição combinada do Império Romano (depois de 381, por Teodósio I), do Império Sassânida e, mais tarde, do Islão e da Igreja Católica.
4. Onde posso ler os textos originais de Mani hoje?
Fragmentos em copta (Medinet Madi), persa médio, sogdiano, uigur e chinês estão traduzidos em obras como Manichaean Texts from the Roman Empire (Cambridge University Press) ou no site da UNESCO sobre Cao’an.
Quer Aprofundar Mais?
Se este artigo despertou a tua curiosidade sobre religiões sincreticas e dualistas, não percas:
- Zaratustra – a fonte persa que mais influenciou Mani
- Budismo (c. 500 a.C. – presente)
- Agostinho de Hipona – o ex-maniqueu que moldou o cristianismo ocidental
- Império Sassânida (224-651 d.C.) – o palco do martírio de Mani
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A história não é branca ou preta — mas, para Manes, o universo inteiro era exatamente assim.
Obrigado por leres até ao fim.
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Artigo publicado originalmente em Canal Fez História
















